josineide francisco sampaio
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“O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de Maceió
- Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos
humanos”
por
Josineide Francisco Sampaio
Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências
na área de Saúde Pública.
Orientador principal: Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Segunda orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Machado de Albuquerque
Rio de Janeiro, setembro de 2013.
Esta tese, intitulada
“O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de Maceió
- Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos
humanos”
apresentada por
Josineide Francisco Sampaio
foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:
Prof.ª Dr.ª Cecília Paiva Neto Cavalcanti
Prof.ª Dr.ª Fátima Sueli Neto Ribeiro
Prof.ª Dr.ª Maria Helena Barros de Oliveira
Prof. Dr. Renato José Bonfatti
Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – Orientador principal
Tese defendida e aprovada em 20 de setembro de 2013.
Catalogação na fonte
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
S192 Sampaio, Josineide Francisco
O direito à saúde de crianças e adolescentes da Orla Lagunar de
Maceió - Alagoas: a atenção à saúde em um processo de exigibilidade de direitos humanos. / Josineide Francisco Sampaio. -
- 2013.
160 f. : tab. ; mapas
Orientador: Vasconcellos, Luiz Carlos Fadel de
Albuquerque, Maria de Fátima Machado de Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca, Rio de Janeiro, 2013.
1. Direito à Saúde. 2. Direitos Humanos. 3. Executoriedade da
Lei. 4. Acesso aos Serviços de Saúde - legislação &
jurisprudência. I. Título.
CDD – 22.ed. – 344.0321098135
José Francisco dos Santos
(Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Correntes, em Pernambuco, assassinado no dia 15 de
agosto de 1980).
Havia uma revoada de abelhas
Esmorecendo a germinação do tempo
E um poema feito ao rouxinol
Antes que o dia esculpisse o mundo.
Havia um fóssil solto de abandono
Carregando a tristeza para longe.
Formigas inertes tomavam a feição da noite
Nos interditos locais da carne.
Havia uma palavra baldia num caixote
Um sossego azul beirando as borboletas.
Havia uma água perfumosa
Transbordando para o outono.
Havia o teu nome e a santidade
Que a terra assinala em muitas faces.
E havia também a maldade peneirando
As digitais nos fuzis. E houve o tiro.
E houve a morte por um instante.
Jelson Oliveira
A Deus, porque ele é bom, porque o seu amor é para
sempre! Ele é minha força e energia, ele é a minha
salvação.
Ao meu pai, José Francisco, que se imortalizou em meu
coração por sua integridade, coragem e perseverança.
Aos meus filhos, João Marcos e Júlia, fonte de força e
coragem para prosseguir, sempre!
AGRADECIMENTOS
Deus, eu te agradeço por teu infinito amor e sabedoria. Tu és minha luz e salvação.
Ao meu pai, minha eterna admiração, pelos valores que testemunhou.
A minha mãe, pelo apoio.
Aos meus filhos, pelo apoio, partilha, compreensão, carinho e proteção.
A todos os meus familiares, por contribuírem para que esse sonho se realizasse,
especialmente, meu irmão Djalma, pelo apoio e proteção.
Aos meus orientadores, que me conduziram durante toda essa caminhada, pois, propiciaram
condições para que eu avançasse e perseverasse até o fim.
Aos professores, por contribuírem para meu amadurecimento profissional.
À coordenação do programa, pela compreensão, confiança e solidariedade.
Àqueles que encontrei no decorrer dessa caminhada e se tornaram amigos, um dos maiores
presentes que recebi, como Cristina, Nilza, Jorge, Gigliola, Waglânia, Aurilene, Ana Luiza,
Ana Suerda, Cristiane, Suelma, Ana Cláudia, Anubes, Ângela, Liza, Bianca, José da Paz e
Climério.
Aos participantes da banca examinadora, por sua disponibilidade e contribuição.
A Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ e às demais universidades participantes do
projeto DINTER-PB, pela oportunidade de nos permitir consolidar e evoluir
profissionalmente, especialmente, à Universidade Federal de Alagoas e à Faculdade de
Medicina, por terem me dado todas as condições de participar desse doutorado.
Ao Juiz da 28ª Vara Civil da Infancia e Juventude da Capital, pelo apoio institucional à
execução desse estudo.
À Promotoria da Infância e Juventude da Capital, pelo apoio e disponibilidade.
A todos que contribuíram, concedendo informações valiosas que permitiram a consecução
desse estudo: representantes da gestão municipal, das ONGs, do poder judiciário e das
comunidades da orla lagunar.
Ao meu amigo Antônio Lima, pela amizade, partilha e colaboração na construção desse
trabalho.
Àqueles que me acolheram e me sustentaram no decorrer dessa caminhada, como o Dr.
Fernando Caldas.
A todos que, de algum modo, contribuíram para que pudesse alcançar essa vitória, MUITO
OBRIGADA!
RESUMO
A presente tese resulta de um estudo que teve como objetivo analisar a efetivação do direito à
saúde em comunidades empobrecidas brasileiras, por meio de um estudo de caso sobre um
processo de exigibilidade de direitos humanos em comunidades da orla lagunar de Maceió-
AL. Para alcançarmos o objetivo proposto, foi realizada a análise documental dos autos do
processo judicial para identificar o caminho jurídico-administrativo percorrido e os principais
desdobramentos para o cumprimento da sentença. Também foram realizadas entrevistas com
os principais atores sociais para identificar as representações socias concernentes tanto ao
processo de exigibilidade de direitos como as políticas públicas que foram desenvolvidas nas
comunidades. Para análise das evidências, recorreu-se a abordagem baseada no direito,
principalmente do direito à saúde, utilizando proposições como indivisibilidade de direitos,
responsabilização e participação. Com a análise, percebeu-se a importância da identificação
das violações de direitos humanos e da integração dos titulares de direitos no processo de
exigibilidade junto ao Estado. Verificou-se que o poder Executivo adotou estratégias para
eximir-se da responsabilidade de garantir os direitos fundamentais. Viu-se que há restrições à
participação dos titulares de direito nas decisões. Evidenciou os limites do Poder Judiciário
para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de mecanismos institucionais
que assegurem a efetivação dos direitos sociais. Demonstrou a importância da utilização dos
instrumentos de exigibilidade para o fortalecimento da luta política, para a conquista da
cidadania, para a realização dos diretos assegurados e, desse modo, para garantia de uma vida
digna para todos.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à saúde; direitos humanos; instrumentos de exigibilidade de
direitos; judicialização.
ABSTRACT
This thesis results from a study that aimed to examine the effectiveness of the right to health
in impoverished communities in Brazil, through a case study of a lawsuit for enforceability of
human rights in communities from Orla lagunar de Maceió-AL. To achieve the proposed
objective, documentary analysis was carried from court proceedings to identify the path
traversed legal-administrative and major ramifications for the judgment. Interviews were
conducted with key social actors to identify the social representations concerning as the
process of enforceability of rights as the public policies that have been developed in the
communities. For analysis of the evidences, we used the approach based on the right,
especially the right to health, using propositions as indivisibility of rights, accountability and
participation. With the analysis, we realized the importance of identifying violations of human
rights and the integration of the rights holders in the process of enforceability by the State. It
was found that the Executive has adopted strategies to evade the responsibility of
guaranteeing fundamental rights. We have seen that there are restrictions to participation of
rights holders in decisions. Showed the limits of the judiciary to ensure implementation of the
decisions and the need for institutional mechanisms to ensure the fulfillment of social rights.
Demonstrated the importance of using instruments of accountability for the strengthening of
the political struggle for the conquest of citizenship, to the attainment of direct insured and
thus to guarantee a dignified life for everybody.
Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights;
judicialization.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABRANDH Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos
AIDS Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida
ANS Agência Nacional de Saúde
CÁRITAS Confederação de Organizações Humanitárias da Igreja Católica
CEPA Centro Educacional de Pesquisa Aplicada
CF/88 Constituição Federal de 1988
CMDSS Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde
CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social
DSS Determinantes Sociais da Saúde
DST Doença Sexualmente Transmissível
DUDH Declaração Universal dos Diretos Humanos
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
FIAN Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar
GLBT Gays Lésbicas Bissexuais e Transexuais
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
IML Instituto Médico Legal
LGBT Lésbicas Gays Bissexuais e Travestis
MDM Metas de Desenvolvimento do Milênio
OIT Organização Internacional do Trabalho
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PSF Programa Saúde da Família
RECID Rede de Educação Cidadã
SAMU Serviço Ambulatorial Móvel de Urgência
SEINFRA Secretaria de Estado da Infraestrutura
SUS Sistema Único de Saúde
TAC Termo de Ajustamento de Conduta
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12
1.1 Metodologia ............................................................................................................. 16
2 POLÍTICAS PÚBLICAS: MARCO TEÓRICO E METODOLÓGICO ......... 20
2.1 Políticas públicas e a abordagem de direito ............................................................. 27
2.2 Direitos humanos e a saúde ..................................................................................... 30
2.3 Exigibilidade de direitos .......................................................................................... 35
2.4 Instrumentos de exigibilidade de direitos ................................................................ 37
3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL .................................................................. 40
3.1 Respostas públicas às demandas para realização do direito à saúde ....................... 43
4 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA: EM BUSCA DA GARANTIA DE DIREITOS .. 49
4.1 Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da sentença .............................. 52
4.2 A participação dos atores sociais no processo de judicialização ............................. 55
4.3 O direito à saúde no processo de judicialização ...................................................... 57
5 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DE
EXIGIBILIDADE DE DIREITOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
IMPLEMENTADAS NAS COMUNIDADES ORIUNDAS DA ORLA
LAGUNAR DE MACEIÓ-AL ..............................................................................
61
5.1 O processo de exigibilidade de direitos sob a perspectiva dos atores sociais ......... 63
5.2 A implementação das políticas públicas nas comunidades beneficiadas pela
decisão judicial ........................................................................................................
71
5.3 Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à
saúde ........................................................................................................................
81
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 93
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 95
ANEXOS ................................................................................................................ 103
ANEXO I: Instrumentos de coleta e de análise dos dados ...................................... 104
ANEXO II: Capítulo de livro em vias de publicação .............................................. 108
ANEXO III: Artigo submetido para publicação ...................................................... 125
ANEXO IV: Artigo para apreciação da banca examinadora ................................... 143
12
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, o cenário de exclusão social, de pobreza e miséria demonstra que as
políticas públicas não têm sido eficientes e nem suficientes para alterar, substancialmente,
esse quadro. Nesse sentido, nas comunidades em que vivem a população pobre e miserável, os
direitos humanos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, são sempre violados
em graves proporções; e os agentes públicos do Estado nem sempre estão aptos a realizarem
esses direitos, seja por questões concretas ou ideológicas (ALBUQUERQUE; BURITY,
2008).
Apesar de os movimentos de resistência e de luta pela garantia dos direitos sociais
serem significativos e influentes na história do Brasil, na sua cultura política têm
predominado tradições centralizadoras e patrimonialistas, permeadas por relações
clientelistas, meritocráticas e de interesses articulados entre determinados grupos socias e o
Estado (JACOBI, 1999). Isso faz com que a cidadania seja marcada pela forte presença da
tutela e submissão do povo aos ditames do Estado, numa tendência ao neoliberalismo, que
focaliza políticas públicas de baixa qualidade para os pobres (PIRES; DEMO, 2006).
Nesse contexto, muitos são os desafios enfrentados para garantir a efetivação dos
direitos sociais, especialmente das camadas mais empobrecidas da sociedade. Isso faz emergir
as questões norteadoras desta pesquisa: de quais instrumentos de exigibilidade a sociedade
dispõe para a realização dos direitos assegurados? Quão eficazes são esses instrumentos?
Nesse sentido, a presente tese resulta de um estudo que teve como objetivo analisar a
efetivação do direito à saúde em comunidades empobrecidas brasileiras, por meio de um
estudo de caso sobre um processo de exigibilidade de direitos humanos em comunidades da
orla lagunar de Maceió-AL.
Essas comunidades estão situadas na região periférica de Maceió, mas precisamente
as margens da Lagoa Mundaú, ocupando uma extensão de 2,5 km. No início do processo de
exigibilidade a área era ocupada por cerca de 1600 famílias que viviam em condições de
extrema vulnerabilidade social (ver Mapa I).
13
MAPA I- Área das comunidades da Orla Lagunar beneficiadas pela Ação Civil.
Maceió-2005.
Fonte: Imagens de Satélite: Secretaria de Planejamento de Maceió, 2005.
O processo de exigibilidade instaurado nessas comunidades foi impulsionado a partir
de uma iniciativa da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) que
executou, entre 2004 e 2007, projetos pilotos em duas comunidades localizadas em áreas
urbanas de ocupação1 nas cidades de Maceió-AL e Teresina-PI, nas quais a população vivia
em situação de extrema pobreza.
1O termo refere-se à ocupação de área urbana pública, com objetivo de reivindicar a regularização fundiária, ou
seja, o título de concessão para fins de moradia.
14
Segundo Albuquerque & Burity (2008, p.159), os resultados do inquérito realizado
nessas comunidades revelou “o quanto a pobreza é resultado e causa de violações graves de
direitos humanos que põem em risco ou eliminam, de forma violenta, a dignidade humana.”
Além disso, esse resultado representa a realidade de tantas outras comunidades existentes no
país, nas quais as condições de vida da população e o ambiente onde vivem são bastante
deteriorados.
A apresentação das violações identificadas no inquérito junto às comunidades
permitiu que fossem definidas as demandas prioritárias e as metas a serem alcançadas para
que fossem traçadas ações de exigibilidade. Isso estimulou a participação e a articulação de
parcerias com outros setores da sociedade civil organizada e do próprio Estado e engendrou
um processo de negociação para a exigibilidade dos direitos junto aos órgãos públicos, através
de petição de direito, reuniões e audiências públicas.
Como a correção das violações existentes e as metas negociadas não foram
cumpridas pelas autoridades públicas, o Ministério Público Estadual de Alagoas, juntamente
com a Procuradoria Regional do Trabalho, propôs, junto ao Poder Judiciário, uma Ação Civil
Pública, exigindo a responsabilização do município de Maceió para que fosse assegurada a
correção das violações dos direitos das crianças e adolescentes nas comunidades Sururu de
Capote, Torre, Mundaú e Muvuca, localizadas na orla lagunar.
Por terem sido consideradas procedentes as denúncias e reivindicações impetradas
pela Ação Civil Pública, pois tinham como base tratados de direitos humanos e normas
nacionais, particularmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi determinado
pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital (Infância e Juventude) que a prefeitura de
Maceió implementasse ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas
comunidades através da elaboração e execução de políticas públicas.
É importante ressaltar que essa Ação Civil Pública foi a primeira no país que,
fundamentada nos princípios dos direitos humanos, exigiu a implementação conjunta de
vários direitos constitucionais fundamentais, como educação, saúde, alimentação adequada e
vida digna para crianças e adolescentes (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008). Desse modo, a
sentença considerou os direitos como uma unidade indissolúvel, permitindo que as famílias e
toda a comunidade fossem beneficiadas com a decisão.
15
Entretanto, a decisão judicial não se encerra em si mesma, pois tal processo integra
uma correlação de forças entre os atores sociais envolvidos. De um lado, a prefeitura de
Maceió, que desrespeitou e utilizou os recursos jurídicos e administrativos para não realizar as
políticas públicas determinadas pela Ação Civil Pública e, do outro, as comunidades,
enquanto titulares de direitos, organizadas com seus parceiros para cobrarem dos portadores
de obrigações, inclusive o Poder Judiciário, o cumprimento da decisão.
Esse processo de exigibilidade de direitos – e entre eles está à saúde – no qual se
determinou que as violações fossem corrigidas por meio de políticas públicas (sociais e
econômicas) demonstra a existência de uma relação intrínseca entre saúde pública e direitos
humanos, pois a promoção e a proteção à saúde exigem esforços concretos para promover e
proteger tais direitos, do mesmo modo que o maior cumprimento dos direitos humanos requer
especial atenção à saúde e aos determinantes sociais nela envolvidos. Também, com esse
caso, ilustra-se a complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos
humanos na condução das políticas e programas de saúde mais eficazes.
Desse modo, esse estudo sobre esse processo de exigibilidade de direitos bem como
análise de como estão sendo formuladas e implementadas as políticas públicas de atenção à
saúde das crianças e adolescentes empobrecidas da Orla Lagunar de Maceió requereu que se
recorresse à abordagem de direito sobre o processo de produção de políticas públicas,
principalmente o direito à saúde e os instrumentos de exigibilidade de direitos disponíveis em
nosso país, cujas reflexões compõem a segunda seção.
Na terceira seção, expõem-se as reflexões resultantes da revisão de literatura sobre o
direito à saúde e a sua judicialização no Brasil, para nos auxiliar na análise do contexto da
constituição do processo exigibilidade, bem como do papel e da atuação dos atores sociais
envolvidos e das ações governamentais desenvolvidas para o cumprimento da sentença.
Na quarta seção, analisou-se a fundamentação da Ação Civil Pública, as
determinações da sentença e o caminho jurídico-administrativo percorrido para sua execução,
identificando os principais desdobramentos, os limites e o alcance desse instrumento de
exigibilidade para garantir a realização dos direitos prescritos, entre os quais, o direito à
saúde.
Na quinta seção, analisou-se a constituição do processo de exigibilidade e as ações
governamentais desenvolvidas nas comunidades beneficiadas pela decisão judicial,
16
identificando limites e possibilidades a partir da atuação e da percepção dos atores sociais
envolvidos.
Por fim, apresentam-se as considerações finais sobre o caso, à luz dos elementos
teóricos e empíricos que embasaram o seu estudo.
1.1 Metodologia
Este estudo constituiu-se numa análise sobre o processo de exigibilidade de direitos
humanos – entre esses, do direito a saúde – e de como foram implementadas as políticas
públicas nas comunidades da orla lagunar de Maceió – AL, beneficiadas por uma Ação Civil
Pública.
Segundo Oliveira (2007), o estudo de caso se propõe a revelar fundamentalmente as
especificidades do fenômeno social estudado, embora possa oferecer, no seu desenho e
resultados finais, conclusões generalizáveis. Quanto à sua utilização, Yin (2001) afirma que
esse tipo de estudo é recomendável quando se pretende estudar eventos contemporâneos que
permitam observações diretas e entrevistas sistemáticas, além de utilizar documentos escritos,
registros, dados pessoais arquivados, artefatos e informações gerais.
Nessa perspectiva, este estudo baseou-se na análise documental dos autos do
processo judicial e entrevistas dos principais atores sociais concernentes tanto ao processo de
exigibilidade de direitos como as políticas públicas que foram desenvolvidas nas
comunidades.
Foram analisados os documentos que constituíram o processo de judicialização
iniciado a partir da Ação Civil Pública impetrada em favor da proteção dos direitos das
crianças e adolescentes residentes nas comunidades Mundaú, Sururu de Capote, Torre e
Muvuca em Maceió-AL.
Assim, foram identificados e sistematizados os documentos ajuntados aos autos do
Processo Nº 4830/07, disponibilizados pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital
(Infância e Juventude), correspondentes ao período de setembro de 2007 a julho de 2012,
distribuídos em sete volumes, totalizando 2072 páginas, organizados segundo critério de
arquivamento cartorial. Esse arquivo é composto por 1 relatório base da Ação Civil Pública, 1
relatório da sentença, 2 recursos, 45 ofícios, 28 despachos do juiz, 14 requerimentos e
17
petições, 24 mandados e certidões, 13 pronunciamentos da promotoria, 5 decisões
complementares, 5 alvarás e termos de compromisso de fiel depositário e 1 projeto de
pesquisa, com respectivo relatório, além de outros documentos anexados de variada natureza.
Para efeito de sistematização, a análise foi disposta em forma de tabela, na qual
puderam ser vistas as decisões e ações concretas relacionadas ao processo de exigibilidade de
direitos humanos, identificando os principais atores (poder judiciário, prefeitura, entidades da
sociedade civil e comunidade), datas, tipos de documentos, decisões/encaminhamentos e
ações concretas. A partir dessa organização, foi elaborada uma descrição do caminho
percorrido pela Ação Civil Pública em defesa dos direitos humanos das famílias oriundos das
comunidades da orla lagunar de Maceió/AL.
As entrevistas foram realizadas com atores-chave que participaram e/ou que estão
envolvidos no processo tanto de exigibilidade de direitos como de implementação de políticas
públicas relacionadas à efetivação do direito à saúde nas citadas comunidades. Considerando
o aspecto qualitativo desse estudo, optou-se por entrevistar três representantes da gestão
pública municipal, três representantes do poder judiciário estadual, incluindo os
representantes do Ministério Público, três representantes de organizações não governamentais
e/ou dos movimentos sociais e três representantes das comunidades da orla lagunar.
No entanto, foram entrevistados nove atores-chave, pois concederam entrevista
apenas dois representantes do Município de Maceió, porque o então secretário de saúde
remarcou por diversas vezes a entrevista, deixando clara a sua indisposição em conceder seu
depoimento. Também foram entrevistados apenas dois representantes do Poder Judiciário,
visto que, o juiz que deferiu e acompanha a sentença se negou a conceder o seu depoimento,
alegando que seu posicionamento estava explícito nos autos que disponibilizou para esse
estudo e por esse processo ainda estar em execução. Do mesmo modo, foram entrevistados
apenas dois representantes das organizações não governamentais, por seus depoimentos terem
sido suficientes, semelhantes entre si e pelo fato de outro ator-chave identificado não mais se
encontrar no estado. Em relação aos representantes das comunidades oriundas da orla lagunar,
todos os representantes foram entrevistados.
Essas entrevistas foram abertas, subsidiadas por um roteiro e conduzidas de forma
espontânea. Elas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados depois de terem sido
prestados os devidos esclarecimentos quanto aos objetivos da pesquisa e ao uso dos
depoimentos. Isso nos permitiu obter informações sobre como se constituiu o processo de
18
exigibilidade de direitos nessas comunidades, a partir da percepção desses atores sociais
envolvidos. Também, foi possível identificar as políticas públicas, traduzidas em ações,
programas e prestação de serviços relacionados à saúde nas comunidades.
As entrevistas foram transcritas integralmente. Porém, para fins de análise, foram
extraídas as unidades naturais dos depoimentos, o que corresponde à identificação de suas
expressões-chave para identificar o que é passível de ser analisado. Isso possibilitou a
elaboração de uma síntese interpretativa das descrições essenciais dos depoimentos segundo a
técnica de condensação de significados (MINAYO, 1996; GIBBS, 2009).
Os depoimentos foram descritos no texto de forma a preservar a identidade dos
sujeitos da pesquisa, omitindo-se seus nomes, cuja substituição se deu pelo termo
“representante do poder executivo”, “representante do poder judiciário”, “representante da
sociedade civil organizada” e “representante da comunidade”. Portanto, as falas foram
identificadas por esses termos representativos de cada sujeito, ou seja, uma pessoa ligada ao
governo local, seja da prefeitura, seja de uma das secretarias municipais, a fala foi identificada
como “representante do poder executivo - RPE”, se a fala foi do representante do ministério
público, foi identificada como fala do “representante do poder judiciário - RPJ”, se a fala foi
do representante de algum movimento social organizado, foi identificada como fala do
“representante da sociedade civil organizada - RSCO”, e se a fala foi de algum morador ou
liderança comunitária, foi identificada como fala do “representante da comunidade - RC”.
As citações das entrevistas foram apresentadas em estilo escrito, utilizando-se o
símbolo [...] para indicar a supressão de digressões, seguindo as orientações de Gibbs (2009),
numa adaptação de Kvale (1996).
Os procedimentos da análise documental e das entrevistas permitiram entrecruzar os
dados e elaborar uma síntese interpretativa, estabelecendo um diálogo com referencial teórico
adotado e a literatura pertinente para atender aos objetivos desse estudo.
Para esse procedimento de análise, recorreu-se à abordagem teórica sobre políticas
públicas sob a perspectiva dos direitos humanos, utilizando proposições como indivisibilidade
de direitos, responsabilização e participação.
Segundo Hansen e Sano (2006), a abordagem baseada no direito pressupõe que a
análise do problema seja feita a partir da ligação do problema com a rede de direitos,
19
empoderamento, participação proativa dos titulares nas reivindicações, não discriminação,
atenção aos grupos vulneráveis e prestação de contas.
Esta pesquisa teve seu Projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de
Saúde Pública - FIOCRUZ, CAAE: 01288112.3.0000.5240. O acesso à documentação que
compôs o processo judicial em análise foi permitido mediante Termo de Livre Acesso
Institucional assinado pelo Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e Juventude da
Capital e as entrevistas realizadas mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
20
2 POLÍTICAS PÚBLICAS: MARCO TEÓRICO E METODOLÓGICO
O campo de estudos conhecido como análise de políticas públicas, que se propõe
analisar as relações entre governo, governantes e cidadãos, vem crescendo significativamente
a partir da década de 1980 (VIANA; BAPTISTA, 2008). Tal campo comporta diversas
definições e formalizações teórico-metodológicas que foram desenvolvidas para apreender a
dinâmica e a complexidade que o processo acelerado de mudanças vem imprimindo nos
sistemas políticos e nas sociedades em âmbito nacional e internacional (PIOVESAN, 2009).
Como políticas públicas, Gelinski e Seibel (2008) as definem como ações
governamentais destinadas a atender determinadas necessidades públicas, que podem ser
sociais (como as políticas de saúde, educação e assistência), macroeconômicas (como a
política cambial, fiscal e monetária) ou outras (como de ciência e tecnologia, cultura e
agrícola). Já Rua (1997, p. 2), compreende essas políticas como um “conjunto de
procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à
resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos”.
Nesse mesmo sentido, para Saravia (2006), a política pública consiste num fluxo de
decisões políticas para manter o equilíbrio social, ou mesmo causar desequilíbrios, com a
finalidade de modificar a realidade. Essas decisões são condicionadas pelo seu próprio fluxo,
pelas reações e modificações que elas provocam no tecido social e pelos valores, ideias e
visões dos que incorporam ou influenciam na decisão. No entanto, sob uma perspectiva
operacional, a política pública se constitui em um sistema de decisões públicas relacionadas a
ações e omissões, preventivas ou corretivas, para manter ou alterar setores da vida social,
através da definição de objetivos, estratégias de atuação e alocação de recursos para alcançar
os resultados desejados.
Como síntese dessas definições de políticas públicas, Souza (2006) as concebe como
um campo de conhecimento que visa colocar o governo em ação, analisar essa ação e propor
mudanças na direção dessas ações, quando for necessário.
Geralmente, o processo de constituição das políticas públicas se estabelece numa
trilogia que se inicia no processo de formulação – que se desdobram em planos, programas e
projetos – passando para a fase de implementação, seguida de acompanhamento e avaliação
(GELINSKI; SEIBEL, 2008; SOUZA, 2006). Embora essa concepção seja usual, Saravia
(2006) adverte quanto à necessidade de maior especificação, no caso do contexto latino-
21
americano, sugerindo que seja feita uma distinção entre elaboração, que consiste na fase de
preparação da decisão política, e formulação, na qual ocorre a decisão política e a sua
formalização jurídica. O autor também propõe uma distinção entre implementação, que
consiste na elaboração de planos, programas e projetos, e execução, onde se põe em prática a
decisão política.
Entretanto, na prática, o processo de constituição de políticas públicas nem sempre
obedece a essa sequência, por tratar-se de uma dinâmica não linear e descontínua, as
articulações, disjunções e relações de causa e efeito entre uma etapa e outra não são
totalmente evidentes, pois ocorrem várias mudanças no decorrer do processo, podendo ser
transformadas até chegar à fase de execução. Isso faz com que alguns autores aceitem essa
perspectiva conceitual apenas para fins heurísticos (PIOVESAN, 2009).
Identificamos na literatura que trata das políticas públicas um consenso em torno da
formulação de Lowi (1972) sobre seus diferentes formatos, configurando-se como
distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas, segundo seus objetivos, arenas,
processos e formas de apoio e rejeição. As políticas distributivas envolvem decisões tomadas
pelo governo que privilegiam determinados grupos sociais e desconsideram o limite de
recursos. Apesar de privilegiarem determinados grupos, essas políticas não geram maiores
conflitos em suas arenas, pois seus impactos são geralmente individuais. As políticas
redistributivas envolvem grande número de pessoas, causando, em curto prazo, perdas para
alguns grupos sociais e ganhos incertos, no futuro, para outros. Por essa razão, essas políticas
são de difícil negociação e suas arenas, permeadas por conflitos. Por sua vez, as políticas
regulatórias envolvem burocracia, políticos e grupos de interesse. Possuem visibilidade
pública por seu caráter normativo ao se referirem a ordens e a proibições. Nesse sentido, o
nível de conflitos em suas arenas depende da natureza das questões postas em pauta. Por fim,
as políticas constitutivas envolvem os procedimentos e as regras que estruturam os processos
e as condições gerais de negociação para constituição das demais políticas (SOUZA, 2006;
FREY, 2006; PIOVESAN, 2009).
A partir das várias definições e modelos desenvolvidos, Souza (2006) identifica três
elementos principais da política pública, a possibilidade de se estabelecer a diferença entre o
que o governo pretende fazer e o que realmente faz, o envolvimento de uma variedade de
atores e níveis de decisão, que abrange participantes formais e informais, e o caráter de longo
22
prazo, que envolve processos subsequentes a partir de sua formulação, como sua
implementação, execução, acompanhamento e avaliação.
A partir da definição de política pública e considerando-a como objeto de estudo,
Frey (2006) propõe uma análise que considere a integração de vários elementos, tais como: a)
a própria política pública com seus programas, questões técnicas e conteúdo das decisões
políticas; b) os seus processos políticos, geralmente de caráter conflituoso relacionado à
definição de objetivos, conteúdos e distribuição de recursos; c) as instituições políticas, a
ordem do sistema político, principalmente o seu sistema jurídico, e a estrutura institucional
político-administrativa, que constituem uma sociedade política e; d) as instituições que
direcionam as decisões, formulação e implementação das políticas que se entrelaçam e sofrem
influencias recíprocas. Essas perspectivas de análise oferecem categorias analíticas para a
estruturação de pesquisas no campo de políticas públicas, por meio de modelos
representativos e tipos ideais que permitem apreender e explicar possíveis articulações entre
elas.
Saravia (2006) alerta sobre o quão é importante o ponto de vista do analista em um
estudo de política pública, pois esse campo aglutina diferentes formas de análise. Além disso,
elenca, a partir de Hogwood e Gunn (1984), várias perspectivas para estudo de uma política.
Algumas dessas perspectivas se assemelham às acima citadas, principalmente quanto aos
estudos de conteúdos, processos decisórios, alocação e distribuição de recursos. O autor
também apresenta outras perspectivas, como os estudos de avaliação, que podem ser
descritivos ou prescritivos, os de levantamento de informações para subsidiar a elaboração de
políticas, os de análise de processo para qualificar os sistemas de elaboração de políticas e os
estudos em que o analista exerce influência no processo de constituição da política para
defender ideias ou posições específicas.
O estudo de Faria (2003) sobre as principais vertentes formuladas recentemente na
área de políticas públicas identifica que, desde o seu início, predominam como foco de análise
os processos de formação das políticas, com especial destaque para os processos decisórios.
Posteriormente, a definição da própria política passou a ser uma importante unidade de
análise, com destaque para os processos políticos e para os diversos atores envolvidos.
Atualmente, há uma grande diversificação de abordagens que tentam dar conta da dinâmica e
da complexidade dos processos de formação e gestão das políticas públicas e que dão ênfase
ao papel do conhecimento.
23
Diante da diversidade de formulações teóricas que se abrigam no campo de análise
sobre políticas públicas, algumas vertentes merecem destaque, entre as quais a pluralista, a
estrutural-funcionalista, a neocorporativista, a neopluralista, a neoinstitucionalista e a
abordagem de direito. Vale ressaltar que muitas dessas abordagens, embora elaboradas em
certa sequência temporal, convergem-se em vários aspectos. Por essa razão, serão descritas
sucintamente, com ênfase na relação entre política pública e direito, especialmente direito à
saúde, que é o objeto de estudo deste trabalho.
Na perspectiva pluralista, o Estado é visto como produto da interação entre os grupos
livremente formados, sendo, assim, permeável às pressões e aos interesses desses grupos.
Nesse sentido, o poder é difuso e distribuído igualmente entre os diversos atores e/ou grupos
sociais, dependendo da capacidade e disposição de cada um de articular estratégias e recursos
na disputa por seus interesses para garantir a vitória sobre os demais. Por isso, é considerada
uma teoria normativa capaz de examinar e explicar o poder nas democracias liberais (RUA,
1997; OLIVEIRA, 2007).
Entretanto, seus principais argumentos foram contestados por seus opositores, ao
afirmarem que não há equivalência de poder entre os grupos e atores sociais, e sim, um
domínio político exercido por determinados grupos, como os militares, os de grandes
corporações comerciais e as agências estatais (OLIVEIRA, 2007).
Como resposta às críticas recebidas, os seguidores dessa perspectiva recorreram à
teoria econômica para defender a semelhança existente entre a política e o mercado. Desse
modo, as lideranças políticas através dos partidos políticos competem por votos e concorrem
entre si para ganhar poder e, à medida que atendem às demandas dos grupos de pressão,
fortalecem o poder do Estado, acirrando a disputa com o mercado (OLIVEIRA, 2007).
Segundo Souza (2006), essa perspectiva adota um viés cético quanto à capacidade
governamental de formular políticas públicas, pois demonstra desconfiança nos mecanismos
políticos de decisão e defendem a lógica decisória do mercado e a visão de que interesses são
mobilizados apenas pelo auto-interesse, quando também são acionados por processos
institucionais, ideias e processos históricos de cada sociedade.
Já a vertente estrutural-funcionalista busca evidenciar o modo como as instituições se
articulam entre si para manter o status quo, cujo processo é permeado por crises sociais e
transformações subsequentes. Suas teorias indicam que há uma supremacia da estrutura na
24
ação política e que a divisão social do trabalho em classes, o modo de produção capitalista, o
estado e a ideologia seus propulsores, por isso, é considerada uma perspectiva de análise
determinista (OLIVEIRA, 2007).
Em reação a essas duas primeiras correntes, as teorizações neocorporativistas
enfatizam a representação de interesses através de organizações formais, legalmente
reconhecidas pelo Estado, que atuam nas arenas decisórias. Nesse sentido, o Estado assume
um papel de direção, pois faz a mediação entre os principais grupos econômicos e sociais e
detém o poder jurídico e organizacional, conferindo-lhe certa autonomia (OLIVEIRA, 2007).
Segundo essa mesma autora, os neopluralistas contestam tanto as teses que atribuem
domínio aos grupos de pressão quanto às organizações de representação monopólica, sob a
argumentação de que elas não dão conta da complexidade dos processos políticos
relacionados à produção de políticas públicas nas modernas sociedades. Para isso, propõem a
metáfora do funil como representação do processo de produção de políticas. Em sua abertura,
há maior espaço para atores e grupos sociais se expressarem e articularem seus interesses,
porém, à medida que o processo se afunila, a participação se reduz às organizações que
representam interesses de grande contingente de afiliados. Tais organizações são autorizadas a
propor, influenciar e escolher, entre as alternativas disponíveis, aquelas que melhor se
acomodam aos seus interesses. Na saída do funil, encontram-se apenas um grupo reduzido
que compõe as arenas institucionais e que tomam as decisões finais na produção de uma
política. Embora na prática, a maioria dos eventos não obedeça totalmente essa sequência,
essa perspectiva contribui para visualização do processo de formação de uma política.
Tanto os neopluralistas quanto os neocorporativistas enfocaram a intermediação de
interesses veiculados pelas redes ou comunidades políticas fortemente organizadas e
vinculadas formalmente às arenas estatais de decisão (PIOVESAN, 2009). Entretanto, a
análise do poder político como algo estático ou relativo à especificidade de determinados
grupos ou atores não permite explicar como semelhantes grupos organizados e poderosos
alcançaram resultados bem diferentes em diversos contextos políticos (IMMERGUT, 1992).
O neoinstitucionalismo tem exercido forte influência no campo de políticas públicas
por fornecer instrumentos analíticos que possibilitam apreender o papel das instituições e das
regras formais e informais que regem, inclusive, o comportamento dos atores no processo de
produção das políticas (SOUZA, 2006). Porém, essa vertente teórica não se constitui em uma
corrente de pensamento unificada, pois segundo Hall e Taylor (2003), ela integra, no mínimo,
25
três vertentes analíticas, as quais designam como institucionalismo histórico,
institucionalismo da escolha racional e institucionalismo sociológico.
Entretanto, para fins dessa exposição, faremos apenas uma breve exposição das
escolas do institucionalismo histórico e da escolha racional, pela sua crescente utilização em
estudos do campo da saúde pública, pois o institucionalismo sociológico possui maior
inserção no campo das ciências sociais.
O institucionalismo histórico enfatiza o papel que desempenha a evolução histórica
das instituições e a conjuntura política no processo de produção de uma política pública.
Atribui especial atenção às relações de poder assimétricas, evidenciando como o poder é
distribuído desproporcionalmente entre os grupos sociais, conferindo acesso desigual a atores
que representam certos interesses no processo decisório (HALL; TAYLOR, 2003). Também
defende que a formulação e a implementação de uma política “depende da trajetória
percorrida pelos atores, cuja força se modifica em função das características de cada contexto
e de seu legado” (OLIVEIRA, 2007, p. 17).
Essa vertente analítica procura situar as instituições em uma cadeia causal que
possibilita explicar como elas produzem seus trajetos e estruturam suas respostas às
demandas, além de permitir a inclusão de fatores como o desenvolvimento socioeconômico e
a difusão de ideias em sua análise. Nesse sentido, as decisões políticas resultam de uma
sequência de decisões tomadas por diferentes atores em distintos postos de decisão que
representam os interesses das diversas arenas políticas, cuja definição depende de pontos de
veto ou janelas de oportunidade que se constituíram ao longo do processo de produção de uma
política.
Esse processo é construído a partir de regras e mecanismos estabelecidos
institucionalmente que circunscrevem o alcance de cada instância de decisão e permite a
análise das propostas e a definição de alternativas resultantes da correlação de forças dos
atores e dos interesses envolvidos e não necessariamente do mérito social ou econômico.
A partir do reconhecimento dos mecanismos, atores e relações inerentes à
constituição de uma política pública, o institucionalismo histórico focaliza a origem histórica
das instituições, as regras do jogo e os elos da cadeia decisória, identificando as posições
assumidas pelos atores, seus interesses e formas de pressão (OLIVEIRA, 2007). Isso decorre
da compreensão de que um dado contexto institucional, ao consolidar-se ao longo do tempo,
26
pode estabelecer visões de mundo que, ao serem propagadas por organizações formais,
modelam a imagem de si e as preferências dos atores envolvidos. Nesse sentido, essa
perspectiva apresenta um universo complexo sobre as preferências e as instituições. Porém,
ela não refinou, de forma precisa, a compreensão sobre como as instituições influenciam o
comportamento (HALL; TAYLOR, 2003).
Segundo esses mesmos autores, o institucionalismo da escolha racional desenvolveu
uma formulação mais precisa sobre as relações entre as instituições e o comportamento dos
atores, fornecendo um arcabouço conceitual para uma elaboração teórica consistente, pois
essa escola busca apreender, em sua análise, o comportamento dos atores no interior das
instituições, em particular, como os interesses dos próprios atores são maximizados no
processo político, destacando-se o papel da interação estratégica na determinação das políticas
(HALL; TAYLOR, 2003).
Para os teóricos dessa escola, o comportamento de um ator é definido por um cálculo
estratégico fortemente influenciado pelas expectativas que o ator possui em relação ao
provável comportamento dos demais e não por forças históricas impessoais. Nesse sentido,
atribuem às instituições a estruturação dessa interação bem como a definição de
possibilidades e alternativas, à medida que fornecem informações e mecanismos que reduzem
as incertezas relativas ao comportamento dos outros atores, do mesmo modo que possibilitam
aos atores envolvidos visualizarem oportunidades de ganhos, e, assim, orientarem suas ações
com maior precisão e racionalidade.
Isso faz com que a vida política possa ser vista como um conjunto de dilemas da
ação coletiva, em que os indivíduos envolvidos podem vir a produzir resultados abaixo do
possível para a coletividade. No caso de uma política pública, isso pode fazer com que seus
objetivos não sejam alcançados ou não satisfaça às necessidades para qual foi criada, devido à
busca por um resultado que satisfaça os interesses dos atores envolvidos sem que nenhum saia
perdendo (HALL; TAYLOR, 2003).
Na vertente do institucionalismo da escolha racional, o processo de criação e
manutenção de uma determinada instituição assenta-se no acordo voluntário entre os atores
interessados e, se esta estiver submetida a um processo de seleção competitiva, sua
sobrevivência depende dos benefícios a mais que oferece para os atores interessados do que às
suas concorrentes (HALL; TAYLOR, 2003; PIOVESAN, 2009).
27
Podemos observar que as escolas neo-institucionalistas revelam aspectos importantes
sobre o comportamento dos atores e o impacto que as instituições exercem sobre eles. Nesse
sentido, suas vertentes elucidam dimensões do processo de produção de políticas públicas
como a luta por poder e por recursos entre os grupos sociais, ou seja, a teoria da escolha
racional enfatiza os interesses dos atores e o institucionalismo histórico, o papel das ideias, da
estrutura, da história e das instituições (SOUZA, 2006).
2.1 Políticas públicas e a abordagem de direito
Embora política pública seja uma temática oriunda da ciência política, recentemente
vem se constituindo no campo do direito um movimento de interdisciplinaridade que busca
definir essa temática como campo de estudo jurídico. Isso com o objetivo de superar a
distância que foi estabelecida, em sua trajetória positivista, das outras áreas de conhecimento
e assim, enfrentar o problema da esterilização do direito, principalmente do direito público,
em sua função de organizar as relações sociais (BUCCI, 2001).
Entretanto, a relação entre política pública e direito é intrínseca, como nos diz
Willian Clune na tradução de Bucci (2001):
Por definição, todo direito é política pública, e nisso está a vontade coletiva da
sociedade expressa em normas obrigatórias; e toda política pública é direito; nisso
ela depende das leis e do processo jurídico para pelos menos algum aspecto da sua
existência (p. 06).
É importante salientar que essa definição está ancorada na observação do contexto
norte americano, no qual é antigo o vínculo do sistema jurídico com a temática das políticas
públicas, diferentemente de países como o Brasil, onde essa questão é ainda pouco definida,
visto que a discussão sobre o que é público ou privado em direito está longe de ser
equacionada. Tomemos, por exemplo, o conceito de público-não-estatal como forma de
organização social paralela ao Estado e o lugar da participação popular nas instituições
jurídico-políticas que ainda não se encontram devidamente consolidadas, apesar de serem
dimensões privilegiadas na produção de políticas públicas (BUCCI, 2001). Porém, de modo
geral, há um consenso relativo à compreensão de que a política pública integra a dimensão
jurídica e que esta se auxilia dos insumos que as análises de política pública lhe proporcionam
(SARAVIA, 2006).
A necessidade de análises de políticas públicas sob a perspectiva do direito se
evidencia à medida que se buscam formas para sua concretização, principalmente dos direitos
28
humanos, mais precisamente dos direitos sociais, por cumprirem a função de garantir que toda
pessoa tenha condições de usufruir dos direitos individuais que consistem em direitos de
liberdade, cujo exercício implica que o Estado e os concidadãos se abstenham de impedir o
seu gozo. Desse modo, um cidadão não pode usufruir plenamente do direito à liberdade de
expressão e de pensamento se não for alfabetizado. Por isso, o direito à educação, entre outros
direitos sociais, foram instituídos nas normas jurídicas. Nesse mesmo sentido, foram
concebidos os direitos transgeracionais para ampliar a garantia dos direitos individuais em
relação às gerações futuras como o direito ao meio ambiente equilibrado, à biodiversidade e
ao desenvolvimento (BUCCI, 2001).
Podemos perceber que o conteúdo jurídico sobre a dignidade humana tem se
ampliado no decorrer do processo histórico, no qual novos direitos foram agregados e
reconhecidos como direitos fundamentais. Isso torna cada vez mais complexa a fruição dos
direitos humanos à proporção que demanda medidas concretas do Estado no sentido de
disciplinar o processo social para impedir a desagregação e a exclusão gerada pela economia
capitalista, garantindo, assim, o desenvolvimento da pessoa humana.
A partir dessa perspectiva, a política pública se constitui em ação governamental e,
em determinado plano, assume um caráter operacional do direito. O caminho de efetivação de
um direito geralmente integra a produção de uma ou mais política pública desde o seu
nascimento e instituição como norma, até a sua execução, depois de ter sido incorporado em
um programa de ação governamental. Nesse caso, o processo de realização do direito perpassa
todas as fases de produção da política, desde a definição da agenda, a formulação de
alternativas, a decisão, a implantação, a execução, até a avaliação. Assim, as políticas públicas
podem ser vistas como programas de ação governamental voltados à concretização de direitos
(BUCCI, 2001).
Entretanto, devemos ressaltar que nem toda norma se constitui necessariamente em
uma política pública, a exemplo da emenda constitucional que estabelece o direito à reeleição
aos governantes no Brasil, pois as normas, como produção legislativa, são geralmente
associadas à generalidade e à abstração, diferentemente das políticas, que são criadas para
realização de objetivos determinados, atuando de forma complementar na concretização dos
princípios e regras. Em outras palavras, os princípios são proposições que descrevem direitos
e as políticas públicas são proposições que descrevem objetivos (BUCCI, 2001).
29
Nesse sentido, os direitos humanos são mais considerados princípios do que regras,
por serem valores que devem compor o espírito das demais normas e que vêm desde a
Declaração de 1948, conferindo lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do
Direito. Eles postulam a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência como suas
dimensões. Universalidade porque defende a extensão universal dos direitos humanos ao
afirmar a condição humana como requisito único para a titularidade de direitos e também por
considerar a essência moral do ser humano, sua unicidade existencial e a sua dignidade.
Indivisibilidade porque conjuga os direitos civis e políticos aos direitos econômicos, sociais e
culturais. E interdependência porque defende que a violação ou o não atendimento de um
direito afeta a plena realização dos demais direitos (PIOVESAN, 2005).
A ampliação dos direitos humanos, através de sucessivos pactos internacionais, com
sua ratificação e sua incorporação nos ordenamentos jurídicos nacionais, torna o seu campo
de análise e de atuação cada vez mais complexo. Isso requer o desenvolvimento de
instrumentos que propiciem a efetividade na tutela e a concretização dos direitos
fundamentais, conjugando medidas repressivas e punitivas com estratégias promocionais.
Nesse sentido, os sistemas globais e regionais de proteção dos direitos humanos têm se
complementado e interagido na defesa dos indivíduos protegidos (PIOVESAN, 2005).
Em função de sua legitimidade, os direitos humanos são frequentemente invocados,
de diferentes formas, para justificar políticas econômicas, sociais e culturais, pois são
consagrados como obrigações dos Estados-Membros da ONU. A legitimidade desses direitos
tem sido fortalecida pelo reconhecimento do importante papel desempenhado na formação de
políticas públicas, programas e práticas que visam melhorar o bem-estar individual e social.
(TARANTOLA et al., 2008).
A abrangência dos direitos humanos, além de fortalecer o vínculo entre o direito e as
políticas públicas, tem estimulado aqueles que trabalham na sua implementação a se
aproximarem das demais áreas que partilham de aspirações para melhoria do bem-estar
humano, das relações entre as pessoas e dos ambientes em que vivemos, visando aprofundar a
compreensão da realidade e desenvolver ferramentas analíticas para identificar e gerenciar o
potencial oferecido por uma abordagem de direitos (TARANTOLA et al., 2008).
O direito à saúde pode ser considerado um caso ilustrativo da maior aproximação dos
direitos humanos com outras áreas, como a saúde pública, a epidemiologia social e a medicina
social e com áreas mais abrangentes, como a de desenvolvimento e meio ambiente
30
(VENKATAPURAM; BELL; MARMOT, 2010). Essa articulação tem procurado avançar na
compreensão da interdependência entre saúde e direitos humanos, buscando a maximização
de sinergias na orientação e acompanhamento das políticas para melhorar as condições de
vida e saúde, principalmente daqueles mais vulneráveis ou submetidos à violação de seus
direitos (TARANTOLA et al., 2008).
2.2 Direitos humanos e a saúde
Historicamente, há uma inter-relação entre saúde e direitos humanos, visto que o
direito de todos ao gozo do mais alto nível possível de saúde física e mental é mencionado em
muitos documentos internacionais e regionais de direitos humanos e da saúde.
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, o
direito à saúde é proclamado entre os direitos fundamentais do ser humano. Em seu Art. 25, §
1, esta declaração afirma que
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao
alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e
tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na
velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade.
Entretanto, o direito à saúde só se consolidou no Art.12 do Pacto Internacional de
Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), de 1976, que vinculou definitivamente o
direito à saúde ao direito à vida e o caracterizou como um direito humano nos seguintes
termos.
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar
do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir.
2. As medidas que os Estados Partes tomarem para garantir o pleno exercício deste
direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o
desenvolvimento são da criança;
b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene
industrial;
31
c) A profilaxia, o tratamento e o controle das doenças epidêmicas, endêmicas,
profissionais e outras;
d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e
ajuda médica em caso de doença.
Em 2000, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais discutiu questões
substantivas sobre a aplicação do PIDESC pelos Estados Membros, entre essas questões
estavam o direito ao mais alto nível de saúde possível. Em seu Comentário Nº 14, além de
reafirmá-lo, ressaltou a sua importância para o exercício de outros direitos. Segundo esse
comentário, a realização desse direito pode ser desenvolvida através de inúmeras abordagens
complementares, tais como a formulação de políticas de saúde ou a implementação de
programas desenvolvidos pala Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outros
instrumentos jurídicos específicos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, desde a sua constituição em
1946, afirmou que a saúde é um direito fundamental de todo ser humano. Em 1978, a
Declaração de Alma Ata sobre os cuidados primários de saúde reafirmou, de forma enfática,
que a saúde é um direito humano fundamental e que alcançar o mais alto nível possível de
saúde é a meta social mundial mais importante. Entretanto, sua realização exige a ação
conjunta de outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde. Também reafirmou a
importância do desenvolvimento econômico e social para a plena realização da meta saúde
para todos, do direito e do dever de garantir a participação individual e coletiva dos povos no
planejamento e na execução de seus cuidados de saúde. Do mesmo modo, ressaltou a
responsabilidade dos governos mediante a realização de medidas sanitárias e sociais.
Da mesma forma, a Carta de Ottawa (1986), seguida de diversos documentos sobre a
promoção da saúde, ressaltou a saúde como um requisito para o desenvolvimento dos países e
importância da participação e da capacitação das pessoas para fazer escolhas adequadas ao
seu bem-estar. Além disso, identificou a paz, a habitação, a educação, a alimentação, a renda,
o ecossistema estável, os recursos sustentáveis, a justiça social e a equidade como requisitos
básicos e a importância da intersetorialidade para promoção da saúde.
A agenda estabelecida para o desenvolvimento mundial, com a determinação das
Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), reafirmou a interdependência entre as
condições sociais e as condições de saúde e a importância das políticas de saúde para
32
enfrentar as raízes sociais do sofrimento humano, considerado injusto e evitável (PNUD,
2003). Isso influenciou a OMS a criar, em 2005, uma comissão sobre os Determinantes
Sociais da Saúde (DSS) para se debruçar sobre as causas das desigualdades de saúde e doença
e melhorar a saúde nas comunidades mais pobres e vulneráveis do mundo. Essa comissão
apresentou, em seu relatório, recomendações que foram discutidas e aprovadas na Assembleia
Mundial da Saúde de 2009, defendendo a inserção da saúde em todas as políticas, o
compromisso com as ações intersetoriais, a implementação da abordagem dos determinantes
sociais em programas de saúde pública e o fortalecimento da mensuração das desigualdades
de saúde e de monitoramento do impacto das políticas sobre os determinantes sociais da saúde
na população (CMDSS, 2011).
Alguns autores, afirmam que grande número dos problemas econômicos, sociais,
psicológicos e ambientais, muitas vezes referidos como determinantes sociais de saúde podem
também ser identificados como violações de direitos humanos, tal como são definidos nos
estatutos internacionais. Desse modo, a abordagem de direito pode ser uma aliada e um
mecanismo importante para enfrentar os determinantes sociais da saúde e as desigualdades na
luta por justiça social. Isso baseando-se nas funções de proteger, promover e fazer cumprir os
direitos envolvidos na superação dos problemas de saúde da população. Esses autores também
ressaltam que os direitos humanos, além de seu poder normativo, possuem valor moral e ético
subjacentes que podem orientar as ações sociais e promover ajustes, constituindo uma rede de
segurança que capacita os que sofrem na luta para avançar na diminuição do abismo da
desigualdade e da privação (TARANTOLA et al., 2008; MARKS, 2008; YAMIN, 2008;
VENKATAPURAM; BELL; MARMOT, 2010).
A partir do reconhecimento da intrínseca relação existente entre os direitos humanos
e a saúde, tem-se buscado a aproximação entre várias áreas de conhecimento com o objetivo
de atingir o mais alto nível possível de saúde. Nesse contexto também se evidencia a
interdependência e a indivisibilidade com os demais direitos civis, políticos, econômicos,
socias e culturais ao demonstrar empiricamente que o descumprimento desses direitos causa
impacto negativo sobre o estado de saúde das pessoas, do mesmo modo que problemas de
saúde podem condicionar o cumprimento de todos os direitos, pois a capacidade das pessoas
de reivindicar e usufruir dos seus direitos humanos depende de sua integridade física, mental e
bem estar social (TARANTOLA et al., 2008).
33
Entretanto, isso não implica que qualquer política de caráter interdependente incidirá
positivamente sobre todos os direitos, pois programas de desenvolvimento podem ter impacto
negativo sobre a saúde ou ao ambiente, do mesmo modo que ações de proteção à saúde, sem a
devida atenção aos demais direitos humanos, podem ser prejudiciais para indivíduos ou
comunidades. Por outro lado, defende-se que, para avançar na realização do direito à saúde é
preciso a ampliação da articulação com os direitos humanos e o desenvolvimento, resultando
em benefícios substancialmente maiores do que a soma das partes. Desse modo, as políticas e
programas devem considerar as implicações para o desenvolvimento, para a saúde e para
realização dos direitos humanos, maximizando os benefícios e minimizando os possíveis
danos (TARANTOLA et al., 2008).
Considerando que as necessidades de saúde são atendidas por meio de políticas
econômicas e sociais, a questão dos direitos, do acesso ao poder e aos recursos tem fortalecido
a aproximação entre os direitos humanos e a saúde pública para enfrentar o desafio de
transformar as estruturas políticas de distribuição e serviços para realização do direito à saúde.
Isso tem criado oportunidades para uma maior compreensão de como os direitos humanos e
diversos determinantes do progresso e do bem estar social interagem, e assim, melhorar as
políticas e as agendas de ação.
Segundo Gruskin et al. (2007), a ancoragem de estratégias de saúde pública em
matéria de direitos humanos pode enriquecer os conceitos e os métodos utilizados para atingir
os objetivos relativos à saúde, elucidando questões jurídicas das políticas e do contexto em
que as intervenções de saúde ocorrem. Além disso, trazem os princípios de direitos humanos
como a não discriminação e a participação para envolver as comunidades afetadas na
formulação, execução, acompanhamento e avaliação dos programas e intervenções de saúde,
contribuindo para assegurar a transparência e a responsabilização por meio de mecanismos
que viabilizem a prestação de contas a partir de parâmetros e metas bem definidas que
permitam relacionar as decisões tomadas com os resultados alcançados.
O reconhecimento da sinergia existente entre saúde pública e direitos humanos é
fundamental para enfrentar o desafio de garantir a efetivação do direito à saúde, pois a
promoção e a proteção à saúde requerem esforços concretos para promover e proteger os
direitos humanos, do mesmo modo que o maior cumprimento desses direitos demanda
especial atenção à saúde e aos determinantes sociais aí implicados. Essa relação ilustra a
complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos humanos na
34
condução das políticas e programas de saúde mais eficazes, além de reorientar as políticas
públicas de saúde atualmente fragmentadas e baseadas na lógica burocrática e profissional
(OLIVEIRA, 2006).
Como, de um modo geral, as políticas públicas relacionadas à saúde são formuladas e
controladas pelo Estado, sua operacionalização se dá no contexto das suas obrigações de
respeitar, proteger e realizar os direitos relativos à saúde de acordo com os tratados
internacionais de direitos humanos e as normas constitucionais dos países.
No entanto, o papel do Estado no desenvolvimento e na prestação de serviços para
garantir as necessidades básicas para a saúde é contestado e, muitas vezes prejudicado, pois o
setor privado e outros atores não estatais atuam como prestadores de cuidados relacionados à
saúde, dentro de uma estrutura econômica e ideológica, como se fosse mais um produto do
mercado.
Considerando o contexto de crescente globalização e atual crise econômica,
Venkatapuram, Bell e Marmot (2010), chamam a atenção para a necessidade de se observar
não só como os governos estão cumprindo as suas responsabilidades de assegurar um
progresso adequado, como também se estão retrocedendo em suas obrigações perante as leis
já instituídas, visto que muitos problemas de saúde são causados mais por atores poderosos do
que alguns governos, ressaltando, assim, a importância dos direitos humanos como um
instrumento disponível para tentar colocar limites, tanto no cansaço público como na ganância
privada, através de mecanismos de responsabilização.
Esses autores ressaltam ainda que o principal valor de um quadro de direitos
humanos aplicado para o desenvolvimento, especialmente aos aspectos relacionados ao
desenvolvimento da saúde, reside precisamente na identificação de indivíduos como titulares
de direitos assegurados, Estados e demais atores como portadores de deveres que podem ser
responsabilizados de acordo com a ordem jurídica e não somente como obrigações morais.
Isso implica que seja identificado o que o Estado está fazendo, o quanto está investindo e
como o Estado se encontra no processo de realização dos direitos relacionados à saúde,
utilizando como parâmetro jurídico as normas internacionais e nacionais. Ou seja, se os
portadores de obrigações estão prestando assistência adequada, se estão investindo o
suficiente no fornecimento da assistência e se essa assistência está promovendo a igualdade, a
participação significativa e se constitui um sistema de saúde que atende as necessidades da
população.
35
A abordagem de direitos aplicada à saúde preconiza o acompanhamento e a
fiscalização tanto dos agentes do governo como daqueles que são afetados pelas políticas,
garantindo a transparência, o acesso à informação e a participação popular ativa. Isso significa
que a aplicabilidade do princípio de responsabilização exige a capacitação e a mobilização de
pessoas comuns para que se engajem na ação política e social, assegurando que os objetivos
das políticas de saúde sejam atingidos. E no caso de violação de direitos, ressalta-se a
importância da existência de mecanismos acessíveis e eficazes de reparação, por meio dos
quais os marginalizados ou comunidades de excluídos possam ser ouvidos, não apenas no
diagnóstico de falhas institucionais, mas também nas negociações de políticas sociais e
orçamentos da saúde que lhes dizem respeito. Para isso, considera-se a criação de coalizões e
de redes de entidades, movimentos sociais e ONGs, fundamentais para garantir êxito no
processo de responsabilização e na prestação de contas (YAMIN, 2008).
Essa abordagem também enfatiza que o mapeamento das responsabilidades é inútil
se não houver consequências por falhas no cumprimento das obrigações. Isso significa que a
os mecanismos jurídicos de responsabilização internacionais e nacionais exercem um
importante papel para assegurar a realização dos direitos relacionados à saúde, como
tribunais, orgãos quase-judiciais e organismos internacionais de monitoramento de tratados
autorizados a acompanhar a situação dos países e receber queixas individuais ou coletivas de
violações (YAMIN, 2008).
Nesse sentido, a responsabilização implica que os Estados e outros atores são
portadores de obrigações legais e não de gestos de boa vontade, cuja aplicação exige a criação
de ferramentas para discernir o que é evitável do que não é, sem aceitar as falhas da vontade
política sob o disfarse da escassez de recursos para, assim, avançar na efetivação dos direitos.
Desse modo, é interessante considerar que a realização do direito à saúde envolve instiuições
públicas que devem prestar distribuição igualitária de serviços, garantindo privacidade e
confidencialidade, permitindo o direito à informação, participação, promoção da dignidade e a
criação de mecanismos eficazes de prestação de contas que assegurem a exigibilidade de
direitos através de parâmetros, metas, ações desenvolvidas, monitoradas e avaliadas em seus
resultados.
2.3 Exigibilidade de direitos
36
O processo de realização dos direitos humanos deve acontecer numa rede dinâmica
de ações desenvolvidas por e entre os atores desse cenário, isto é, o Estado, com suas
obrigações de garantir o respeito, a proteção, a promoção e o provimento dos direitos a todos
os indivíduos habitantes de seu território; os titulares de direitos, com sua força de exigir e
cobrar a realização de seus direitos e os demais atores sociais, com suas corresponsabilidades
na realização destes direitos.
A palavra exigibilidade, que significa aquilo que pode ser exigido, tem um caráter
impositivo de reivindicação. No Brasil, em matéria de saúde, aquilo que pode ser exigido, por
estar garantido constitucionalmente, deve ser exigido, acompanhando esse caráter impositivo.
Exigir, desse modo, significa reclamar, requerer, ou mesmo ordenar, em função do direito
legítimo.
Nesse sentido, exigir é uma ação/processo resultante da conscientização do titular de
direito da efetiva existência de seu(s) direito(s) e da certeza do direito de sua cobrança.
Enquanto prerrogativa da cidadania, “é a possibilidade de exigir o respeito, a proteção, a
promoção e o provimento de direitos, perante os órgãos públicos competentes
(administrativos, políticos ou jurisdicionais) para prevenir as violações a esses direitos ou
repará-las” (VALENTE et al., 2007ª, p. 5).
O processo de exigibilidade só existe se o direito estiver sendo violado e/ou negado.
Piovesan, Gotti e Martins (2009, p. 94) alertam que “há que se propagar a ideia de que os
direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e,
por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade.”
Portanto, qualquer sociedade que busque se construir numa perspectiva ética e socialmente
justa deve se comprometer com uma agenda de inclusão voltada para um modelo de
desenvolvimento sustentável que combata todas as formas de discriminação e avance na
promoção da igualdade.
É no avanço da construção desse novo paradigma que o processo de exigibilidade
ganha força. Nesse sentido, Bucci (2001, p. 9) diz que, mesmo sendo a fruição dos direitos
humanos uma questão complexa, é preciso haver uma mudança nos contextos das políticas
públicas, pois
não basta uma Constituição bem escrita para que ela seja cumprida e obedecida – há
possibilidade de se travar pelas vias do direito e com base na Constituição, uma
batalha própria, capaz de melhorar as condições sociais, por meio da garantia do
37
exercício de direitos individuais e de cidadania a todos, da forma mais abrangente
possível.
De acordo com Burity et al. (2010, p. 70), “a exigibilidade dos direitos humanos tem
como base legal as Declarações e Tratados Internacionais de Direitos Humanos”, bem como
as “normas previstas na Constituição Federal, em leis e em regras administrativas”.
A exigibilidade de direitos é o mote que sustenta os processos judiciais na área da
saúde (judicialização)2. Contudo, a judicialização é apenas um de seus instrumentos.
Consideramos a exigibilidade como um processo político deflagrador de um novo
comportamento entre o Estado e a sociedade civil, para dar conta dos direitos violados e/ou
não atendidos, que se traduz em políticas públicas mais resolutivas e mais abrangentes,
mesmo que essas políticas possam ser focalizadas em grupos, territórios e demandas
específicas, seus resultados não são pontuais e individualizados como nos processos judiciais
comuns.
Embora a judicialização da saúde seja fundamental no processo da exigibilidade de
direitos, a resposta se concentra no Poder Judiciário e se encerra no atendimento específico e
pontual da demanda. Já o processo da exigibilidade de direitos, apesar de ter como um de seus
recursos a esfera judiciária, focaliza sua ação na política pública mais duradoura, com a
interveniência dos demais poderes do Estado de Direito.
2.4 Instrumentos de exigibilidade
Na perspectiva do Direito, o Estado tem a obrigação de garantir o direito e também
os mecanismos para que as pessoas possam exigi-lo. Assim, é de se esperar que a proposição
de metas a serem estabelecidas visando à correção de suas violações possa ser item concreto
de qualquer planejamento de política pública (ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, para
o exercício da exigibilidade, é necessário que o Estado crie e disponibilize, de maneira
acessível, instrumentos e instituições (âmbito federal, estadual e municipal), necessárias para
que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos. Além disso, utilizando a
perspectiva de responsabilidade social, pode-se citar também as iniciativas da sociedade civil
como instrumento de pressão sobre o Estado no processo de cobrança da realização dos
direitos humanos (BURITY et al., 2010).
2 Entende-se como judicialização da saúde, o processo de reivindicação da concretização do direito à saúde
através de ação judicial (ASENSI, 2010).
38
Podemos considerar que as instituições participantes dos processos de exigibilidade
são de duas ordens: organizações da sociedade civil, tais como movimentos instituídos,
sindicatos, associações, ONGs etc. e organizações públicas, como o Ministério Público, os
Conselhos de Direitos Humanos, a Defensoria Pública, os Conselhos Tutelares, os Conselhos
de Saúde regidos pela Lei 8.142/1990, entre outras.
Com a perspectiva de garantir a efetivação dos direitos humanos, o Brasil ratificou o
PIDESC em 1992. Esse pacto é o principal instrumento internacional de garantia dos direitos
que intenta comprometer os Estados signatários na prestação de contas de como o processo de
realização de direitos e correção de suas violações têm acontecido e avançado. Pode-se dizer,
portanto, que é um importante instrumento de pressão e monitoramento.
Os termos do Artigo 12 e o Comentário Geral nº 3 do PIDESC (1990) mostram que,
em sendo seu signatário, o Brasil obriga-se a adotar publicamente no cenário internacional
uma postura de portador de obrigações, isto é, de respeitar, proteger, promover e prover o
direito à saúde de forma diligente e eficaz, sendo essa responsabilidade compartilhada por
todos: toda pessoa, toda organização social, e de modo particular, o poder público. Assim, a
responsabilidade da realização dos direitos humanos deve estar estabelecida nos desenhos das
políticas públicas e também nas possibilidades de garantia de mecanismos para exigência
destes direitos via instituições e instrumentos.
Segundo Valente, Franceschini e Burity (2007), no contexto brasileiro, os
instrumentos de exigibilidade podem ser utilizados em nível individual ou coletivo podendo
ser variados, tais como administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais. Esses autores
afirmam que a exigibilidade administrativa é viabilizada junto aos organismos públicos
responsáveis pela garantia, promoção e prevenção, correção ou reparação das ameaças ou
violações de direitos humanos específicos. Também mostram como exemplo o caso do
Benefício da Prestação Continuada, cuja solicitação deve ser feita junto a um posto ou agência
da Previdência Social.
Já a exigibilidade política pode ser requerida através dos organismos de gestão de
programas e políticas públicas (Poder Executivo), junto aos organismos de gestão
compartilhada responsáveis pela proposição e fiscalização de políticas e programas públicos
(Conselhos de Políticas Públicas), junto aos Conselhos de Direitos Humanos ou junto aos
representantes do Poder Legislativo. Como exemplo, os autores citam um movimento
39
comunitário que se organiza e cobra à Secretaria Municipal de Saúde a criação de uma
Unidade Básica de Saúde bem como a seleção de Agentes Comunitários.
A exigibilidade quase judicial é a possibilidade de utilização de instrumentos tais
como o Termo de Ajustamento de Conduta e o Inquérito Civil, para a averiguação de
violações de direitos humanos ou para fazer com que os agentes públicos possam se adequar
às normas que preveem os direitos. Por exemplo, uma comunidade faz o levantamento de suas
demandas relativas à moradia tais como, falta de luz elétrica local, falta de sistema de água
potável, falta de saneamento e, através do Ministério Público, propõe um Termo de
Ajustamento de Conduta ao município, para que este, em determinado prazo, execute a
correção dessas violações.
Por fim, a exigibilidade judicial acontece quando a cobrança do direito é feita junto
ao Poder Judiciário, através de ação civil pública, ações populares ou mesmo ações políticas.
Um exemplo pioneiro de exigibilidade no Brasil, e que é objeto de estudo do
presente trabalho, diz respeito a uma Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público
Estadual de Alagoas contra o município de Maceió, pelo não cumprimento de seu dever
constitucional de proteger, respeitar e promover diversos direitos de crianças e adolescentes
de comunidades residentes na Orla Lagunar. Essa ação torna-se especialmente importante
pela sua abrangência, pois considerando a tese da indivisibilidade dos direitos, clama pela
correção de várias violações e, entre essas, o direito à saúde.
40
3 O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
No Brasil, a saúde é declarada, na Constituição Federal de 1988, como um direito
fundamental que deve ser assegurada a todo cidadão. Isso confere ao Estado o dever de
respeitar, proteger, e realizar (promover e prover) esse direito, permitindo ao cidadão exigir
dele que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, seu atendimento integral.
Mas foi a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), através da Lei
Federal No 8.080/90, que o estado Brasileiro passou a viabilizar o provimento do direito à
saúde para a sua população, estabelecendo no art.3º da referida lei, que a saúde tem como
fatores determinantes alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, educação e o acesso
aos bens e serviços essenciais. Outro mecanismo para viabilizar o direito à saúde foi a Lei
8.142/90, que tem como princípios a universalidade, a integralidade, a equidade, o controle
social, a hierarquização da assistência, entre outros, com o objetivo de conjugar ações
direcionadas para que a prevenção, a reabilitação e a promoção da saúde se materializem.
O direito à saúde também é reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) em seus Art. 4º e 7º, estabelecendo que é dever de toda a sociedade e do poder público
assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, a realização dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade e ao respeito, mediante a
efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e
harmonioso em condições dignas de existência. No Art. 11º dessa lei, assegura-se o
“atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único
de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção,
proteção e recuperação da saúde”.
Com a normatização do direito à saúde, ou seja, sua positivação, o Estado brasileiro
se constituiu como portador da obrigação de prover, progressivamente, por meio de políticas
públicas econômicas e sociais, a realização desse direito para toda população, especialmente
para os indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas, os quais são mais afetados pela
violação de seus direitos (ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, os cidadãos brasileiros se
constituem como titulares de direitos, detentores da prerrogativa de poder exigir do Estado a
efetivação de seus direitos, inclusive com a possibilidade de acionar o Poder Judiciário em
relação ao descumprimento de qualquer princípio jurídico ou ao desatendimento a algum
direito (BUCCI, 2001).
41
Considerando os grandes problemas sociais existentes em um país em
desenvolvimento como o Brasil e os esforços empreendidos pelo Estado para a superação
desses problemas, é possível que a realização plena do direito à saúde não aconteça ainda em
curto prazo e de forma igualitária para todos os seus cidadãos. Entretanto, as dificuldades
existentes não extinguem a responsabilidade do Estado de sua tutela protetiva, nem de seu
papel pró-ativo de determinar princípios para um núcleo mínimo de obrigações a serem
executadas para realização adequada do direito à saúde (JONES; STOKKE, 2005;
PIOVESAN; GOTTI; MARTINS, 2009). É nesse contexto que o cidadão pode exigir a
realização ou a reparação da violação do direito à saúde.
Desse modo, a justiciabilidade do direito à saúde, isto é, sua transformação em
“objeto de apreciação judicial” (CUNHA, 2003, p. 147), constitui-se num grande desafio para
que seja efetivada sua aplicação por meio de mecanismos jurídicos de exigibilidade, pois a
exigibilidade de um direito aparece nas várias fases de organização temporal da política
pública, que vão desde o estabelecimento da agenda, formulação de alternativas, decisão,
implementação da política, execução até a avaliação (BUCCI, 2011).
Nesse sentido, o Estado detém o papel primordial, enquanto órgão público
administrativo, de executar as políticas públicas de forma plena, sem ser necessário que os
cidadãos tenham que recorrer frequentemente à proteção jurídica, pois um direito não deve
estabelecer condicionalidades, mas que sejam estabelecidas as condições plenas de seu
exercício (COSTA, 2008).
Isso significa dizer que o Estado, além de ter que garantir o provimento dos direitos
sociais positivados em sua legislação, deve criar e disponibilizar instrumentos e instituições
(nos âmbitos federal, estadual e municipal) para que todos os seus habitantes possam reclamar
seus direitos. Além disso, sob a perspectiva da responsabilidade social, deve reconhecer a
legitimidade das iniciativas da sociedade civil como instrumento de pressão sobre ele no
processo de cobrança da realização dos direitos humanos (BURITY et al., 2010).
Apesar de existirem esses diferentes instrumentos de exigibilidade, no caso do direito
à saúde, a judicialização tem sido o meio mais utilizado para garantir o atendimento das
necessidades individuais para assegurar o acesso a medicamentos e a procedimentos de
diagnósticos e terapêuticos (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009; BORGES; UGA, 2010;
VENTURA et al., 2010; MACHADO, et al., 2011; SANT'ANA, et al. 2011).
42
No entanto, não podemos ignorar que as diversas necessidades de saúde da
população, principalmente das mais empobrecidas, são decorrentes do modelo de
desenvolvimento adotado e da ausência ou insuficiência de políticas públicas, o que constitui
um quadro de graves violações de direitos humanos, especialmente dos direitos sociais.
No campo da efetivação dos direitos sociais, o Ministério Público tem se destacado
como protagonista, especialmente através de intervenções que tentam garantir o provimento
dos direitos violados. No caso da saúde, por sua vinculação ao direito à vida, sua atuação tem
sido importante por levar ao Poder Judiciário questões e problemas sociais de cunho jurídico
que geralmente não são levados, por razões culturais, econômicas e institucionais.
Entre os instrumentos de exigibilidade utilizados pelo Ministério Público para
correção de violações de direitos sociais, a Ação Civil Pública3 tem se destacado por sua
relevância na tutela de direitos difusos4 e coletivos
5 como saúde, meio-ambiente, consumo,
ordem urbanística, entre outros, especialmente quando os acordos firmados com os gestores
públicos não são cumpridos (ASENSI, 2010).
Entretanto, observa-se que a positivação do direito no Brasil constitui-se em um
grande desafio, uma vez que sua realidade é atravessada por iniquidades que precisam ser
enfrentadas com ações que proponham reverter quadros de exclusão e de violação de direitos
humanos fundamentais, não só na perspectiva da promoção da equidade para distintos grupos
sociais, como pela garantia de direitos objetivos e subjetivos da cidadania.
Apesar disso, a efetivação do direito à saúde no Brasil tem avançado bastante em sua
trajetória sociohistórica, graças à luta empreendida, inicialmente, pelo próprio Movimento
Sanitário. Outros movimentos em prol dos direitos humanos têm empreendido distintas lutas
que vêm agregando novos direitos no campo da saúde, inclusive apontando estratégias de
mobilização e argumentação, no tocante à exigibilidade de direitos que criam novas frentes de
luta num movimento contínuo de renovação e afirmação da cidadania.
Nesse sentido podemos identificar, a partir de um estudo de Baptista, Machado e
Lima (2009), algumas das conquistas para efetivação do direito a saúde no Brasil, tais como:
3 A Ação Civil Pública é uma ação judicial que o MP pode propor ao Judiciário para a garantia de um direito
que se encontra violado (ASENSI, 2010, p. 45). 4 Direitos difusos possuem natureza indivisível, vez que só é considerado como um todo, não sendo possível
individualizar a pessoa atingida pela lesão gerada da violação desse direito, o qual nasce de uma circunstância de
fato, comum a toda comunidade (OLIVEIRA, 2013). 5 Direitos coletivos dizem respeito a grupo, classe ou categoria de pessoas determinadas ou determináveis,
ligadas pela mesma relação jurídica entre si (Ibid.).
43
O reconhecimento, na Constituição Federal, da saúde como direito social de cidadania
e dever do Estado, que definiu diretrizes voltadas para o restabelecimento do processo
democrático no âmbito político e institucional;
Promulgação da Lei Orgânica da Saúde, em 1990, que instituiu as bases institucionais
do SUS como política nacional para efetivação do direito à saúde, que reafirmou as
diretrizes de universalidade e integralidade e definiu as responsabilidades do poder
executivo nas três esferas de governo;
Avanço nas leis de controle sanitário e de produção de ambientes saudáveis, como
iodação do sal, controle de asbesto/amianto, uso e propaganda de fumígeros, sistema
de vigilância sanitária;
Leis de regulamentação de áreas estratégicas da atenção à saúde, como controle de
infecção hospitalar, remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano;
Leis que atendem a demandas de áreas específicas da atenção, como planejamento
familiar, subsistema indígena, modelo de atenção psiquiátrica e garantia de
medicamentos para AIDS;
Lei de regulamentação dos planos de saúde, de criação da Agência Nacional de Saúde
Complementar (ANS) e a de medicamentos genéricos;
A ampliação da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na efetivação dos
direitos sociais, entre eles o da saúde, por serem juridicamente protegidos e exigíveis
ao Estado.
Apesar de diversas conquistas, que são oriundas da legitimidade, garantidas por lei,
da saúde como um direito, há muito que ser feito, especialmente se considerarmos que o
modelo de desenvolvimento adotado no país ainda acompanha o atendimento dos interesses
econômicos, em detrimento das necessidades humanas e sociais. Assim, percebe-se que a
desigualdade e a exclusão sociais se expressam nas precárias condições de saúde e nos
processos de adoecimento das pessoas, bem como nas dificuldades e diferenças no acesso e
no consumo dos serviços de saúde pela população.
3.1 Respostas públicas às demandas para realização do direito à saúde
44
A análise de políticas sociais em um país marcado por contradições como o Brasil
não nos parece tarefa fácil, visto que o país sequer conseguiu atingir o bem-estar social dos
países centrais, pois possui enormes desigualdades, com fossos de miséria e exclusão social.
Em nosso país, o governo tem como agenda prioritária e estratégica a fome e a miséria,
embora o tráfico de drogas e a violência nas grandes metrópoles se institucionalizem com a
conivência do poder público (PIRES; DEMO, 2006), evidenciando a insuficiente realização
dos direitos sociais.
As políticas de proteção social, entre essas as da saúde, se instituíram com a
Constituição de 1988, sob uma perspectiva universalista, para responder à necessidade de
resgate da dívida social do país e atender os anseios da sociedade. No entanto, o que se
observou na implementação das públicas sociais brasileiras foi à ausência de foco e a evidente
ineficiência do governo, decorrentes da decisão de investir na política de transferência de
renda direta aos pobres não contemplada na constituição. Essa agenda foi influenciada pelo
ajuste macroeconômico que tinha como objetivo a redução do gasto público e a focalização
nos grupos mais pobres e vulneráveis (COSTA, 2009).
O Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto política de saúde formulada para
assegurar a atenção universal baseada na concepção da saúde como direito de cidadania e
dever do Estado, nasceu na década de1990, em um contexto contraditório no qual os
constrangimentos macroeconômicos relativos à dinâmica mundial transformaram o Brasil em
um dos países com menores índices de investimento público no setor de saúde do continente
americano, contrapondo-se, assim, à construção de um sistema público de caráter universal
(GERSCHMAN; SANTOS, 2006).
Segundo esses autores, é nesse momento que se intensifica a interferência das
agências internacionais na formatação de políticas nacionais de saúde, por acreditarem que os
governos seriam incapazes de financiar tudo para todos, recomendando que os sistemas de
saúde nacionais ofereçam um pacote clínico essencial como cobertura universal de atenção
básica, que focalizem os gastos públicos nas camadas pobres da população e fortaleçam
setores não governamentais ligados à prestação de serviços, uma vez que os serviços não
cobertos pelo pacote essencial deveriam ficar a cargo do mercado. Nesse sentido, afirmam
que
O “novo universalismo” propõe prioridade para a Atenção Básica e o fortalecimento
da iniciativa privada no mesmo pacote. Essas propostas simultaneamente
contemplam discursos históricos do Movimento Sanitário, vão ao encontro de
45
interesses do empresariado nacional e internacional da saúde, ao propiciar a
expansão do mercado privado, e atendem as elites políticas subnacionais, que
vislumbraram na universalização do atendimento e no SUS formas de garantir o
financiamento setorial na saúde para seus colégios eleitorais (GERSCHMAN;
SANTOS, 2006, p. 186).
Considerando a restrição macroeconômica e as escolhas estratégicas do governo
brasileiro para efetivação da proteção social que marcaram a constituição do SUS, podemos
constatar que ele assumiu formatos condicionados por arranjos institucionais que pretendia
suplantar, atendendo aos diversos grupos de interesses que gravitam em torno da saúde do
país. Isso significa dizer que desde a sua constituição, o sistema de saúde não corresponde
integralmente ao caráter público e universal proposto, mas aglutina interesses do setor
privado, dos atores políticos e das agencias internacionais.
Apesar das contradições e embates inerentes à política de saúde brasileira,
observamos um relativo consenso sobre a preservação do SUS. No entanto, o sistema enfrenta
vários desafios, tais como a qualificação da gestão e do controle social, a melhoria e a
qualificação da atenção básica como estratégia organizadora da rede de atendimento através
da regionalização e a hierarquização de ações e serviços de saúde. Todos esses desafios
precisam ser superados para que seja garantido o acesso universal da população aos cuidados
em saúde (SOUZA; COSTA, 2010).
Ao consideramos a legitimidade da saúde como direito fundamental, a partir de
acordos internacionais, da CF/88, da legislação subsequente, das precárias condições
socioeconômicas em que vive grande parte da população e dos desafios enfrentados para
implantação do SUS no Brasil, observou-se, no decorrer dos anos 1990 e 2000, um
progressivo crescimento do número de mandatos judiciais com reivindicações relacionadas ao
direito à saúde (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009).
Esse processo de encaminhamento das reivindicações nos tribunais contra os Poderes
Públicos para a garantia de medicamentos e exames para o controle de doenças foi inaugurado
no Brasil pelo movimento dos portadores do vírus HIV/Aids, ressaltando-se o dever estatal de
prestar assistência à saúde individual de forma integral, universal e gratuita sob a
responsabilidade conjunta da União Federal, dos estados e dos municípios (BAPTISTA;
MACHADO; LIMA, 2009). Esse segmento, além de estabelecer uma relação entre a justiça e
a efetividade do direito à saúde, contribuiu para o avanço das políticas de assistência às
pessoas com HIV/Aids, para motivar outros movimentos sociais e a população em geral a
46
utilizar a reivindicação judicial como mecanismo de garantia de direitos e para ampliar as
políticas públicas e a atuação do Ministério Público no âmbito da saúde (VENTURA et al.,
2010).
Nesse contexto, o processo de exigibilidade dos direitos sociais no Brasil,
especialmente do direito à saúde, tem como foco a judicialização da saúde, embora não se
restrinja à questão jurídica e de gestão de serviços públicos. Desse modo, o poder judiciário
tem desempenhado um papel significativo no processo de resolução de conflitos políticos e
sociais na implementação de políticas públicas e na efetivação de direitos (BORGES; UGÁ,
2009; ASENSI, 2010).
Esse processo de judicialização da saúde se consolidou, principalmente, com o
aumento de ações judiciais individuais para a garantia do acesso a medicamentos. Esse
fenômeno pode estar relacionado à tardia regulamentação da assistência farmacêutica, que se
deu só após dez anos da criação do SUS, com a Política Nacional de Medicamentos e com a
aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, em 2004 (CHIEFFI; BARATA,
2009).
Segundo Messeder, Osorio-de-Castro e Luiza (2005), a partir de 1997, com a
estruturação do Programa Nacional DST/AIDS, houve uma redução do número de processos
judiciais, devido à distribuição gratuita dos medicamentos antirretrovirais. Também observa
que há uma relação entre o aumento de pleitos judiciais por medicamentos e sua inclusão nas
listas oficiais, o que leva à diminuição da incidência de mandados judiciais para esses
medicamentos.
Isso pode ser um indicativo de que as ações judiciais são movidas, pelo menos em
parte, nas áreas em que a política e a administração pública apresentam maiores lacunas e
deficiências. Do mesmo modo, indica-se que a atuação do poder judiciário pode ter efeito
positivo na responsabilização do Estado, estimulando-o a incorporar, na rede pública,
procedimentos terapêuticos que melhor atendam às necessidades de saúde da população e
contribuam para realização dos seus direitos.
A partir da análise de Ventura et al. (2010) sobre os estudos que discutem a
judicialização da saúde no Brasil, podemos destacar: a) os que dão ênfase aos seus efeitos
negativos na governabilidade e na gestão das políticas de saúde e aqueles em que a
judicialização privilegia grupos e indivíduos com maior poder de reivindicação; b) os que
47
enfatizam as deficiências e insuficiências no sistema de saúde e no poder judiciário para
atender às demandas de saúde devido à amplitude das obrigações do Estado; e, ainda, c) os
que identificam questões que perpassam transversalmente as discussões, como a influência do
setor farmacêutico para incorporação de seus produtos pelo Estado, a alocação de recursos
públicos para pesquisa e assistência e o uso racional de novas tecnologias e medicamentos.
Na discussão sobre as instituições jurídicas, no contexto da efetivação dos direitos
sociais, a atuação do Ministério Público tem se destacado como mediadora na garantia e
defesa do direito à saúde por adotar estratégias de pactuação e negociações céleres na
resolução de conflitos antes de chegarem aos tribunais. Assim, cria-se um espaço institucional
de diálogo no qual os problemas são discutidos sob o ponto de vista jurídico, especialmente
nos momentos pré-processuais com os principais atores que compõem o processo de
formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas de saúde, aproximando o mundo do
direito do mundo dos fatos (ASENSI, 2010).
Segundo esse mesmo autor, as diversas estratégias utilizadas pelas instituições
jurídicas para efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, que vão além da
simples judicialização, constitui o que ele denomina de juridicização da saúde. Isso tem
ampliado a participação de vários atores sociais no estabelecimento de consensos e na
definição de estratégias de execução proativa de políticas públicas para satisfação das
demandas de acordo com o contexto em que estão inseridas no cotidiano.
Pode-se perceber que essa caracterização se coaduna com os instrumentos de
exigibilidade de direitos administrativos, políticos e quase-judiciais, já discutidas
anteriormente. No Brasil, a funcionalidade desses mecanismos de exigibilidade de direitos
evidencia-se, particularmente no campo da saúde, na resolução de problemas como a falta de
medicamentos nos postos de atendimento, a insuficiência de leitos hospitalares, a falta de
profissionais qualificados, entre outros, que requerem vários procedimentos administrativos.
Isso envolve a articulação política entre diversos atores no processo de pactuação, geralmente,
mediado pelo Ministério Público, que consolida o consenso estabelecido entre os atores
através de instrumentos quase-judiciais como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Um exemplo de que a exigibilidade de direitos comporta tanto a judicialização
quanto a juridicização foi a construção da norma do Processo Transexualizador no SUS, uma
conquista resultante da demanda pela inclusão dos procedimentos de transgenitalização na
tabela de procedimentos do SUS, através da Ação do Ministério Público Federal, em 2001.
48
Isso, juntamente com a abertura institucional do Ministério da Saúde para participação social,
estimulando o debate e acolhendo propostas oriundas do Seminário Nacional Saúde da
População GLBT na Construção do SUS, realizado em 2007 e da Conferência Nacional
LGBT, realizada em 2008 (LIONCO, 2009).
Observa-se, então, que no contexto brasileiro, há uma pluralidade de instituições,
atores e intérpretes que interagem de forma legítima e decisiva para garantia de direitos, seja
sob a perspectiva da judicialização das relações sociais para resolução de conflitos, seja da
juridicização, onde são utilizados vários instrumentos de exigibilidade de direitos, por meio
dos quais as demandas são discutidas sob o ponto de vista da sua institucionalidade jurídica,
embora evitando-se levá-las aos tribunais.
Entretanto, verifica-se, no Brasil, que os estudos sobre a efetivação dos direitos
sociais, particularmente o da saúde, tem priorizado a análise sobre os fins e não sobre os
meios que são utilizados pelos diversos atores e instituições que atuam no processo de
efetivação do direito à saúde na implementação de políticas públicas.
A trajetória do reconhecimento e da efetivação da saúde como direito humano no
Brasil comporta tensões, disputas, contradições e conflitos de interesses relacionados à
concepção de saúde-doença e às responsabilidades dos cidadãos e do Estado, que vão além da
esfera jurídica e se expressam no processo de normatização, na formulação e implementação
de políticas públicas e no aparato jurídico-institucional. Desse modo, a judicialização não
deve ser considerada como principal instrumento de exigibilidade de realização do direito à
saúde. Embora seja legítima, deve estar articulada com outros mecanismos, como a
juridicização, outros instrumentos de exigibilidade e a luta política, por meio dos quais se
busque implementar as garantias constitucionais para o alcance da justiça e da cidadania.
49
4 AÇÃO CIVIL PÚBLICA: EM BUSCA DA GARANTIA DE DIREITOS
A Ação Civil Pública instaurada contra o município de Maceió foi movida pelo
Ministério Público de Alagoas em 12 de março de 2007, através da Promotoria de Justiça da
Infância e Juventude da Capital e do Ministério Público do Trabalho em Alagoas, pela lesão
aos direitos difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes na Orla Lagunar de
Maceió. Foi julgada e deferida em 10 de setembro de 2007, pelo então Juiz de Direito da 28ª
Vara Cível - Infância e da Juventude da Capital.
Essa Ação foi impulsionada a partir de informações de lideranças e depoimentos de
mães e de crianças e adolescentes dessas comunidades e também a partir de um estudo
realizado, em 2005, pela Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos – ABRANDH
(ALBUQUERQUE E BURITY, 2008). O estudo constatou diversas violações de direitos
humanos, tais como: a) do direito à educação, constatando que grande parte das crianças e
adolescentes da comunidade encontrava-se fora da escola, que não havia programas de
formação profissionalizante nem de atividades de cultura, esporte e lazer; b) do direito à
alimentação adequada, uma vez que, para não morrerem de fome, crianças e adolescentes
eram levadas a se prostituir, a comer e a catar lixo, a trabalhar em tarefas de alto risco e a
praticar atos ilícitos; d) do direito à saúde, ao apresentarem problemas severos como
desnutrição, verminose, dependência química, sexualidade precoce e a falta de assistência às
necessidades de saúde; e) do direito à proteção institucional e familiar, pois muitas crianças
eram vítimas da agressividade e da negligência de alguns pais, não dispondo de um Conselho
Tutelar que funcionasse de modo adequado.
A partir dessa constatação, a Ação responsabilizou e exigiu reparos à prefeitura da
cidade, por sua omissão, enquanto governo local, de proteger, promover e realizar os direitos
das crianças e adolescentes residentes em comunidades da citada orla lagunar.
Para respaldar sua garantia institucional, o texto base da Ação Civil, além de utilizar
o arcabouço legal internacional, também se valeu da legislação nacional.
Assim, fundamentou-se no art. 7º do ECA, que assegura a proteção à saúde às
crianças e adolescentes, onde se registra que cabe ao Estado a efetivação de políticas públicas
voltadas para o desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças e adolescentes. Valeu-se,
ainda, do art. 227, § 3º, da CF/88, que confere preferência no atendimento, no sistema de
saúde, às crianças e adolescentes, devido à sua condição de prioridade absoluta. Essa
50
prioridade estende-se também à elaboração de projetos de prevenção e atendimento
especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
Também foi utilizado como fundamento legal a Lei Orgânica da Saúde (8080/90),
em seu art. 3º, que estabelece que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,
entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a
renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
Essa proposta da Ação Civil Pública respaldou-se no fato de ser o Poder Judiciário
tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e
Legislativo. Portanto, uma vez diagnosticada a violação omissiva ou comissiva a um direito
humano, resta às instituições vinculadas ao Poder Judiciário exigir a sua implementação.
Desse modo, reafirma-se a legitimidade do Ministério Público em propor Ação Civil Pública
para correção de violação de direitos.
Assim, por intermédio da Promotoria da Infancia e da Juventude e do Ministério
público do Trabalho em Alagoas, o Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e da
Juventude da Capital determinou que a prefeitura implementasse ações para correção das
violações dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais de crianças e adolescentes na
Orla Lagunar de Maceió.
No Relatório da Sentença, o juiz discutiu o mérito da ação e rechaçou os argumentos
apresentados na contestação do Município de Maceió, estabelecendo medidas a serem
providenciadas, com prazos fixados para retirar as crianças e adolescentes das condições de
miserabilidade em que viviam nessas comunidades.
Para assegurar o resultado prático da ação, foi determinado o bloqueio de
R$1.500.000,00 da rubrica de contingência6 do Município, além de multas aplicadas nos
seguintes termos: multa diária de R$10.000,00 em desfavor do Município, de R$ 300,00, por
dia, para o então prefeito e de R$200,00 para o secretário de assistência social, no caso de não
comprovarem o efetivo cumprimento da sentença num prazo máximo de 30 dias.
Em reação a essa decisão, ainda no mês em que foi proferida a sentença, a Prefeitura
de Maceió, através da Procuradoria, interpôs Recurso na 28ª Vara Civil da Capital da Infância
6 Reserva de Contingência: É uma dotação alocada no orçamento destinada a atender àquelas obrigações
imprevistas ou riscos que podem estar ou já estão influenciando a execução de uma ação qualquer que o governo
tenha planejado para o período (REIS, 2004, p.177).
51
e Juventude além de protocolá-lo no Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, solicitando à
presidência a suspensão de execução da sentença até seu julgamento.
Esse recurso foi analisado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, o qual
considerou improcedentes os argumentos de que a decisão exarada teria lesado a ordem e a
economia públicas. Também foram questionados pela prefeitura os prazos estabelecidos na
sentença, sob a alegação de que as políticas públicas determinadas eram complexas, de longo
prazo e que o município já vinha cumprindo a decisão liminar. Apesar disso, o juiz indeferiu o
pedido de suspensão de execução da sentença a fim de evitar graves e irreparáveis danos à
saúde e à vida dos moradores das comunidades beneficiadas pela Ação.
Entretanto, há pouco mais de um mês da determinação dessa sentença, a prefeitura
interpôs Recurso de Apelação junto ao Tribunal de Justiça de Alagoas, argumentando
inadequação da via eleita, impossibilidade jurídica do pedido e falta de interesse processual.
Além disso, solicitou denunciação à lide do Estado de Alagoas e da União. O julgamento
desse recurso ocorreu quase três anos após a sua interposição. Na ocasião, foi rejeitada a
maioria dos argumentos e das solicitações, porém, foram revogadas as determinações que
obrigavam o município apresentar propostas de políticas públicas, definir recursos na lei
orçamentária e a utilizar a reserva de contingência.
Ainda nesse mesmo período, a prefeitura entrou com um Embargo de Declaração do
julgamento do Recurso de Apelação, pedindo que o desembargador relator do julgamento se
pronunciasse acerca da manutenção, ou não, das multas aplicadas ao Município. Três meses
depois, foi determinada a diminuição do valor da multa ao município de R$10.000,00 para
R$500,00, mantendo-se, entretanto, o valor estabelecido na primeira instancia das multas ao
prefeito e ao secretário de assistência social do município.
Em fevereiro de 2011, a prefeitura entrou com Recurso Especial de Apelação,
solicitando que o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas encaminhasse o
processo ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento. Em julho de 2011, tal recurso foi
encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça.
O Superior Tribunal de Justiça não reconheceu o recurso especial da prefeitura.
Dessa forma, a decisão foi encaminhada ao Ministério Público Federal, que reiterou a decisão
e, posteriormente, acionou o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que enviou os autos
para a vara de origem. Em julho de 2012, o juiz da 28ª Vara converteu a execução provisória
52
em definitiva e determinou que o processo recebido fosse ajuntado aos autos. Isso significa
que a sentença deixou de ter caráter liminar, devendo ser cumprida pelo município, sem
possibilidade de interpor recursos para sua revogação.
4.1 Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da sentença
A fim de compreender como se deu a execução da sentença e visualizar a atuação
dos atores em relação à efetivação dos direitos sociais, faz-se necessário analisar a trajetória
da ação, o que pode revelar limites e possibilidades da judicialização de um direito.
Quadro: Acompanhamento da sentença. Maceió (AL), Brasil, período de 10/09/2007 a
31/07/2012.
Sentença Realização Data
1. Formação de uma equipe multidisciplinar para realizar um levantamento
do perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes das referidas
comunidades, num prazo de 90 dias, para identificação dos riscos aos
quais estão expostos;
Parcialmente
07/05/2009
2. Oferecimento, num prazo de 60 dias, de condições adequadas para o
funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, além de
disponibilização, em caráter ininterrupto, de um número de telefone
gratuito (0800) para o recebimento de denúncias;
Parcialmente 19/01/2011
3. Apresentação, em 30 dias, de um cronograma de ampliação da rede
municipal de proteção, além da abertura de abrigos para as crianças e
adolescentes em situação de risco, devendo funcionar no prazo máximo de
180 dias a partir do diagnóstico;
Não
4. Oferta, em 30 dias, de creche em horário integral e Educação Infantil
para atender todas as crianças de 0 a 6 anos, além da abertura de outras
unidades educacionais, de acordo com a necessidade, em até 180 dias, a
partir do diagnóstico;
Não
5. Garantia de matrícula de todas as crianças e adolescentes em idade
escolar de Ensino Fundamental, a partir do diagnóstico inicial;
Não
6. Apresentação de propostas de políticas públicas a serem implementadas
pelo Município, com abrangência suficiente, ofertando soluções a curto,
médio e longo prazo para a referida população no prazo de 90 dias após o
resultado do perfil apresentado;
Revogada 25/08/2010
7. Inclusão no Projeto de Lei Orçamentária de 2008, de verbas necessárias
para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano
corrente, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais
necessidades da população infanto-juvenil;
Revogada 25/08/2010
8. Utilização da reserva de contingência do Município, caso esse não
apresentasse rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas no
cumprimento das medidas liminares, ora concedidas;
Revogada 25/08/2010
9. Expedição de certidão de nascimento das crianças e adolescentes e pais
residentes na região para inclusão em Programas Sociais;
Sim 24/03/2011
10. Promoção de campanha permanente de conscientização, através dos
mais diversos meios de comunicação, acerca da proibição do trabalho
Não
53
infantil, inclusive o doméstico, da prostituição infantil e dos males à saúde
causados por drogas, além da importância do papel da sociedade na
denúncia desses temas ao Conselho Tutelar da Região; Fonte: Elaboração realizada a partir do Processo n° 4.830/07 - Relatório da Sentença
Para que se realizasse o primeiro item da sentença, a promotoria solicitou ao juiz que
determinasse a sua execução por terceiro à custa do devedor, visto que já teriam se passado
sete meses sem que o município de Maceió tivesse cumprido a medida determinada. Dessa
forma, o levantamento – que se constituiu de um diagnóstico do perfil sócio-econômico das
crianças e adolescentes das citadas comunidades – foi realizado pela Universidade Federal de
Alagoas- UFAL.
Esse diagnóstico foi apresentado em audiência pública em junho de 2009, passados
quase dois anos da tramitação do processo de execução. Nele foi evidenciada a situação a que
estavam expostos os moradores das comunidades, tais como precariedade de acesso ao
trabalho e à renda, à moradia, aos serviços básicos de energia, água e esgoto e à assistência à
saúde. Também se evidenciou baixo nível de escolaridade e alto índice de crianças e
adolescentes fora da escola, além de altas taxas de insegurança alimentar, de violência e de
uso drogas.
Quanto à realização do item II, que trata da estruturação do Conselho Tutelar das
Regiões I e II e da disponibilidade de telefone gratuito (0800) para atender às denúncias da
população, constatou-se uma realização parcial, pois a reforma do prédio Dom Adelmo
Machado, onde funcionaria o referido Conselho, durou mais de três anos para ser concluída.
Quanto à disponibilidade do telefone gratuito (0800), foram instalados apenas nos Conselhos
Tutelares III, IV e V, os quais não são responsáveis pelo atendimento e proteção das crianças
e adolescentes das comunidades beneficiadas pela sentença.
Em relação ao terceiro item, referente à apresentação de um cronograma de
ampliação da rede municipal de proteção e à abertura de abrigos para as crianças e
adolescentes em situação de risco, nenhuma menção a esse respeito foi identificada nos autos.
No caso dos itens IV e V, que tratam da garantia do direito à educação das crianças e
adolescentes, observou-se que o município, através da Secretaria Municipal de Educação, foi
interpelado reiteradas vezes sobre o cumprimento desses itens. Como não obtivera resposta, a
promotoria promoveu, junto à comunidade, um levantamento das crianças e adolescentes que
ainda não estavam matriculados na Educação Infantil e Ensino Fundamental e, a partir de
audiências públicas junto às escolas privadas, solicitou que autorizasse a matrícula, no ano
54
letivo de 2010, de 163 crianças nas escolas privadas que indicara, utilizando parte do recurso
bloqueado do município para viabilizar a efetivação desse direito assegurado. Entretanto, o
juiz indeferiu o pedido sob a alegação de que feriria a prerrogativa de garantia da Proteção
Integral e da Igualdade, visto que não atenderia todas as crianças e adolescentes acobertadas
pela sentença.
Quanto ao cumprimento do item VI, que determinou a apresentação de propostas de
políticas públicas para correção dos direitos violados, identificou-se nos autos que, em maio
de 2008, há quase oito meses do deferimento da sentença, o município apresentou uma lista
de ações a serem desenvolvidas, como construção de unidades habitacionais, creche, CRAS,
mini pronto-socorro, unidade de saúde da família, entre outras. Porém, ainda segundo os
autos, foram desenvolvidas apenas algumas dessas ações, como o atendimento a 180 crianças
e adolescentes pelo PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), em funcionamento
no prédio anexo à Igreja Virgem dos Pobres; a estruturação de um Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), que funcionaria no prédio Dom Adelmo
Machado; a habilitação, cadastramento e acompanhamento de famílias em programas sociais
e oferta de cursos de capacitação profissional.
Entretanto, essa determinação foi revogada no julgamento do Recurso de Apelação
pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, juntamente com o sétimo item, que trata da inclusão, no
Projeto de Lei Orçamentária, de verbas para implementação das políticas públicas, e com o
oitavo, referente à utilização da reserva de continência do município.
Acerca do nono item, observou-se que foi providenciada a documentação por meio
de ações conjuntas com o Tribunal Estadual de Justiça e com a Secretaria Municipal de
Assistência Social.
Em relação à décima determinação, referente à promoção permanente de campanhas
de conscientização sobre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, nenhuma
informação a respeito foi identificada nos autos.
Considerando-se a sentença e a execução provisória, pode-se constatar que, em cinco
anos de tramitação jurídico-administrativa, apenas uma das medidas indicadas foi realizada,
três foram parcialmente realizadas, sendo uma dessas, juntamente com outras duas, revogada
posteriormente. Em relação às demais, não foram identificadas nos autos informações sobre
sua execução.
55
Considerando que as medidas determinadas estão, de certo modo, relacionadas ao
direito à saúde, é importante destacar que, embora esse direito não tenha sido diretamente
relacionado nos itens da sentença, foi ressaltado em diversos momentos nesse processo de
exigibilidade. Além disso, o cumprimento dos direitos sociais assegurados na sentença incide
nos fatores determinantes e condicionantes à saúde das crianças e adolescentes. Isso significa
que o não cumprimento dos itens da sentença contribui para a não realização do direito à
saúde na sua plenitude, visto que a sua efetivação pressupõe a indivisibilidade em seu
provimento e não se restringe, por exemplo, a abertura de mini-pronto-socorro ou unidade de
saúde da família.
4.2 A participação dos atores no processo de judicialização
Ao se observar a atuação dos atores que participaram diretamente do processo de
judicialização, pode-se identificar que as entidades da sociedade civil organizada, em parceria
com as lideranças da comunidade e em articulação com o Ministério Público, exerceram
importante papel para desencadear a Ação Civil Pública. Esse contexto evidencia o
empoderamento dos titulares de direitos, que podem se mobilizar para desenvolver estratégias
para exigir dos agentes públicos, portadores de obrigações, o provimento dos direitos que se
encontram violados.
Esse momento constituiu-se como um importante instrumento de exigibilidade
política, como o direito de petição e de audiências públicas para exigir a correção das
violações (ABRANDH/FAO, 2007). Isso se constituiu em um processo político deflagrador
de um comportamento mais interativo que o habitual entre o Estado e a sociedade civil ao
rediscutir as políticas públicas em sua resolutividade e abrangência, diferentemente dos
processos judiciais individualizados, comuns no âmbito da saúde (ASENSI, 2010).
Nesse sentido, reafirma-se a importância da participação ativa dos diversos atores
sociais para realização de direitos humanos, pois os agentes do Estado e da sociedade civil
devem ser acionados para garantir que as pessoas atingidas tenham oportunidade adequada
para participar das decisões que lhes dizem respeito (YAMIN, 2008; ARZABE, 2001).
No entanto, nesse processo de judicialização, observou-se que os atores que
passaram a atuar foram os do poder judiciário, do executivo e as entidades civis
56
(universidade, empresas, etc.), essas acionadas apenas para atender diretamente às demandas
concernentes ao processo jurídico-administrativo em curso.
Isso demonstra que esse processo de judicialização não comportou a interação e a
participação dos demais atores sociais que a desencadearam, tais como lideranças das
comunidades e das organizações da sociedade civil, como demonstrado num único documento
identificado nos autos: o despacho do juiz da 28ª Vara da Capital, determinando que intimasse
e informasse a uma liderança de uma das comunidades citadas na Ação Civil, que os
documentos por ela enviados serviriam apenas como informação. Essa atitude do juizado
também demonstra que é necessário avançar no sentido de assegurar a efetivação do princípio
da participação, da não discriminação e da igualdade e, consequentemente, reconhecer os
sujeitos de direitos como atores legítimos nas diversas instâncias de poder do Estado
(YAMIN, 2008; ARZABE, 2001).
Já em relação à atuação do Ministério Público, esse se destacou por sua capacidade
de se articular com os demais atores sociais desde o início desse processo de exigibilidade, o
que reafirma o pensamento de Asensi (2010) que diz que o Ministério público se constitui em
um ator privilegiado na defesa da sociedade e desempenha papel fundamental em promover
uma reflexão que situa os direitos como práticas concretas que atendam a critérios
substanciais de justiça e cidadania.
No que diz respeito à atuação do juizado da 28ª Vara da Infância e da Juventude da
Capital, verificou-se que teve destaque no deferimento da Ação Civil Pública, sobretudo na
manutenção da sentença em execução diante das demais instâncias do poder judiciário e no
enfrentamento da resistência jurídico-administrativa interposta pela Prefeitura de Maceió.
Nesse sentido, a decisão do juizado produziu o mesmo efeito que a lei, constituindo-
se como concretização da norma ao determinar seu cumprimento pelas partes envolvidas. Ao
mesmo tempo, pode servir como referência para outras decisões semelhantes, promovendo
assim, inovação no padrão de atuação do Poder Judiciário na resolução de conflitos coletivos
e de relacionamento entre os Poderes (BORGES; UGÁ, 2009; MACHADO, et al., 2011).
Apesar disso, não se verificou a eficácia do Poder Judiciário em garantir o
cumprimento de sua decisão, embora a Prefeitura de Maceió não tenha logrado o êxito
esperado em suas interposições junto às instâncias do poder judiciário.
57
Esse contexto evidencia o conflito entre os poderes e os limites quanto à capacidade
de efetivação das normas por parte do Estado. Nesse caso, do Poder Judiciário em impedir as
omissões ou violações de direitos fundamentais por parte do Poder Executivo que, por sua
vez, atuou como se a justiciabilidade fosse uma intervenção indevida do Poder Judiciário.
Alguns estudos afirmam que isso ocorre devido à ampliação das garantias
constitucionais dos direitos sociais e dos mecanismos de controle que conferem ao Poder
Judiciário um papel mais ativo e uma tarefa mais complexa em relação à resolução de
conflitos, especialmente de cunho coletivo. Além disso, a ampliação de suas atribuições não
foi acompanhada do devido aparelhamento das instâncias jurídicas para que possa garantir a
execução de decisões judiciais que consistem em implementação de políticas públicas
(YAMIN, 2008; BORGES; UGÁ, 2009; CHIEFFI; BARATA, 2009; ASENSI, 2010;
PINHEIRO; ASENSI, 2010; VENTURA et al., 2010).
É o que se evidencia nesse processo de judicialização, onde, como ator social, o
Poder Judiciário passou a lidar com uma pluralidade de instituições, atores e intérpretes que
também atuam decisiva e legitimamente na construção e garantia dos direitos sociais.
Diante desse contexto, podem ser observados alguns limites relativos a esse processo
de judicialização, devido à complexidade inerente a realização dos direitos sociais,
principalmente, por consistir em uma demanda coletiva e não individual, como a maioria das
ações judiciais. Num processo dessa natureza, evidencia-se, portanto, dificuldades de articular
vários elementos e estabelecer os acordos necessários entre os Poderes sobre a forma de
garantir a realização desses direitos, embora possua um arcabouço legal – nacional e
internacional – que dispõe de mecanismos de controle e de prestação de contas acerca da
implementação das políticas públicas para garantir a sua realização.
Apesar desses limites, a judicialização demonstrou ser um canal legítimo e um
instrumento de defesa dos direitos fundamentais quando o Estado não cumpre as suas
obrigações.
4.3 O Direito à saúde no processo de judicialização
A falta de acesso aos bens e serviços de saúde bem como as precárias condições de
vida em que se encontravam crianças e adolescentes da comunidade Sururu de Capote em
Maceió-Al foi evidenciada a partir de um diagnóstico das condições nutricionais que utilizou
58
recursos da epidemiologia e da abordagem de direito, evidenciado a violação de vários
direitos humanos. Isso reafirma a interdependência intrínseca existente entre eles, legitimando
os princípios da universalidade, da indivisibilidade e da indissociabilidade (PIOVESAN,
2005; ALBUQUERQUE, 2009; TARANTOLA et al., 2008).
Essa abordagem possibilitou a ampliação da capacidade de visualização de como se
encontrava a garantia de direitos da comunidade estudada, oferecendo evidências empíricas
do impacto da falta de cumprimento desses direitos para saúde da população. Também
contribuiu para a criação de mecanismos de acompanhamento e de avaliação, além de revelar
as deficiências das políticas públicas. Tudo isso para melhorar a prestação de contas dos
portadores de obrigações, através da incorporação dos princípios da dignidade humana, da
responsabilização, da não discriminação e da participação ativa, o que contribuiu para
empoderar os titulares de direitos na luta pela realização de seus direitos (TARANTOLA et
al., 2008; YAMIN, 2008).
Nesse sentido, a abordagem de direitos humanos na qual se ancorou a constituição do
processo de exigibilidade em análise, que culminou em uma judicilização fundamentada em
Tratados Internacionais e na Legislação Nacional, também contribuiu para responsabilizar e
exigir que o Estado (município de Maceió) assegurasse a realização dos direitos humanos das
crianças e adolescentes de comunidades da orla lagunar. Esse processo demonstrou que há
um consenso considerável quanto às reivindicações de direitos humanos a serem realizados
em contextos específicos que, enriquecidas por novas perspectivas, podem desempenhar um
papel importante na luta para melhorar o bem-estar individual e social (YAMIN, 2008).
Entretanto, no processo de judicialização, pode-se observar que o direito à saúde foi
identificado como um direito que se encontrava violado, porém, entre as medidas propostas na
Ação e deferidas na sentença, nenhuma medida foi diretamente indicada para reparar a
violação desse direito.
Embora o direito à saúde não tenha sido explicitamente contemplado na sentença,
verificou-se sua relevância quando o diagnóstico realizado como cumprimento da primeira
determinação identificou várias necessidades de atenção à saúde tais como: falta de acesso aos
serviços de saúde de atenção básica, urgência e especialmente, de atenção à saúde mental,
devido aos transtornos mentais e psicológicos que acometem as famílias por causa da
violência e da dependência do uso de álcool e drogas nas comunidades, evidenciando assim a
manutenção da violação do direito humano à saúde.
59
Desse modo, percebe-se que o cumprimento desse item da sentença deu visibilidade
às vulnerabilidades sociais da comunidade, mas não dispôs de mecanismos que viabilizasse a
participação de todos os titulares de direitos junto ao poder público municipal na formulação e
implementação das ações para atender as necessidades identificadas pelo diagnóstico.
Esse contexto se contrapõe à realização dos princípios de responsabilização e
prestação de contas, pois segundo Yamin (2008), a promoção da responsabilização dos
portadores de obrigações em prover a efetivação do direito humano á saúde, por meio das leis
e políticas públicas, exige a definição clara das obrigações normativas e requer uma variedade
de estratégias para o acompanhamento da evolução e garantia de reparação.
Quanto ao princípio de participação e empoderamento dos titulares de direitos, a
configuração em que se constituiu a dimensão da judicialização nesse processo de
exigibilidade permitiu visualizar que há ainda um longo caminho a percorrer para que o
Estado incorpore, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer sua cidadania
e participar das decisões estatais na formulação e gestão partilhada das políticas públicas
sociais. Isso, apesar de existirem leis impondo esse compartilhamento, como a Lei Orgânica
da Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação ambiental e da assistência
social, entre outras (BUCCI, 2001; ARZABE, 2001).
Considerando o alcance limitado do processo de judicialização analisado pode-se
concluir que é necessário aprimorar os mecanismos de exigibilidade existentes e criar novas
arquiteturas institucionais que promovam a responsabilidade legal, política e social que
viabilizem a aproximação entre o direito público-administrativo e o direito privado, para
assim, garantir a participação ativa da população nas instituições jurídico-políticas,
principalmente na geração e execução de políticas públicas. Isso reduziria o fosso das
desigualdades, da pobreza e da exclusão social e impediria a falta de controle, de fiscalização
e impunidade existente na área dos direitos econômicos, sociais e culturais (YAMIN, 2008).
Nesse sentido, sob a perspectiva da abordagem de direito, conclui-se, com a análise
da judicialização nesse processo de exigibilidade, que, mais importante do que identificar as
disposições legais e institucionais a partir dos princípios dos direitos humanos, é analisar o
contexto da violação dos direitos, inclusive do direto á saùde. Assim, para que um direito seja
atendido, precisam ser atendidos os demais direitos básicos das pessoas. Isso a depender de
formas institucionais e estruturais que promovam a igualdade de direitos.
60
Para tanto, é fundamental a ampliação e a consolidação de esferas públicas
democráticas que garantam o direito de todos os membros da sociedade participar ativamente
dos assuntos da comunidade em que vivem na adoção de políticas públicas em todos os
níveis. Isso implica ter como estratégia o desenvolvimento de capacitação das comunidades
locais no que diz respeito à cidadania, direitos humanos e políticas públicas e que envolva a
participação de diversos atores sociais, conferindo, assim, credibilidade a uma ampla
variedade de lutas, iniciativas, movimentos sociais e organizações, em âmbito local, nacional
ou internacional.
61
5 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DE EXIGIBILIDADE
DE DIREITOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS IMPLEMENTADAS NAS
COMUNIDADES ORIUNDAS DA ORLA LAGUNAR DE MACEIÓ-AL
As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais no Brasil têm sido
acompanhadas de forte mobilização de vários atores sociais no processo de formulação e
implementação de políticas públicas para viabilizar a efetivação desses direitos. Tudo isso por
meio de conferencias, fóruns e conselhos setoriais.
Em Alagoas, por exemplo, por ser um estado que apresenta os piores índices
socioeconômicos do país, foram desenvolvidas várias dessas ações, inclusive as de
aproximação da situação de miséria e exclusão social que vivia a população, especialmente
daquelas que se encontrava em maior vulnerabilidade social, como as comunidades da orla
lagunar de Maceió.
Entre as ações desenvolvidas destacaram-se, no período de 2004 a 2005, dois
projetos pilotos, um desenvolvido pela ABRANDH/FIAN, que realizou um inquérito
nutricional e de saúde, e outro, pela OIT – em parceria com o Fórum Nacional e Estadual de
Erradicação do Trabalho Infantil – para atender às crianças catadoras de sururu da orla
lagunar. Nesse período, também foi desenvolvido pelo Ministério Público Estadual e Federal
um projeto de promoção da cidadania e combate à corrupção.
Essas iniciativas promoveram a interação entre segmentos organizados, o poder
público e a comunidade, permitindo que, no decorrer do período entre 2006 e início de 2007,
fosse instaurado um processo de negociação, junto aos órgãos públicos, para correção dos
direitos violados.
Como a correção das violações existentes e as metas negociadas não foram
cumpridas pelas autoridades públicas, o Ministério Público Estadual de Alagoas e a
Procuradoria do Trabalho interpuseram, em 2007, junto ao Poder Judiciário, uma Ação Civil
Pública, exigindo a responsabilização do município de Maceió para garantir a efetivação dos
direitos das crianças e adolescentes, dentre eles o direito à saúde, nas comunidades localizadas
na orla lagunar.
62
Assim, em setembro de 2007, a Ação Civil Pública foi julgada e deferida,
determinando que a prefeitura de Maceió desenvolvesse ações para realização dos direitos das
crianças e adolescentes dessas comunidades.
No entanto, após a determinação da sentença, a prefeitura interpôs recursos junto às
instâncias do poder judiciário para suspender a liminar e revogar suas determinações. Isso fez
com que a comunidade se mobilizasse junto às entidades parceiras para que fosse mantida a
decisão judicial e para exigir o cumprimento da sentença.
Como reflexo da decisão judicial e da mobilização da comunidade, em 2009 foi
realizada a remoção de 500 famílias para moradias construídas, pelo município, para a
comunidade Cidade Sorriso, localizada numa região distante do centro da cidade e da orla
lagunar.
Em 2010, foram removidas pelo governo estadual mais 821 famílias da orla lagunar
para a comunidade Santa Maria, também distante do centro e da orla. Outras 240 unidades
habitacionais foram entregues na Vila São Pedro, localizada nas proximidades das antigas
residências. Isso para as famílias que viviam de atividades relacionadas com a pesca.
Ocorreram em 2011 a reestruturação do Conselho Tutelar Região II, a instalação do
Centro de Referência Especializada em Assistência Social e a expedição de documentos para
atender as comunidades da orla lagunar.
No decorrer de 2012 até meados de 2013, foram construídos e instalados, na
comunidade Santa Maria, um posto policial, uma escola (que ainda não entrou em
funcionamento) e está em construção um posto de saúde e um prédio para a associação de
moradores. Na comunidade Cidade Sorriso, foi instalada uma equipe do PSF para atender as
famílias.
Essas ações evidenciam que esse processo de exigibilidade integra uma correlação de
forças entre os atores socias envolvidos. De um lado, a Prefeitura de Maceió, tentando
neutralizar os efeitos da judicialização, ao utilizar os recursos jurídicos e administrativos para
não realizar as políticas públicas determinadas pela Ação Civil Pública e, do outro, as
comunidades, enquanto Titulares de Direitos, tentando se organizar com seus parceiros para
cobrar dos Portadores de Obrigações, inclusive do Poder Judiciário, o cumprimento da
decisão judicial.
63
5.1 O processo de exigibilidade de direitos sob a perspectiva dos atores sociais
As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais, como já dito,
provocaram uma movimentação dos setores públicos nos vários níveis de gestão e das
organizações da sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais, no sentido de redesenhar
e implementar políticas que atendessem às prerrogativas legais em curso no país.
Nesse contexto, a partir de 2003, de acordo com o depoimento do representante da
comunidade da orla lagunar, os órgãos públicos, principalmente aqueles vinculados à gestão
municipal, iniciaram um trabalho de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil junto
às mães das crianças dessa orla. Isso levou as mães a se mobilizarem para reivindicar a
garantia dos direitos junto ao poder público em reação às acusações que recebiam.
Segundo o representante, o processo de exigibilidade
Começou quando a gente começou ser repudiado, [...] pelo município
principalmente. Eles achavam um absurdo, as crianças tá mergulhando na lagoa, tá
indo catar sururu com a gente e ir no mercado vender. [...] Acusando as mães de colocar, aliciar as crianças pra o lado errado, pra trabalhar. E muitas iam parar na
prostituição infantil. [...] Então a gente também começou a mobilizar, que além
deles repudiar a gente, eles tinha que dar a ação pelo direito da gente, uma escola,
uma creche e direito à saúde. (RC)
Assim, esse depoimento revela que a situação de pobreza e miséria, a baixa cobertura
assistencial, a baixa qualidade ou mesmo ausência dos serviços públicos e o autoritarismo que
permeiam a gestão pública em Alagoas fizeram com que vários atores sociais se
aproximassem dessas comunidades, com a finalidade de conhecer, mobilizar e estimular o
empoderamento dos moradores para estabelecerem parcerias internas e externas para que
fossem implementadas as políticas públicas necessárias para efetivação dos direitos sociais
conquistados constitucionalmente, como demonstra essa afirmação:
Vários movimentos viram a situação da gente e começou a se agregar com a gente, a
fazer oficina, ajudar a gente correr atrás dos direitos. Então começaram a mostrar
que a gente tinha que ir no ministério público, que a gente tinha a defensoria pública
e que a gente não tinha que procurar só a imprensa. (RC)
A situação em que se encontrava a comunidade em questão também era objeto de
discussão de organizações não governamentais, movimentos sociais e setores da esfera
pública envolvidas na garantia dos direitos sociais assegurados.
Assim, nesse período tinha se organizado, em nível estadual, um fórum público para
discutir a questão do trabalho infantil e definir estratégias para resolução de problemas junto
ao poder público, que contava com a participação de representantes de diversos segmentos da
64
sociedade civil e do próprio Estado, contribuindo, assim, para fortalecer as iniciativas que
buscavam viabilizar a efetivação dos direitos sociais. É o que afirma um dos seus
participantes:
Surgiu com a iniciativa do fórum pra se discutir o trabalho infantil, pra se discutir a
situação das crianças do lixo [...] aí surgiu nesse período, outras favelas como a
Sururu de Capote. Era um fórum ativo, dinâmico, com participação muito boa, a
gente trabalhou muito. Foram muitos anos nessa caminhada e aí a gente já não aguentava mais de encontrar soluções, chamava os gestores, as comunidades, as
pessoas pra discutir e o poder público não fazia nada. (RSCO)
Essa movimentação em torno da resolução dos problemas sociais em nível local,
regional e nacional, motivou entidades de cunho internacional e nacional, em parceria com
entidades locais, para desenvolverem ações junto às comunidades da orla lagunar. De acordo
com um dos representantes da comunidade:
Foram 20 mães [...] que tinham os filhos acorrentados, [...] chegou a FIAN Brasil, a ABRANDH, chegou o pessoal da Pastoral da Terra, [...] que apoiou a nossa
comunidade, chegou à universidade também, a UFAL, [...] chegou pessoas dos
direitos humanos, chegou uma instituição de idoso que viu a situação da gente, se
mobilizou, chegou a RECID, chegou a Cáritas chegou a Pastoral da Criança. Foram
muitas instituições que eu nem lembro mais.
Entre essas ações, destacou-se, em 2005, o inquérito sócio-econômico, nutricional e
de saúde realizado na comunidade Sururu de Capote pela Ação Brasileira pela Nutrição e
Direitos Humanos (ABRANDH) em parceria com a FIAN (Food First Information & Action
Network – Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar). Nesse inquérito, foram
diagnosticadas graves violações de direitos humanos, como afirma um dos representantes da
sociedade civil organizada:
Antes de surgir a sentença, a ABRANDH realizou um trabalho piloto, [...] onde fez
um diagnostico da questão nutricional e da saúde. Nos fóruns mais nacionais,
CONSEAS, [...] era importante dizer que naquela situação de extrema pobreza,
tantas crianças tinham anemia, tantas crianças tinham verme. Então, isso foi caracterizando uma radiografia de como essa miséria se instala no corpo desses
sujeitos de direitos. Então isso foi impactante. No corpo de quem? Das crianças e
adolescentes. (RSCO)
Nesse período, o Ministério Público Federal e Estadual e a Procuradoria do Trabalho
também desenvolveram um projeto para promover a conscientização da população sobre as
consequências do descumprimento das obrigações, por parte do Estado e para garantir os
direitos fundamentais. Nesse projeto, foram identificadas várias violações de direitos
existentes na comunidade, como informa um representante do Ministério Público:
A gente tinha um projeto chamado A Corrupção Mata. [...] Era um projeto de
audiência pública, conscientização e formação de cidadania. Então, a gente fez cinco
audiências, [...] porque a comunidade era maior, os problemas eram maiores. [...]
65
Como tinha o espaço da urna, espaço para denúncia anônima, [...] as pessoas vão
falando, assim, nos bastidores. Foi na época descoberto um grupo de extermínio,
então uma colega que é do crime denunciou doze policiais militares, foi até
ameaçada. (RPJ)
Em 2005, também foi desenvolvido nessa comunidade um projeto piloto chamado
Catavento, numa articulação entre a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o Fórum
Nacional e Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil. Tal projeto visava atender às
crianças catadoras de sururu da orla lagunar em situação de risco relacionado ao trabalho
infantil.
Chegou uma convocação pra um projeto da OIT, [...] o projeto era o Catavento, que era pra tirar os meninos que foram encontrados na lagoa fazendo aquele trabalho
horroroso. (RSCO)
Na execução do projeto, tomou-se conhecimento da existência de um outro, realizado
pelo Ministério Público Estadual, que também tinha identificado graves violações de direitos
humanos naquela comunidade, como mostra o depoimento a seguir:
Nós tomamos conhecimento que a promotoria também estava com um estudo a
respeito da garantia de direitos humanos, [...] tinha encontrado inúmeras outras
situações de exposição daquelas crianças. A gente tinha focado somente o trabalho
na cata do sururu, mas vários problemas relacionados à falta de proteção à infância
tinham sido estudados e verificados. (RPJ)
A confluência dessas atividades envolvendo as comunidades da orla lagunar,
aglutinou diversos atores sociais propiciando que desencadeasse um processo de negociação
junto aos órgãos públicos para reparação das violações identificadas, segundo o depoimento
abaixo:
Foi um processo de atuação tanto do Ministério Público como da própria
comunidade. E aí, se tentou vários anos, audiências públicas, TAC. (RSCO)
Apesar da aglutinação dos diversos atores sociais para que fossem reparadas as
violações de direitos nessas comunidades, as negociações não avançaram; os poderes públicos
municipal e estadual não atenderam às demandas o que desencadeou num processo de
judicialização.
Alguns fatores contribuíram para que o processo de exigibilidade se encaminhasse
para a judicialização, tais como: a) o não cumprimento, por parte da gestão municipal e
estadual, das metas e acordos pactuados intermediados pelo do Ministério Público; b) o fato
do governo estadual ter se negado a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta, depois de
um longo processo de negociação; c) a ocorrência de perseguições e de ameaças a agentes do
Ministério Público e à liderança das comunidades; d) a necessidade de dar uma resposta à
66
comunidade e; e) os estudos que deram visibilidade as violações existentes na comunidade,
servindo de fundamentação para Ação Civil Pública, como demonstra os depoimentos a
seguir:
A Ação veio quando nós sentimos que o Estado, o Município, aliás, não estava
comprometido, não estava fazendo os atendimentos da forma como deveria. Falta de
compromisso mesmo! Afinal, vontade política faltou aqui em Maceió. (RPJ)
[...] quando a gente viu que não tinha mais para onde ir, que chegou a um acordo em
tudo que tinha que fazer, o governador disse: Não assino. Bom, então não dá pra dar
ré, não dá pra não dar uma resposta à comunidade, vamos entrar com uma Ação.
(RPJ)
Tinha um grupo de liderança que dava respaldo. A liderança [...] sofreu muito nisso
e a gente tinha que dar um apoio. Nesse período, eu sofri ameaças de outra liderança
comunitária que tinha lá. (RPJ)
A importância de a saúde ter sido caracterizada como uma violação, [...] foi um
subsídio a mais, importante para fundamentar a Ação Civil Pública. (RSCO)
Assim, iniciou-se o processo de judicialização e em 2007, o Ministério Público
Estadual e a Procuradoria do Trabalho em Alagoas, interpuseram a Ação Civil Pública contra
o município de Maceió na 28ª Vara Cível - Infância e da Juventude da Capital, por considerar
a atuação o juizado da infância mais favorável ao pleito, excluindo assim, o Ministério
Público Federal em Alagoas, por ter uma postura conservadora, como indica o depoimento a
seguir:
O Ministério Público Federal a gente excluiu, porque na época tinha um perfil extremamente conservador e a gente ia perder a Ação, não ia conseguir liminar, não
ia conseguir bloqueio e os juízes da infância que a gente tinha aqui, sempre foram
excelentes. (RPJ)
Por terem sido consideradas procedentes as denúncias e reivindicações impetradas
pela Ação Civil Pública, com base em tratados de direitos humanos e normas nacionais,
particularmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi determinado, em
setembro de 2007, que a prefeitura de Maceió implementasse ações para realização dos
direitos das crianças e adolescentes dessas comunidades através da elaboração e execução de
políticas públicas.
E o que é surpreendente, o juiz [...] dar o deferimento da Ação Civil Pública e
concordar com a concepção construída e traduzida, seja no marco legal doméstico,
que a gente chama Constituição Brasileira, Estatuto da Criança, tanto no marco
internacional que fundamenta na Ação Civil Pública, que reconhece que a miséria, a
pobreza e a fome, naquela localidade, se deve a omissão e deve ser penalizada pelo
gestor do poder executivo [...] Quando ele dá essa sentença, ele cria um novo paradigma, que a pobreza não é um processo natural. Há uma responsabilidade que
aquela pobreza, que ela seja considerada uma violação de direito. (RSCO)
67
No entanto, o poder executivo apresentou uma percepção diferente, a qual
considerou a decisão judicial inadequada, por responsabilizar apenas o poder municipal,
argumentando que a maioria dos serviços públicos disponibilizados aos moradores da orla
lagunar são vinculados ao governo estadual e que funcionam insastisfatoriamante. Conforme
depoimento,
O estado fez um conjunto lá, tem um CAIC que é do estado, tem a rede de educação
que é do estado. E os aparelho do estado, eles nunca funcionaram a contento para a comunidade e ficou durante muito tempo só a cobrança na prefeitura. (RPE)
O poder executivo também apresentou uma percepção diferente quanto ao papel da
liderança comunitária no decorrer desse processo de exigibilidade, considerando a sua atuação
prejudicial, por vincular seus interesses pessoais e políticos aos da comunidade e denunciar
excessivamente ao poder central. Assim,
Quem ganhou mais destaque nessa ação durante muito tempo foi [...] uma liderança
comunitária. E por outro lado, ela atrapalhou bastante o processo. Ela passou a juntar uma questão política e pessoal dela com as questões de interesse da
comunidade. Tudo ela faz denúncia para o poder central em Brasília. Ela manipula
muito aquela comunidade também com relação a isso. (RPE)
Em relação ao direito à saúde, os depoimentos demonstram certa ambiguidade sobre
a forma como ele foi apresentado no processo judicial em si, embora alguns indiquem que
vários aspectos desse direito se encontravam violados, sendo uma das principais
reivindicações da comunidade. Essas violações foram utilizadas na fundamentação da Ação
Civil Pública, mas não foram indicadas entre as determinações na sentença.
Eu não me lembro, acho que na peça a gente redigiu no fundamento e no pedido a
gente deixou de fora. (RPJ)
Quando a gente moveu essa ação diante do poder judiciário, eu não tenho conhecimento. Foram dez ou mais de 10 itens que a gente exigiu, mas os principais
itens que a gente exigiu pra nossa comunidade foi educação, saúde e a segurança.
(RC)
Na sentença tem uma exigência que é a instalação de um Programa de Saúde da
Família. (RPE)
A partir da decisão judicial, houve uma redefinição da correlação de forças entre os
atores sociais envolvidos, de acordo com o modo como cada segmento passou a interagir no
processo. A prefeitura de Maceió, além de interpor vários recursos junto às instâncias do
poder judiciário para suspender e revogar a decisão, utilizou diversas estratégias políticas e
administrativas para neutralizar os seus efeitos e não realizar as políticas públicas
determinadas. A comunidade, fortalecida e organizada com as entidades que estabeleceram
parceria, mobilizou-se para cobrar dos Portadores de Obrigações, inclusive do Poder
68
Judiciário, o cumprimento da decisão. E o Ministério Público se constituiu como interlocutor
entre o juizado, a prefeitura e a comunidade.
Para os representantes da prefeitura, o processo de judicialização também se
constituiu numa intervenção indevida das instâncias do Poder Judiciário por tomar decisões
sem conhecer a realidade, como indicam os depoimentos a seguir:
A justiça não conhece a realidade. Muitas vezes eles tomam uma decisão trancados
num gabinete sem conhecer a realidade. (RPE)
Para mim, foi o grande erro do Ministério Público, foi não colocar o Estado, também
no polo passivo, pra fazer com que os dois entes trabalhassem em conjunto, como
realmente trabalhou, só que [...] o Município trabalhou em cima da Ação e o Estado
trabalhou em cima do seu cronograma. (RPE)
Essa visão de que esse processo de judicialização não foi de todo positivo abrangeu
diversos atores; o poder executivo considera a Ação Civil Pública apenas uma formalidade,
embora afirme que o município cumpriu todas as determinações da sentença através da
realização de políticas públicas de educação, saúde e assistência social. Defende, desse modo,
que o processo de judicialização seja finalizado para que os recursos financeiros sejam
desbloqueados e deixe de prejudicar a gestão do município, além de alegar que muitas
famílias beneficiadas pela Ação saíram da comunidade:
Desde a construção de um PETI, a instalação de uma escola, a instalação de uma
creche, posto de saúde, retirada de documentação, inserção dessas famílias no
mercado de trabalho. [...] A Ação, ela é meramente formal. A ação tá cumprida, os
dez pontos da ação, o município atendeu. (RPE)
O que a gente tem defendido é que é necessário deixar de judicializar essa questão,
porque tem recursos do município bloqueados por conta disso. [...] Não ficar
correndo atrás de uma ação, porque muitas famílias que eram de lá, não são mais. E
fica aquela discussão sempre em cima da ação, e o município sendo penalizado por
isso. (RPE)
Em relação à intersetorialidade, os depoimentos indicam que esse processo de
judicialização contribuiu para que as secretarias trabalhassem conjuntamente na gestão
municipal. Em relação a parcerias com a esfera estadual, verificou-se certa contradição,
quando se propõe o fim da judicialização e o estabelecimento de parcerias entre os níveis de
governo para atender as necessidades das comunidades. Segundo depoimentos,
[...] a parte mais significativa da Ação foi exatamente o engajamento da máquina pública, que antes cada secretaria tinha uma forma diferente, não havia aquele
conjunto, cada um fazia por si, cada um fazia individualmente. Com a ação, juntou
todas as secretarias. Então, a gente percebe que todas as secretarias terminaram
trabalhando em conjunto para aquela comunidade. (RPE)
O Município não conseguiu conversar com o Estado. Não conseguiu avançar nessa
relação de intersetorialidade. [...] A nossa defesa é: acabar essa ação, desbloquear os
69
recursos da Prefeitura de Maceió, a gente sentar numa mesa de discussão, o estado e
o município e com o governo federal, fazer uma nova pesquisa, fazer um novo
retrato social dessa realidade e olhar para a questão da habitação, da saúde, da
educação, da geração de emprego e renda. (RPE)
Apesar dessa visão de certo modo negativa da judicialização, o Poder Executivo
reconhece seu mérito, pois exerceu pressão sobre a gestão pública municipal, estimulou a
participação da comunidade e melhorou significativamente as condições das crianças e
adolescentes beneficiados pela decisão judicial:
E através disso, o engajamento da comunidade foi muito importante, porque o poder
público precisa de um beliscão, às vezes um beliscão meio árduo, que dói. Foi o
caso dessa ação. Pra mim foi um marco em relação eu saiba, realmente, não teve
nenhuma ação coletiva que tenha, assim, uma mexida muito grande. (RPE)
Aquelas crianças e os adolescentes daquela comunidade houve, realmente, um
ganho excepcional. (RPE)
Para os representantes das entidades da sociedade civil organizada que atuavam junto
à comunidade, a ação judicial também foi considerada uma conquista significativa que
fortaleceu e empoderou a comunidade na luta para que os direitos sociais assegurados na
sentença fossem efetivados.
O juiz disse, vai ser assim. Vai ter que pagar se o prefeito não cumprir em tantos
dias. Mas aí, o tempo foi correndo, [...] e ai, a gente fez passeata no dia do grito dos
excluídos. Botamos os meninos da Sururu, todos na rua. A gente botou os meninos,
botou pai, mãe, foi uma festa! Botamos todo mundo na porta do Tribunal de Justiça,
na porta da prefeitura que era pra ver se as coisas que eram de responsabilidade do
município saíam, e as coisas que eram do estado, também. Saiu nada. (RSCO)
Afirmam ainda que a decisão judicial também contribui para que mudasse a visão de
muitos moradores com relação aos seus direitos e as suas expectativas sobre o futuro dos
filhos, passando a acreditar que poderiam ter uma vida melhor.
A gente conseguiu mudar um pouco a visão deles. [...] No final, aquelas pessoas
idosas indo para alfabetização de jovens e adultos. [...] Essa decisão, ela veio favorecer muito isso. Eles sabiam quais eram os direitos deles garantidos. Agora,
faltavam esses direitos [...] chegarem na sua totalidade pra eles. [...] Eles tinham
uma visão mais esclarecedora das coisas, da melhoria de vida para os filhos. [...] E
isso, eu tenho certeza que mudou mesmo. (RSCO)
Embora esses atores considerem que a decisão fortaleceu o processo de negociação
com o poder público, reconhecem que não houve avanço na realização das determinações, ao
afirmar que
[...] a gente vive um paradoxo. E a gente não conseguiu avançar. Se você pega o
relatório do projeto você vai ver que tem alguns resultados da assistência social, da
educação, [...] que trás essa complexidade de setores, da saúde, da alimentação,
conseguia-se dialogar, mas não conseguiu avançar nas reparações. (RSCO)
70
Também como ator social nesse processo, o Ministério Público considera a
judicialização insuficiente, devido à estrutura de funcionamento do poder judiciário, embora
sua maior contribuição consista no fortalecimento da luta política, por estimular a mobilização
e a participação ativa da comunidade para lutar pela realização dos seus direitos, atribuindo à
luta política a manutenção da decisão judicial e a visibilidade que comunidade passou a ter,
como indica as afirmações a seguir:
Porque, [...] tem inúmeros limites, tanto que você tem, desde 2007, um milhão e
meio bloqueado, e não consegue fazer nada, porque juridicamente, [...] tem
inúmeros limites. A principal e única luta verdadeira, ali, é a política, de participação
de luta da comunidade. Tanto que o Tribunal manteve liminar e manteve sentença
porque a comunidade foi pra porta. (RPJ)
[...] Na verdade as pessoas viraram o olho para comunidade. Teve um Jornal
Nacional, teve um Fantástico, então na hora que você dá um real empoderamento a
comunidade, a comunidade começa a andar com as próprias pernas. E o que aconteceu foi isso, eles começaram a lutar mais pelos direitos deles, que tem uma
efetividade muito maior que uma Ação Civil. (RPJ)
Esses atores também identificam que essas comunidades ampliaram a sua capacidade
de luta, mas a estrutura socioeconômica e político-cultural de miserabilidade e de exclusão
social em que se encontra a cidade de Maceió e o Estado de Alagoas impedem que as
transformações ocorram e que o processo avance rapidamente. Segundo eles,
No caso da comunidade, [...] elas travam lutas muito mais fortes que inúmeras
outras comunidades daqui de Maceió. Agora tem uma série de complicadores, num estado miserável, numa cidade miserável, de exclusão social. E isso, você não
resolve. A gente está vivendo um processo histórico. Então, você não resolve de um
dia pra noite, nem em três anos, nem em quatro anos, nem em cinco anos. (RPJ)
Sobre o processo de negociação junto ao poder executivo, um dos representantes do
Ministério Público afirma que a hipocrisia e o não cumprimento das obrigações por parte do
gestor público inviabilizaram o prosseguimento das negociações e, consequentemente, a
concretização dos direitos. No dizer do representante,
O discurso do Prefeito era algo maravilhoso! Eu fui a duas reuniões com ele e
depois me recusei. Não vou nunca mais. Ele era incapaz de dar um não. Agora, era
incapaz de cumprir uma palavra. (RPJ)
Entretanto, este considera legítima a intervenção do Poder Judiciário e a
judicialização, por sua vez, uma forma de combater o desrespeito do poder executivo aos
direitos da população.
O gestor público acha que tem essa liberdade de eleger as prioridades e o que é
conveniente para ele. E não é para a população responder. E essa decisão foi bem
nesse sentido. Não, o Poder Judiciário pode, sim, intervir quando o Poder Público
não está cumprindo sua obrigação. (RPJ)
71
Pode-se constatar, portanto, que os depoimentos evidenciam que os atores socias
envolvidos no processo de judicialização possuem percepções diferentes e até opostas entre si,
dependendo da posição que ocupam e dos interesses dos segmentos sociais que representam
no contexto de interação em relação ao processo de exigibilidade.
5.2 A implementação das políticas públicas nas comunidades beneficiadas pela decisão
judicial
A concretização dos direitos sociais perpassa todo um processo de produção de uma
política pública, que vai desde a identificação das demandas, negociação, determinação legal,
até a execução e a avaliação. Nesse sentido, para analisar o alcance desse processo de
exigibilidade, identificou-se, a partir dos depoimentos dos atores sociais envolvidos, quais
eram as demandas relacionadas à saúde e quais foram as principais ações, serviços e
programas que foram desenvolvidos nas comunidades para atender às determinações da
sentença.
De acordo com os depoimentos dos representantes das comunidades e dos
representantes da sociedade civil organizada, as condições de vida eram extremamente
precárias e as necessidades de saúde eram gerais:
Porque as condições de vida ali, [...] é de apavorar, porque não é um probleminha, [...] são todos os problemas, muita coisa. (RSCO)
Em alguns depoimentos, destaca-se a violação do direito à saúde, que está
relacionado à falta de acesso ao trabalho e à renda, à educação e à alimentação adequada:
[...] a gente que não tinha onde buscar um dinheiro, nem nada. [...] Não tinha um
emprego, não tinha nada. Então agora eles têm que dar melhora pra mim e pro meu
filho, porque eu não tenho condições de pagar uma escola particular se falta escola
na comunidade, se falta saúde na comunidade, não tem uma boa alimentação. (RC)
Também foi informado que faltava acesso ao atendimento psicológico e psiquiátrico
para dar assistência às vitimas do uso de drogas e da prostituição infantil. Nas escolas, esse
tipo de atendimento também era uma necessidade, devido ao clima de tensão e violência que
permeia comunidade.
A gente exigiu a saúde também porque as crianças ficam debilitadas, quando eles se
envolvem muito cedo na prostituição, se envolvem na droga, [...] mentalmente,
também bole no psicológico. [...] Em uma comunidade com essa, [...] deveria ter um
posto médico bem avançado. (RC)
Porque a área da gente é uma área de violência. [...] Quando veem os filhos da gente
que está no trafico, mete o pé na porta, de madrugada. (RC)
72
Tem mãe que como o menino mora em favela, [...] que [...] diz logo: olha não se
misture com aquele seu coleguinha. A gente pediu que, pra cada escola que o nossos
filhos estudam, tivesse [...] um psicólogo pra acompanhar nossos filhos. (RC)
Segundo um dos representantes da comunidade, o Conselho Tutelar não tinha
condições de funcionamento e não oferecia atendimento adequado, embora atuasse na
fiscalização em relação ao trabalho infantil:
Então, ele começou a mover o conselho tutelar contra nossa comunidade, contra as
mães. [...] E porque o conselho não tem um carro pra socorrer a gente, quando a
gente precisa. Quando nossos filhos estavam dois, três dias fora, na rua, agente que
ia a pé, nas ruas no mercado, arriscando a nossa vida, porque quando a gente queria
um conselho 24 horas, não existia? Só até as 05:00 horas da tarde. E os filhos da
gente sumiam a noite. (RC)
A gente só estava sendo julgado. [...] Era um absurdo a mãe colocar uma criança de
4 anos, 5 anos [...] do lado dela, dispinicando sururu, trabalhando, se acordando
cedo, enquanto a criança deveria está em uma escola [...]. Chegou o conselheiro
conversando com a gente. E fora que algumas crianças da gente que estavam muito
rebeldes, a gente começou a acorrentar, nisso recebemos denúncia. (RC)
Esses relatos indicam que as condições de saúde e os serviços públicos essenciais na
às necessidades de atenção básica, pois não se tinha acesso a um Programa de Saúde da
Família próximo da comunidade tampouco acesso à assistência hospitalar adequada:
Há, não pode. Porque aqui é a unidade de saúde da família. Essa área aqui é fechada
e a gente já tem as famílias cadastradas. [...] Daqui, pra ir pra trás, eu não posso
atender ninguém. [...] Tem que ir para o pronto socorro. [...] Não eram cadastradas
porque as unidades básicas do PSF que existem são pouquíssimas. (RSCO)
Ela disse, [...] é a SAMU que levou uma senhora e tá trazendo de volta porque não
tem onde enternar. E me levou lá pra dentro. [...] O primeiro barraco que eu entrei, o
barraco só tinha a coberta, você chegava já via tudo por dentro, que eram só as
tirinhas de madeira. A mulher com um barrigão deste tamanho, com os olhos
abertos, a casa fedia tanto no mundo. Aí, eu olhei o fogo apagado, o chão todo
molhado. Aí, ela disse, [...] o neto sai para pedir esmola e ela fica só. (RSCO)
O que eu morria mais de medo ali era pegar um germe por causa das fezes, coco de
cachorro e de criança tudo misturado. E aquela fiação de energia, tudo debaixo
daquelas terras. (RSCO)
Além disso, afirmou-se também que a comunidade era discriminada pela sociedade e
pelos prestadores de serviços públicos:
O povo tem medo, jogava os pacotes de brinquedos. Foi no natal e no dia das
crianças. Não parava, ninguém descia. (RSCO)
O que eu faço? Aquela mulher que você visitou, morreu. E o IML não quer vim
porque não tá acreditando. [...] Tome o telefone e ligue daí pra o IML, pra ver se
eles vêm. (RSCO)
Os depoimentos dos representantes do Ministério Público ratificaram as informações
sobre como eram as condições de vida e de acesso aos serviços públicos na comunidade, onde
73
as necessidades de saúde eram gerais e o atendimento prestado, desqualificado,
principalmente sob a perspectiva dos direitos humanos. Segundo esses representantes,
Não tinha uma necessidade não, era de A a Z. Porque, [...] na hora que você já nasce sem acesso à maternidade, a mãe não tinha um pré-natal adequado, grande parte era
usuária de álcool e de outras drogas. Então, [...] quando vem pra casa não tem acesso
a saneamento, a mãe precisa trabalhar e não tem acesso à creche. Tudo isso, no meu
ponto de vista se trata diretamente de Direitos Humanos, [...] como uma coisa
interligada. [...] Não tinha um direito mais violado do que o outro. (RPJ)
E o que tinha lá, era assistencialismo, do pior e do mais barato, do mais vulgar e do
mais safado. Não tinham nem acesso a Bolsa Família, porque eles não tinham endereço, nem comprovante de residência e o carteiro não vai entregar o cartão ali.
(RPJ)
[...] como sempre, a questão de desestrutura familiar, a família impulsionando seus
filhos a trabalharem e naquela situação que era, assim, uma das piores formas, [...]
em ambiente insalubre, de risco, [...] as crianças mergulhavam. (RPJ)
Além da natureza dos serviços existentes na comunidade, também foi informado que
a falta de documentação das famílias impedia o acesso aos programas públicos de assistência
social, aprofundando a marginalização e a discriminação da comunidade:
[...] porque muitas daquelas famílias não tinham documentos, [...] não podiam
ingressar num programa de assistência, [...] eles ficavam a margem de tudo. O
governo não conseguia atendê-los. (RPJ)
[...] a gente achava interessante, porque tinha o conjunto Virgem dos Pobres que era
só do outro lado da avenida, que é também uma comunidade extremamente carente,
mas que já tinha preconceito com o pessoal da favela. (RPJ)
Com isso, percebe-se que os moradores das comunidades da orla lagunar tinham sua
cidadania negada, pois muitas famílias não tinham documentação de identificação civil e, por
viveram numa área de ocupação irregular, não tinham endereço. Por essa razão, o Estado não
os reconhecia como sujeitos de direitos, consequentemente, não se reconhecia como portador
de obrigação no provimentos dos diretos perante a população que vivia nessas comunidades.
Desse modo, observou-se que essas comunidades eram discriminadas por parte da
sociedade e dos órgãos públicos, que as condições de vida eram precárias, pois não tinham
acesso ao trabalho e à renda, à moradia, ao saneamento básico, à alimentação adequada, à
educação, à assistência social e à segurança, ou seja, as necessidades de saúde eram
generalizadas, seja pelos determinantes socias existentes na comunidade, seja pela falta de
acesso aos serviços de atenção básica, de assistência médica e hospitalar.
A demanda referente à falta de documentação das famílias da orla lagunar foi
atendida pela Secretaria Municipal de Assistência Social, como afirmam os depoimentos:
74
Os que diziam que não tinham registro, [...] essa ação a Secretaria de Assistência
fez. [...] Não ficou ninguém sem registro de nascimento, que eu tenha conhecimento,
não. A não ser que alguém tenha se omitido. (RSCO)
[...] foi feito um mutirão para tirar documentos. [...] A prefeitura teve que de alguma
forma propiciar, proporcionar pra que eles tivessem esse documento, assim, um
endereço. (RPJ)
Em relação à educação, os relatos indicam que essa demanda foi atendida
parcialmente por causa resistência das mães, devido às escolas não serem na comunidade.
A gente tentou também inserir a comunidade na escola, a gente conseguiu vagas
específicas para a comunidade e teve uma resistência muito grande das mães porque
não era na comunidade. Você tem, assim, uma doença familiar muito grande. (RPJ)
O representante da comunidade alega que, em 2010, foi instalada uma creche para
atender crianças de 2 a 5 anos de idade, além de serem disponibilizadas vagas em bairros
próximos da orla lagunar. No entanto, foi assegurado o transporte escolar apenas para as
crianças da creche, sendo permitido que as crianças que estudam em escolas próximas da
creche pudessem utilizar o transporte escolar de acordo com a compatibilidade de horário.
[...] falta transporte para as crianças maiorzinha, porque o ônibus é pra criançinhas
da creche e a creche funciona de 8:00 hs e a escola de 7:00 hs. Aí muitas crianças deixa de ir pra escola porque alguém tem que levar ou procura outra mais perto da
comunidade, mas a tarde o ônibus trás as pequenas e leva e trás as crianças da escola
que fica perto da creche. Meu filho adora a escola. (RC)
Tão falando que a creche vai entrar em reforma, aí a gente vai ter que levar as crianças na escola. Já comprei uma bicicleta velhinha, senão os vagabundos tomam,
pra levar meu filho, mas o trânsito da Siqueira Campos é perigoso, é longe. (RC)
Os depoimentos também indicam que, apesar de ter sido garantido o acesso à escola,
a falta de atividades de esporte, cultura e lazer e de capacitação profissional para as crianças e
adolescentes na comunidade tem contribuído para a manutenção do trabalho infantil.
Todo mundo estuda, mas falta atividade para os adolescentes, um esporte, alguma
coisa pra não ficar na rua quando não tão na escola. Os meus irmãos tão aqui com a
minha mãe despinicando sururu, pra não tá solto na rua, mas minha sabe que se
verem eles aqui, ela pode ser presa, mas fazer o que? (RC)
Há dois anos fizeram matrícula pros meus dois irmãos, um com treze e a outra com
quatorze anos, pra um curso de computação e até agora, nada. (RC)
Esse contexto fez com que Ministério Público considerasse a decisão judicial
ineficaz no que diz respeito à questão do trabalho infantil. Do mesmo modo considerou que as
modificações ocorridas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) tinham
contribuído para sua manutenção na comunidade.
[...] A ação não conseguiu surtir efeito, em absoluto, com relação à questão
trabalhista. Ainda permanecem crianças trabalhando. [...] O trabalho infantil ainda
permanece, porque, um dia desses saiu outra reportagem nacional. (RPJ)
75
Seria uma escola o dia inteiro, para a criança ficar sossegada, porque a criança tava
na escola o dia inteiro e hoje não tem mais isso. O PETI [...] foi diminuindo,
diminuindo e agora, parece que, onde tem PETI. só são duas horas de jornada de
segundo turno, jornada ampliada, duas horas não é nada. (RPJ)
Identificou-se que, em 2010, foi instalado um Centro de Referência Especializada de
Assistência Social para combater a exploração sexual, embora sua atuação fosse considerada
restrita, devido o receio dos servidores de entrar na comunidade.
A questão da violência, exploração sexual, [...] a gente levou lá pra dentro o
CREAS. O CREAS, eu visitei várias vezes, não senti... há a gente não pode. A gente
tem medo de chegar lá. (RSCO)
Já em relação ao CRAS, sua atuação foi considerada positiva na visão dos
moradores:
O CRAS é bom, funciona, tem cursos, palestra, bolsa família. (RC)
Outra necessidade atendida nesse processo de exigibilidade diz respeito à moradia. O
poder público, para atender a essa necessidade, distribuiu várias famílias em residências
localizadas em diferentes comunidades. A primeira remoção ocorreu em 2009, onde cerca de
500 famílias passaram a residir no conjunto habitacional Cidade Sorriso, no Benedito Bentes,
construído pela prefeitura e em 2010, foram transferidas 240 famílias para apartamentos
próximos a orla lagunar – Vila São Pedro – construída pelo governo estadual para atender às
famílias que viviam da pesca e 820 famílias para o conjunto habitacional Santa Maria, no
Eustáquio Gomes.
Veio toda a equipe da prefeitura, da secretaria de planejamento, da habitação do
município. Eles fizeram um trabalho de preparação quando [...] houve muita
pressão. Uma coisa que foi cumprida por parte, que eu não sei quanto eram, mais ou
menos, as casas. [...] Eu só sei que o restante daquele pessoal ficou lá. (RSCO)
Identificou-se também que a manutenção dos barracos propiciou o distanciamento
entre seus moradores e os das famílias que passaram a morar nos apartamentos, do outro lado
da avenida, contribuindo para desmobilizar os moradores e as lideranças comunitárias.
Eu fui a umas reuniões que [...] me mandava, mas não vou mais, porque a gente fica
visado pelo povo que continua do outro lado, porque a gente ganhou nosso
apartamento. Não vou perder o meu canto. (RC)
Apesar disso, identificou-se que as famílias que tiveram acesso à moradia, melhoram
a sua condição de vida e saúde.
E lá o pessoal da comunidade, inclusive, mudou-se. Mudaram para novas
residências. [...] Encontro uma vez ou outra com os meninos todos já gordinhos, que
conseguiram morar nos apartamentos. Que já estavam trabalhando num emprego
76
doméstico. Para algumas pessoas houve uma melhoria de vida. Eu sei. Que eu
percebo. (RSCO)
Já em relação à saúde, os depoimentos indicam que essa demanda não foi atendida, e
que a decisão judicial não alterou as condições de acesso e de atendimento dos serviços de
saúde disponíveis para as comunidades da orla lagunar, inclusive para as famílias da Vila São
Pedro.
A saúde, não aconteceu nada, nada. A Ação na saúde, nem municipal e nem estadual, nada. (RSCO)
Horrível, horrível! E ainda continua horrível. [...] Uma mãe teve aqui só pra trazer
uma criança de lá pra mostrar. Eu chorei, o pé da criança como tava de bicho de pé.
(RC)
Acho que precisa de saneamento básico, tem muita violência e falta atendimento
médico. Pra a gente conseguir uma consulta pra mim ou pro meu filho a gente tem
que dormir no posto do Dique Estrada. (RC)
Segundo os depoimentos, a Secretaria Municipal de Saúde se esquivou de participar
das negociações para implementação das ações a serem desenvolvidas para atender às
necessidades de saúde da comunidade, pois
Com a Secretaria Municipal de Saúde foi a que menos se posicionou, a gente não
teve reunião, não respondia aos nossos chamados de estratégias e de políticas de
saúde. [...] A saúde foi muito difícil. A gente teve pouca interlocução e não foi por
motivo da gente não tentar, ou melhor, assim, a gente não ter acionado. (RSCO)
Na fala dos atores sociais da sociedade civil, pode-se perceber que nas comunidades
da orla lagunar a decisão judicial foi ineficaz em relação à manutenção do trabalho infantil e
ao atendimento das necessidades de saúde. Já em relação à educação, moradia e assistência
social as determinações foram atendidas de modo parcial.
Entretanto, esses depoimentos se contrapõem ao relato do representante do Poder
Executivo, quando é dito que na comunidade da orla lagunar, as determinações relacionadas à
educação, à saúde e à assistência social foram atendidas.
A questão do PETI, do CREAS, a reorganização do Conselho Tutelar, creches foram
feitas, escolas foram construídas exatamente nesse período de 2008 a 2012. [...] Foi
construído um colégio para crianças e adolescentes, foi construída uma creche só
para aquela orla. Centro de Saúde que tá condicionado com o CREAS que é o centro
de saúde, que não tinha centro de saúde lá, [...] inclusive recebi recentemente
documentos da Secretaria de Educação e da Secretaria de Assistência Social
informando exatamente isso, quer dizer, aquelas crianças em vulnerabilidade, 90%
delas, acredito que hoje estão na escola e em algum programa de atenção à criança e
ao adolescente. (RPE)
Quando se teve a ação de remover as famílias para outras comunidades,
inevitavelmente, as ações para atender às determinações da sentença passaram a ser
77
distribuídas para atender também a essas comunidades. É interessante analisar o processo de
judicialização do ponto de vista desses moradores.
No conjunto habitacional Cidade Sorriso, os moradores reconhecem a importância de
terem tido acesso à moradia, mas afirmam que não têm acesso a trabalho, tendo como renda o
recurso do Programa Bolsa Família, o que afeta as relações familiares.
Bem, eu te falo e repito, a doença maior de nossa comunidade é miséria, não é nem a
miséria do alimento. [...] Uma estrutura digna. Não importa essas casinhas de tijolos
se a gente não tem emprego, a gente não tem um curso pra tirar renda pra ajudar
nossos filhos. [...] A gente dá graças a Deus, essa casa, mas agora todo mundo tá no
SERASA. [...] porque a gente deve a luz, [...] aí, a justiça, já encaminharam junto com a justiça com uma historia que vai tomar a casa. Quer dizer, “bole” com o
psicológico da gente. (RC)
O marido se debanda logo, se desgraça, começa beber cachaça, se entrega a cachaça
[...] ou o vicio da droga [...]. E tudo fica a mulher na responsabilidade. (RC)
Alguém que tenha condições melhores que a gente, que vê a miséria e chega lá [...] e
diz, meu amigo eu te dou isso, isso e isso. Tu tira tua parte, vê se tu não vai ganhar
dinheiro? Agora tu fica aí se matando. Tem muitos pais de família de mente fraca
que cai nessa, cai nessa besteira. Vê dinheiro rolar, quando é depois que é preso ou
humilhado. (RC)
Quanto à atuação do município em relação a essas questões, eles dizem que tiveram
apenas uma reunião junto ao CRAS da comunidade, mas as reivindicações que apresentaram
ainda não foram atendidas.
Foi dada só a casa, diante da casa, mais nada, depois disso começou só demanda, só
violação. [...] Na comunidade qual é a violação? Trafico, prostituição infantil, [...]
meninas envolvidas aí, de 12, 15 anos, tanto homem como mulher se prostituindo.
[...] Essa comunidade vai pra Cidade Sorriso I, mas tem um CRAS? Tem conselho
dentro dessa comunidade, um conselho tutelar dentro da comunidade? (RC)
A gente foi pro CRAS e fizemos somente uma reunião em 2010. [...] Nesse
acompanhamento, a gente adiantou algumas coisas e exigiu o curso de renda, um
curso de costura, um curso de pintura para as mulheres. E até agora, nada. (RC)
Em relação ao provimento do direito à educação, os moradores informam que nem
todas as crianças tiveram acesso à escola, à creche e a atividades de esporte, cultura e lazer.
[...] até hoje, ainda temos crianças fora da escola. Nem todas as crianças
conseguiram ser matriculadas, porque o conjunto aumentou, [...] poucas escolas e
muitas crianças, nossa comunidade principalmente, (...) é difícil ter uma mãe que
tenha um filho só. É de dois acima. [...] Creche nem se fala, tem mãe que até hoje
está correndo atrás de creche por ai. (RC)
Porque a partir do momento que a comunidade tem uma educação, tem cultura, tem
trabalho social, eu acho que a demanda de ter roubo, de ter tráfico vai ser muito
pequena. Porque esses nossos filhos vão estar ocupado, vão está estudando, vão está
tendo aquilo que eles precisam, uma cultura. O que ele quer um caratê, uma luta de
judô ou uma capoeira. Uma coisa que tenha na comunidade, um futebol ou um
dança de coco, uma dança de hip-hop. Isso que a comunidade quer, uma dança de
78
reggae ou uma dança africana. É isso que a comunidade quer e esses meninos não
tem. (RC)
Também se afirma que a escola e a creche deveriam ser ofertadas em tempo integral
e que fosse garantido o direito à educação em todas as fases de ensino.
Tinha que ter uma creche em tempo integral, a criança entrava de manhã e saia de
cinco e meia da tarde. Tinha quer ter uma escola também em tempo integral. [...] A
criança saindo da creche, [...] ia pra escola, da escola já ia pra uma universidade
fazer alguma coisa. (RC)
No entanto, identificou-se que existe uma discussão sobre a impossibilidade de se
construir uma escola nessa comunidade, porque o relevo da área é considerado inadequado .
É tão absurdo, porque tem uma legislação que impede de construir uma escola num
território que não tenha segurança. [...] Você percebe que pra dar uma moradia, foi
num dos piores locais. Ali, não era pra ser construído nada, foram construidas as
casas pra essas pessoas e no lugar das casas dessas pessoas não tem nenhum terreno
para construir uma escola. (RSCO)
Em relação ao atendimento das necessidades de saúde, afirma-se que as famílias têm
acesso à unidade básica de saúde e que está sendo instalada uma equipe do PSF, mas
consideram o atendimento precário e insuficiente.
Era unidade mista, atendia várias pessoas da comunidade, não atendia
especificamente só Sorriso I. Quando a gente ia pegar uma ficha lá, tinha que
dormir. (RC)
Pra conseguir o PSF foi discussão no posto medico. [...] Botaram em novembro de
2012. Fizeram o mapeamento em janeiro, [...] e agora ele estão começando a
trabalhar. (RC)
Bem, a única ação que eles desenvolvem, na verdade, é vir na comunidade dizer
assim, tal dia, [...] a gestante e as criança têm que ir para posto, chega lá procura as meninas do PSF [...] e faz o encaminhamento que nem a gente fazia antes, normal,
pegando uma ficha e tudo. [...] Não de mede a criança, acompanha a criança de mês
em mês, se ela aumentou de peso ou ela diminui, se essa criança esta desnutrida.
Nada disso tem aqui, não. [...] Eu pensava que vinha um médico, a enfermeira e um
agente pra acompanhar dentro da comunidade. (RC)
Também foi informado que pessoas foram a óbito na comunidade devido à
precariedade ou mesmo falta de atendimento adequado, demonstrando que as violações dos
direitos humanos, nesse caso do direito à saúde e à vida, não estão sendo corrigidas.
Sim, morreram 5 pessoas dentro desse posto medico, de umas doenças muito
simples. O primeiro foi uma criança por causa de verminose, botando verme pelo
nariz e pela boca. [...] Depois morreu 4 idoso, de pressão alta. Chegou lá fulminante,
a pressão subia, não se tem uma ambulância, se tem um PSF, porque não coloca
dentro dessa comunidade uma ambulância com UTI móvel? Não se tem. (RC)
Os relatos dos representantes da comunidade Cidade Sorriso afirmam que as casas
foram doadas, mas faltam condições dignas para viver, pois falta acesso a trabalho e à renda e
aos demais direitos como saúde, educação, cultura, esporte, lazer e assistência social.
79
Já o poder executivo alega, por meio dos depoimentos de seus representantes, que a
comunidade foi dotada de toda infraestrutura e serviços públicos para atender às famílias
beneficiadas pela judicialização.
Então, todos os secretários relacionados a essa ação estavam lá e a informação que
nos foi passada é que, tanto aqui na orla lagunar tá sendo feito todo esse
aparelhamento de assistência, como na Cidade Sorriso estão sendo implementadas,
apesar de ter divergências com relação à própria comunidade que diz que não. [...] Mas quando foi feito a Cidade Sorriso, que é um projeto novo, já foi feito com toda
infraestrutura, já foi feito com colégio, centro de saúde, inclusive da questão da
segurança, que tem um centro de referência da guarda municipal junto com a PM,
foi feito toda essa infraestrutura. (RPE)
Entretanto, afirma que uma comissão vinculada ao Poder Executivo Federal e a
Organizações de Sociedade Civil esteve em Maceió e na comunidade para verificar se as
determinações da sentença estão sendo cumpridas pelo poder público. Para isso, estão se
dispondo a realizar um levantamento na comunidade Cidade Sorriso.
[...] tem um pessoal de São Paulo, de Brasília, [...] do Ministério da Ação Social eles
estão aqui, [...] em Maceió, fazendo esse levantamento e ficamos de nos reunir, [...]
em janeiro, o Ministério Público, a Prefeitura e esse grupo, que é um grupo
independente, digamos assim uma Organização que é vinculada a UNESCO. [...]
Eles queriam ver exatamente o que foi que a Ação trouxe de beneficio para aquela
comunidade. [...] Nos reunirmos, ficou definido que eles vão fazer uma pesquisa de
campo para ver quais são as demandas que a comunidade tem hoje e o que a
prefeitura e o estado, [...] estão, realmente, realizando. (RPE)
Pode-se perceber que os relatos dos moradores da comunidade se contrapõem aos
dos representantes do poder executivo, pois afirmam que pouco se avançou na implementação
de políticas públicas para realização dos direitos indicados na determinação da sentença, além
do acesso à moradia.
Na comunidade Santa Maria, os relatos indicam que foi instalado e se encontra em
funcionamento um posto de segurança. Uma escola foi construída, mas ainda não se encontra
em funcionamento. Também estão sendo construídos um posto de saúde e a sede da
associação de moradores.
Eu vou ser franca, aqui saúde tá precária, educação tá precária, a única coisa que tem
no momento, é a segurança. A gente já tem aqui dentro. (RC)
Eu tendo um colégio, bem dizer, já devia tá funcionando dentro da área, que é
principalmente pras crianças que veio da orla lagunar. [...] E o colégio tá aí e não
funciona. (RC)
O posto de saúde que tá sendo construído, é lindo! Não vi ainda na cidade um posto bacana desse. Também tá em construção a sede da associação, enorme! (RC)
Em relação ao atendimento ao direito à educação, essa comunidade afirma que o
atendimento encontra-se precário porque as escolas que atendem a crianças e adolescentes
80
localizam-se fora da comunidade, dificultando o acesso e expondo os estudantes a riscos de
acidente. Além disso, faltam vagas.
[...] Tem criança matriculadas em colégios fora da comunidade e tem crianças que não tão estudando. Eu chego na casa da mãe, porque essa criança não tá estudando?
Não tem vaga. O outro é longe demais. [...] Tá com dois ou três meses que eu perdi
duas crianças da comunidade Santa Maria. [...] Saiu do Santa Maria pra estudar lá no
Cruzeiro do Sul e foi atravessar essa pista [...] e o carro atropelou. Então eu me sinto
mal. Que tem mãe de família que não pode trabalhar. (RC)
[...] É muita criança que estuda no CEPA, como a minha menina. [...] A prefeitura
cedeu o ônibus, eles pega de manhã a turma de manhã e a turma da tarde e leva pro CEPA e entrega no local que ele pega. (RC)
Quanto às necessidades de saúde, é dito que a comunidade tem encontrado
dificuldade de atendimento na unidade de saúde do bairro, vendo-se obrigada a recorrer à rede
privada.
[...] já tá com um ano que eu fui ao médico e marquei quatro exames e até agora não
consegui. [...] E a reclamação é muita. Essa aí, [...] a família teve que suar, puxar R$
150.00 reais pra marcar uma consulta pra ela ir ao médico, porque ou ela ia ao
médico pra saber o que ela tinha ou ela morria. (RC)
Segundo relatos, os moradores de uma das comunidades da orla lagunar chegou a
invadir as casas antes de serem concluídas, devido à demora em serem entregues.
Porque foi entregue 510 casas [...] ficou 310 pra ser entregue. Então, eles me
prometero que iam me entregar primeiro pra minha favela. [...] Eu envadi o
Conjunto Santa Maria, a primeira vez. Aí, conversou comigo, disse que eu levasse a
comunidade pra favela, que depois de cinco meses a seis meses me entregava a
minha moradia. [...] O que aconteceu foi que entregaram à Sururu de Capote, à Torre
e à Muvuca primeiro e não a minha que eles tinham combinado. Aí, [...] eu procurei saber como é que tava o movimento dessas casa. [...] aí eu disse: bom, as casa já tão
de pé, tão coberta, só tão faltando porta e janela, [...] então, procurei minha
comunidade, aqueles que era cadastrado por direito, [...] desde 2007. [...] A
secretaria, ela procurou, investigou, disse não, eu só vou dar a casa, na verdade, a
aquele que tem direito. (RC)
Apesar de todo esse contexto, a questão do acesso à moradia foi indicada como uma
conquista importante para a comunidade.
Pra mim, o que mudou foi a gente sair de um lugar precário, que era a orla lagunar, a
gente simples pra uma casinha simples, mas uma moradia digna. [...] Nós temos
água, nós temos luz, nós temos sanitário e lá, a gente não tinha. [...] Nós saímos de
um lugar, humilde mesmo, precário e hoje nós estamos numa moradia digna. (RC)
Afirma ainda que na comunidade estão sendo desenvolvidos cursos de capacitação
para geração de emprego e renda.
[...] o Estado ema parceria com a Caixa Econômica Federal, já colocou curso aqui
dentro. Tão fazendo curso, [...] Muitos que veio de lá de baixo, não sabia de nada. [...] Hoje, tem gente que já sabe enfeitar uma sandália, já colocou pra vender, já tá
fazendo e coloca ali, é uma renda. (RC)
81
Evidenciou-se nos relatos dos moradores que as políticas públicas desenvolvidas não
estão vinculadas a uma decisão judicial, mas a uma iniciativa do governo estadual.
Foi um planejamento lá de dentro, que saiu de lá de dentro da SEINFRA pra comunidade da favela. (RC)
Também ficou evidente que a prefeitura também não vincula a comunidade Santa
Maria a Ação Civil Pública, indicando que a construção do conjunto resulta de um acordo
entre o governo estadual e municipal para desocupação e reestruturação da orla lagunar.
No caso da Cidade Sorriso, sim. As outras comunidades não são objetos da Ação.
[...] Com relação à Ação em si, o pessoal que foi removido para Cidade Sorriso, foi
exatamente esse acordo entre Estado e Município, a retirada, a liberação da orla.
(RPE)
Essa comunidade está sendo dotada de uma estrutura de moradia e de serviços de
educação, saúde, assistência social e segurança mais qualificada que as outras que foram
beneficiadas pela Ação. No entanto, o governo estadual, municipal e a própria comunidade
não vincula essas ações que estão sendo implementadas à decisão judicial.
5.3 Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à saúde
Para ampliar a compreensão desse processo de exigibilidade, além de analisar os
autos do processo judicial em que consistiu a Ação Civil Pública e o seu percurso jurídico-
administrativo para o cumprimento da sentença, foi realizada a análise da percepção dos
atores sociais envolvidos nesse processo e na implementação das políticas públicas traduzidas
em ações, programas e serviços para as famílias das comunidades beneficiadas pela decisão
judicial, especialmente aquelas relacionadas ao direito à saúde.
Como podemos observar na descrição desse caso de exigibilidade de direitos, alguns
fatores contribuíram para o seu surgimento e fortalecimento, tais como: a) a mobilização das
mães em reação à intervenção autoritária do governo municipal, que as responsabilizou pela
inserção das crianças na atividade pesqueira e na prostituição; b) a situação de pobreza e de
miséria a que estava submetida a comunidade; c) a existência de um fórum público estadual,
com a participação ativa de diferentes atores socias da sociedade civil e do Estado, que
catalisava as discussões sobre os problemas sociais e as estratégias de implementação de
políticas públicas para efetivação dos direitos sociais; d) a atuação das ONGs, dos
movimentos sociais e do Ministério Público junto à comunidade e; e) a falta de compromisso
e o desrespeito do poder executivo em relação aos direitos assegurados.
82
A partir da análise desse processo, pode-se considerar que o poder municipal agiu
como se os direitos sociais os quais dizia estar protegendo fossem indissociáveis dos direitos
políticos que estava deixando de garantir, reforçando uma configuração distorcida dos direitos
sociais, constituindo, assim, um lugar em que a igualdade prometida pela lei reproduz e
legitima as desigualdades, reproduzindo uma cidadania restrita, onde os direitos sociais são
dissociados dos direitos políticos (TELLES, 1999).
Ao responsabilizar as mães, os agentes públicos não reconhecem que as condições de
vida das pessoas daquelas comunidades são resultantes de um desenvolvimento econômico
perverso e excludente, que as tornaram marginalizadas, sendo-lhes negada a dignidade
humana e o respeito em nome de um crescimento econômico, com a conivência do próprio
Estado (SANTOS, 2003).
Desse modo, o Estado naturaliza a exclusão social, responsabilizando os próprios
indivíduos por se encontrarem na pobreza e na miséria, eximindo-se de sua responsabilidade
histórica de descumprimento de suas obrigações no provimento dos direitos assegurados,
apesar de ser o principal regulador das relações sociais. Além disso, insiste em reconfigurar as
conquistas sociais para manter velhas dinâmicas de gerir a coisa pública.
No entanto, as contradições se acirraram nesse contexto de redefinição política em
curso no Brasil. De um lado, apresenta-se um cenário global de desconstrução de direitos
sociais e de avanço do neoliberalismo que promove rearranjos econômicos para a
consolidação do mercado e reestruturação produtiva (VASCONCELLOS; OLIVEIRA, 2011).
Do outro, tem-se a mobilização social e política para formulação das políticas públicas que
viabilizariam os direitos sociais assegurados.
Esse cenário que se encontram as comunidades da orla lagunar de Maceió –
situação de pobreza e miséria; cidadania restrita ou mesmo ignorada pelo Estado – tornou-se
um caso ilustrativo resultante desse rearranjo econômico e da reestruturação produtiva, onde o
trabalho deixou de ser suporte a cidadania, e vice-versa. Essas comunidades se constituíram
numa subclasse de pessoas que passaram a viver em espaços socialmente isolados, vítimas do
desemprego e detentoras de baixa escolaridade e qualificação profissional, com tendência a
cair na atividade criminal, formando uma sociedade civil incivil habitada pelos totalmente
excluídos (SANTOS, 2003).
83
Desse modo, essas comunidades atraíram vários atores sociais que se articularam
formando uma rede social de informação e mobilização, constituindo um mecanismo de
pressão para defesa dos direitos humanos, isto é, de uma vida digna, da democracia, contra a
desigualdade e a discriminação. Isso fortaleceu a sociedade civil para transformar a sociedade
política e garantir os direitos assegurados constitucionalmente (SCHERER-WARREN, 1993).
Essa articulação dos atores sociais em rede foi potencializada por meio do fórum
público estadual que articulava as demandas e estimulava a negociação, sendo o Ministério
Público o intermediador junto ao governo estadual e municipal.
Nesse sentido, o processo de exigibilidade em análise se inseriu nesse contexto de
mobilização social, com a organização de fóruns públicos temáticos articulados por diversos
atores sociais da sociedade civil e do Estado, tendo em vista a construção de alternativas e
uma gestão partilhada e negociada dos bens públicos (TELLES, 1999; COHN, 1998, 2003;
SCHERER-WARREN,1993; PIRES; DEMO, 2006).
A análise desse caso exigibilidade evidenciou que um processo dessa natureza se
constituiu numa movimentação que permitiu reinventar a política a partir da participação de
diferentes atores, desencadeou um processo de negociação para garantir a efetivação dos
direitos sociais, buscou alternativas efetivas, inovadoras e inusitadas de ação política e
intervenção pública. Nesse processo, os conflitos foram expostos e foram colocadas em
discussão as responsabilidades envolvidas na situação de pobreza e miséria em que se
encontravam as comunidades da orla lagunar de Maceió, o que culminou com a
judicialização, de caráter coletivo, dos direitos humanos e sociais das crianças e adolescentes
dessas comunidades, uma Ação Civil Pública.
Essa Ação Civil Pública foi a primeira no país que, fundamentada nos princípios dos
direitos humanos, exigiu que fosse implementado, conjuntamente, vários direitos
constitucionais fundamentais, cuja sentença reafirmou o papel do Estado como principal
provedor dos direitos assegurados.
Do ponto de vista do direito à saúde, até então, as demandas e decisões judiciais
teriam se restringido a tratamentos, concessão de medicamentos ou acesso às tecnologias não
incorporadas pelo SUS, limitando esse direito por desconsiderar as outras ações de promoção,
prevenção e reabilitação (GONTIJO, 2010).
84
Nesse sentido, a decisão judicial em análise concebeu a saúde como um direito
humano fundamental, cuja promoção pressupõe outros requisitos básicos, que exige a ação
conjunta de outros setores sociais e econômicos e dos governos mediante a realização de
medidas que promovam a efetivação dos direitos sociais.
De certo modo, a judicialização coletiva para correção da violação dos direitos
sociais inovou na forma de abordar as questões sociais, tendo em vista a indissolubilidade e a
interdependência que lhes são inerentes; tornou-se mais integralizadora, pois evocou a
intersetorialidade como elemento fundamental no planejamento, execução e controle da
prestação de serviços, com a finalidade de garantir o acesso positivamente desigual aos
desiguais, num universo o mais totalizador possível do conjunto da população (BARCELOS;
VASCONCELLOS; COHEN, 2010).
No entanto, apesar do direito à saúde ter sido identificado como um direito violado
na fundamentação da Ação Civil Pública, ele não foi prescrito diretamente na sentença,
enquanto ações no campo da saúde. Isso fez com que a prefeitura e a própria secretaria
municipal de saúde não se sentisse compelida a atuar diretamente no atendimento das
determinações, prevalecendo a visão setorial e fragmentada na formulação e implementação
das políticas públicas providas pelo Estado à população. Esse comportamento do poder
executivo se alinha ao projeto hegemônico de desconstrução de direitos sociais e de avanço
do neoliberalismo, que “tem como premissa concepções individualistas e fragmentadoras da
realidade, em contraposição às concepções coletivas e universais do projeto contra-
hegemônico” (BRAVO, 2006, p.15).
Essa conduta do município desrespeita o que prescrevem os princípios e as normas
que fundamentam o direito à saúde, pois os direitos relativos à educação, alimentação e
nutrição, à liberdade de associação, à igualdade, à participação e a não discriminação são
elementos integrantes e indivisíveis da realização do mais alto nível possível de saúde da
população (TARANTOLA et al., 2008).
Do mesmo modo, a prefeitura se distancia da concepção de saúde quando desenvolve
ações no campo da assistência médica nas comunidades de forma pontual, desarticulada das
demais ações, como moradia e educação, sem planejamento intersetorial e sem estabelecer um
canal de diálogo e de participação dos sujeitos de direitos nas decisões, que apesar de serem
crianças e adolescentes são inseridos num contexto familiar, no qual os pais e responsáveis
partilham intrinsecamente dos direitos assegurados. Portanto, ela não considera o
85
levantamento realizado para subsidiar a formulação das políticas para atender às
determinações da sentença.
Esse contexto demonstra que diversas concepções e interesses se encontram em
disputa. De um lado, tem-se a ideia implícita do Ministério Público e do juizado de que o
direito à saúde seria contemplado por se inserir no rol do direito à vida, pressupondo que, nas
condições em que se encontravam as comunidades, a decisão judicial e as ações prescritas
teriam incidência sobre ele. De outro, a visão do poder executivo de que, por não ter sido
claramente indicado nas determinações de sentença, as ações realizadas no setor da saúde
serviriam apenas como legitimação da boa vontade do município, seja em cumprir a sentença,
seja para neutralizar os seus efeitos jurídicos e políticos.
Para evitar que os portadores de obrigações se eximam de cumpri-las, a abordagem
de direitos humanos defende que a responsabilização não pode prescindir do seu poder
normativo para orientar a ação social, identificando as obrigações legais e morais da
sociedade e do Estado para que as ações não sejam confundidas com gestos de boa vontade
que podem ser abandonados a qualquer tempo (YAMIN, 2008).
Nessa perspectiva, observou-se que, com a determinação da sentença, ocorreu um
reposicionamento dos atores sociais envolvidos, considerando a forma como cada segmento
social passou a atuar em relação ao cumprimento da decisão judicial.
Verificou-se, assim, que a Prefeitura de Maceió interpôs vários recursos junto às
instâncias do poder judiciário para suspender e revogar a decisão, utilizando diversas
estratégias políticas e administrativas para neutralizar os seus efeitos e não realizar as políticas
públicas determinadas. Essas estratégias podem ser identificadas como: a) tentativa de
corresponsabilizar a União e o Estado pela precariedade dos serviços disponibilizados para as
comunidades; uma forma de se eximir de suas obrigações na implementação das políticas
públicas que concretizariam os direitos assegurados; b) entendimento de que a atuação do
Ministério Público e do Juizado foi uma intervenção indevida e que a decisão judicial uma
mera formalidade, embora se contradiga ao afirmar reiteradamente o seu cumprimento; c)
reconhecimento da importância das lideranças comunitárias, mas desqualificação da atuação
política daquelas que vincula as suas demandas ao processo de exigibilidade e d)
desenvolvimento de ações de forma fragmentada e desarticuladas entre si.
86
A análise da percepção do poder executivo municipal nesse processo de exigibilidade
evidenciou a forma como o poder político se comporta diante do seu dever de garantir os
direitos e de como formula e implementa as políticas públicas para sua concretização.
Surpreende o modo como os governantes lidam com a precariedade dos serviços públicos dos
quais dependem a qualidade de vida da maioria da população. Isso deixa claro que as
consequências adversas do desenvolvimento econômico não são explicações suficientes para
a manutenção do caráter predatório predominante na sociedade brasileira, na qual o exercício
do poder político e econômico não tem encontrado limites, logo os direitos não são
respeitados, mesmo consagrados em lei ou corporificados em instituições. Daí a permanente e
tranquila transgressão como parte da cultura política brasileira, porque nela está ausente o
critério de responsabilidade, cuja noção de bem público se confunde com o Estado, com os
interesses daqueles que representa ou com a boa vontade dos governantes (TELLES, 1999).
Desse contexto, depreende-se que é importante haver mecanismos institucionais que
visem promover a responsabilização legal, política e social, estabelecendo, de fato, a
prestação de contas como um dever a ser cumprido pelos governantes e demais atores sociais
envolvidos. No entanto, também se percebeu que esses mecanismos precisam ser aprimorados
em sua aplicação. Ou seja, precisamos de mecanismos e ferramentas institucionais que
indiquem se os governos e a sociedade estão cumprindo com o dever de empreender todos os
esforços para garantir a realização progressiva dos direitos assegurados. Da mesma forma,
faz-se necessário que se criem instâncias públicas que promovam o pleno exercício da
cidadania, por meio da conscientização, da participação e ação social efetiva que, mobilizadas
e articuladas em conjunto ou independente das estratégias legais, atuem para garantir o direito
a uma vida digna para todos (YAMIN, 2008).
Nesse caso, a instância pública instituída no Brasil para garantir o cumprimento dos
direitos assegurados na Constituição que mais se destaca é o Ministério Público, o qual tem
como função primordial zelar pelo efetivo respeito pelos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública, promovendo as medidas necessárias para a sua garantia, sobretudo, na
defesa dos direitos sociais como à saúde, à educação, os direitos das crianças e dos
adolescentes, entre outros, podendo agir extrajudicialmente ou perante o Judiciário
(FRISCHEISEN, 2001).
87
Observou-se, no caso em análise, que o Ministério Público se constituiu como um
importante ator social, por intermediar a interação entre a comunidade, as entidades que a
apoiavam, o poder executivo e com o juizado.
Sua atuação permeou todo o processo de exigibilidade. Iniciou-se ao se aproximar
das comunidades, estabelecendo um diálogo que permitiu a identificação das violações de
direitos e seguiu com a articulação com a comunidade e com as entidades organizadas da
sociedade civil e do próprio Estado e intermediou o processo de negociação junto ao poder
executivo, no sentido de garantir a efetivação dos direitos socias que se encontravam violados.
Após esgotarem as possibilidades de negociação extrajudiciais, enveredou, então,
para judicialização, ao interpor a Ação Civil Pública para exigir do poder executivo municipal
o provimento dos direitos sociais das crianças e adolescentes, beneficiando praticamente todas
as comunidades por meio do atendimento às suas famílias.
A atuação do Ministério Público no processo de exigibilidade demonstra a
importância do fortalecimento dos mecanismos de controle do poder estatal e de prestação de
contas, ampliando a visão de que a legitimidade do poder político não se restringe à
representatividade, mas está diretamente relacionada à transparência e a responsabilização
referente às políticas públicas.
Nesse sentido, a ampliação do poder judiciário evidencia também a necessidade de
ampliação dos mecanismos de participação e garantia de direitos, por meio dos quais se
garanta formalmente a igualdade, em resposta à insuficiência ou deficiências dos canais
tradicionais de controle social e de participação popular, principalmente, se for um fenômeno
historicamente no processo de construção democrática da sociedade brasileira (VENTURA et
al., 2010).
A atuação do Ministério Público demonstrou, desse modo, a sua capacidade
institucional de criar um espaço de interlocução, o que possibilita a interação entre os
principais atores que compõem o processo de formulação, gestão e fiscalização das políticas
públicas, o que corresponde à sua atribuição e posição de destaque na defesa e efetivação dos
direitos sociais. Isso porque ele pode promover uma reflexão que situa os direitos como
práticas concretas que atendam a critérios substanciais de justiça e cidadania (ASENSI, 2010).
Com a judicialização e o deferimento da sentença, o Ministério Público passou a
intermediar a interação com os demais atores sociais envolvidos por meio do Poder Judiciário,
88
acompanhando o processo, fiscalizando se a decisão judicial estaria sendo cumprida pelos
poderes constituídos (Judiciário e o Executivo), interpelando-os sobre o andamento das
determinações e propondo alternativas para viabilizar o seu cumprimento. Também passou a
ser o canal pelo qual as comunidades, por meio de suas lideranças e das entidades da
sociedade civil envolvidas, pudessem recorrer para acompanhar e fazer denúncias, além de
tentar garantir a sua participação junto aos poderes públicos nas decisões e na implementação
das ações relacionadas à sentença.
No entanto, a análise dos autos desse processo evidenciou os limites das instâncias
do Poder Judiciário em garantir o cumprimento da decisão judicial, pois o próprio Ministério
Público reconheceu, por meio do depoimento de seus representantes, que a estrutura jurídica e
institucional disponível não é suficiente para garantir a realização dos direitos assegurados
constitucionalmente. Isso apesar de afirmar que esses mecanismos, especificamente essa Ação
Civil Pública, constituíram-se num importante instrumento para fortalecer a luta política dos
moradores das comunidades beneficiadas e para pressionar o poder executivo em relação ao
cumprimento de suas obrigações de realizar as políticas públicas que garante os direitos da
população.
Nesse sentido, ressalta-se a importância das instituições jurídicas, especialmente
daquelas que protegem os direitos humanos constitucionais e internacionais, pelo fato de
contribuirem na forma de abordar diversas questões sociais, políticas e até mesmo jurídicas
para realização desses direitos, à medida que se debruçam sobre a dimensão fática desses
direitos, produzindo efeitos concretos no cotidiano das práticas dos atores sociais (YAMIN,
2008). Isso amplia o alcance da norma constitucional, que incorpora caracteres sociais e de
cidadania em seu conteúdo e no estabelecimento de estratégias de efetivação que possam
refletir na formulação e execução das políticias públicas (ASENSI, 2010).
O conflito que se estabeleceu com a judicialização entre os poderes, intermediado
pelo Ministério Público, também nos remete a uma reflexão sobre uma movimentação que
vem ocorrendo no interior do próprio Estado em torno da legalidade e da cidadania e que tem
promovido alterações na forma de regulação dos bens públicos, os quais tem sido objeto de
permanente disputa e de uma árdua negociação entre os diversos atores sociais (SANTOS,
2003). Nessa configuração política emergente, o Estado, por meio de suas instâncias
institucionais, assume o papel de coordenar diferentes interesses, organizações, redes e
89
movimentos sociais, inserindo-se na luta política pela democratização das tarefas de
coordenação.
No entanto, os limites identificados na estrutura jurídico-institucional nos quais
esbarrou a atuação do Ministério Público para garantir o cumprimento da decisão judicial, por
parte do Poder Executivo, demonstra que o êxito da luta política pela democratização da
esfera estatal deva ser articulada à luta pela democratização da sociedade civil por meio da
garantia do execício pleno da cidadania, para que de fato se garanta a reconstrução da esfera
pública e se avance na construção de um sistema democrático de carater emancipatório
(SANTOS, 2003).
Nesse sentido, a decisão judicial fortaleceu a luta política dos moradores das
comunidades beneficiadas e a parceria com as entidades organizadas. Por terem formalmente
reconhecidas as suas demandas e ampliada a possibilidade de ter seus direitos efetivados,
esses moradores passaram a se mobilizar para cobrar do Poder Judiciário a sua manutenção e
do município o seu cumprimento.
Verificou-se, assim, que, embora a participação da comunidade tenha sido
importante para manutenção da decisão judicial, sua atuação poderia ter sido ampliada no
decorrer do processo se existissem espaços de interlocução junto ao Poder Judiciário e ao
poder executivo.
Isso foi evidenciado tanto nos depoimentos dos atores sociais como na análise dos
autos do processo judicial, demonstrando que as esferas públicas do Estado não dispõem de
mecanismos que funcionem como canais de interlocução permanente entre a sociedade civil e
o Estado, um fator limitante da participação ativa dos moradores nas decisões relacionadas às
políticas públicas que seriam implantadas para garantia de seus direitos.
Essa realidade indica que o lugar da participação popular nas instituições jurídico-
políticas ainda não se encontra devidamente consolidada em nosso país, apesar de ser
considerada fundamental na produção das políticas públicas e de já ser reconhecida
legalmente no Estado como na regulamentação dos diretos da criança e do adolescente (Lei
Nº 8.069/90) e o regulamento da saúde (Lei Nº 8142/90), cuja finalidade é garantir a
participação da sociedade civil na gestão pública, precisamente na formulação das políticas e
no controle das ações governamentais (JACOBI, 1999; BUCCI, 2001; SAULE JÚNIOR,
2001).
90
Na perspectiva de direitos humanos, a participação se configura como um
engajamento ativo dos sujeitos de direitos da sociedade civil na defesa de seus interesses,
cujas ações são direcionadas ao Estado, por meio de ações judiciais e de articulações políticas
com diversos atores sociais como o governo e parlamentares parceiros, a mídia, etc., com o
objetivo de influenciar nas decisões políticas (OLIVEIRA, 2006).
Nesse sentido, a participação se torna um meio fundamental de institucionalizar
relações mais diretas, flexíveis e transparentes que reconheçam os direitos dos cidadãos e para
reforçar os laços de solidariedade na direção de uma cidadania ativa que disponha de
instrumentos para o questionamento permanente da ordem social estabelecida (JACOBI,
1999).
Porém, o caso em análise indica que há ainda um longo caminho a ser percorrido
para que o Estado reconheça, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer o
seu papel nas decisões estatais, na formulação e na gestão compartilhada das políticas
públicas (SAULE JÚNIOR, 2001), pois o que se observa é que “as propostas participativas
ainda permanecem mais no plano da retórica do que no da prática” (JACOBI, 1999, p. 32).
Desse modo, percebe-se que a participação contribui para a verdadeira realização dos
direitos humanos e sociais, inclusive o da saúde. Portanto, tanto o Estado como outros atores
sociais da sociedade civil como entidades classitas, movimentos sociais e ONGs devem ser
responsabilizados para que se garanta que as pessoas que são alvo das ações públicas tenham
oportunidade adequada para participar das decisões que lhes dizem respeito (YAMIN, 2008;
SAULE JÚNIOR, 2001).
Isso implica que deve haver um maior esforço para ampliar as vozes dos
marginalizados ou comunidades de excluídos não apenas nos diagnósticos de falhas
institucionais ou violações de seus direitos, mas também nas negociações de políticas sociais
para a sua correção (YAMIN, 2008). Para isso, é preciso que os governos garantam o direito
de todos os membros da sociedade de participar ativamente dos assuntos da comunidade em
que vivem, garantindo a sua participação na adoção de políticas em todos os níveis da
administração pública (SAULE JÚNIOR, 2001), visto que, como geralmente as políticas
públicas são formuladas e controladas pelo Estado, elas também se inserem no âmbito de suas
obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos, incluindo o direito de
participar nos assuntos públicos, a igualdade, a não discriminação e a dignidade
(TARANTOLA et al., 2008).
91
Nesse caso de exigibilidade de direitos, esses princípios, que se traduzem em
direitos, deveriam ter sido incorporados no decorrer do processo e na implementação das
políticas públicas desenvolvidas para cumprimento da sentença, tornando-as mais ajustadas às
demandas dos moradores das comunidades, enquanto titulares de direitos, respeitando-os
como cidadãos, logo contribuindo para construção de um sistema mais democrático.
A análise do processo de exigibilidades de direitos da orla lagunar de Maceió nos
mostrou que, apesar dos limites que dificultaram a efetivação dos direitos assegurados, a
atuação conjunta dos diferentes atores sociais da sociedade civil e do próprio Estado podem se
articular em defesa dos direitos sociais para que avancem na conquista da cidadania dos
moradores para o redimensionamento da cultura política dos agentes públicos e para
realização do direito a uma vida digna.
Embora a maioria das determinações da sentença não tenham sido cumpridas, o
processo de exigibilidade permitiu que o poder executivo fosse responsabilizado e prestasse
contas de suas obrigações em relação ao provimento dos direitos daquelas comunidades,
ficando claro que as ações desenvolvidas, apesar de insuficientes e inadequadas, não teriam
sido realizadas se a decisão judicial não existisse.
Também como atores socias, os moradores dessas comunidades, além de terem
acesso a alguns bens e serviços públicos, foram reconhecidos e se reconheceram como
sujeitos de direitos e ampliaram as suas perspectivas referentes à luta por uma vida digna e a
um futuro melhor para os seus filhos.
Nesse processo também foi permitido perceber que as instâncias jurídicas envolvidas
enfrentaram o desafio de utilizar os mecanismos jurídicos disponíveis para garantir a
realização dos direitos assegurados, bem como reconhecer os limites a serem superados para
que avancem no cumprimento de suas prerrogativas institucionais.
Já no tocante ao direito à saúde, evidenciou-se o quanto, na prática, está-se distante
da sua efetivação, como preconizam os princípios e normas dos direitos humanos em relação
à igualdade, não discriminação, empoderamento e participação ativa dos titulares de direitos e
o respeito à sua natureza intrínseca de indissolubilidade e interdependência dos demais
direitos. Também não se assegura o que preconizam os organismos e normas da saúde em
relação ao atendimento às necessidades de saúde e a intersetorialidade das ações como uma
92
das condições necessárias para garantia de que todos possam alcançar o mais alto nível
possível de bem-estar social, físico e mental.
93
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo de caso do processo de exigibilidade de direitos das comunidades da orla
lagunar de Maceió nos permitiu identificar alguns limites e possibilidades da utilização da
judicialização como um instrumento de luta para garantir a efetivação de direitos sociais,
entre esses, do direito à saúde.
A análise dos autos do processo judicial e dos depoimentos dos atores sociais
envolvidos possibilitou evidenciar a importância da atuação das entidades da sociedade civil e
do próprio Estado junto aos moradores dessas comunidades na identificação qualificada das
violações de direitos humanos para dar visibilidade às vulnerabilidades de grupos sociais
específicos.
Esse estudo também permitiu identificar a indivisibilidade e a indissociabilidade
inerentes aos direitos sociais. Esse contexto pode ser caracterizado, dessa forma, como uma
das possibilidades trazidas por esse processo de exigibilidade.
Outro fato bastante significativo trazido por esse estudo foi a constatação da
viabilidade da integração dos titulares de direitos no processo de execução, discussão dos
resultados e definição das demandas prioritárias para promover a participação proativa e o
empoderamento dos titulares de direitos em reivindicações de políticas públicas junto ao
Estado para correção das violações de direitos identificadas.
O estudo da trajetória desse caso permitiu, assim, que fossem visibilizados o papel e
as atribuições dos atores sociais e instituições que detêm a obrigação de respeitar, proteger e
realizar (promover e prover) os diretos sociais.
Do mesmo modo, o estudo expôs as dificuldades do poder judiciário em garantir a
execução das suas decisões e a necessidade de avançar na criação de mecanismos
institucionais que assegurem a responsabilização, a prestação de contas e a participação dos
diversos atores sociais envolvidos na resolução do conflito para a efetivação dos direitos
sociais em questão.
Também revelou as estratégias do poder executivo para se eximir da
responsabilidade de garantir os direitos fundamentais assegurados na legislação internacional
e nacional, como dos titulares de direitos, devido às barreiras existentes que os impedem de
participar ativamente das decisões e encaminhamentos que lhes dizem respeito.
94
Além desses limites, esse estudo permitiu evidenciar que as organizações da
sociedade civil e o próprio Estado devem atuar de forma diligente e permanente junto aos
grupos sociais vulneráveis, promovendo o empoderamento e a participação ativa dos titulares
de direitos para que possam exercer, de fato, sua condição de cidadão e possam interagir no
processo de decisões que lhes dizem respeito, principalmente na formulação, execução e
avaliação das políticas públicas para que se garanta a concretização dos seus direitos.
Isso se constituiria numa correlação de força mais horizontalizada entre os diversos
atores e instituições que compõem a esfera pública, na qual os interesses coletivos não
ficassem submetidos aos interesses individuais e que fosse garantida a efetivação progressiva
dos direitos assegurados, o que propiciaria a criação de mecanismos mais eficazes para uma
participação ativa e uma responsabilização efetiva dos atores sociais envolvidos, seja como
portadores de obrigação e/ou como titulares de direitos. Tudo em prol da construção de um
sistema social cada vez mais democrático e que respeite os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais inerentes à sociedade.
Nesse sentido, é necessário que as instituições que zelam pela efetivação dos direitos
constituídos como as instancias do Poder Judiciário e o Ministério Público sejam fortalecidos
e dotados de infraestrutura para que possam cumprir adequadamente as suas atribuições na
defesa e garantia dos direitos assegurados. Do mesmo modo, deve-se ampliar e serem criados
espaços nessas instâncias que permitam a participação dos titulares de direitos envolvidos nos
conflitos sociais e coletivos em questão.
Também se deve fortalecer e ampliar os mecanismos de identificação e de
acompanhamento para que as ações governamentais e as políticas públicas sejam monitoradas
e possam ser visualizadas em seu desenvolvimento e direcionamento, garantindo a
transparência e o acesso às informações que permitam a sociedade civil atuar junto ao Estado
e exercer o seu papel de acompanhar, propor e fiscalizar os bens públicos, impelindo assim,
os agentes públicos a cumprirem com o seu dever de proteger e prover os diretos assegurados
a todos os cidadãos.
Conclui-se, então, que é importante a utilização dos instrumentos de exigibilidade
para o fortalecimento da luta política, a conquista da cidadania, a realização dos diretos
assegurados e, desse modo, para garantia de uma vida digna para todos.
95
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104
ANEXO I: INSTRUMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Diante da constituição de um processo de exigibilidade de direitos humanos em
comunidades da orla lagunar de Maceió-Al, que exigiu que a prefeitura de Maceió implementasse
ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas comunidades através da
elaboração e execução de políticas públicas, solicito a gentileza de responder às questões a seguir.
1) O Sr./Srª sabe dizer como surgiu a decisão judicial de cobrar do poder público (prefeitura) a implementação de políticas para a correção de violações de direitos das crianças adolescentes residentes na orla lagunar?
2) O Sr./Srª saberia dizer quem ou quais instituições estavam envolvidas nesse processo?
3) O Sr./Srª saberia dizer se foram tomadas decisões relacionadas às necessidades de atenção à saúde? Poderia dizer quais foram essas decisões?
4) Na sua opinião, considerando as condições de vida das crianças e adolescentes pertencentes ao processo citado, seriam necessárias ações relacionadas à proteção da saúde? Quais seriam essas ações?
5) O Sr./Srª saberia dizer se foi(ram) desenvolvida(s) alguma(s) ação/ações no sentido de atender às necessidades de saúde do grupo em cada comunidade?
6) Como o Sr/Srª analisaria a situação atual de atenção à saúde das crianças e adolescentes que foram sujeitos da ação civil pública e que estão vivendo em diferentes comunidades?
105
Quadro de Análise das Entrevistas - Condensação de Significados
Entrevista:
Questão de Pesquisa 1: Como se deu o processo de exigibilidade de direitos?
Como surgiu a decisão judicial de cobrar da prefeitura a implementação de políticas para a correção de
violações de direitos das crianças adolescentes residentes na orla lagunar?
Quem ou quais instituições estavam envolvidas nesse processo?
Foram tomadas decisões relacionadas às necessidades de atenção à saúde? Quais?
Unidades Naturais Extraídas do Entrevistado Tema Central
1-
1-
2-
2-
3-
3-
Descrições Essências/ Interpretações do Entrevistador
106
Questão de Pesquisa 2: Quais e como estão sendo implementadas as políticas públicas relacionadas à
saúde nas comunidades beneficiadas pela sentença?
Seriam necessárias ações relacionadas à proteção da saúde? Quais seriam essas ações?
Foram desenvolvidas ações para atender às necessidades de saúde do grupo em cada comunidade? Quais?
Qual a situação atual de atenção à saúde das crianças e adolescentes que foram sujeitos da ação civil pública
nas diferentes comunidades?
Unidades Naturais Extraídas do Entrevistado Tema Central
1-
1-
2-
2-
3-
3-
Descrições Essências/ Interpretações do Entrevistador
107
Estrutura do Banco de Dados – Análise Documental
Tabela: Decisões e ações concretas relacionadas ao Proc. Nº 4830/07 - Ação Civil Pública em face do
Município de Maceió para garantia dos direitos sociais por meio de implementação de políticas
públicas
(VOLUME – Período)
Setembro/2007
Principais Atores
Data Documento Decisões/Encaminhamentos
Poder
Judiciário
Prefeitura
Sociedade
Civil
Comunidade
108
ANEXO II: CAPÍTULO DE LIVRO EM VIAS DE PUBLICAÇÃO
SAMPAIO, J. F.; ALBUQUERQUE, M. F. M.; VASCONCELLOS, L. C. F. Estado e diretos
humanos no Brasil: respostas públicas à exigibilidade do direito humano à saúde. In:
VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. B; GUILAM, M. C.; SCHUTZ, G. E.;
SILVA, A. T. M. C. (Org.). Direito e saúde – cidadania e ética na construção de sujeitos
sanitários. Maceió: EDUFAL, 2011, p. 39-59.
Estado e direitos humanos no Brasil: respostas públicas à exigibilidade do direito
humano à saúde
Josineide Francisco
Maria de Fátima Machado de Albuquerque
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Introdução
As atrocidades vividas no decorrer da Segunda Guerra Mundial impuseram à
comunidade internacional o resgate da noção de direitos humanos, em função do
reconhecimento de que as relações entre as nações deveriam ser baseadas no respeito aos
princípios de igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos. Tal fato exigiu medidas
para o fortalecimento da paz universal, a exemplo da cooperação internacional para resolver
os problemas de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais indistintamente para todos (TRINDADE,
2002). Esses princípios estão expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
Entre os direitos fundamentais do ser humano proclamados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, encontra-se o direito à saúde, em seu Art. 25, § 1, que diz:
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao
alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e
tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na
velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade.
Essa Declaração passou a ser o ideal comum a ser atingido por todos os povos e
nações, devendo ser reconhecida e aplicada de forma efetiva entre as populações tanto dos
109
Estados-Membros, como entre as nações dos territórios sob sua jurisdição, através da
promoção de medidas progressivas de ordem nacional e internacional.
Os direitos humanos, na atualidade, são frequentemente invocados de diferentes
formas para justificar políticas econômicas, sociais e culturais em função de sua legitimidade
consagrada como obrigações dos Estados-Membros da ONU e que tem sido fortalecida pelo
reconhecimento do importante papel desempenhado na formação de políticas públicas,
programas e práticas que visam melhorar o bem-estar individual e social. Nesse sentido, é
fundamental a relação entre indivíduo ou grupo que é titular de direitos e o Estado, pois é na
compreensão dessa relação que se define a natureza e o âmbito das obrigações do Estado,
inclusive no tocante às ações dos agentes privados (TARANTOLA et al., 2008).
No Brasil, o direito de todos à saúde como dever do Estado é declarado na
Constituição Federal de 1988, constituindo-se em direito humano fundamental que deve ser
assegurado a todo cidadão. Portanto, tendo o Estado o dever, por meio de políticas
econômicas e sociais, de garantir a saúde para todos. O cidadão, por sua vez, passa a ter o
direito subjetivo de exigir do Estado que esta lhe seja garantida, consideradas todas as
variáveis que compõem o significado da saúde consignada na lei.
O acesso universal e igualitário às ações e serviços, o atendimento integral, o bem
estar físico, mental, social e ambiental, a atenção com equidade, a hierarquização da
assistência, o direito à participação no sistema de saúde passam a conjugar ações direcionadas
para que a saúde se materialize como direito, por meio das ações e serviços, a despeito da
extrema dificuldade de implementação num país sem tradição de cidadania efetiva
(PINHEIRO, 2004; MATTOS JÚNIOR, 2009).
Além de o Brasil reconhecer o direito à saúde como fundamental e o inscrever no
Art. 6º da CR/88 como um direito social, também assinou, em 1992, o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), que reafirma em seu Art.12 que “Os
Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor
estado de saúde física e mental possível de atingir”.
O Estado brasileiro, ao conceber o direito à saúde como um direito humano, obriga-
se a assegurar, progressivamente, a realização desse direito através de ações que respeitem,
protejam, facilitem e possam prover os direitos econômicos, sociais, culturais para toda a
110
população, especialmente aos indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas, os quais
são mais afetados pela pobreza e violação de seus direitos (ALBUQUERQUE, 2009).
Os indicadores sobre o perfil da população brasileira denunciam, através das taxas de
desemprego, níveis de pobreza, violência, criminalidade, entre outros, que a desigualdade e
exclusão sociais estão sendo mantidas no país. Isso demonstra que as ações desenvolvidas
pelas políticas públicas não têm sido eficientes nem suficientes para alterar a situação e a
condição de vida da população. Esses índices também demonstram que o Estado tem falhado
na sua obrigação de prover os direitos e, por isso, na perspectiva do direito, pode-se dizer que
o próprio Estado tem violado os direitos humanos, sejam os civis, os políticos, os econômicos,
os sociais e os culturais, principalmente das populações empobrecidas e marginalizadas em
seu exercício de cidadania, pela restrição de acesso aos bens, aos serviços e políticas públicas
adequadas (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008).
A desigualdade e a exclusão sociais também se expressam nas precárias condições de
saúde e nos processos de adoecimento das pessoas, bem como nas dificuldades e diferenças
no acesso e no consumo dos serviços de saúde pela população.
O presente capítulo parte da premissa de que o dever do Estado em prover a saúde,
em todos os seus significados garantidos legalmente, é exigível pela cidadania universalizada
no âmbito do direito à saúde, no caso brasileiro. A exigibilidade do direito à saúde, assim
eleita como tema central do presente debate, pode se apresentar de diversas formas, tais como
as vias individual ou coletiva, pública ou privada, pessoal ou institucional. Partindo do tema
central – a exigibilidade de direitos – especialmente do direito humano à saúde, as questões
que nortearam a presente discussão foram o conceito de exigibilidade, seus instrumentos e os
caminhos utilizados para sua efetivação no Brasil. A despeito de já haver na atualidade uma
vasta literatura acadêmica e processual sobre a chamada judicialização da saúde, cuja
demanda concretizada exibe uma face tangível da exigibilidade, é ainda escasso o debate
sobre os mecanismos instituintes e instituídos da exigibilidade de direitos. Para subsidiar a
elaboração desse trabalho, foi realizado um levantamento bibliográfico nas principais bases de
dados eletrônicas nacionais e internacionais, livros, periódicos, jornais e sites especializados
sobre saúde e direitos humanos. O objetivo foi abordar a questão da saúde sob a perspectiva
dos direitos humanos, identificar os caminhos trilhados na luta pela garantia e efetivação dos
direitos sociais e o papel dos instrumentos de exigibilidade para realização do direito humano
à saúde no Brasil.
111
Direito Humano à Saúde
Historicamente, há uma inter-relação entre saúde e os direitos humanos, visto que o
direito de todos ao gozo do mais alto nível possível de saúde física e mental é mencionado em
muitos documentos internacionais e regionais de direitos humanos e da saúde. Entretanto, o
direito à saúde só se consolida no Art.12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos
Sociais e Culturais (PIDESC) de 1976, que vinculou definitivamente o direito à saúde ao
direito à vida e o caracterizou como um direito humano nos seguintes termos:
3. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar
do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir.
4. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o
pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para
assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são
desenvolvimento da criança;
b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene
industrial;
c) A profilaxia, tratamento e controle das doenças epidêmicas, endêmicas,
profissionais e outras;
d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e
ajuda médica em caso de doença.
Desde a constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) em1946, que a saúde
é reafirmada como um direito fundamental de todo ser humano. Entretanto, só em 1988, a
OMS iniciou a tomada de decisões mais efetivas voltadas para o direito humano à saúde, com
a proteção dos direitos das pessoas portadoras do HIV/Aids.
Em 2000, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais discutiu questões
substantivas sobre a aplicação do PIDESC pelos Estados membros, entre as quais, o direito ao
mais alto nível de saúde possível. Em seu Comentário Nº 14, além de reafirmá-lo, ressalta a
sua importância “para o exercício de outros direitos humanos”.
112
Segundo Tarantola et al. (2008), no contexto do direito à saúde, a obrigação do
governo não se restringe a evitar que o direito individual à saúde seja violado, mas garantir
políticas e prestação de serviços de saúde a todos os grupos populacionais com base na
igualdade, na liberdade e na não-discriminação, com especial atenção aos grupos vulneráveis
e marginalizados. Essa obrigação de proteger significa que os governos devem regular
adequadamente os agentes públicos não-estatais como a indústria de cuidados em saúde, para
que não possam alterar significativamente o estilo de vida, trabalho e a saúde dos indivíduos e
comunidades, como é o caso de empresas produtoras de energia, de produtos agrícolas,
indústrias alimentícias e a mídia, pois esses atores possuem a capacidade de promover e
proteger ou negligenciar e violar o direito à saúde e outros direitos no desempenho de suas
funções. Finalmente, a obrigação de satisfazer o direito à saúde inclui dar atenção devida à
saúde e às políticas relacionadas que asseguram a promoção e a proteção dos direitos
humanos com foco imediato nos grupos vulneráveis e marginalizados.
No Brasil, por ser o direito à saúde declarado na Constituição Federal de 1988 como
um direito fundamental que deve ser assegurado a todo cidadão, este tem o direito subjetivo
de exigir do Estado que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, o atendimento
integral à sua saúde. Além disso, assinou, em 1992, o PIDESC, tornando-se um Estado que
reafirmou seu dever de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos.
A política do Estado brasileiro para a saúde – Sistema Único de Saúde (SUS) – foi
instituída pelas Leis Federais Nos
8.080 e 8.142, ambas de 1990. Tem como princípios a
universalidade, integralidade, equidade, controle social e, entre outros, a hierarquização da
assistência, com o objetivo de conjugar ações direcionadas para que a prevenção, a
reabilitação e a promoção da saúde se materializassem como direito positivado.
A passagem da letra da lei para a materialidade no mundo dos fatos é determinada
pela organização das ações e serviços que atendem (ou deveriam atender) às demandas
objetivas da população em matéria de atenção à sua saúde. Todavia, as determinações
objetivadas da atenção à saúde são acompanhadas no mesmo corpo das legislações citadas,
especialmente na Lei 8.080/1990, por princípios garantidores de necessidades subjetivas da
cidadania, como é o caso, por exemplo, do direito à informação e à preservação da autonomia.
Observa-se, que a positivação do direito constitui-se em um grande desafio, pois a
realidade brasileira é atravessada por iniquidades que precisam ser enfrentadas com ações que
proponham reverter quadros de exclusão e de violação de direitos humanos fundamentais, não
113
só na perspectiva da promoção da equidade para distintos grupos sociais, como pela garantia
de direitos objetivos e subjetivos da cidadania.
Não obstante, a efetivação do direito à saúde no Brasil tem avançado bastante em sua
trajetória sociohistórica, graças à luta empreendida, inicialmente pelo próprio Movimento
Sanitário que desencadeou o processo da Reforma Sanitária, com todo o legado atual que ora
discutimos. Chegar até aqui é a prova cabal de que é possível aglutinar intelectuais,
profissionais de saúde, sindicalistas, movimentos sociais e outros setores organizados da
sociedade que, desde a década de 1970, lutaram pela redemocratização do país e tiveram
vários êxitos na mudança do modelo de saúde. De lá até hoje, outros movimentos por direitos
humanos empreenderam distintas lutas que vêm agregando novos direitos no campo da saúde,
inclusive aportando estratégias de mobilização e argumentação, no tocante à exigibilidade de
direitos que criam novas frentes de luta num movimento contínuo de renovação e afirmação
da cidadania.
A partir de um estudo de Baptista et al. (2009), podemos identificar algumas
conquistas que merecem ser destacadas:
O reconhecimento, na Constituição Federal, da saúde como direito social de cidadania e
dever do Estado, que definiu diretrizes voltadas para o restabelecimento do processo
democrático no âmbito político e institucional;
Promulgação da Lei Orgânica da Saúde, em 1990, que instituiu as bases institucionais do
SUS como política nacional para efetivação do direito à saúde, que reafirmou as diretrizes
de universalidade e integralidade e definiu as responsabilidades do poder executivo nas
três esferas de governo;
Avanço nas leis de controle sanitário e de produção de ambientes saudáveis, como
iodação do sal, controle de asbesto/amianto, uso e propaganda de fumígeros, sistema de
vigilância sanitária;
Leis de regulamentação de áreas estratégicas da atenção à saúde, como controle de
infecção hospitalar, remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano;
Leis que atendem a demandas de áreas específicas da atenção, como planejamento
familiar, subsistema indígena, modelo de atenção psiquiátrica e garantia de medicamentos
para AIDS;
114
Lei de regulamentação dos planos de saúde, de criação da Agência Nacional de Saúde
Complementar (ANS) e a de medicamentos genéricos;
A ampliação da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na efetivação dos
direitos sociais, entre eles o da saúde, por serem juridicamente protegidos e exigíveis ao
Estado.
Apesar desses que são oriundos da legitimidade, garantida por lei, da saúde como um
direito, há muito que ser feito, especialmente se considerarmos que o modelo de
desenvolvimento adotado no país ainda acompanha o atendimento dos interesses econômicos,
em detrimento das necessidades humanas e sociais, pois a desigualdade e a exclusão sociais se
expressam nas precárias condições de saúde e nos processos de adoecimento das pessoas, bem
como nas dificuldades e diferenças no acesso e no consumo dos serviços de saúde pela
população.
O reconhecimento da sinergia existente entre saúde pública e direitos humanos é
fundamental para enfrentar o desafio de garantir a efetivação do direito à saúde, pois a
promoção e a proteção à saúde requerem esforços concretos para promover e proteger os
direitos humanos, do mesmo modo que o maior cumprimento dos direitos humanos demanda
especial atenção à saúde e aos determinantes sociais aí implicados. Esta relação ilustra a
complementaridade entre as metas em saúde pública e as normas de direitos humanos na
condução das políticas e programas de saúde mais eficazes, além de reorientar as políticas
públicas de saúde, atualmente fragmentadas e baseadas na lógica burocrática e profissional
(OLIVEIRA, 2006).
Isso requer que o Estado, por meio de políticas públicas (sociais e econômicas)
assegure os direitos fundamentais à dignidade humana, que consiste em garantir a proteção
pública dos indivíduos através da garantia da igualdade de oportunidades e da promoção das
diversas condições para que todas as pessoas realizem completamente seu potencial de saúde,
garantindo a exigibilidade de seus direitos através de parâmetros, metas, ações desenvolvidas,
monitoradas e avaliadas em seus resultados.
Exigibilidade de Direitos
O processo de realização dos direitos humanos acontece numa rede dinâmica de
ações desenvolvidas por e entre os atores deste cenário, isto é, o Estado, com suas obrigações
115
de garantir o respeito, a proteção, a promoção e o provimento dos direitos a todos os
indivíduos habitantes de seu território, os titulares de direitos, com sua força de exigir e cobrar
a realização de seus direitos e os demais atores sociais, com suas co-responsabilidades na
realização destes direitos.
A palavra exigibilidade, que significa aquilo que pode ser exigido, tem um caráter
impositivo de reivindicação. No Brasil, em matéria de saúde, aquilo que pode ser exigido, por
estar garantido constitucionalmente, deve ser exigido, acompanhando esse caráter impositivo.
Exigir, desse modo, significa reclamar, requerer, ou mesmo ordenar, em função de direito
legítimo.
Ainda, na perspectiva do direito, exigir é uma ação/processo resultante da
conscientização do titular de direito da efetiva existência de seu(s) direito(s) e da certeza do
direito de sua cobrança. Enquanto prerrogativa da cidadania, “é a possibilidade de exigir o
respeito, a proteção, a promoção e o provimento de direitos, perante os órgãos públicos
competentes (administrativos, políticos ou jurisdicionais) para prevenir as violações a esses
direitos ou repará-las” (VALENTE et al., 2007ª p. 5).
O processo de exigibilidade só existe se o direito estiver sendo violado e/ou negado.
Piovesan et al. (2009, p. 94) alertam que “há que se propagar a ideia de que os direitos sociais,
econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e, por isso, devem
ser reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade.” Portanto, qualquer
sociedade que busque se construir numa perspectiva ética e socialmente justa deve se
comprometer com uma agenda de inclusão voltada para um modelo de desenvolvimento
sustentável, que combata todas as formas de discriminação e avance na promoção da
igualdade.
É no avanço da construção deste novo paradigma que o processo de exigibilidade
ganha força. Nesse sentido, Bucci (2001, p. 9) diz que, mesmo sendo a fruição dos direitos
humanos uma questão complexa, é preciso haver uma mudança nos contextos das políticas
públicas, pois
não basta uma Constituição bem escrita para que ela seja cumprida e obedecida – há
possibilidade de se travar pelas vias do direito e com base na Constituição, uma
batalha própria, capaz de melhorar as condições sociais, por meio da garantia do
exercício de direitos individuais e de cidadania a todos, da forma mais abrangente
possível.
116
E, ainda, de acordo com Burity et al. (2010, p. 70), “a exigibilidade dos direitos
humanos tem como base legal as Declarações e Tratados Internacionais de Direitos
Humanos”, bem como “em normas previstas na Constituição Federal, em leis e em regras
administrativas”.
A exigibilidade de direitos é o mote que sustenta os processos judiciais na área da
saúde (judicialização). Contudo, a judicialização é apenas um de seus instrumentos.
Consideramos a exigibilidade como um processo político deflagrador de um novo
comportamento entre o Estado e a sociedade civil, para dar conta dos direitos violados e/ou
não atendidos, que se traduz em políticas públicas mais resolutivas e mais abrangentes.
Embora essas políticas possam ser focalizadas em grupos, territórios e demandas específicas,
seus resultados não são pontuais e individualizados como nos processos judiciais comuns.
Os processos de exigibilidade tendem a gerar respostas antecipatórias do Estado, ao
contrário de respostas que cumprem determinações judiciais individualizadas. Segundo
Brígido (2011), reportando-se a números do Conselho Nacional de Justiça, existem hoje, no
Brasil, 240.980 processos judiciais na área da saúde. Embora a grande maioria seja de acesso
a medicamentos, existem demandas de inúmeras ordens.
Ano após ano os números vêm crescendo e não parece haver perspectiva de mudança
dessa tendência. Em 2009, o Ministério da Saúde foi citado em 3.200 ações judiciais com
pedido de medicamentos não fornecidos pelo SUS e em 2010 foram 3.400 ações. Nos últimos
nove anos, o gasto foi de R$ 346 milhões com essas ações (BRÍGIDO, 2011).
Embora a judicialização da saúde seja fundamente no processo da exigibilidade de
direitos, a resposta se concentra no Poder Judiciário e se encerra no atendimento específico e
pontual da demanda. Já, o processo da exigibilidade de direitos ou juridicização, embora
tenha como um de seus recursos a esfera judiciária, o foco da sua ação primordial é a política
pública mais duradoura, com a interveniência dos demais poderes do Estado de Direito.
Instrumentos de Exigibilidade
Na perspectiva do Direito, o Estado tem a obrigação de garantir o direito e também
os mecanismos para que as pessoas possam exigi-lo. Assim, é de se esperar que a proposição
de metas a serem estabelecidas visando à correção de suas violações, pudesse ser item
concreto de qualquer planejamento de política pública (ALBUQUERQUE, 2009). Neste
117
sentido, para o exercício da exigibilidade é necessário que o Estado crie e disponibilize de
maneira acessível, instrumentos e instituições (âmbito federal estadual e municipal),
necessários para que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos. Além disso,
utilizando a perspectiva de responsabilidade social, pode-se citar também as iniciativas da
sociedade civil como instrumento de pressão sobre o Estado no processo de cobrança da
realização dos direitos humanos (BURITY et al., 2010).
Podemos considerar que as instituições participantes dos processos de exigibilidade
são de duas ordens: organizações da sociedade civil, tais como movimentos instituídos,
sindicatos, associações, ONGs etc. e organizações públicas, como o Ministério Público, os
Conselhos de Direitos Humanos, a Defensoria Pública, os Conselhos Tutelares, os Conselhos
de Saúde regidos pela Lei 8.142/1990, entre outras.
Com a perspectiva de garantir a efetivação dos direitos humanos, o Brasil ratificou o
PIDESC em 1992. Esse pacto é o principal instrumento internacional de garantia dos direitos
que intenta comprometer os Estados signatários na prestação de contas de como o processo de
realização de direitos e correção de suas violações têm acontecido e avançado. Pode-se dizer,
portanto, que é um importante instrumento de pressão e monitoramento, apesar de não ser
dotado de força legal.
Os termos do seu Artigo 12 e o Comentário Geral nº 3 (1990) mostram que, em
sendo signatário do PIDESC, o Brasil obriga-se a adotar publicamente no cenário
internacional uma postura de portador de obrigações, isto é, de respeitar, proteger, promover e
prover o direito à saúde de forma diligente e eficaz, sendo essa responsabilidade
compartilhada por todos: toda pessoa, toda organização social, e de modo particular, o poder
público. Assim, a responsabilidade da realização dos direitos humanos deve estar estabelecida
nos desenhos das políticas públicas e também nas possibilidades de garantia de mecanismos
para exigência destes direitos via instituições e instrumentos.
Segundo Valente et al. (2007), no contexto brasileiro, os instrumentos de
exigibilidade podem ser utilizados a nível individual ou coletivo e podem ser variados tais
como: administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais. Os autores referem que a
exigibilidade administrativa é viabilizada junto aos organismos públicos responsáveis pela
garantia, promoção, e prevenção, correção ou reparação das ameaças ou violações de direito
humano específico e mostram como exemplo o caso do Benefício da Prestação Continuada,
cuja solicitação deve ser feita junto a um posto ou agência da Previdência Social.
118
Já a exigibilidade política pode ser requerida através dos organismos de gestão de
programas e políticas públicas (Poder Executivo); junto aos organismos de gestão
compartilhada responsáveis pela proposição e fiscalização de políticas e programas públicos
(Conselhos de Políticas Públicas); junto aos Conselhos de Direitos Humanos; ou junto aos
representantes do Poder Legislativo. Um dos exemplos citados é relativo a um movimento
comunitário que se organiza e cobra à Secretaria Municipal de Saúde a criação de uma
Unidade Básica de Saúde bem como a seleção de Agentes Comunitários.
A exigibilidade quase judicial é a possibilidade de utilização de instrumentos tais
como o Termo de Ajustamento de Conduta e o Inquérito Civil, para a averiguação de
violações de direitos humanos ou para fazer com que os agentes públicos possam se adequar
às normas que preveem os direitos. Por exemplo, uma comunidade faz o levantamento de suas
demandas relativas à moradia tais como, falta de luz elétrica local, falta de sistema de água
potável, falta de saneamento e, através do Ministério Público, propõe um Termo de
Ajustamento de Conduta ao município, para que este, em um determinado prazo, execute a
correção destas violações. Por fim, os autores explicam que a exigibilidade judicial acontece
quando a cobrança do direito é feita junto ao Poder Judiciário através de ação civil pública,
ações populares, ou mesmo ações políticas.
Um exemplo pioneiro no Brasil diz respeito a uma Ação Civil Pública interposta pelo
Ministério Público Estadual de Alagoas contra o município de Maceió, pelo não cumprimento
de seu dever constitucional de proteger, respeitar e promover diversos direitos de crianças e
adolescentes de comunidades residentes na Orla Lagunar. Essa ação torna-se especialmente
importante pela sua abrangência pois, considerando a tese da indivisibilidade dos direitos,
clama pela correção de várias violações e dentre estas, o direito à Saúde.
O Estado e as respostas públicas às demandas para efetivação do direito humano à
saúde
A análise de políticas sociais em um país marcado por contradições como o Brasil
não nos parece tarefa fácil, visto que o país não atingiu o bem-estar social dos países centrais
e possui enormes desigualdades, com fossos de miséria e exclusão social. Em nosso país, o
governo tem como agenda prioritária e estratégica a fome, embora o tráfico de drogas e a
violência nas grandes metrópoles se institucionalizem com a conivência do poder público
(PIRES; DEMO, 2006), evidenciando a insuficiente realização dos direitos sociais.
119
No que se refere à política de saúde, embora a consolidação do SUS seja uma
realidade, o sistema enfrenta vários desafios tais como a qualificação da gestão e do controle
social, a melhoria e a qualificação da atenção básica como estratégia organizadora da rede de
atendimento, através da regionalização e hierarquização de ações e serviços de saúde, de
modo a superar as dificuldades de acesso da população aos cuidados em saúde (SOUZA;
COSTA, 2010).
Ao consideramos a legitimidade da saúde como direito fundamental, a partir de
acordos internacionais, da CF/88, da legislação subsequente e das precárias condições
socioeconômicas em que vive grande parte da população e dos desafios enfrentados para
implantação do SUS no Brasil, observou-se, no decorrer dos anos 1990 e 2000, um
progressivo crescimento do número de mandatos judiciais com reivindicações relacionadas ao
direito à saúde, em sua maioria, individuais, para garantir o acesso das pessoas a
medicamentos, procedimentos diagnósticos e terapêuticos (BAPTISTA et al., 2009).
Esse processo de encaminhamento das reivindicações nos tribunais contra os Poderes
Públicos para garantia de medicamentos e exames para o controle de doenças, foi inaugurado
no Brasil pelo movimento dos portadores do vírus HIV/Aids (Baptista et al, 2009),
ressaltando o dever estatal de prestar assistência à saúde individual, de forma integral,
universal e gratuita, sob a responsabilidade conjunta da União Federal, estados e municípios.
Esse segmento, além de estabelecer uma relação entre a justiça e a efetividade do direito à
saúde, contribuiu para o avanço das políticas de assistência às pessoas com HIV/Aids, para
motivar outros movimentos sociais e a população em geral a utilizar a reivindicação judicial
como mecanismo de garantia de direitos, para ampliar as políticas públicas e para a atuação
do Ministério Público no âmbito da saúde (VENTURA et al., 2010).
Nesse sentido, o processo de exigibilidade dos direitos sociais no Brasil,
especialmente do direito à saúde, tem como foco a judicialização da saúde, que se traduz
como garantia de acesso a bens e serviços por meio de ações judiciais, embora não se restrinja
à questão jurídica e de gestão de serviços públicos, visto que o poder judiciário tem
desempenhado um papel significativo no processo de resolução de conflitos políticos e sociais
na implementação de políticas públicas e na efetivação de direitos (BORGES; UGÁ, 2009;
ASENSI, 2010).
Esse processo de judicialização da saúde se consolidou, principalmente, com o
aumento de ações judiciais individuais para a garantia do acesso a medicamentos. Esse
120
fenômeno pode estar relacionado à tardia regulamentação da assistência farmacêutica, que se
deu só após dez anos da criação do SUS com a Política Nacional de Medicamentos e com a
aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, em 2004 (CHIEFFI; BARATA,
2009).
Segundo Messeder e colaboradores (2005), a partir de 1997, com a estruturação do
Programa Nacional DST/AIDS, houve uma redução do número de processos judiciais, devido
à distribuição gratuita dos medicamentos anti-retrovirais. Também observa que há uma
relação entre o aumento de pleitos judiciais por medicamentos e sua inclusão nas listas
oficiais, o que leva à diminuição da incidência de mandados judiciais para esses
medicamentos.
Isso pode ser um indicativo de que as ações judiciais são movidas, pelo menos em
parte, nas áreas em que a política e a administração pública apresentam maiores lacunas e
deficiências. Do mesmo modo, indica-se que a atuação do poder judiciário pode ter efeito
positivo na responsabilização do Estado, estimulando-o a incorporar na rede pública
procedimentos terapêuticos que melhor atendam às necessidades de saúde da população e
contribuam para realização dos seus direitos.
A partir da análise de Ventura et al. (2010), sobre os estudos que discutem a
judicialização da saúde no Brasil, podemos destacar: a) os que dão ênfase aos seus efeitos
negativos na governabilidade e na gestão das políticas de saúde e aqueles em que a
judicialização privilegia grupos e indivíduos com maior poder de reivindicação; b) os que
enfatizam as deficiências e insuficiências no sistema de saúde e no judiciário para atender as
demandas de saúde devido à amplitude das obrigações do Estado; e, ainda, c) os que
identificam questões que perpassam transversalmente as discussões, como a influência do
setor farmacêutico para incorporação de seus produtos pelo Estado, a alocação de recursos
públicos para pesquisa e assistência e o uso racional de novas tecnologias e medicamentos.
Na discussão sobre as instituições jurídicas, no contexto da efetivação dos direitos
sociais, a atuação do Ministério Público tem se destacado como mediadora na garantia e
defesa do direito à saúde, por adotar estratégias de pactuação e negociações céleres na
resolução de conflitos antes de chegarem aos tribunais. Assim, cria-se um espaço institucional
de diálogo no qual os problemas são discutidos sob o ponto de vista jurídico, especialmente
nos momentos pré-processuais, com os principais atores que compõem o processo de
121
formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas de saúde, aproximando o mundo do
direito do mundo dos fatos (ASENSI, 2010).
Segundo o mesmo autor, as diversas estratégias utilizadas pelas instituições jurídicas
para efetivação de direitos e implementação de políticas públicas, que vão além da simples
judicialização, constitui o que ele denomina de juridicização da saúde. Isso tem ampliado a
participação de vários atores sociais no estabelecimento de consensos e na definição de
estratégias de execução pró-ativa de políticas públicas para satisfação das demandas, de
acordo com o contexto em que estão inseridas no cotidiano.
O que caracteriza a juridicização da saúde se coaduna com os instrumentos de
exigibilidade de direitos administrativos, políticos e quase-judiciais. No Brasil, a
funcionalidade desses mecanismos de exigibilidade de direitos evidencia-se, particularmente
no campo da saúde, na resolução de problemas como a falta de medicamentos nos postos, a
insuficiência de leitos hospitalares, a falta de profissionais qualificados, entre outros, que
requer vários procedimentos administrativos, envolvendo articulação política entre diversos
atores no processo de pactuação, geralmente, mediado pelo Ministério Público, que consolida
o consenso estabelecido entre os atores através do instrumento quase-judicial do Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC). Nesse Termo, os compromissos são firmados, as ações
indicadas e os prazos para correção dos problemas são determinados.
Um exemplo de que a exigibilidade de direitos comporta tanto a judicialização
quanto a juridicização foi a construção da norma do Processo Transexualizador no SUS, uma
conquista resultante da demanda pela inclusão dos procedimentos de transgenitalização na
tabela de procedimentos do SUS, através da Ação do Ministério Público Federal, em 2001,
juntamente com a abertura institucional do Ministério da Saúde para participação social,
estimulando o debate e acolhendo propostas oriundas do Seminário Nacional Saúde da
População GLBT na Construção do SUS, realizado em 2007 e da Conferência Nacional
LGBT, realizada em 2008 (LIONCO, 2009).
Observa-se, então, que no contexto brasileiro, há uma pluralidade de instituições,
atores e intérpretes que interagem de forma legítima e decisiva para garantia de direitos, seja
sob a perspectiva da judicialização das relações sociais para realização de conflitos, seja da
juridicização, na qual as demandas são discutidas sob o ponto de vista da sua
institucionalidade jurídica, embora evitando-se levá-las aos tribunais, ou, através da utilização
dos diversos instrumentos de exigibilidade de direitos para sua plena realização.
122
Entretanto, verifica-se, no Brasil, que os estudos sobre a efetivação dos direitos
sociais, particularmente o da saúde, tem priorizado a análise sobre os fins e não sobre os
meios que são utilizados pelos diversos atores e instituições que atuam no processo de
efetivação do direito à saúde e implementação de políticas públicas.
A trajetória do reconhecimento e da efetivação da saúde como direito humano no
Brasil, comporta tensões, disputas, contradições e conflitos de interesses relacionados à
concepção de saúde-doença e às responsabilidades dos cidadãos e do Estado, que vão além da
esfera jurídica, expressando-se no processo de normatização, na formulação e implementação
de políticas públicas e no aparato jurídico-institucional. Desse modo, a judicialização não
deve ser considerada como principal instrumento de exigibilidade de realização do direito à
saúde. Embora seja legítima, deve estar articulada com outros mecanismos como a
juridicização e outros instrumentos de exigibilidade, por meio dos quais se busque
implementar as garantias constitucionais para o alcance da justiça e da cidadania.
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125
ANEXO III: ARTIGO SUBMETIDO À REVISTA PHYSIS, EM 13 DE JULHO DE 2013.
Direito à saúde no Brasil: a judiciabilidade em um caso de exigibilidade de direitos
Josineide Francisco Sampaio
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Maria de Fátima Machado de Albuquerque
Resumo: Os autores analisam a efetivação do direito à saúde a partir da Ação Civil Pública
movida, em 2007, responsabilizando o município de Maceió pela lesão dos direitos das
crianças e adolescentes da Orla lagunar de Maceió. Utilizaram a abordagem de direito e a
metodologia estudo de caso para analisar os autos do processo judicial, descrever o caminho
jurídico-administrativo percorrido e identificar os principais desdobramentos para o
cumprimento da sentença. Com a análise, percebeu-se a importância de identificar as
violações de direitos humanos e a pertinência de integrar os titulares de direitos no processo
de exigibilidade, junto ao Estado. Verificou-se que o poder Executivo adotou estratégias para
eximir-se da responsabilidade de garantir os direitos fundamentais. Viu-se que há restrições à
participação dos titulares de direito nas decisões. Evidenciou os limites do Poder Judiciário
para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de mecanismos institucionais
que assegurem a efetivação dos direitos sociais.
Palavras-chave: Direito à saúde; direitos humanos; instrumentos de exigibilidade de direitos;
judicialização.
Abstract: The authors analyze the effectiveness of right to health from the Public-interest
Civil Action sued, in 2007, charging the city of Maceió for the lesion of the rights of the
children and adolescents from the Orla Lagunar de Maceió. They used the law approach and
the methodology of case study to analyze the files of the lawsuit, describe the path legal-
administrative followed and identify the main deployments to the fulfillment of the sentence.
Analyzing, realize the importance of identify the lesions of human rights and the relevancy to
integrate the right holders on the process of enforceability, beside the State. Ascertained that
the Executive adopted strategies to evade of the responsibility to ensure the fundamental
rights. Perceived that there are restrictions to the participation of the right holders in the
decisions. Evidenced the limits of the Judiciary to ensure the execution to the decisions and
the need to create institutional instruments which ensure the effectiveness of social rights.
Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights;
judicialization.
Introdução
O direito à saúde foi reconhecido como um direito humano desde a Declaração de
1948, em seu artigo 25. Entretanto, somente em 1976, no Art. 12 do Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, esse direito foi vinculado ao direito à vida.
Isso significa dizer que a efetivação dos direitos econômicos e sociais tais como à
126
educação, à alimentação e nutrição, à igualdade, à participação ativa e à não discriminação,
entre outros, tem impacto sobre o estado de saúde da população. Por isso, esses outros direitos
são considerados elementos integrantes e indivisíveis para realização do mais alto nível
possível de saúde (YAMIN, 2008).
No Brasil, o direito à saúde é declarado na Constituição Federal de 1988 como um
direito fundamental que deve ser assegurado a todo cidadão. Isso confere ao Estado o dever
de respeitar, proteger, e realizar (promover e prover) esse direito, permitindo ao cidadão
exigir do Estado que lhe seja garantido, em acesso universal e igualitário, o atendimento
integral à sua saúde. Mas, foi a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) que o
estado Brasileiro passou a viabilizar o provimento do direito à saúde para a sua população
através das Leis Federais No 8.080/90 e 8.142/90, que estabelecem que a saúde tem como
fatores determinantes alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, educação, entre
outros. O direito à saúde também é reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), Lei Nº 8.069/90, em seus Art. 4º e 7º, que diz ser dever de toda a sociedade e do poder
público assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, a realização dos
seus direitos.
Com a normatização do direito à saúde, ou seja, sua positivação, o Estado brasileiro
se constituiu como portador da obrigação de prover progressivamente, por meio de políticas
públicas econômicas e sociais, a realização desse direito para toda população
(ALBUQUERQUE, 2009). Nesse sentido, seus cidadãos constituem-se titulares de direitos,
detentores da prerrogativa de poder exigir do Estado a efetivação de seus direitos, inclusive
com a possibilidade de acionar o Poder Judiciário em relação ao descumprimento de qualquer
princípio jurídico ou ao desatendimento a algum direito (BUCCI, 2001). As dificuldades
existentes no país não extinguem a responsabilidade do Estado de sua tutela protetiva, nem de
seu papel pró-ativo de determinar princípios para um núcleo mínimo de obrigações a serem
executadas (JONES; STOKKE, 2005; PIOVESAN; SILVA; CAMPOLI, 2009).
Desse modo, a judiciabilidade do direito à saúde, isto é, sua transformação em
“objeto de apreciação judicial” (CUNHA, 2003, p. 147), constitui-se num grande desafio para
que seja efetivada sua aplicação por meio de mecanismos jurídicos de exigibilidade de um
direito (BUCCI, 2011).
O Estado detém o papel primordial, enquanto conjunto de órgãos públicos
administrativos, de executar as políticas públicas de forma plena, sem ser necessário que os
127
cidadãos tenham que recorrer frequentemente à proteção jurídica (COSTA, 2008). Porém, o
Estado deve não somente criar e disponibilizar instrumentos e instituições (nos âmbitos
federal, estadual e municipal) para que todos os seus habitantes possam reclamar seus direitos,
mas também reconhecer a legitimidade das iniciativas da sociedade civil como instrumento de
pressão sobre ele no processo de cobrança da realização dos direitos humanos (BURITY et
al., 2010).
No Brasil, segundo Valente et al. (2007), existem diferentes instrumentos de
exigibilidade, tais como administrativos, políticos, quase-judiciais e judiciais, que podem ser
requeridos em nível individual ou coletivo. No caso do direito à saúde, a judicialização tem
sido o meio mais utilizado para garantir o atendimento das necessidades individuais para
assegurar o acesso a medicamentos e a procedimentos de diagnósticos e terapêuticos
(BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009; BORGES; UGA, 2010; VENTURA et al., 2010;
MACHADO et al., 2011; SANT'ANA et al., 2011).
O Ministério Público tem se destacado como protagonista, especialmente através de
intervenções que tentam garantir o provimento dos direitos violados. Entre os instrumentos de
exigibilidade utilizados pelo Ministério Público, a Ação Civil Pública tem se destacado por
sua relevância na tutela de direitos difusos e coletivos especialmente quando os acordos
firmados com os gestores públicos não são cumpridos (ASENSI, 2010).
Podemos citar como exemplo desse instrumento, uma Ação Civil Pública movida
pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital e do Ministério Público do
Trabalho em Alagoas, em 2007, responsabilizando o município de Maceió pela lesão dos
direitos difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes em comunidades da Orla
Lagunar de Maceió.
Considerando que a judicialização da saúde no Brasil está vinculada, na maioria das
vezes, às demandas individuais, essa Ação Civil Pública constitui-se num caso inédito no
país, por ter caráter coletivo e por sua sentença considerar os diversos direitos como unidade
indivisível, permitindo que as famílias e toda a comunidade fossem beneficiadas com a
decisão.
Este estudo se propõe a analisar a judiciabilidade em face do direito à saúde, a partir
de um processo de exigibilidade de direitos, descrevendo o caminho percorrido pela Ação
Civil Pública em defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes oriundos da orla
128
lagunar de Maceió/AL, identificando os principais atores, as decisões e as ações
desenvolvidas.
Metodologia
Para a realização deste estudo, recorreu-se à abordagem teórica sobre direitos
humanos, principalmente o direito à saúde e também à metodologia qualitativa de estudo de
caso.
A abordagem baseada no direito pressupõe que a análise do problema seja feita à luz
dos seguintes princípios: ligação do problema estudado com a rede de direitos,
empoderamento dos titulares, participação proativa dos titulares nas reivindicações para
correção das violações identificadas, não discriminação dos titulares de direito, atenção aos
grupos vulneráveis e estabelecimento do processo de prestação de contas (HANSEN; SANO,
2006).
O estudo de caso se propõe a revelar fundamentalmente as especificidades do
fenômeno social estudado, embora possa oferecer, no seu desenho e resultados finais,
conclusões generalizáveis (OLIVEIRA, 2007). Quanto à sua utilização, afirma-se que esse
tipo de estudo é recomendável quando se pretende estudar eventos contemporâneos que
permitam observações diretas e entrevistas sistemáticas, além de utilizar documentos escritos,
registros, dados pessoais arquivados, artefatos e informações gerais (YIN, 2001).
Dessa forma, o presente estudo corresponde à análise dos documentos que
constituíram o processo de judicialização, iniciado a partir da Ação Civil Pública, impetrada
em favor da proteção dos direitos das crianças e adolescentes residentes nas comunidades
Mundaú, Sururu de Capote, Torre e Muvuca (Maceió). É importante registrar que, sem perder
de vista a indissociabilidade, a indivisibilidade e a inter-relação intrínseca para a realização
dos direitos humanos, a presente análise enfatizará os desdobramentos relativos ao direito à
saúde.
Assim, foram identificados e sistematizados os documentos ajuntados aos autos do
Processo Nº 4830/07, disponibilizados pelo Juiz de Direito da 28ª vara Cível da Capital
(Infância e Juventude), correspondentes ao período de setembro de 2007 a julho de 2012,
distribuídos em sete volumes e organizados segundo critério de arquivamento cartorial, o que
totalizou 2072 páginas. Esse arquivo é composto por 1 relatório base da Ação Civil Pública, 1
129
relatório da sentença, 2 recursos, 45 ofícios, 28 despachos do juiz, 14 requerimentos e
petições, 24 mandados e certidões, 13 pronunciamentos da promotoria, 5 decisões
complementares, 5 alvarás e termos de compromisso de fiel depositário e 1 projeto de
pesquisa, com respectivo relatório, além de outros documentos anexados de variada natureza.
Para efeito de sistematização, a análise foi disposta em forma de tabela, na qual
podem ser vistas as decisões e ações concretas relacionadas ao processo de exigibilidade de
direitos humanos, identificando os principais atores (poder judiciário, prefeitura, entidades da
sociedade civil e comunidade), datas, tipos de documentos, decisões/encaminhamentos e
ações concretas. A partir desta organização, foi elaborada uma descrição, para analisar o
caminho percorrido no decorrer do processo judicial.
A pesquisa da qual se originou este artigo teve seu Projeto aprovado pelo Comitê de
Ética da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ, processo nº 01288112.3.0000.5240.
O acesso à documentação que compôs o processo judicial em análise foi permitido mediante
Termo de Livre Acesso Institucional assinado pelo Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da
Infância e Juventude da Capital.
Resultados e discussão
A Ação Civil Pública: em busca da garantia de direitos
A Ação Civil Pública instaurada contra o município de Maceió foi movida pelo
Ministério Público em 12 de março de 2007, através da Promotoria de Justiça da Infância e
Juventude da Capital e do Ministério Público do Trabalho em Alagoas pela lesão aos direitos
difusos e coletivos das crianças e adolescentes residentes na Orla Lagunar de Maceió. Foi
julgada e deferida em 10 de setembro de 2007, pelo então Juiz de Direito da 28ª Vara Cível -
Infância e da Juventude da Capital.
Essa Ação foi impulsionada a partir de informações de lideranças, depoimentos de
mães e de crianças e adolescentes dessas comunidades e também a partir de um estudo
realizado, em 2005, pela Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos – ABRANDH,
que constatou diversas violações de direitos humanos, tais como educação, alimentação
adequada, saúde, proteção institucional e familiar (ALBUQUERQUE; BURITY, 2008).
A Ação responsabilizou e exigiu reparos à prefeitura da cidade, por sua omissão,
130
enquanto governo local, de proteger, promover e realizar os direitos das crianças e
adolescentes residentes nas comunidades da citada orla lagunar. Para respaldar sua garantia
institucional, o texto base da Ação Civil, além de utilizar o arcabouço legal internacional,
também se valeu da legislação nacional.
Essa proposta da Ação Civil Pública respaldou-se no fato de ser o Poder Judiciário
tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e
Legislativo.
Assim, por intermédio da Promotoria da Infância e da Juventude e do Ministério
público do Trabalho em Alagoas, o Juiz de Direito da 28ª Vara Cível da Infância e da
Juventude da Capital determinou que a prefeitura implementasse ações para correção das
violações dos direitos humanos encontradas.
No Relatório da Sentença, o juiz discutiu o mérito da ação e rechaçou os argumentos
apresentados na contestação do Município de Maceió, estabelecendo medidas a serem
providenciadas, com prazos fixados para retirar as crianças e adolescentes das condições de
miserabilidade em que viviam nessas comunidades.
Para assegurar o resultado prático da ação, foi determinado o bloqueio de R$1 500
000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) da rubrica de contingência do Município, além de
multas aplicadas nos seguintes termos: multa diária de R$10 000,00 (dez mil reais) em
desfavor do Município, de R$300,00 (trezentos reais) por dia para o então prefeito e de
R$200,00 (duzentos reais) para o secretário de assistência social, no caso de não
comprovarem o efetivo cumprimento da sentença num prazo máximo de 30 dias, contados a
partir da data da sentença.
Em reação a essa decisão, em 20 de setembro de 2007, a Prefeitura de Maceió,
através da Procuradoria, interpôs Recurso na 28ª Vara Civil da Capital da Infancia e
Juventude além de protocolá-lo no Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, solicitando à
presidência, a suspensão de execução da sentença até seu julgamento.
Esse recurso foi analisado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, em 14
de outubro de 2007, o qual considerou improcedentes os argumentos de que a decisão exarada
teria lesado a ordem e a economia públicas. Também foram questionados pela prefeitura os
prazos estabelecidos na sentença, sob a alegação de que as políticas públicas determinadas
eram complexas, de longo prazo e que o município já vinha cumprindo a decisão liminar.
131
Apesar disso, o juiz indeferiu o pedido de suspensão de execução da sentença a fim de evitar
graves e irreparáveis danos à saúde e à vida dos moradores das comunidades beneficiadas
pela ação.
Entretanto, imediatamente após a determinação dessa sentença, a prefeitura interpôs
Recurso de Apelação junto ao Tribunal de Justiça de Alagoas, argumentando inadequação da
via eleita, impossibilidade jurídica do pedido, falta de interesse processual. Além disso,
solicitou denunciação à lide do Estado de Alagoas e da União. O julgamento desse recurso
ocorreu em 26 de agosto de 2010, quase três anos após a sua interposição. Na ocasião, foi
rejeitada a maioria dos argumentos e das solicitações, porém, foram revogadas as
determinações que obrigavam o município apresentar propostas de políticas públicas, definir
recursos na lei orçamentária e a utilizar a reserva de contingencia.
Em setembro de 2010, a prefeitura entrou com um Embargo de Declaração do
julgamento do Recurso de Apelação, pedindo que o desembargador relator do julgamento se
pronunciasse acerca da manutenção, ou não, das multas aplicadas ao Município. Três meses
depois, foi determinada a diminuição do valor da multa ao município de R$10 000,00 (dez
mil reais) para R$500,00 (quinhentos reais), mantendo-se, entretanto, o valor estabelecido na
primeira instancia das multas ao prefeito e ao secretário de assistência social do município.
Em fevereiro de 2011, a prefeitura entrou com Recurso Especial em Apelação,
solicitando que o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas encaminhasse o
processo ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento. Em julho de 2011, tal recurso foi
encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça.
O Superior Tribunal de Justiça não reconheceu o recurso especial da prefeitura.
Dessa forma, a decisão foi encaminhada ao Ministério Público Federal, que reiterou a decisão
e, posteriormente, encaminhou ao Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que enviou os
autos para a vara de origem. Em julho de 2012, o juiz da 28ª Vara converteu a execução
provisória em definitiva e determinou que o processo recebido fosse ajuntado aos autos. Isso
significa que a sentença deixou de ter caráter liminar, de urgência, devendo ser cumprida pelo
município, sem possibilidade de interpor recursos para sua revogação.
Percurso jurídico-administrativo: desdobramentos da Sentença
A fim de compreender como se deu a execução da sentença e visualizar a atuação
132
dos atores em relação à efetivação dos direitos sociais, faz-se necessário analisar a trajetória
da ação, o que pode revelar limites e possibilidades da judicialização de um direito.
O quadro abaixo traz uma síntese das medidas determinadas ao Município na sentença
deferida em 10 de setembro de 2007, indicando seu respectivo cumprimento, ilustrando assim,
uma linha do tempo.
Acompanhamento da sentença. Maceió (AL), Brasil, período de 10/09/2007 a 31/07/2012.
Sentença Realização Data
1. Formação de uma equipe multidisciplinar para realizar um levantamento
do perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes das referidas
comunidades, num prazo de 90 dias, para identificação dos riscos aos
quais estão expostos;
Parcialmente
07/05/2009
2. Oferecimento, num prazo de 60 dias, de condições adequadas para o
funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, além de
disponibilização, em caráter ininterrupto, de um número de telefone
gratuito (0800) para o recebimento de denúncias;
Parcialmente 19/01/2011
3. Apresentação, em 30 dias, de um cronograma de ampliação da rede
municipal de proteção, além da abertura de abrigos, para as crianças e
adolescentes em situação de risco, devendo funcionar no prazo máximo de
180 dias a partir do diagnóstico;
Não
4. Oferta, em 30 dias, de creche em horário integral e Educação Infantil para
atender todas as crianças de 0 a 6 anos, além da abertura de outras
unidades educacionais, de acordo com a necessidade, em até 180 dias, a
partir do diagnóstico;
Não
5. Garantia de matrícula de todas as crianças e adolescentes em idade escolar
de Ensino Fundamental, a partir do diagnóstico inicial;
Não
6. Apresentação de propostas de políticas públicas a serem implementadas
pelo Município, com abrangência suficiente, ofertando soluções a curto,
médio e longo prazo para a referida população no prazo de 90 dias após o
resultado do perfil apresentado;
Revogada 25/08/2010
7. Inclusão no Projeto de Lei Orçamentária de 2008, de verbas necessárias
para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano
corrente, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais
necessidades da população infanto-juvenil;
Revogada 25/08/2010
8. Utilização da reserva de contingência do Município, caso esse não
apresentasse rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas no
cumprimento das medidas liminares, ora concedidas;
Revogada 25/08/2010
9. Expedição de certidão de nascimento das crianças e adolescentes e pais
residentes na região para inclusão em Programas Sociais;
Sim 24/03/2011
10. Promoção de campanha permanente de conscientização, através dos mais
diversos meios de comunicação, acerca da proibição do trabalho infantil,
inclusive o doméstico, da prostituição infantil e dos males à saúde
Não
133
causados por drogas, além da importância do papel da sociedade na
denúncia desses temas ao Conselho Tutelar da Região;
Fonte: Elaboração a partir do Processo nº 4.830/07 - Relatório da Sentença da Ação Cívil Pública
Para que se realizasse o primeiro item da sentença, a promotoria solicitou ao juiz que
determinasse a sua execução por terceiro à custa do devedor, visto que já teriam se passado
sete meses sem que o município de Maceió tivesse cumprido a medida determinada. Dessa
forma, o levantamento – que se constituiu de um diagnóstico do perfil sócio-econômico das
crianças e adolescentes das citadas comunidades – foi realizado pela Universidade Federal de
Alagoas- UFAL. Esse diagnóstico foi apresentado em audiência pública em junho de 2009,
passados quase dois anos da tramitação do processo de execução.
Quanto à realização do item II, que trata da estruturação do Conselho Tutelar das
Regiões I e II e da disponibilidade de telefone gratuito (0800) para atender as denúncias da
população, constatou-se uma realização parcial, pois a reforma do prédio onde funcionaria o
referido Conselho durou mais de três anos para ser concluída. Quanto à disponibilidade do
telefone gratuito (0800), este foi instalado apenas nos Conselhos Tutelares III, IV e V, os
quais não eram responsáveis pelo atendimento e proteção das crianças e adolescentes, sujeitos
da sentença.
Em relação ao terceiro item, referente à apresentação de um cronograma de
ampliação da rede municipal de proteção e à abertura de abrigos para as crianças e
adolescentes em situação de risco, nenhuma menção a esse respeito foi identificada nos autos.
No caso dos itens IV e V, que trata da garantia do direito à educação das crianças e
adolescentes, observou-se que o município, através da Secretaria Municipal de Educação, foi
interpelado reiteradas vezes sobre o cumprimento desses itens. Como o levantamento
realizado pela Ufal para cumprimento do primeiro item da sentença identificou 670 crianças e
adolescentes fora da escola e o município não dera resposta, a promotoria promoveu, junto à
comunidade, um levantamento das crianças e adolescentes que ainda não estavam
matriculadas na Educação Infantil e Ensino Fundamental e, a partir de audiências públicas
junto às escolas privadas, solicitou que autorizasse a matrícula, no ano letivo de 2010, dos 163
referidos alunos nas escolas privadas que indicara, utilizando parte do recurso bloqueado do
município para viabilizar a efetivação desse direito assegurado. Entretanto, o juiz indeferiu o
pedido sob a alegação de que feriria a prerrogativa de garantia da Proteção Integral e a da
Igualdade, visto que não atenderia todas as crianças e adolescentes acobertadas pela sentença.
134
Quanto ao cumprimento do item VI, que determinou a apresentação de propostas de
políticas públicas para correção dos direitos violados, identificou-se nos autos que, em maio
de 2008, a quase oito meses do deferimento da sentença, o município apresentou uma lista de
ações que seriam desenvolvidas, como construção de unidades habitacionais, creche, CRAS,
mini pronto-socorro, unidade de saúde da família, entre outras. Ainda segundo os autos, foram
desenvolvidas apenas algumas dessas ações, como o atendimento a 180 crianças e
adolescentes pelo PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), em funcionamento
no prédio anexo à Igreja Virgem dos Pobres; a estruturação de um Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), que funcionaria no prédio Dom Adelmo
Machado; a habilitação, cadastramento e acompanhamento de famílias em programas sociais
e oferta de cursos de capacitação profissional.
Entretanto, essa determinação, foi revogada no julgamento do Recurso de Apelação
pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, juntamente com o sétimo item, que trata da inclusão, no
Projeto de Lei Orçamentária, de verbas para implementação das políticas públicas, e com o
oitavo, referente à utilização da reserva de contingência do município.
Acerca do nono item, observou-se que foi providenciada a documentação por meio
de ações conjuntas com o Tribunal Estadual de Justiça e com a Secretaria Municipal de
Assistência Social.
Em relação à décima determinação, referente à promoção permanente de campanhas
de conscientização sobre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes, nenhuma
informação a respeito foi identificada nos autos.
Considerando-se a sentença e a execução provisória, pode-se constatar que, em cinco
anos de tramitação jurídico-administrativa, apenas uma das medidas indicadas foi realizada,
três foram parcialmente realizadas, sendo uma dessas, juntamente com outras duas, revogadas
posteriormente. Em relação às demais, não foi identificado nos autos informações sobre sua
execução.
As medidas determinadas estão de certo modo relacionadas ao direito à saúde e é
importante destacar que, embora esse direito não tenha sido diretamente relacionado nos itens
da sentença, foi ressaltado em diversos momentos nesse processo de exigibilidade. Além
disso, o cumprimento dos direitos sociais assegurados na sentença incide nos fatores
determinantes e condicionantes à saúde das crianças e adolescentes. Isso significa que o não
135
cumprimento dos itens da sentença, contribui para a não realização do direito à saúde na sua
plenitude, visto que a sua efetivação pressupõe a indivisibilidade em seu provimento e não se
restringiria, por exemplo, a abertura de mini-pronto-socorro e unidade de saúde da família.
A participação dos atores sociais no processo de judicialização
As entidades da sociedade civil organizada, em parceria com as lideranças da
comunidade e em articulação com o Ministério Público, exerceram importante papel para
desencadear a Ação Civil Pública. Esse contexto contribuiu para o empoderamento dos
titulares de direitos e para mobilizá-los no desenvolvimento de estratégias para exigir dos
agentes públicos, portadores de obrigações, o provimento dos direitos que se encontravam
violados.
Tais fatos foram importantes catalisadores do processo de exigibilidade política
instalado, pois propiciaram o exercício do uso do direito de petição e de audiências públicas
para exigir a correção das violações (ABRANDH/FAO, 2007). E, nesse sentido, pode-se dizer
que isso se constituiu em um processo político deflagrador de um comportamento mais
interativo que o habitual entre a sociedade civil e o Estado ao rediscutir as políticas públicas
em sua resolutividade e abrangência, diferentemente de processos judiciais individualizados,
comuns no âmbito da saúde (ASENSI, 2010).
No entanto, esse processo de judicialização não efetivou a participação dos diversos
atores sociais que a desencadearam, tais como lideranças das comunidades e das organizações
da sociedade civil, sendo os atores que passaram a atuar, os do poder judiciário, do executivo
e entidades civis (universidade, empresas comercias, de serviços e construção civil, etc.),
essas acionadas apenas para atender diretamente às demandas concernentes ao processo
jurídico-administrativo em curso.
Já em relação à atuação do Ministério Público, esse se destacou por sua capacidade
de se articular com os demais atores sociais desde o início desse processo de exigibilidade,
constituindo-se ator privilegiado na defesa da sociedade (ASENSI, 2010).
O juizado da 28ª Vara da Infância e da Juventude da Capital teve destaque no
deferimento da Ação Civil Pública, sobretudo na manutenção da sentença em execução diante
das demais instâncias do poder judiciário e no enfrentamento da resistência jurídico-
administrativa interposta pela Prefeitura de Maceió em cumprir suas determinações.
136
Nesse sentido, a decisão do juizado produziu o mesmo efeito que a lei, constituindo-
se como concretização da norma ao determinar seu cumprimento pelas partes envolvidas. Ao
mesmo tempo, pode servir como referência para outras decisões semelhantes, promovendo
assim, inovação no padrão de atuação do Poder Judiciário na resolução de conflitos coletivos
e de relacionamento entre os Poderes (BORGES; UGÁ, 2009; MACHADO et al., 2011).
Apesar disso, não se verificou a eficácia do Poder Judiciário em garantir o
cumprimento de sua decisão, pois se por um lado a Prefeitura de Maceió não logrou o êxito
esperado em suas interposições junto às instâncias do poder judiciário, por outro conseguiu
neutralizar os efeitos da Ação Civil quanto ao cumprimento das determinações da sentença na
sua fase de execução.
A Prefeitura, apesar de seu status constitucional de portador de obrigações,
questionou a forma como o Poder Judiciário interferiu no processo, responsabilizando-a pelas
violações encontradas e manifestou sua insatisfação pelo estabelecimento dos prazos
definidos para implementação das políticas públicas, pelo bloqueio de recursos do município
e pela não inclusão dos poderes estadual e federal. No entanto, na perspectiva dos direitos
humanos, o Estado, independentemente do nível de execução, se municipal, estadual ou
federal, tinha o dever de atuar de forma diligente e eficaz no provimento dos direitos.
Apesar dessa prerrogativa, o Poder Executivo municipal não reconheceu sua
responsabilidade e demonstrou uma baixa mobilização para atuar de forma diligente e eficaz,
quando tentou desvincular ações governamentais da Ação Civil Pública e da sentença, sob a
alegação de que diante da escassez de recursos e dos graves problemas sociais que acomete a
maioria da população, não poderia privilegiar algumas comunidades em detrimento de outras
em situação semelhante no município.
Por outro lado, o Poder Judiciário, especificamente do Tribunal de Justiça de
Alagoas, contribuiu para essa atuação do executivo, atendendo alguns dos pleitos do
município, por exemplo, quando revogou, as determinações da sentença que garantiria os
recursos financeiros para execução das políticas públicas, dificultando a viabilização do
cumprimento das determinações da sentença. Outra situação identificada refere-se às multas
aplicadas diretamente aos gestores, pois não foi identificada a sua cobrança nos autos.
Isso demonstra que o Poder Judiciário precisa avançar em seu protagonismo em
relação à dimensão política que compõe os direitos sociais. Nesse mesmo sentido, os gestores
137
públicos carecem se conscientizar de seu papel decisório em relação à implementação das
políticas públicas no Brasil, especialmente para aquelas direcionadas às populações mais
empobrecidas do tecido social (MACEDO; LOPES; BARBERATO-FILHO, 2011).
Esse conflito entre os poderes evidencia os limites do Estado quanto à capacidade de
efetivação das normas. Nesse caso, do Poder Judiciário de impedir as omissões ou violações
de direitos fundamentais por parte do Poder Executivo que, por sua vez, atuou como se a
justiciabilidade fosse uma intervenção indevida do Poder Judiciário. Estudos afirmam que
isso ocorre devido à ampliação das garantias constitucionais dos direitos sociais e dos
mecanismos de controle que conferiu ao Poder Judiciário um papel mais ativo e uma tarefa
mais complexa em relação à resolução de conflitos, especialmente de cunho coletivo. Além
disso, a ampliação de suas atribuições não foi acompanhada do devido aparelhamento das
instancias jurídicas para que pudesse garantir a execução de decisões judiciais que consistiam
em implementação de políticas públicas (YAMIN, 2008; BORGES; UGÁ, 2009; CHIEFFI;
BARATA, 2009; ASENSI, 2010; PINHEIRO; ASENSI, 2010; VENTURA et al., 2010).
Diante desse contexto, podem ser observados alguns limites relativos a esse processo
de judicialização devido à complexidade inerente a realização dos direitos sociais.
O direito à saúde na perspectiva da judicialização
A falta de acesso aos bens e serviços de saúde, bem como as precárias condições de
vida em que se encontravam crianças e adolescentes da comunidade Sururu de Capote em
Maceió-Al evidenciaram a violação de vários direitos humanos, reafirmando a
interdependência intrínseca existente entre eles, legitimando os princípios da universalidade,
da indivisibilidade e da indissociabilidade (TARANTOLA et al., 2008; ALBUQUERQUE,
2009).
A abordagem de direitos humanos na qual se ancorou a constituição do processo de
exigibilidade em análise, que culminou em uma judicilização, também contribuiu para
responsabilizar e exigir que o Estado (município de Maceió) assegurasse a realização dos
direitos humanos das crianças e adolescentes de comunidades da orla lagunar. Esse processo
demonstrou que há um consenso considerável quanto às reivindicações de direitos humanos a
serem realizados em contextos específicos que, enriquecidas por novas perspectivas, podem
desempenhar um papel importante na luta para melhorar o bem-estar individual e social
(YAMIN, 2008).
138
Entretanto, no processo de judicialização pode-se observar que o direito à saúde foi
identificado como um direito que se encontrava violado, porém nenhuma medida foi
diretamente indicada para reparar a violação desse direito entre as medidas propostas na Ação
e deferidas na sentença, ainda que fosse vinculado ao direito à vida.
Embora o direito à saúde não tenha sido explicitamente contemplado na sentença,
verificou-se sua relevância quando o diagnóstico realizado como cumprimento da primeira
determinação identificou vários problemas que poderiam impactar a saúde, tais como:
insalubridade ambiental no local de moradia, falta de acesso à educação, falta de acesso aos
serviços de saúde de atenção básica, urgência e especialmente, de atenção à saúde mental.
Desse modo, percebe-se que o cumprimento desse item da sentença deu visibilidade às
vulnerabilidades sociais da comunidade, mas não dispôs de mecanismos que viabilizassem a
participação de todos os titulares de direitos junto ao poder público municipal na formulação e
implementação das ações para atender as necessidades identificadas pelo diagnóstico, nem a
correção das violações apontadas.
Esse contexto se contrapõe à realização dos princípios de responsabilização e
prestação de contas, pois a promoção da responsabilização dos portadores de obrigações em
prover a efetivação do direito humano à saúde, por meio das leis e políticas públicas, exige a
definição clara das obrigações normativas e requer uma variedade de estratégias para o
acompanhamento da evolução e garantia de reparação (YAMIN, 2008).
Quanto ao princípio de participação e empoderamento dos titulares de direitos, a
configuração em que se constituiu a dimensão da judicialização nesse processo de
exigibilidade permitiu visualizar que há ainda um longo caminho a percorrer para que o
Estado incorpore, de fato, a sociedade civil como interlocutora capaz de exercer sua cidadania
e participar das decisões estatais na formulação e gestão partilhada das políticas públicas
sociais, exercendo dessa forma o controle social (BUCCI, 2001; ARZABE, 2001).
Considerando o alcance limitado do processo de judicialização analisado pode-se
concluir que é necessário aprimorar os mecanismos de exigibilidade existentes e criar novas
arquiteturas institucionais que promovam a responsabilidade legal, política e social que
viabilizem a aproximação entre o direito público-administrativo e o direito privado, para
assim garantir a participação ativa da população nas instituições jurídico-políticas,
principalmente na geração e execução de políticas públicas que garantam o direito à saúde.
139
Para tanto, é fundamental a ampliação e a consolidação de esferas públicas
democráticas que garantam o direito de todos os membros da sociedade participar ativamente
dos assuntos da comunidade em que vivem na adoção de políticas públicas em todos os
níveis. Isso implica ter como estratégia o desenvolvimento de capacitação das comunidades
locais no que diz respeito à cidadania, direitos humanos e políticas públicas e que envolva a
participação de diversos atores sociais, conferindo, assim, credibilidade a uma ampla
variedade de lutas, iniciativas, movimentos sociais e organizações, em âmbito local, nacional
ou internacional.
Considerações Finais
O estudo da trajetória desse caso permitiu que fossem visibilizados o papel e as
atribuições dos atores sociais e instituições que detêm a obrigação de respeitar, proteger e
realizar (promover e prover) os diretos sociais.
Também revelou estratégias adotadas na resolução dos conflitos, tanto do poder
executivo, para se eximir da responsabilidade de proteger e prover os direitos fundamentais
assegurados na legislação internacional e nacional, como dos titulares de direitos devido às
barreiras existentes que os impedem de participarem ativamente das decisões e
encaminhamentos que lhes dizem respeito.
Do mesmo modo, expôs as dificuldades do poder judiciário em garantir a execução
das suas decisões e avançar na criação de mecanismos institucionais que assegurem a
responsabilização, a prestação de contas e a participação dos diversos atores sociais
envolvidos na resolução do conflito para a efetivação dos direitos sociais em questão.
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143
ANEXO IV: ARTIGO PARA APRECIAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA
A efetivação do direito à saúde e a percepção dos atores sociais em um caso de
exigibilidade de direitos
Josineide Francisco Sampaio
Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Maria de Fátima Machado de Albuquerque
Resumo: Neste artigo, analisa-se o processo de efetivação do direito à saúde a partir da
percepção dos atores sociais envolvidos em um processo de exigibilidade de direitos para
implementação de políticas públicas em comunidades oriundas da orla lagunar de Maceió-AL
beneficiadas por uma ação civil pública. A análise foi feita a partir de entrevistas que fizeram
parte de um estudo de caso sobre esse processo de exigibilidade e foram analisadas à luz da
abordagem de direito, principalmente do direito à saúde, utilizando proposições como
indivisibilidade de direitos, responsabilização e participação. Com a análise, percebeu-se a
importância da atuação da sociedade civil organizada e dos titulares de direitos, junto ao
Estado, na luta pela realização dos direitos sociais, evidenciando de que forma como o poder
político se comporta diante do seu dever de garantir os direitos e de como formula e
implementa as políticas públicas para sua concretização. Identificaram-se também os limites
do Poder Judiciário para garantir a execução das decisões e a necessidade de criação de
mecanismos institucionais que assegurem a efetivação dos direitos sociais. Constatou-se que
há restrições à participação dos titulares de direito nas decisões, o que revela a importância da
utilização dos instrumentos de exigibilidade para o fortalecimento da luta política, a conquista
da cidadania e para garantia de uma vida digna para todos.
Palavras-chave: Direito à saúde, direitos humanos, instrumentos de exigibilidade de direitos.
Abstract: This article analyzes the process of effectiveness of the right to health from the
perception of the social actors involved in a lawsuit for enforceability for implementation of
public policies in communities from the Orla Lagunar de Maceió-AL benefited by a public-
interest civil action . The analysis was based on interviews that were part of a case study on
the process of enforceability and were analyzed from an approach based on right, especially
the right to health, using propositions as indivisibility of rights, accountability and
participation. With the analysis, we realized the importance of the role of civil society
organizations and rights holders, with the State, the struggle for the realization of social
rights, showing that how political power behaves before his duty to ensure the rights and how
to formulate and implement public policies to achieve them. It was also identified the limits of
the judiciary to ensure implementation of the decisions and the need for institutional
mechanisms to ensure the fulfillment of social rights. It was found that there are restrictions
on the participation of rights holders in decisions, which reveals the importance of the use of
instruments of enforceability for the strengthening of the political struggle, the conquest of
citizenship and to guarantee a dignified life for everybody.
Key words: Right to health; human rights; instruments to enforceability of rights.
144
Introdução
O modelo de desenvolvimento socioeconômico e político-cultural adotado no Brasil
tem sido marcado por contradições gritantes que o distanciam da condição de Estado de bem-
estar social alcançada pelos países centrais. Isso pela persistente exclusão e desigualdade
social, onde o desenvolvimento econômico convive com a miséria, o tráfico de drogas e a
violência, com a anuência do poder público. Além disso, o país teve um processo de
redemocratização tardio, numa conjuntura de avanço do neoliberalismo mundial que trouxe
sérias restrições para a construção de um Estado democrático e para a efetivação da cidadania.
Apesar dos movimentos de resistência e de luta pela garantia dos direitos sociais
serem significativos e influentes na história do Brasil, na sua cultura política têm
predominado tradições centralizadoras e patrimonialistas, permeadas por relações
clientelistas, meritocráticas e de interesses articulados entre determinados grupos socias e o
Estado (JACOBI, 1999). Isso faz com que a cidadania seja marcada pela forte presença da
tutela e submissão do povo aos ditames do Estado, numa tendência ao neoliberalismo, que
focaliza políticas públicas de baixa qualidade para os pobres (PIRES; DEMO, 2006).
Assim, esse cenário de exclusão social, de pobreza e miséria demonstram que as
políticas públicas não têm sido eficientes e nem suficientes para alterar, substancialmente,
esse quadro. Nesse sentido, nas comunidades em que vivem a população pobre e miserável, os
direitos humanos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, são sempre violados
em graves proporções; e os agentes públicos do Estado nem sempre estão aptos a realizarem
esses direitos, seja por questões concretas ou ideológicas (ALBUQUERQUE; BURITY,
2008).
No entanto, não podemos perder de vista os compromissos assumidos,
internacionalmente, pelo Brasil, por meio da assinatura de vários tratados de direitos humanos
para atender e prover os direitos econômicos, sociais e culturais para toda a população, como
preconizado pela Constituição Federal. Entre esses direitos assegurados por lei, destaca-se a
saúde, uma vez que ela consiste num bem-estar global que requer condições e requisitos para
sua efetivação, como a igualdade de oportunidades e a promoção das diversas condições para
que todas as pessoas realizem completamente seu potencial de saúde (OTTAWA, 1986).
Ao conceber o direito à saúde como direito humano, o Estado se obriga a assegurar
sua realização, por meio de políticas públicas que garantam à população – especialmente aos
145
indivíduos, grupos e camadas sociais marginalizadas mais afetadas pela pobreza e violação de
seus direitos – o acesso universal, equânime e integral à saúde.
A partir dessa concepção, propõe-se, neste artigo, analisar o processo de efetivação
do direito à saúde a partir da percepção dos atores sociais envolvidos em um processo de
exigibilidade de direitos para implementação de políticas públicas em comunidades oriundas
da orla lagunar de Maceió-AL beneficiadas por uma ação civil pública.
Metodologia
O presente estudo é a análise de um recorte de um estudo de caso sobre um processo
de exigibilidade de direitos humanos – entre esses, do direito a saúde – e de como foram
implementadas as políticas públicas nas comunidades da orla lagunar de Maceió – AL, por
meio de uma Ação Civil Pública.
Esse estudo baseou-se na análise das entrevistas dos principais atores sociais
concernentes tanto ao processo de exigibilidade de direitos como as políticas públicas que
foram desenvolvidas nas comunidades. Foram entrevistados a maioria dos atores-chave que
representavam os segmentos envolvidos nesse processo, tais como da gestão pública
municipal; do poder judiciário estadual; das organizações não governamentais e das
comunidades da orla lagunar. As entrevistas foram abertas, subsidiadas por um roteiro e
conduzidas de forma espontânea. Após transcritas, foram extraídas as unidades naturais do
depoimento e identificados os temas centrais, elaborando-se uma síntese interpretativa das
descrições essenciais dos depoimentos, segundo a técnica de condensação de significados
(MINAYO, 1996; GIBBS, 2009).
Para a análise das evidências, recorreu-se à abordagem dos direitos humanos,
especialmente do direito à saúde, utilizando proposições como indivisibilidade de direitos,
responsabilização e participação. Segundo Hansen e Sano (2006), essa abordagem pressupõe
que a análise seja feita a partir da ligação do problema com a rede de direitos, empoderamento
e participação proativa dos titulares nas reivindicações, não discriminação, atenção aos grupos
vulneráveis e prestação de contas.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública -
FIOCRUZ, CAAE: 01288112.3.0000.5240. As entrevistas realizadas mediante Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
146
Resultados e discussão
As conquistas constitucionais no campo dos direitos sociais provocaram uma
movimentação dos setores públicos nos vários níveis de gestão e das organizações da
sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais, no sentido de redesenhar e implementar
políticas que atendessem às prerrogativas legais em curso no país.
Nesse contexto, a partir de 2003, de acordo com o depoimento de um representante
da comunidade da orla lagunar, os órgãos públicos, principalmente aqueles vinculados à
gestão municipal, iniciaram um trabalho de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil
junto às mães das crianças da orla. Isso levou a uma e mobilização para reivindicar a garantia
dos direitos junto ao poder público em reação às acusações que recebiam.
Segundo esse representante, o processo de exigibilidade...
começou quando a gente começou ser repudiado, [...] pelo município
principalmente. Eles achavam um absurdo, as crianças tá mergulhando na lagoa, tá
indo catar sururu com a gente e ir no mercado vender. [...] Acusando as mães de
colocar, aliciar as crianças pra o lado errado, pra trabalhar. (RC)
A situação de pobreza e miséria, a baixa cobertura assistencial, a baixa qualidade ou
mesmo a ausência dos serviços públicos e o autoritarismo que permeiam a gestão pública em
Alagoas fizeram com que vários atores sociais se aproximassem dessas comunidades com a
finalidade de conhecer, mobilizar e estimular o empoderamento dos moradores para
estabelecerem parcerias internas e externas para que fossem implementadas as políticas
públicas necessárias para efetivação dos direitos sociais conquistados constitucionalmente:
Vários movimentos viram a situação da gente e começou a se agregar com a gente, a
fazer oficina, ajudar a gente correr atrás dos direitos. Então começaram a mostrar
que a gente tinha que ir no ministério público, que a gente tinha a defensoria pública
e que a gente não tinha que procurar só a imprensa. (RC)
Nesse período se organizou, em nível estadual, um fórum público para discutir a
questão do trabalho infantil e definir estratégias para a resolução de problemas junto ao poder
público. Contava com a participação de representantes de diversos segmentos da sociedade
civil e do próprio Estado, contribuindo, assim, para fortalecer as iniciativas que buscavam
viabilizar a efetivação dos direitos sociais. Assim,
Surgiu com a iniciativa do fórum pra se discutir o trabalho infantil, pra se discutir a
situação das crianças do lixo [...] aí surgiu nesse período, outras favelas como a
Sururu de Capote. Era um fórum ativo, dinâmico, com participação muito boa, a
147
gente trabalhou muito. [...] E o poder público não fazia nada. (RSCO)
Essa movimentação em torno da resolução dos problemas sociais, em nível local,
regional e nacional, motivou entidades de cunho internacional e nacional, em parceria com
entidades locais, para desenvolverem ações junto às comunidades da orla lagunar.
Foram 20 mães [...] que tinham os filhos acorrentados, [...] chegou a FIAN Brasil, a
ABRANDH, chegou o pessoal da Pastoral da Terra, [...] que apoiou a nossa
comunidade, chegou à universidade também, a UFAL, [...] chegou pessoas dos
direitos humanos, [...] que viu a situação da gente, se mobilizou, chegou a RECID,
chegou a Cáritas, chegou a Pastoral da Criança. (RC)
Apesar da aglutinação desses diversos atores sociais, as negociações não avançaram;
o poder público municipal e o estadual não atendeu às demandas, o que desencadeou num
processo de judicialização.
A Ação veio quando nós sentimos que o Estado, o Município, aliás, não estava
comprometido, não estava fazendo os atendimentos da forma como deveria. Falta de
compromisso mesmo! Afinal, vontade política faltou aqui em Maceió. (RPJ)
[...] quando a gente viu que não tinha mais para onde ir, que chegou a um acordo em
tudo que tinha que fazer, o governador disse: Não assino. Bom, então não dá pra dar
ré, não dá pra não dar uma resposta à comunidade, vamos entrar com uma Ação.
(RPJ)
Em 2007, o Ministério Público Estadual e a Procuradoria do Trabalho em Alagoas,
interpuseram uma Ação Civil Pública na 28ª Vara Cível Infância e da Juventude da Capital,
com base em tratados de direitos humanos e normas nacionais, particularmente no Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), cujo deferimento determinou que a prefeitura de Maceió
implementasse ações para realização dos direitos das crianças e adolescentes dessas
comunidades através da elaboração e execução de políticas públicas.
No entanto, o poder executivo considerou a decisão judicial inadequada por
responsabilizar apenas o poder municipal, argumentando que a maioria dos serviços públicos
disponibilizados aos moradores da orla lagunar são vinculados ao governo estadual e que
funcionam insastisfatoriamante.
O estado fez um conjunto lá, tem um CAIC que é do estado, tem a rede de educação
que é do estado. E os aparelho do estado, eles nunca funcionaram a contento para a
comunidade e ficou durante muito tempo só a cobrança na prefeitura. (RPE)
Esse representante considera a Ação Civil Pública apenas uma formalidade, embora
afirme que o município cumpriu todas as determinações da sentença através da realização de
políticas públicas de educação, saúde e assistência social. Ele defende que o processo de
148
judicialização seja finalizado para que os recursos financeiros sejam desbloqueados e deixe de
prejudicar a gestão do município, além de alegar que muitas famílias beneficiadas pela Ação
saíram da comunidade:
Desde a construção de um PETI, a instalação de uma escola, a instalação de uma
creche, posto de saúde, retirada de documentação, inserção dessas famílias no
mercado de trabalho. [...] A Ação, ela é meramente formal. A ação tá cumprida, os
dez pontos da ação, o município atendeu. (RPE)
O que a gente tem defendido é que é necessário deixar de judicializar essa questão,
porque tem recursos do município bloqueados por conta disso.
Em relação à intersetorialidade, os depoimentos indicam que esse processo de
judicialização contribuiu para que as secretarias trabalhassem conjuntamente na gestão
municipal. Em relação a parcerias com a esfera estadual, verificou-se certa contradição,
quando se propõe o fim da judicialização e o estabelecimento de parcerias entre os níveis de
governo para atender as necessidades das comunidades.
[...] Com a Ação, juntou todas as secretarias. Então, a gente percebe que todas as
secretarias terminaram trabalhando em conjunto para aquela comunidade. (RPE)
O Município não conseguiu conversar com o Estado. Não conseguiu avançar nessa
relação de intersetorialidade. [...] A nossa defesa é: acabar essa ação, desbloquear os
recursos da Prefeitura de Maceió, a gente sentar numa mesa de discussão, o estado e
o município e com o governo federal e olhar para a questão da habitação, da saúde,
da educação, da geração de emprego e renda. (RPE)
Para os representantes das entidades da sociedade civil organizada que atuavam junto
à comunidade, a ação judicial foi considerada uma conquista significativa que fortaleceu e
empoderou a comunidade na luta para que os direitos sociais assegurados na sentença fossem
efetivados.
O juiz disse, vai ser assim. Vai ter que pagar se o prefeito não cumprir em tantos
dias. [...] A gente botou os meninos, botou pai, mãe, foi uma festa! Botamos todo
mundo na porta do Tribunal de Justiça, na porta da prefeitura que era pra ver se as
coisas que eram de responsabilidade do município saíam. (RSCO)
Afirmam ainda que a decisão judicial também contribui para que mudasse a visão de
muitos moradores com relação aos seus direitos e às suas expectativas sobre o futuro dos
filhos, passando a acreditar que poderiam ter uma vida melhor.
A gente consegue mudar um pouco a visão deles. [...] No final, aquelas pessoas
idosas indo para alfabetização de jovens e adultos. [...] Essa decisão, ela veio
favorecer muito isso. Eles sabiam quais eram os direitos deles garantidos. Agora,
faltavam esses direitos [...] chegarem na sua totalidade pra eles. (RSCO)
149
Embora esses atores considerem que a decisão fortaleceu o processo de negociação
com o poder público, reconhecem que não houve avanço na realização das determinações.
[...] a gente vive um paradoxo. E a gente não conseguiu avançar. Se você pega o
relatório do projeto você vai ver que tem alguns resultados da assistência social, da
educação, [...] que trás essa complexidade de setores, da saúde, da alimentação,
conseguia-se dialogar, mas não conseguiu avançar nas reparações. (RSCO)
Como ator nesse processo, o Ministério Público (MP) considera a judicialização
insuficiente, devido à estrutura de funcionamento do Poder Judiciário, embora sua maior
contribuição consista no fortalecimento da luta política, por estimular a mobilização e a
participação ativa da comunidade para lutar pela realização dos seus direitos. O MP atribui à
luta política a manutenção da decisão judicial e a visibilidade que a comunidade passou a ter.
Porque, [...] tem inúmeros limites, tanto que você tem, desde 2007, um milhão e
meio bloqueado, e não consegue fazer nada, porque juridicamente, [...] tem
inúmeros limites. A principal e única luta verdadeira, ali, é a política, de participação
de luta da comunidade. (RPJ)
As comunidades ampliaram a sua capacidade de luta, mas a estrutura
socioeconômica e político-cultural de miserabilidade e de exclusão social em que se encontra
a cidade de Maceió e o Estado de Alagoas impedem que as transformações ocorram e que o
processo avance rapidamente.
No caso da comunidade, [...] travam lutas muito mais fortes que outras comunidades
de Maceió. Agora tem uma série de complicadores, num estado miserável, numa
cidade miserável, de exclusão social. E isso, você não resolve. A gente está vivendo
um processo histórico. (RPJ)
Sobre o processo de negociação junto ao poder executivo, um dos representantes do
MP afirma que a hipocrisia e o não cumprimento das obrigações por parte do gestor público
inviabilizaram o prosseguimento das negociações e, consequentemente, a concretização dos
direitos.
O discurso do Prefeito era algo maravilhoso! Eu fui a duas reuniões com ele e
depois me recusei. Não vou nunca mais. Ele era incapaz de dar um não. Agora, era
incapaz de cumprir uma palavra. (RPJ)
Em relação ao direito à saúde, os depoimentos demonstram certa ambiguidade sobre
como ele foi apresentado no processo judicial em si, embora alguns indiquem que vários
aspectos desse direito se encontravam violados, sendo uma das principais reivindicações da
comunidade. Essas violações foram utilizadas na fundamentação da Ação Civil Pública, mas
não foram indicadas entre as determinações na sentença.
150
Quando a gente moveu essa ação diante do poder judiciário, eu não tenho
conhecimento. Foram dez ou mais de 10 itens que a gente exigiu, mas os principais
itens que a gente exigiu pra nossa comunidade foi educação, saúde e a segurança.
(RC)
De acordo com os depoimentos dos representantes das comunidades e dos
representantes da sociedade civil organizada, as condições de vida eram extremamente
precárias e as necessidades de saúde eram gerais:
Porque as condições de vida ali, [...] é de apavorar, porque não é um probleminha,
[...] são todos os problemas, muita coisa. (RSCO)
Também foi informado que faltava acesso à assistência psicológica e de saúde
mental para dar assistência às vitimas do uso de drogas e da prostituição infantil. Nas escolas,
esse tipo de atendimento também é uma necessidade, devido ao clima de tensão e violência
que permeia comunidade.
A gente exigiu a saúde também porque as crianças ficam debilitadas, quando eles se
envolvem muito cedo na prostituição, se envolvem na droga, [...] mentalmente,
também bole no psicológico. [...] Em uma comunidade com essa, [...] deveria ter um
posto médico bem avançado. (RC)
A gente pediu que, pra cada escola que o nossos filhos estudam, tivesse [...] um
psicólogo pra acompanhar nossos filhos. (RC)
Os relatos indicam que as necessidades relacionadas às condições de saúde e aos
serviços públicos essenciais na comunidade eram precários ou inexistentes. Faltava
atendimento às necessidades de atenção básica, pois não se tinha acesso a um Programa de
Saúde da Família próximo da comunidade nem acesso à assistência hospitalar adequada:
Há, não pode. Porque aqui é a unidade de saúde da família. Essa área aqui é fechada
e a gente já tem as famílias cadastradas. (RSCO)
Ela disse, [...] é a SAMU que levou uma senhora e tá trazendo de volta porque não
tem onde enternar. E me levou lá pra dentro. [...] O primeiro barraco que eu entrei, o
barraco só tinha a coberta, você chegava já via tudo por dentro, que eram só as
tirinhas de madeira. A mulher com um barrigão deste tamanho, com os olhos
abertos, a casa fedia tanto no mundo. Aí, eu olhei o fogo apagado, o chão todo
molhado. Aí, ela disse, [...] o neto saiu para pedir esmola e ela fica só. (RSCO)
Além disso, afirmou-se também que a comunidade era discriminada pela sociedade e
pelos prestadores de serviços públicos:
O que eu faço? Aquela mulher que você visitou, morreu. E o IML não quer vim
porque não tá acreditando. [...] Tome o telefone e ligue daí pra o IML, pra ver se
eles vem. (RSCO)
Desse modo, observou-se que essas comunidades eram discriminadas por parte da
151
sociedade e dos órgãos públicos, que as condições de vida eram precárias, pois não tinham
acesso ao trabalho e à renda, à moradia, ao saneamento básico, à alimentação adequada, à
educação, à assistência social e à segurança, ou seja, as necessidades de saúde eram
generalizadas, seja pelos determinantes socias existentes na comunidade, seja pela falta de
acesso aos serviços de atenção básica, de assistência médica e hospitalar.
Em relação à educação, houve resistência por partes de algumas mães, devido às
escolas não serem na comunidade.
A gente tentou também inserir a comunidade na escola, a gente conseguiu vagas
específicas para a comunidade e teve uma resistência muito grande das mães porque
não era na comunidade. Você tem, assim, uma doença familiar muito grande. (RPJ)
O representante da comunidade alega que, em 2010, foi instalada uma creche para
atender crianças de 2 a 5 anos de idade, além de serem disponibilizadas vagas em bairros
próximos da orla lagunar. No entanto, foi assegurado o transporte escolar apenas para as
crianças da creche, permitindo que as crianças que estudassem em escolas próximas da creche
pudessem utilizar o transporte escolar condicionando-se à compatibilidade de horário.
[...] falta transporte para as crianças maiorzinha, porque o ônibus é pra criancinhas
da creche e a creche funciona de 8:00 hs e a escola de 7:00 hs (RC)
Os depoimentos também indicam que, apesar de ter sido garantido o acesso à escola,
a falta de atividades de esporte, cultura e lazer e de capacitação profissional para as crianças e
adolescentes na comunidade contribui para a manutenção do trabalho infantil.
Todo mundo estuda, mas falta atividade para os adolescentes, um esporte, alguma
coisa pra não ficar na rua quando não tão na escola. Os meus irmãos tão aqui com a
minha mãe despinicando sururu, pra não tá solto na rua, mas minha mãe sabe que se
verem eles aqui, ela pode ser presa, mas fazer o que? (RC)
Outra necessidade atendida como reflexo da decisão judicial e da mobilização da
comunidade diz respeito à moradia. O poder público, para atender a essa necessidade,
distribuiu várias famílias em residências localizadas em diferentes comunidades. A primeira
remoção ocorreu em 2009, onde 500 famílias passaram a residir no conjunto habitacional
Cidade Sorriso, construído pelo município e localizado numa região distante do centro da
cidade e da orla lagunar.
Em 2010, foram removidas pelo governo estadual mais 821 famílias da orla lagunar
para a comunidade Santa Maria, também distante do centro e da orla. Outras 240 unidades
habitacionais foram entregues na Vila São Pedro, nas proximidades das antigas residências.
152
Isso para as famílias que viviam de atividades relacionadas à pesca.
Com a remoção das famílias para outras comunidades, inevitavelmente as ações para
atender às determinações da sentença passaram a ser distribuídas para as comunidades
receptoras.
Entretanto, essa ação não atendeu plenamente às demandas da comunidade; a falta de
acompanhamento na remoção das famílias e a não destruição dos barracos permitiu a sua
continuidade na orla lagunar. O que se depreende dos depoimentos é que essa ação deveu-se
ao momento de judicialização, embora não estivesse diretamente nela contemplada.
Veio toda a equipe da prefeitura, da secretaria de planejamento, da habitação do
município. Eles fizeram um trabalho de preparação quando [...] houve muita
pressão. Uma coisa que foi cumprida por parte, que eu não sei quanto eram, mais ou
menos, as casas. [...] Eu só sei que o restante daquele pessoal ficou lá. (RSCO)
Identificou-se também que a manutenção dos barracos propiciou o distanciamento
entre seus moradores e os das famílias que passaram a morar nos apartamentos, do outro lado
da avenida, contribuindo para desmobilizar os moradores e as lideranças comunitárias.
Eu fui a umas reuniões que [...] me mandava, mas não vou mais, porque a gente fica
visado pelo povo que continua do outro lado, porque a gente ganhou nosso
apartamento. (RC)
No entanto, identificou-se que as famílias que tiveram acesso à moradia, melhoram a
sua condição de vida e saúde.
Encontro uma vez ou outra com os meninos todos já gordinhos, que conseguiram
morar nos apartamentos. Que já estavam trabalhando num emprego doméstico. Para
algumas pessoas houve uma melhoria de vida. (RSCO)
Já em relação à saúde, os depoimentos indicam que essa demanda não foi atendida e
que a decisão judicial não alterou as condições de acesso e de atendimento dos serviços de
saúde disponíveis às comunidades da orla lagunar, inclusive para as famílias da Vila São
Pedro.
A saúde, não aconteceu nada, nada. A Ação na saúde, nem municipal e nem
estadual, nada. (RSCO)
Pra a gente conseguir uma consulta pra mim ou pro meu filho a gente tem que
dormir no posto do Dique Estrada. (RC)
Segundo os depoimentos, a Secretaria Municipal de Saúde se esquivou de participar
das negociações para implementação das ações a serem desenvolvidas para atender às
153
necessidades de saúde da comunidade, pois...
a Secretaria Municipal de Saúde foi a que menos se posicionou, não teve reunião,
não respondia aos nossos chamados de estratégias e de políticas de saúde. [...]. A
gente teve pouca interlocução e não foi por motivo da gente não tentar, ou melhor,
assim, a gente não ter acionado. (RSCO)
Na fala dos atores sociais da sociedade civil, pode-se perceber que, nas comunidades
da orla lagunar, a decisão judicial foi ineficaz em relação ao trabalho infantil e na atenção à
saúde. Em relação à educação, moradia e assistência social as determinações foram atendidas
de modo parcial.
No conjunto habitacional Cidade Sorriso, os moradores reconhecem a importância de
terem tido acesso à moradia, mas afirmam que não têm acesso a trabalho, tendo como renda o
recurso do Programa Bolsa Família, o que afeta as relações familiares.
Bem, eu te falo e repito, a doença maior de nossa comunidade é miséria, não é nem a
miséria do alimento. [...] Uma estrutura digna. Não importa essas casinhas de tijolos
se a gente não tem emprego, a gente não tem um curso pra tirar renda pra ajudar
nossos filhos. (RC)
Em relação ao provimento do direito à educação, os moradores informam que nem
todas as crianças tiveram acesso à escola, à creche e a atividades de esporte, cultura e lazer.
[...] até hoje, ainda temos crianças fora da escola. Nem todas as crianças
conseguiram ser matriculadas, porque o conjunto aumentou. (RC)
Porque a partir do momento que a comunidade tem uma educação, tem cultura, tem
trabalho social, eu acho que a demanda de ter roubo, de ter tráfico vai ser muito
pequena. (RC)
Em relação ao atendimento das necessidades de saúde, afirma-se que as famílias têm
acesso à unidade básica de saúde e que está sendo instalada uma equipe do PSF, mas
consideram o atendimento precário e insuficiente.
Era unidade mista, atendia várias pessoas da comunidade, não atendia
especificamente só Sorriso I. Quando a gente ia pegar uma ficha lá, tinha que
dormir. (RC)
No entanto, o poder executivo alega que a comunidade foi dotada de toda
infraestrutura e serviços públicos para atender às famílias beneficiadas pela judicialização.
Então, todos os secretários relacionados a essa ação estavam lá e a informação que
nos foi passada é que na Cidade Sorriso, que é um projeto novo, já foi feito com
toda infraestrutura, já foi feito com colégio, centro de saúde, inclusive da questão da
segurança, que tem um centro de referência da guarda municipal junto com a PM,
foi feito toda essa infraestrutura. (RPE)
154
Pode-se perceber que os relatos dos moradores dessa comunidade também se
contrapõem aos dos representantes do poder executivo, pois afirmam que pouco se avançou
na implementação de políticas públicas para realização dos direitos indicados na determinação
da sentença, além do acesso à moradia.
Na comunidade Santa Maria, os relatos indicam que foi instalado, e se encontra em
funcionamento, um posto de segurança. Uma escola foi construída, mas ainda não se encontra
em funcionamento. Também estão sendo construídos um posto de saúde e a sede da
associação de moradores.
Aqui saúde tá precária, educação tá precária, a única coisa que tem no momento, é a
segurança. A gente já tem aqui dentro. (RC)
Tem um colégio, bem dizer, já devia tá funcionando dentro da área, que é
principalmente pras crianças que veio da orla lagunar. [...] E o colégio tá aí e não
funciona. (RC)
O posto de saúde que tá sendo construído, é lindo! Não vi ainda na cidade um posto
bacana desse. Também tá em construção a sede da associação, enorme! (RC)
Em relação ao atendimento ao direito à educação, essa comunidade afirma que o
atendimento encontra-se precário porque as escolas que atendem a crianças e adolescentes
localizam-se fora da comunidade, dificultando o acesso e expondo os estudantes a riscos de
acidente. Além disso faltam vagas.
[...] Tem criança matriculadas em colégios fora da comunidade e tem crianças que
não tão estudando. Eu chego na casa da mãe, porque essa criança não tá estudando?
Não tem vaga. O outro é longe demais. (RC)
Quanto às necessidades de saúde, é dito que a comunidade tem encontrado
dificuldade de atendimento na unidade de saúde do bairro.
[...] já tá com um ano que eu fui ao médico e marquei quatro exames e até agora não
consegui. [...] E a reclamação é muita. (RC)
Apesar de todo esse contexto, a questão do acesso à moradia foi indicada como uma
conquista importante para a comunidade.
Pra mim, o que mudou foi a gente sair de um lugar precário, que era a orla lagunar, a
gente simples pra uma casinha simples, mas uma moradia digna. (RC)
Evidenciou-se nos relatos dos moradores que as políticas públicas desenvolvidas não
estão vinculadas a uma decisão judicial, mas a uma iniciativa do governo estadual.
Foi um planejamento lá de dentro, que saiu de lá de dentro da SEINFRA pra
155
comunidade da favela. (RC)
Também ficou evidente que a prefeitura não vincula a comunidade Santa Maria à
Ação Civil Pública, indicando que a construção do conjunto resulta de um acordo entre o
governo estadual e o municipal, com o intuito de desocupar e reestruturar a orla lagunar.
No caso da Cidade Sorriso, sim. As outras comunidades não são objetos da Ação.
[...] Com relação à Ação em si, o pessoal que foi removido para Cidade Sorriso, foi
exatamente esse acordo entre Estado e Município, a retirada e a liberação da orla.
(RPE)
Essa comunidade está sendo dotada de uma estrutura de moradia e de serviços de
educação, saúde, assistência social e segurança mais qualificada que as outras que foram
beneficiadas pela Ação. No entanto, o governo estadual, municipal e a própria comunidade
não vincula essas ações que estão sendo implementadas à decisão judicial.
Exigibilidade de direitos: limites e possibilidades para efetivação do direito à saúde
Pode-se observar, nessa descrição desse caso de exigibilidade de direitos, que o
poder municipal, ao responsabilizar as mães pelo trabalho infantil e exploração sexual, agiu
como se os direitos sociais os quais dizia estar protegendo fossem indissociáveis dos direitos
políticos que estava deixando de garantir, reforçando uma configuração distorcida dos direitos
sociais, constituindo, assim, um lugar em que a igualdade prometida pela lei reproduz e
legitima as desigualdades, reproduzindo uma cidadania restrita, onde os direitos sociais são
dissociados dos direitos políticos (TELLES, 1999).
Desse modo, o Estado naturaliza a exclusão social, responsabilizando os próprios
indivíduos por se encontrarem na pobreza e na miséria, eximindo-se de sua responsabilidade
histórica de descumprimento de suas obrigações no provimento dos direitos assegurados,
apesar de ser o principal regulador das relações sociais, contribuindo para a conjuntura
neoliberal. Além disso, insiste em reconfigurar as conquistas sociais para manter velhas
dinâmicas de gerir a coisa pública.
Nessas comunidades constituiu-se uma subclasse de pessoas que passam a viver em
espaços socialmente isolados, vítimas do desemprego, detentoras de baixa escolaridade e
qualificação profissional, com tendência a cair na atividade criminal, formando uma
sociedade civil incivil habitada pelos totalmente excluídos (SANTOS, 2003).
Por outro lado, essas comunidades atraíram vários atores sociais que se articularam,
156
formando uma rede social de informação e mobilização, constituindo um mecanismo de
pressão para a defesa dos direitos humanos, de uma vida digna e da democracia, contra a
desigualdade e a discriminação. Isso fortaleceu a sociedade civil para transformar a sociedade
política e garantir os direitos assegurados constitucionalmente (SCHERER-WARREN, 1993).
A análise desse caso de exigibilidade evidencia que um processo dessa natureza se
constitui numa movimentação que permite reinventar a política a partir da participação de
diferentes atores, desencadeando um processo de negociação para garantir a efetivação dos
direitos sociais, buscando alternativas efetivas, inovadoras e inusitadas de ação política e
intervenção pública.
De certo modo, a judicialização coletiva para correção da violação dos direitos
sociais inovou na forma de abordar as questões sociais, tendo em vista a indissolubilidade e a
interdependência que lhes são inerentes. Nesse sentido, tornou-se um dispositivo mais
integralizador, pois evocou a intersetorialidade como elemento fundamental no planejamento,
execução e controle da prestação de serviços, com a finalidade de garantir o acesso
positivamente desigual aos desiguais, num universo o mais totalizador possível do conjunto
da população (BARCELOS; VASCONCELLOS; COHEN, 2010).
Nesse sentido, a decisão judicial em análise concebeu a saúde como um direito
humano fundamental, cuja promoção pressupõe outros requisitos básicos, que exige a ação
conjunta de outros setores sociais e econômicos e dos governos mediante a realização de
medidas que promovam a efetivação dos direitos sociais.
No entanto, apesar do direito à saúde ter sido identificado como um direito violado
na fundamentação da Ação Civil Pública, ele não foi prescrito diretamente na sentença. Isso
fez com que a prefeitura e a própria secretaria municipal de saúde não se sentisse compelida a
atuar diretamente no atendimento das determinações, prevalecendo a visão setorial e
fragmentada na formulação e implementação das políticas públicas providas pelo Estado à
população. Esse comportamento do poder executivo se alinha ao projeto hegemônico de
desconstrução de direitos sociais e de avanço do neoliberalismo que “tem como premissa
concepções individualistas e fragmentadoras da realidade, em contraposição às concepções
coletivas e universais do projeto contra-hegemônico” (BRAVO, 2006, p.15).
Essa conduta do município desrespeita o que prescrevem os princípios e as normas
que fundamentam o direito à saúde, pois os direitos relativos à educação, alimentação e
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nutrição, à liberdade de associação, a igualdade, a participação e a não discriminação são
elementos integrantes e indivisíveis da realização do mais alto nível possível de saúde da
população (TARANTOLA et al., 2008).
Do mesmo modo, a prefeitura se distancia da concepção de saúde quando desenvolve
ações no campo da assistência médica nas comunidades de forma pontual, desarticulada das
demais ações, como moradia e educação, sem planejamento intersetorial e sem estabelecer um
canal de diálogo e de participação dos sujeitos de direitos nas decisões.
A análise da percepção do poder executivo municipal nesse processo de exigibilidade
evidenciou a forma como o poder político se comporta diante do seu dever de garantir os
direitos e de como formula e implementa as políticas públicas para sua concretização.
Surpreende o modo como os governantes lidam com a precariedade dos serviços públicos dos
quais dependem a qualidade de vida da maioria da população. Isso deixa claro que as
consequências adversas do desenvolvimento econômico não são explicações suficientes para
a manutenção do caráter predatório predominante na sociedade brasileira, na qual o exercício
do poder político e econômico não tem encontrado limites, logo os direitos não são
respeitados, mesmo aqueles consagrados em lei ou corporificados em instituições. Daí a
permanente e tranquila transgressão como parte da cultura política brasileira, porque nela está
ausente o critério de responsabilidade, onde o bem público se confunde com o Estado, com os
interesses daqueles que representa ou com a boa vontade dos governantes (TELLES, 1999).
Desse contexto, depreende-se que é importante haver mecanismos institucionais que
visem promover a responsabilização legal, política e social, estabelecendo, de fato, a
prestação de contas como um dever a ser cumprido pelos governantes e demais atores sociais
envolvidos.
Nesse sentido, a atuação do MP no processo demonstrou a importância do
fortalecimento dos mecanismos de controle do poder estatal e a capacidade institucional de
interlocução, possibilitando a interação entre os principais atores que compõem o processo de
formulação, gestão e fiscalização das políticas públicas, correspondendo à sua atribuição e
posição de destaque na defesa e efetivação dos direitos sociais (ASENSI, 2010).
Os limites na estrutura jurídico-institucional, nos quais esbarrou a atuação do MP
para garantir o cumprimento da decisão judicial por parte do Poder Executivo, demonstram
que o êxito da luta política pela democratização da esfera estatal deve ser articulada à luta
158
pela democratização da sociedade civil por meio da garantia do exercício pleno da cidadania,
para que de fato se garanta a reconstrução da esfera pública e se avance na construção de um
sistema democrático de caráter emancipatório (SANTOS, 2003).
Nesse sentido, a decisão judicial fortaleceu a luta política dos moradores das
comunidades beneficiadas e a parceria com as entidades organizadas. Por terem formalmente
reconhecidas as suas demandas e ampliada a possibilidade de ter seus direitos efetivados,
passaram a se mobilizar para cobrar do Poder Judiciário a sua manutenção e do município o
seu cumprimento.
No entanto, verificou-se que a participação da comunidade ficou restrita a algumas
mobilizações à porta do Tribunal e da Prefeitura, ao pronunciamento nas poucas audiências
públicas coordenadas pelo Ministério Público e em reuniões nas quais os representantes do
poder executivo apresentavam as ações e os serviços que seriam desenvolvidos e
disponibilizados nas comunidades.
Isso foi evidenciado nos depoimentos dos atores sociais sobre esse processo judicial,
demonstrando que as esferas públicas do Estado não dispõem de mecanismos que funcionem
como canais de interlocução permanente entre a sociedade civil e o Estado, um fator limitante
da participação ativa dos moradores nas decisões relacionadas às políticas públicas que seriam
implantadas para garantia de seus direitos.
Desse modo, é preciso que os governos garantam o direito de todos os membros da
sociedade de participar ativamente dos assuntos da comunidade em que vivem, garantindo a
sua participação na adoção de políticas em todos os níveis da administração pública, visto
que, como geralmente as políticas públicas são formuladas e controladas pelo Estado, elas
também se inserem no âmbito de suas obrigações de respeitar, proteger e realizar os direitos
humanos, incluindo o direito de participar nos assuntos públicos, a igualdade, a não
discriminação e a dignidade (TARANTOLA et al., 2008).
Considerações finais
A análise do processo de exigibilidades de direitos da orla lagunar de Maceió nos
mostrou que, apesar dos limites que dificultaram a efetivação dos direitos assegurados,
inclusive à saúde, a atuação conjunta dos diferentes atores sociais da sociedade civil e do
próprio Estado podem se articular em defesa dos direitos sociais para que avancem na
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conquista da cidadania, no redimensionamento da cultura política dos agentes públicos e na
realização do direito a uma vida digna.
Embora a maioria das determinações da sentença não tenham sido cumpridas, o
processo de exigibilidade permitiu que o poder executivo fosse responsabilizado e prestasse
contas de suas obrigações em relação ao provimento dos direitos daquelas comunidades,
ficando claro que as ações desenvolvidas, apesar de insuficientes e inadequadas, não teriam
sido realizadas se a decisão judicial não existisse.
Também como atores socias, os moradores dessas comunidades, além de terem
acesso a alguns bens e serviços públicos, foram reconhecidos e se reconheceram como
sujeitos de direitos e ampliaram suas perspectivas referentes à luta por uma vida digna e um
futuro melhor para os seus filhos.
Nesse processo também se percebeu que as instâncias jurídicas envolvidas
enfrentaram o desafio de utilizar os mecanismos jurídicos disponíveis para garantir a
realização dos direitos assegurados, bem como reconhecer os limites a serem superados para
que avancem no cumprimento de suas prerrogativas institucionais.
Também se demonstrou que se deve fortalecer e ampliar os mecanismos de
identificação e de acompanhamento para que as ações governamentais e as políticas públicas
sejam monitoradas e possam ser visualizadas em seu desenvolvimento e direcionamento, o
que garante a transparência e o acesso às informações que permitem a sociedade civil atuar
junto ao Estado e exerça o seu papel de acompanhar, propor e fiscalizar os bens públicos,
impelindo assim, os agentes públicos a cumprirem com o seu dever de proteger e prover os
diretos assegurados a todos os cidadãos.
Já no tocante ao direito à saúde, evidenciou-se o quanto, na prática, estar-se distante
a sua efetivação, considerando os princípios e normas dos direitos humanos em relação à
igualdade, não discriminação, empoderamento e participação ativa dos titulares de direitos.
Também se identificou que o direito à saúde não foi assegurado segundo preconizam os
organismos e as normas da saúde em relação ao atendimento das necessidades de saúde e a
intersetorialidade das ações como uma das condições necessárias para garantia de que todos
possam alcançar o mais alto nível possível de bem-estar social, físico e mental.
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