letícia maria passos corrêa
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASFaculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em EducaçãoMestrado em Educação
Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense: uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008
Letícia Maria Passos Corrêa
Pelotas, 2012
Letícia Maria Passos Corrêa
ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE:uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.Orientadora: Profª.Drª. Neiva Afonso Oliveira
Pelotas, 2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:
Banca examinadora:
Profª Drª. Neiva Afonso Oliveira (UFPel) – Orientadora
Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino (USP)
Profª Drª. Giana Lange do Amaral (UFPel)
Prof. Dr. Robinson dos Santos (UFPel)
Para as pessoas que dão sentido à minha vida:Kauã, filho imensamente amado;
Jesuz, companheiro de todas as horas;Gracia, querida e amiga mãe;
Marli, tia do meu coração;Ari, pai sempre lembrado.
AGRADECIMENTOS
Há momentos na vida em que não é possível agir de forma onipotente e solitária.
Precisamos da ajuda de outros seres, pessoas que auxiliam, contribuem, enriquecem e possibilitam
nosso crescimento e o percurso da caminhada a que nos propomos. Assim foi para mim nesses últimos
dois anos. Uma pesquisa acadêmica não é escrita de forma isolada do mundo. Nos bastidores dela,
recebemos auxílios que são determinantes e fundamentais para que possamos chegar ao objetivo final.
Desta forma, recebi ajuda de muitas pessoas que se prontificaram a facilitar minha caminhada e
possibilitaram que eu pudesse hoje escrever estas linhas.
Agradeço primeiramente à Profª Drª Neiva Afonso Oliveira, minha querida orientadora.
Agradeço por ter acreditado no potencial da pesquisa, pela confiança em mim depositada, pelas
leituras atentas, pela prontidão em seus auxílios, pela sabedoria e contribuições valiosas. Sou grata
também pela amizade, compreensão e carinho no tempo em que convivemos juntas.
Aos professores que compuseram a banca examinadora, Prof. Dr. Antônio Joaquim
Severino, Profª Drª Giana Amaral e Prof. Dr. Robinson dos Santos, muito obrigada por terem aceito
nosso convite. Obrigada pelas sugestões e avaliações realizadas, pelas leituras rigorosas e pelas
contribuições pertinentes.
Ao Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira, um agradecimento especial pelos diálogos, pelos
sábios conselhos e por seu envolvimento e colaboração com esta pesquisa. Agradeço ainda às
contribuições dos professores doutores Gomercindo Ghiggi e Magda Damiani em suas aulas.
Aos professores entrevistados, sujeitos desta pesquisa, muito obrigada! A participação de
cada um foi fundamental e sem vocês esta pesquisa seria totalmente inviável. Meus sinceros
agradecimentos pela maneira como fui recebida, pelas conversas, pela vontade de contribuir para este
estudo e por terem aceitado meu convite e acreditado na seriedade desta dissertação.
À direção do Colégio Municipal Pelotense, por ter autorizado a pesquisa. Aos
coordenadores do Museu do Colégio Municipal Pelotense, Professores Luís Cláudio e Profª Marisa,
pelo auxílio na etapa de coleta de dados.
Aos colegas da disciplina “Seminário de Dissertação e Tese”, pelas discussões e pela
oportunidade de trocarmos experiências, estímulos e ajuda mútua.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação e da Faculdade de
Educação.
À CAPES, pela bolsa de estudos que tornou viável a execução deste trabalho.
E, por último, meu principal agradecimento à minha família que me deu a base para que
eu chegasse até aqui. Agradeço à minha mãe, Gracia Maria, pela educação que me foi dada, pela vida,
por tudo o que sempre fez e faz por mim e pelos cuidados com meu filho quando eu me ausentava
para assistir às aulas do mestrado. Agradeço ao meu pai, Ari Carlos (in memorian), que mesmo
ausente se fez presente em minhas memórias e sua lembrança me estimulou para a conclusão desta
caminhada. Agradeço à minha tia, Marli Luiza, pelo incentivo, pelos estímulos, pelas conversas e pela
compreensão. Agradeço ao meu irmão Marcelo e minha cunhada Michelle pela amizade e pelos
suportes nas viagens a Porto Alegre. Agradeço ao Jesuz, meu amado marido e companheiro, pelo
apoio e por acreditar em mim e nunca ter duvidado que este momento seria possível. Finalmente, meu
agradecimento à compreensão de meu filhinho Kauã, que apesar de pequenino, valorizou meu trabalho
e soube o quanto este era um sonho para mim. Enfim, mais do que agradecer, peço-lhes desculpas pela
minha ausência e pelas horas que dediquei ao estudo e deixei de dedicar a eles, pessoas da minha vida.
E agradeço, enfim, a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, de alguma forma,
para a execução desta pesquisa.
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“É inegável que todo grupo social que esquece o seu passado, que apaga sua memória, acaba por perder sua identidade, tornando-se uma presa fácil das artimanhas das relações de poder. Certamente a compreensão do presente é incompleta sem a inserção do passado, da experiência vivida e consolidada. Portanto, o presente acaba perdendo o sentido se não se tem, na consciência histórica, um instrumento para a construção do futuro.”
(Amaral, 2002, p. 21)
RESUMO
CORRÊA, Letícia Maria Passos. Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense: uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008. 2012. 340f. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS.
Este estudo apresenta o Ensino de Filosofia desenvolvido no Colégio Municipal
Pelotense, desde 1960 até 2008. Nele, se analisa qualitativamente, através de
análise documental e entrevistas, como foram os processos de ensino da disciplina
de Filosofia na instituição, bem como o histórico percorrido pela mesma. O texto é
dividido em duas partes. Na primeira parte, são apresentadas as delimitações e
delineamentos da dissertação, através de um memorial descritivo de minha trajetória
profissional, a revisão de literatura dos assuntos abordados e os procedimentos
metodológicos e teóricos utilizados para a concretização da pesquisa. São
abordados aspectos acerca da categoria criticidade e a relevância da perspectiva
histórico-crítica para o Ensino de Filosofia. Na segunda parte do trabalho, é
desenvolvida a pesquisa através dos dados coletados no Colégio Municipal
Pelotense e em entrevistas com professores da instituição. No primeiro capítulo, é
abordado o Ensino de Filosofia no CMP de 1960 a 1964, ano do Golpe Militar.
Posteriormente, é apresentado o período de 1964 a 1972. O terceiro capítulo segue
a delimitação cronológica de 1972 a 1985, ano da redemocratização do Brasil. O
capítulo seguinte, que apresenta os anos de 1985 a 2000, trata da reinserção da
Filosofia no Colégio Pelotense. O último capítulo apresenta o Ensino de Filosofia no
CMP no período de 2000 a 2008, ano em que ocorreu a obrigatoriedade do Ensino
de Filosofia e Sociologia nas escolas de Ensino Médio. A pesquisa intenciona
perceber o papel do Ensino de Filosofia desenvolvido na instituição e seu potencial
formador de consciências críticas e conclui que o Colégio Municipal Pelotense foi
inovador em relação ao ensino da disciplina.
Palavras-chave: Ensino de Filosofia, Colégio Municipal Pelotense, Criticidade.
ABSTRACT
CORRÊA, Letícia Maria Passos. Philosophy Teaching in Pelotense High School: a historical and critical analysis of the Philosophy discipline from 1960 to 2008.
2012. 340p. Master’ s Thesis – Education Post-Graduation Program. Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, RS.
This paper describes the teaching of Philosophy from the 1960's to 2008 at
Pelotense High School. The study makes a qualitative analysis of Philosophy
teaching processes at this institution by means of documentation research and
interviews. The text has been divided into two parts. The first one deals with the
boundaries and outlines of the thesis by describing my professional path, and
includes a literature review of the issues in question as well as the methodological
and theoretical procedures used to implement the research. Aspects referring to
criticality and the historical-critical outlook in the teaching of Philosophy are
mentioned. In the second part of the study, data collected both at Pelotense High
School and interviews with the teaching staff are researched. The first chapter
addresses the teaching of Philosophy at Pelotense High School from 1960 to the
year of the military coup d’état in Brazil in 1964. Following, the 1964 – 1972 period is
discussed. The third chapter extends from 1972 to 1985, the year of Brazilian
redemocratization. The chapter that follows includes the 1985 – 2000 period and
focuses on the Philosophy teaching reintegration into the school curriculum. The last
chapter presents the teaching of philosophy at Pelotense High School between 2000
and 2008, on which occasion the teaching of Philosophy and Sociology at secondary
school level became compulsory. This research aimed to understand the role of
Philosophy teaching at the institution and its potential for shaping critical awareness,
and concluded that Pelotense High School has been innovative in the teaching of this
Course.
KEY-WORDS: Teaching of Philosophy, Pelotense High School, Criticality
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................12PARTE I – DELINEAMENTOS DA PESQUISA...................18PARTE II – ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE DE 1960 A 2008.......................60CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................133REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................141APÊNDICES ..............................................................148ANEXOS...................................................................276
INTRODUÇÃO
O presente texto apresenta uma pesquisa que investiga o histórico do
Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense (Rio Grande do Sul) de 1960 até
o ano de 2008. A dissertação apresentada integra o trabalho desenvolvido no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, em
nível de Mestrado. O estudo nasce de um profundo sentimento, engajamento e
vontade de saber mais, conhecer, ampliar e desenvolver a temática sobre o Ensino
de Filosofia.
Ao pensar em como se poderia desenvolver processos de aprendizagem
em Filosofia ou em como deveria ser esse ensino, surge o sentimento de querer
conhecer e saber mais sobre o que já foi realizado e desenvolvido aqui nessa
região, especialmente na cidade de Pelotas. Pesquisar sobre acontecimentos
ocorridos no passado, certamente, poderá contribuir para que se possa aprender,
retomar, criticar e discutir o atual Ensino de Filosofia.
Ao refletirmos sobre história, é possível pensar erroneamente em fatos
distantes e acontecidos em um passado longínquo. No entanto, se houver uma
reflexão sobre determinados acontecimentos, facilmente percebe-se a importância
dos mesmos e suas influências sobre nosso contexto atual. Pesquiso, então, sobre
como se deram os processos históricos de Ensino de Filosofia em Pelotas, através
de estudo de caso, o caso do CMP, que contribuiu significativamente para a história
da educação pelotense. Investigo quais categorias filosóficas influenciaram este
ensino, traçando uma linha do tempo (apresentada abaixo para melhor visualização)
onde poderá ser mostrada a importância dos estudos de filosofia e suas influências
desde o início da década de 1960, a partir da Lei de Diretrizes e Bases de 1961,
passando em 1964 pela Ditadura Militar1, pela implementação da Lei de Diretrizes e
1 A Ditadura Militar se caracteriza por uma forma de governo em que o país é liderado por militares. Representou no Brasil um período antidemocrático, em que não se tinha liberdade, nem para escolher nossos representantes, tampouco para expressão de pensamentos e ideias que fossem
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Bases de 1971, pela extinção de disciplina Filosofia no CMP em 1972, pela
restituição do Regime Democrático em 1985, pelo retorno da Filosofia como
disciplina curricular em 1989, pela instauração da Lei de Diretrizes e Bases vigente
até os dias de hoje, promulgada em 1996, até a chegada ao contexto atual, quando
poderá ser traçado um paralelo entre a Filosofia e sua importância para a História da
Educação de Pelotas.
Figura 1 – Linha do tempo – Ensino de Filosofia no CMP
A educação, devido às exigências da contemporaneidade, passa por um
período de desafios. Formar adultos críticos, éticos, lógicos e comprometidos com o
coletivo perante o contexto caótico em que se encontra a sociedade brasileira, soa
quase como utópico. É neste meio que a Filosofia reaparece e vem ganhando cada
vez mais espaço nos currículos escolares. Diante de um momento de crise, onde
não se tem mais modelos educacionais a serem seguidos e os valores humanitários
também se perderam, a Filosofia atualmente é lembrada como algo que, mesmo
longe de se comprometer a solucionar todos os problemas universais, ainda se
apresenta, devido a sua capacidade reflexiva e de formulação de conceitos, como
contrárias às propostas pelos dirigentes do país. Esse período aconteceu na História do Brasil a partir do Golpe Militar de 1964 e se estendeu até 1985, quando iniciou-se, a partir da sociedade civil organizada, um processo de mobilização com vistas à instauração da Democracia no país.
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uma esperança no que concerne à formação de sujeitos mais éticos, conscientes e
indagadores.
Ao mesmo tempo em que hoje se fala muito em um retorno da Filosofia
justamente pelas circunstâncias deste momento de crise, em outros momentos, o
mesmo não aconteceu. A partir da implementação da Ditadura Militar no Brasil, a
Filosofia, em outro período de crise, por representar fonte de perigo em uma época
em que o pensar era proibido, foi banida dos currículos escolares. Esse processo de
extinção se deu a partir da dita Reforma de 1971, quando houve uma mudança
significativa na estrutura do ensino brasileiro.
Em decorrência da eliminação da Filosofia dos currículos escolares,
várias gerações a ela não tiveram acesso. No Colégio Municipal Pelotense, de
acordo com documentos arquivados na instituição, a extinção da disciplina de
Filosofia se deu no ano de 1972. Frente a isto, em geral, o conhecimento filosófico
se tornou uma experiência educacional pouco acessível e um conhecimento
elitizado, em termos da educação brasileira. Felizmente, hoje, 25 anos após o fim da
Ditadura Militar, a reinserção da Filosofia no conteúdo programático das escolas
acontece através da Lei nº 11.684/08, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do ensino médio. Entretanto, passados quatro anos da
instauração da lei, o que se percebe na conjuntura das escolas é que ela ainda está
longe de ser efetivada conforme a sua proposta. Algumas escolas não oferecem o
Ensino de Filosofia e Sociologia em todos os anos do Ensino Médio, outras
intercalam Filosofia e Sociologia e muitas não possuem profissionais capacitados
para o ensino dessas disciplinas. Não é rara a contratação de professores de outras
áreas e as ausências de Licenciados em Filosofia e em Sociologia nas salas de
aula. Outro problema ainda é em relação ao que se deve ensinar. Na visão de
professores não capacitados, as aulas de Filosofia podem servir como
oportunidades para discussões sobre atualidades, autoajuda e outros temas que
estão longe de ser filosóficos.
Todavia, para que possamos entender os processos pelos quais o Ensino
de Filosofia passou, certamente se faz importante investigar os contextos históricos
passados, até alcançarmos o momento próximo ao presente quando consideramos
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ser viável identificar e reconstituir/traçar paradigmas com vistas a contribuir para
uma continuidade da prática filosófica.
A pesquisa visa enriquecer e contribuir com três segmentos: Ensino de
Filosofia, História de Pelotas e Memorial do Colégio Municipal Pelotense. Investigo a
memória da História da Educação local e regional através de diversos tipos de
materiais e acervos documentais temáticos (História de Pelotas, do Colégio
Pelotense, etc) e acredito que, através desta reconstrução, torna-se possível
perceber aproximações e distanciamentos em relação a embasamentos
pedagógicos, principalmente o relacionamento muito próximo entre História e
Filosofia da Educação.
Desta forma, é possível perceber que Filosofia e História da Educação
não representam campos isolados e distantes um do outro. Não há Educação que
não necessite de pensamentos, seja na criação de novos conceitos ou na reflexão
crítica de conceitos já existentes, instrumentais de trabalho da Filosofia, seja na
própria prática docente, onde o professor pode assumir o papel de um sujeito que
pensa e avalia sua própria prática
Assim, Educação, Filosofia e História se relacionam justamente por terem
como foco o homem. A Educação, por se preocupar com a formação humana; a
Filosofia, por lidar com a especificidade do homem, que o diferencia dos animais: a
razão; e a História, por registrar os acontecimentos percorridos pela humanidade.
Todas estas áreas têm em comum o pensar sobre o humano e, a partir de diferentes
abordagens, contribuem para suas vidas enquanto formação, pensamento e
trajetória da humanidade. Então, uma dissertação que investiga o histórico do
Ensino de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense lida com as três áreas de
conhecimento, pois pretende conhecer a formação dos estudantes de Filosofia, a
trajetória do ensino na instituição escolhida e intenciona, ainda, filosofar sobre o (os)
método(s) filosófico(s) trabalhado(s) nas salas de aula de Filosofia do educandário
no período proposto.
O trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira parte, mostro os
delineamentos da pesquisa, que guiaram os caminhos metodológicos que percorri
até aqui e que deram origem à dissertação. Apresento uma breve descrição da
minha trajetória profissional e as motivações que me impulsionaram a investigar a
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temática proposta neste trabalho. Na sequência, mostro a Revisão de Literatura
sobre os temas pesquisados. E, em Referencial teórico-metodológico, esclareço o
método utilizado na confecção da pesquisa; elucido o meu entendimento sobre a
categoria criticidade; e explico o referencial teórico escolhido para sustentar a
pesquisa: a Perspectiva Histórico-Crítica.
Por fim, na segunda parte, passo à pesquisa de fato: os dados que
coletei, as análises realizadas e as pesquisas bibliográficas feitas no processo de
síntese. Penso que esses itens integram um texto que apresenta três elementos -
relativos às fontes históricas, à Filosofia da Educação e ao referencial teórico
utilizado – concomitantemente, um se intercalando com o outro, dando origem a um
texto que ora é crítico, ora é histórico, ora é pedagógico, mas que também é, em
alguns momentos, um todo, analisado por suas diversas faces. O primeiro capítulo
fala da situação da disciplina Filosofia no Colégio Municipal Pelotense partindo do
ano de 1960 até o Golpe Militar de 1964. No capítulo seguinte, explico os
acontecimentos relativos ao período de 1964 a 1972. Na continuidade do trabalho, o
terceiro capítulo trata do período de extinção da Filosofia dos currículos escolares,
que se deu entre 1972 a 1985, ano de redemocratização do Brasil. O penúltimo
capítulo apresenta o retorno da Filosofia no Colégio Pelotense, tendo como
delimitação cronológica as datas compreendidas entre 1985 a 2000. Por fim, o
capitulo final apresenta a presença da Filosofia no educandário e os movimentos de
obrigatoriedade da disciplina para as escolas de Ensino Médio, que ocorreu em
2008.
O trabalho aqui apresentado é um estudo de caso e foi desenvolvido
através de pesquisa empírica (a partir de entrevistas com professores da instituição
e fontes impressas arquivadas no Colégio Pelotense) e de pesquisas teóricas sobre
os temas propostos. Através dele, torno a conhecer o ensino desenvolvido em uma
escola local da cidade de Pelotas e avalio as influências de um contexto “macro”, o
referente aos acontecimentos nacionais e mundiais que abalaram o trabalho
realizado no colégio estudado.
Pretendo contribuir com elementos esclarecedores para que os atuais
professores de Filosofia tenham possibilidades de (re)conhecer o histórico do ensino
da sua disciplina e, desta forma, possam entender os processos filosófico-
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educativos, avaliar suas práticas, conhecer diferentes metodologias de diferentes
épocas, para, assim, poderem pensar seus contextos atuais, com olhos de quem
conhece o caminho percorrido até então e, cientes dessa trajetória, consigam ser
capazes de dar continuidade a essa história.
PARTE I – DELINEAMENTOS DA PESQUISA
CAPÍTULO 1. SOBRE A PESQUISA
Este estudo possui como tema principal o histórico do Ensino de Filosofia
no Colégio Municipal Pelotense, de 1960 a 2008.
A partir da coleta de dados realizada através de documentos históricos
arquivados no Colégio Municipal Pelotense e entrevistas realizadas com pessoas
que vivenciaram e praticaram o Ensino de Filosofia na instituição, analiso o percurso
desenvolvido no período proposto através do referencial teórico a partir dos escritos
de Dermeval Saviani, desde os quais extraio as categorias a ser investigadas. A
partir de então, proponho contar a história do ensino no educandário, com o
propósito de observar o papel da criticidade nas diferentes épocas da pesquisa.
Trabalho com a ideia de que a História Brasileira nesse período influenciou
diretamente o Ensino de Filosofia desenvolvido na escola e procuro pesquisar sobre
que influências foram essas, que ensino era esse, e lanço meu olhar para a
categoria criticidade a fim de dar subsídio às análises e sínteses. No decorrer da
análise dos dados, apresento minhas impressões, observações, constatações e
contribuições para que a história do Ensino de Filosofia não se perca e para que
possamos entender as dificuldades encontradas até o momento. Todas essas ações
possuem o propósito de apresentação de argumentos que visam consolidar
novamente o papel importantíssimo da disciplina de Filosofia na Educação Básica.
A questão norteadora que deu impulso à pesquisa foi Qual o enfoque
dado ao Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense, na cidade de Pelotas?.
A partir daí, foram estabelecidos objetivos, tendo como foco geral o de
investigar sobre o Histórico do Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas/ RS, de
1960 até 2008, no Colégio Municipal Pelotense. Como objetivos secundários, mas
não menos importantes, foram determinados os de apresentar a história do Ensino
de Filosofia, a partir do contexto sóciopolítico da História da Educação Brasileira,
através de diversos tipos de materiais e acervos documentais; conhecer quais
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discursos, mídias e linguagens permearam o Ensino de Filosofia desde 1960, anos
que antecederam o Golpe Militar de 1964, passando pela Ditadura Militar, até chegar
ao contexto educacional próximo do atual no ano de 2008, no Colégio Municipal
Pelotense; traçar aproximações e perceber os distanciamentos em relação a
embasamentos pedagógicos utilizados no passado e as ferramentas metodológicas
utilizadas atualmente; e analisar o papel da criticidade no Ensino de Filosofia levado
a termo na instituição.
Visando uma melhor compreensão por parte do leitor, acredito que seja
relevante uma breve apresentação de minha vida e dos motivos que me fizeram
“despertar” para esta temática. Desta forma, creio que seja possível um
entendimento maior acerca dos meus objetivos e acredito que uma avaliação do
leitor em relação à junção do tema com minha pessoa possa acontecer.
1.1 Origem da Pesquisa: um pouco de mim e dos porquês deste estudo
Esta investigação surge imbricada com minha trajetória pessoal,
estudantil e profissional. Como pessoa, não sou um ser isolado, ora estudante, ora
profissional, sou um ser humano completo. Sou uma totalidade dessas coisas, uma
soma das experiências que vivi e daquelas que espero vivenciar. Em meio a isso
tudo, penso ser importante apresentar um pouco de minha história, para que
possam ser entendidas minhas motivações e escolhas nesta pesquisa. Walter
Benjamin (1985, p. 197) diz que “O narrador conta o que ele extrai da experiência – sua
própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que
ouvem sua história”. Compartilho, então, um pouco da minha história.
Nasci e cresci na cidade de Pelotas. Fui uma criança que sempre gostou
muito do ambiente escolar. Ao lembrar de minha infância, tenho presente recordações
de momentos de inquietude em que eu gostava de ficar, por alguns momentos,
embevecida por questionamentos, tais como: Quem sou eu?, Por que estou neste
mundo?, entre outros. Algo semelhante a “Em que hei de pensar? Que sei eu do que
serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!”
(Pessoa, 1998). Hoje, passados os anos, tenho claro em minha mente que nesse
período da minha vida, a Filosofia já começava a “brotar” em mim.
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Cursei o Ensino Médio no Colégio Municipal Pelotense. Lá, descobri o
verdadeiro espírito Gato Pelado2. A identificação com o colégio aliada à proposta de
aprendizagem foram determinantes para o seguimento de minha formação. Entretanto,
apesar da escola já oferecer a disciplina de Filosofia para os terceiros anos dos cursos de
Segundo Grau, fui aluna de outro curso, o de Auxiliar de Escritório, que não oferecia a
disciplina de Filosofia em seu planejamento curricular. Desta forma, apesar de ter sido
estudante do CMP nos anos 1996 e 1997 e da instituição oferecer a disciplina de Filosofia
neste período, no curso por mim cursado, que possuía uma proposta com tendências
tecnicistas, privilegiando disciplinas como Mecanografia, Contabilidade e Técnicas
Comerciais, não tive acesso a ensinamentos filosóficos.
Aos dezoito anos, ingressei no Curso de Psicologia, na Universidade
Católica de Pelotas. A passagem pelo Curso de Psicologia, apesar de rápida, foi
determinante. Das poucas disciplinas que tive a oportunidade de cursar, entre elas fui
agraciada com Sociologia e Antropologia Filosófica. O encantamento nas aulas de
Antropologia Filosófica foi imediato e crescente ao decorrer daquele semestre.
Fascinava-me demais conhecer os pensamentos de determinados filósofos e, com eles
também pensar filosoficamente. Oriunda de um sistema de ensino que não oferecia
disciplinas de Filosofia e Sociologia no seu currículo, eu não havia tido contato prévio
com esses conhecimentos (filosóficos e sociológicos). Dessa forma, começava assim a
me tornar o que sou, parafraseando Nietzsche. Decidi, então, ao fim desse semestre,
que faria vestibular na Universidade Federal de Pelotas para o Curso de Licenciatura
Plena em Filosofia. Desde então, desenvolvi um deslumbramento que crescia
progressivamente a cada disciplina que se iniciava e a cada filósofo que me era
apresentado. Senti, durante alguns dos meus melhores momentos na Universidade,
certo prazer ao pensar em coisas sobre as quais, até aquele momento não havia
cogitado pensar. Tive muitos momentos de profunda admiração por alguns filósofos em
especial que marcaram a minha visão e minhas referências teóricas, tais como: Platão,
2 Referência ao Gato Pelado, mascote e símbolo do Colégio Municipal Pelotense. O termo Gato Pelado era utilizado para identificar os alunos do Colégio Municipal Pelotense, que, em sua fundação se chamava Gymanasio Pelotense, ou seja, suas iniciais G e P, davam origem ao apelido dado. Na época, o colégio disputava, ideologicamente e através de campeonatos esportivos, com outro colégio de excelência em Pelotas, o Ginásio Gonzaga, originando as inicias GG, que davam origem ao apelido de Galinha Gorda, para os estudantes desta instituição. O Gymnasio Pelotense é uma escola pública, onde não se precisa de posses para estudar, originando o termo Gato Pelado, (Pelado no sentido de sem luxos materiais); enquanto o Galinha Gorda se referia a uma escola particular, onde seus alunos no geral eram de origem mais abastadas (Gorda, no sentido de riqueza).
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Santo Agostinho, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Nietzsche, entre outros. Aos
poucos, tornava-se claro também que, apesar de amar a Filosofia, não pretendia ser
uma filósofa, ou seja, alguém interessada especificamente em pesquisa filosófica e, sim,
fazer jus ao título que me seria concedido ao final daquela jornada, o de Licenciada em
Filosofia. Minha identidade está relacionada com a figura docente, com a propagação
dos saberes filosóficos para que outras pessoas possam ter acesso ao que vem a ser a
Filosofia. Assim, meu foco sempre foi o de como eu me tornaria uma professora de
Filosofia, adquirindo vasto interesse sobre pesquisas e escritos de Ensino de Filosofia e
Filosofia da Educação. Ao concluir o Curso de Graduação em Licenciatura em Filosofia,
estaria assumindo uma posição de futura educadora.
No ano de 2003, prestei concurso público para a Prefeitura Municipal de
Pelotas e tive a felicidade de ser aprovada. Tomei posse no cargo de Oficial
Administrativo, sendo lotada na Secretaria Municipal de Educação e destinada a um
feliz retorno ao colégio tão querido por mim: Colégio Municipal Pelotense.
Em abril de 2007, a Escola Nossa Senhora da Luz, pertencente à
Universidade Católica de Pelotas, lançou um processo seletivo disponibilizando uma
vaga de docente para a disciplina de Filosofia, para trabalhar com crianças. Para
ingressar no cargo, foi solicitado um projeto de ensino a ser trabalhado na escola.
Escrevi o projeto Educar para o pensar: por uma ação imprescindível para a formação
de cidadãos plenos. Tive a alegria de ter meu plano de trabalho escolhido. Comecei,
assim, a desempenhar de maneira efetiva o ofício de professora. Utilizei como
referencial teórico principal o método de Mattew Lipman (1922-2010) e comecei a
ministrar as aulas. Senti nesse período da minha vida inúmeras dificuldades em virtude
da carência de materiais didáticos para o Ensino de Filosofia, da pouca valorização na
cultura educacional da disciplina no currículo escolar, da não-obrigatoriedade do ensino
no currículo do Ensino Fundamental, entre outras.
Acredito que minha história pessoal e profissional experimentadas até aqui
justifiquem a escolha pela dissertação, o tema sobre o qual me propus a pesquisar e a
escrever. Minha proposta surge de inquietações enquanto Professora de Filosofia e
também enquanto aluna, privada de ter tido o Ensino de Filosofia em minha formação
inicial. Indigna-me bastante o fato de não ter tido acesso ao ensino de filosofia, quando
comprovo reflexos que esta ausência causou até os dias de hoje. Provoca muito minha
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curiosidade desejar saber o que os professores de Filosofia ensinavam antes da
ocorrência do Golpe Militar de 1964. Também, a possibilidade de aprender com essas
práticas é algo que motiva bastante. A escolha pelo Colégio deu-se tanto com base em
minha vida pessoal, por ter vivido boa parte dela dentro desse educandário e também
por ser indubitável que o CMP é uma escola que conta com atividades e atitudes de
algumas pessoas que por lá trabalharam que servem de modelo para outras instituições
públicas; como inclusive o fato de ser uma escola municipal que oferece o ensino
secundário, entre outros exemplos que poderiam ser dados. Vejo o CMP desta forma
porque, além de contar com uma bela estrutura física, de ser um colégio de grande
porte, com amplo corpo docente e discente, que conta com duas bibliotecas e com vários
recursos em comparação a outras instituições, conheço o trabalho humano que é
desempenhado por alguns dos profissionais que lá atuam, e que fazem da escola uma
referência na educação pública pelotense.
Conforme nos fala Antônio Joaquim Severino:(…) o homem tem seu ser definido pela sua prática real efetiva. Ele é aquilo que ele se faz, ao fazer as coisas. E, para fazer as coisas, para agir, ele se coloca em relação com a natureza, com os outros homens e com os produtos simbólicos da sua subjetividade.Cada uma dessas dimensões impregna as atividades desenvolvidas nas outras, de tal modo que as atividades desenvolvidas no âmbito da prática produtiva trazem também marcas políticas e simbólicas.Por isso, podemos concluir que o homem é um ser de relações efetivadas mediante uma prática complexa e ao longo de um tempo histórico. É o que se pretende dizer quando se afirma que o homem é um ser histórico-social. (SEVERINO, 1994, p. 108)
O que percebo, então, é que não sou um ser distante e separado do
restante do mundo. Sou a integração das minhas impressões subjetivas, das minhas
inquietações, das minhas relações com os outros e comigo mesma. Sou esse ser
histórico, que é totalmente impregnado pelos acontecimentos sociais, políticos e
culturais da minha época. A partir desses acontecimentos e dessas vivências
surgem inquietações com as quais me construo, ajo e atuo nas práticas acadêmicas
e profissionais.
Ao observar o meio social do qual faço parte, percebo a necessidade
urgente de uma formação consistente e sólida de cidadãos críticos, pensantes,
questionadores e capazes de estar em sociedade, de agir e refletir sobre a mesma.
Ligamos nossos aparelhos de televisão todas as noites e percebemos o caos
avassalador tomando conta da humanidade em geral; constatamos que pessoas
24
matam por banalidades e notamos que o ser humano parece ter perdido sua
capacidade racional e de respeito ao próximo. Para tanto, a Filosofia é apresentada
nas escolas, através de discursos de alguns educadores, como uma “salvadora”
desse e de diversos processos, como um conhecimento que é capaz de despertar a
sociedade das armadilhas do senso comum e de devolver a essa mesma sociedade
o caráter moral e reflexivo que temos perdido ao longo dos anos. Enxergamos a
Filosofia, então, como uma ferramenta capaz de causar mobilizações e influenciar a
história da humanidade. Desta forma, a Filosofia tem um caráter político, se
considerarmos que o pensamento antecede a ação humana. Severino (In GALLO,
2000, p. 13) nos fala:A humanidade, como sujeito coletivo pensante, busca explicitar/construir sentidos que tenham a ver com o direcionamento do agir histórico de seu conjunto. É sempre prenhe de universalidade, por mais que seja um exercício individual. Ora, isso transforma toda atividade intelectual, e de modo direto e explícito a filosofia, numa explícita pedagogia política. A filosofia se torna uma paidéia, na medida em que, necessariamente, se destina a formar a coletividade humana. Por isso mesmo, e na exacerbação, todo filósofo é um educador da cidade. Não sem razão, impõe-se insistir em que o compromisso fundamental do conhecimento é com a construção da cidadania, entendida esta como uma forma adequada de existência no âmbito da pólis, adequada porque realizando uma necessária qualidade de vida, que o próprio conhecimento, ferramenta privilegiada da espécie, lhe permite configurar historicamente.
Todavia, não basta colocarmos novamente o currículo dos estudos
filosóficos nas escolas; é necessário também que se pense sobre o Ensino de
Filosofia, é importante que não se esqueça do seu histórico, da sua trajetória até
aqui como uma disciplina que já esteve presente nas salas de aula escolares, que
foi extinta por ser considerada perigosa e subversiva aos olhares do poder
dominante da época, e que retorna como obrigatória somente há quatro anos.
Assim, esta dissertação surge cercada da carência de materiais
acadêmicos e produções relativas à área, bem como a ausência de estudos
históricos do Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas. Cabe explicitar ainda que a
pesquisa nasce de um sentimento profundo de vontade de aprendizado e de buscar
e trazer à tona velhas e esquecidas práticas docentes com a intenção de aprender
com o antigo e ser capaz de transformar o novo. Questionamentos sobre o que
ensinar e como ensinar certamente instigaram nossos docentes passados e se
apresentam como questões atuais, pertinentes e permanentes, pois, ao termos
25
conhecimento do que já foi feito, podemos (re)tomar antigas práticas, (re)pensar e
aprimorarmos outras.
Tive a intenção de pesquisar ainda sobre uma Filosofia da Educação,
sobre o próprio Ensino de Filosofia e trazer questões relativas ao modo como
realizar um Ensino de Filosofia que seja realmente expressivo e transformador.
Como realizar experiências significativas com os alunos em vez de simplesmente
ministrar aulas previstas pelo currículo escolar? Com relação a esse tema, Jorge
Larrosa Bondía nos diz:A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (2002, p. 21).
Para que um acontecimento se torne experiência, é necessário que tenha
sentido para quem está experimentando. Caso contrário, é simplesmente um
acúmulo de informações. Desta forma, percebe-se a relevância de estudar sobre
como foi, como é e como deveria ser o ensino da disciplina de Filosofia. Será que a
conjuntura do ensino atual, do currículo selecionado, dos planos de ensino fazem
sentido para os estudantes? Como produzir aulas de Filosofia que sejam,
literalmente – e com o pedido de perdão por um possível pleonasmo – filosóficas?
Como realizar experiências permeadas de sentido com os alunos, que sejam
capazes de transpor os limites da sala de aula e de acompanhá-los no processo de
construção do sujeito que está sendo formado? Interrogações como essas
pretendem ser abordadas, investigadas e, se possível, respondidas no decorrer
deste trabalho e se tornam justificáveis pela importância de se pensar a prática
educativa e realizar um trabalho que tenha como foco central o aluno.
A pesquisa justifica-se ainda pela contribuição que possa vir a dar para
docentes da área da Filosofia, da Educação, para o corpo docente e discente do
Colégio Municipal Pelotense e ainda para o magistério e a comunidade pelotense
em geral.
A escolha do Colégio Municipal Pelotense se dá de forma estratégica, em
virtude do fato de ser, além das excelentes condições em termos de infra-estrutura,
26
uma instituição de ensino capaz ainda de mostrar muito da História da Educação de
Pelotas.
Segue uma breve apresentação da instituição:
Na cidade de Pelotas/RS, encontra-se uma das maiores escolas públicas da América Latina – o Colégio Municipal Pelotense. Contando com uma área total de 17.500m², o educandário possui 50 salas de aula, diversos laboratórios por área de ensino, dois auditórios, ginásio coberto, canchas de esporte e 2 laboratórios de informática, entre outros espaços e setores didáticos. Destaca-se pela qualidade de seu ensino, contribuindo para isso, um quadro de 223 professores, 93 funcionários e mais de 3.500 alunos. (Conforme informação disponível no site COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE)
Figura 2 – Colégio Municipal Pelotense
Fundado em 1902 pela Comunidade Maçônica de Pelotas, o colégio
passou em seus 110 anos de história por diversas transformações e atualizações até
chegar à realidade atual.
O Colégio Municipal Pelotense possui características peculiares. É a
maior escola pública municipal da América Latina e oferece os cursos de Educação
Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Curso Normal. Vale ressaltar que,
perante a lei, as escolas municipais não possuem a obrigação de oferecer cursos
que vão além do Ensino Fundamental. Todavia, as peculiaridades que dizem
respeito à instituição, não remetem somente à situação atual em que o colégio se
27
encontra. Para uma melhor compreensão por parte do leitor, apresentarei,
brevemente, alguns elementos da história deste colégio.
Em Pelotas, a Maçonaria ganhou ênfase em função de que muitas
famílias em boas condições financeiras, que tiravam seu sustento através da
indústria do charque, mandavam seus filhos para estudarem na Europa. Alguns
destes, ao retornarem à cidade, traziam consigo as ideias maçônicas. Assim, a
fundação do então Gymnasio Pelotense3 se deu através de uma ação concreta da
Maçonaria pelotense com a finalidade de propor uma educação de qualidade que
representasse uma alternativa oposta ao modelo educacional proposto por outra
instituição de destaque: o Colégio Gonzaga, criado em 1894 por católicos jesuítas.
Os maçons enxergavam a educação como um excelente meio para difundirem seus
princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Propunham uma educação laica e
anti-dogmática através do ensino oferecido em um colégio “aberto a todos que
desejassem freqüentá-lo, sem qualquer injunção filosófica ou religiosa e sem
preceitos raciais de qualquer espécie” (Histórico do C. M. Pelotense apud AMARAL,
2005, p. 111). Vale salientar que, enquanto pertenceu à maçonaria, o Gymnasio
Pelotense era uma instituição particular, que cobrava mensalidades para o custeio
de suas necessidades.
Em 1902, o Gymnasio Pelotense foi inaugurado em um prédio que
pertenceu ao Dr. Miguel Barcellos. No ano seguinte, passou para sede própria, em
um casarão situado na rua Félix da Cunha, esquina com a rua Tiradentes. Nesse
período, funcionou com os regimes de internato e externato. A partir de 1913, a
instituição passou a aceitar como discentes membros de ambos os sexos,
caracterizando-se em um colégio que oferecia oportunidade também para que
meninas pudessem frequentá-lo.
Em 1911, através da lei Rivadávia Correa, acontece uma grande
modificação no ensino brasileiro. Esta lei permitia que os estabelecimentos de
ensino criassem cursos de Ensino Superior, onde bastava apenas um teste de
admissão para o ingresso nas universidades, sem que existisse a necessidade de
qualquer grau de ensino anterior. Esta lei afetou diretamente o Gymnasio Pelotense,
que passou a enfrentar um período de intensa crise e desentendimentos entre os
3 Denominação dada ao atual Colégio Municipal Pelotense no período de sua fundação.
28
administradores do colégio, resultando em descontentamentos e exonerações em
massa no corpo docente da instituição, que quase levaram ao fechamento do
estabelecimento de ensino. A solução encontrada foi designar um Conselho Escolar
que passou a dirigir a escola, permanecendo, nestas condições, até 1917, onde o
Gymnasio passou para a jurisdição da Prefeitura Municipal de Pelotas. Sobre o
processo de municipalização do Colégio Pelotense, cito Amaral (2005, p. 165):O processo de municipalização da escola só pode ser compreendido levando-se em conta todo o contexto vivido naquele período, relacionado basicamente à legislação de ensino, aos problemas administrativos do Gymnasio e ao próprio interesse da Maçonaria de que ele passasse ao poder público. É importante salientar que, nessa época, a Maçonaria assume uma postura totalmente favorável ao ensino público, e seria bastante contraditório que continuasse a ser proprietária de um estabelecimento de ensino.
Vale ressaltar que, mesmo após a municipalização do Gymnasio, que
posteriormente passou a chamar-se Colégio Municipal Pelotense, os maçons
mantiveram durante um bom tempo expressiva influência na direção do
educandário. Ressalto ainda que, anos após e até mesmo nos dias de hoje, a
instituição possui ainda alguma autonomia em suas decisões em relação à
Secretaria Municipal de Educação de Pelotas.
Em 1961, o Colégio foi transferido para a atual sede, em um prédio
construído especificamente para abrigar a escola, situada na Rua Marcílio Dias,
esquina com Avenida Bento Gonçalves. As memórias daqueles que por ele
passaram bem como os registros históricos arquivados são capazes de mostrar e
contar muito sobre antigas práticas pedagógicas, planos de ensino, hábitos e
realidades discentes e movimentos estudantis de diversas épocas. Salienta-se ainda
que, além de ser até hoje uma instituição de destaque, foi e ainda é um colégio
muito querido pela comunidade pelotense.
Entender os processos históricos que antecederam o contexto atual
certamente se faz importante para que possamos entender, questionar e debater o
presente. Memórias serão instrumentais desta pesquisa: através de relatos de
professores, estudantes e de pessoas que viveram em tais épocas. Por que
trabalhar com memórias? PINTO (1998, p. 206) enxerga a memória como uma
“Memória histórica que (re)cria o passado, operando temporalidade como
textualidade, fundindo referências que estabilizam o presente”. Memórias culturais
29
mantêm-se vivas em virtude de terem deixado marcas positivas ou negativas e
certamente não devem ser esquecidas e apagadas. Fazem parte de um tempo que
foi e já não é. Um tempo que passou e que tem muito a acrescentar a outros tempos
que virão. Todavia, o que acontece com esse tempo passado, construído
anteriormente? Jô Gondar diz que:
Se quisermos, porém, colocar mais luz sobre a construção do quê sobre o já construído, devemos buscar um outro modo de pensar o tempo que não o da prefiguração de uma origem ou de um fim. Esse tempo não seria visto como degradação nem evolução, e tampouco como um meio neutro e exterior aos acontecimentos. Trata-se de um tempo que não é; ele seria, ao contrário, a permanente alteração do que é, o processo de diferenciação intrínseca de tudo o que existe. Se é preciso lhe dar um nome, podemos chamá-lo de devir, concebendo-o como puro processo, e não como algo que parte ou se dirige necessariamente para uma forma, imagem ou representação. Evidentemente, novas figuras, imagens ou formas podem emergir desse processo, mas não se confundem com ele. Assim pensado, o processo é a própria alteração, mais do que aquilo que dela resulta; um movimento de tornar-se mais do que a coisa tornada. O que nele encontramos são os jogos de força e o calor das lutas: diferenças potenciais lutando para se afirmar, desejos e interesses agindo e reagindo diante de outros desejos e interesses, em tensão permanente. (2005, p. 20)
Trazer à tona velhos conceitos, práticas e categorias além de conhecer o
processo, a trajetória do que já foi realizado por educadores de décadas anteriores e
que norteou o ensino de Filosofia em Pelotas podem proporcionar novos paradigmas
e perspectivas para novas construções tanto no hoje quanto no amanhã.
Quanto à questão do tempo, do porquê investigar o passado, avaliar o
presente e projetar o futuro, lembremos o que o filósofo medieval Santo Agostinho
tem a dizer sobre memórias:Realizo interiormente todas essas ações, no grande palácio da memória (...) Aí estão também todos os conhecimentos que recordo, seja por experiência própria ou pelo testemunho alheio. Dessa riqueza de idéias me vem a possibilidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho dos outros; posso ligá-las aos acontecimentos do passado, deles inferindo ações, fatos e esperanças para o futuro, e, sempre pensando em todas como estando presentes.(AGOSTINHO, 1988, Livro X, 8,14)
Para que se possa entender de forma mais adequada os
questionamentos acerca da temática proposta e expandir tais questionamentos, é
que este texto apresenta sua justificativa de realização.
Adiante, apresento uma Revisão de Literatura, que visa situar meu
trabalho acadêmico dentro das grandes áreas em que ele se encontra localizado,
30
possibilitando ao leitor tomar conhecimento de uma revisão dos trabalhos
congêneres e de outras obras que possibilitaram embasamento teórico para a
dissertação aqui apresentada.
CAPÍTULO 2. REVISÃO DE LITERATURA
Revisão de literatura é um espaço do texto em que apresento como está a
discussão acerca das temáticas propostas por outros autores no momento. Consiste
em um trabalho que exigiu tenacidade, por ser uma das partes mais importantes do
trabalho científico, por envolver leituras e pesquisas. Expõe o que está sendo feito
atualmente no campo estudado.
A Revisão de literatura deverá mostrar as principais investigações
relacionadas ao tema e produções sobre Ensino de Filosofia e, em alguns
momentos, aquelas relativas à História da Educação. O objetivo deste capítulo
consiste em mapear os trabalhos relacionados ao tema e identificar se houve
pioneirismo nesta pesquisa. Ressalto o fato de apresentar uma pesquisa que mostra
um objeto bifacial: pesquiso, por um lado, a situação da disciplina Filosofia no
Ensino Médio brasileiro e, por outro, como foi desenvolvido o ensino desta disciplina
no Colégio Municipal Pelotense. Assim, minha Revisão de Literatura visa mostrar o
que outros autores iniciaram, as pesquisas que realizaram traçando um paralelo com
o meu trabalho dissertativo, mostrando que parto destes textos para apresentar algo
novo, que não foi desenvolvido por nenhuma outra pessoa anteriormente.
Inicialmente, é relevante apresentar uma produção de Mario Sergio
Cortella, desenvolvida para o Ministério da Educação, em 1988, intitulada Filosofia.
Neste texto, o autor apresenta uma breve proposta de retorno da disciplina de
Filosofia nos currículos de segundo grau.
Atualmente, Walter Omar Kohan se apresenta como uma grande
autoridade em pesquisa sobre Ensino de Filosofia. Em várias de suas obras, o autor
problematiza questões sobre como ensinar, o que ensinar e que tipo de Filosofia
ensinar. Entre algumas de suas publicações, é relevante citar Políticas do Ensino de
Filosofia (2004), Ensino de Filosofia – Perspectivas (2005) e Filosofia – Caminhos
para seu Ensino (2007).
32
Entre outros professores que apresentam contribuições nesta área estão
Sérgio Sardi, Vanderlei Carbonara e Draiton Souza. Na obra Filosofia e Sociedade:
Perspectivas para o Ensino de Filosofia (2007), os autores pensam sobre a Filosofia
sobre o Ensino de Filosofia e em relações com a sua práxis a aplicabilidade social.
No artigo O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio
como experiência filosófica (2004), Renata Pereira Lima Aspis problematiza a
questão do Ensino de Filosofia. A autora pergunta sobre o modo como deve ser esse
ensino e como ensinar no contexto da nossa contemporaneidade. Em interrogações
sobre “qual filosofia ensinar?”, fala também Ricardo Nascimento Fabbrini, em O
ensino de filosofia: a leitura e o acontecimento (2005).
Alessandro Pimenta realiza uma breve iniciação sobre o histórico do
Ensino de Filosofia no Brasil, no escrito O ensino de filosofia no Brasil: um estudo
introdutório sobre sua história, método e perspectiva (2009). Trata-se de um texto de
relevância que traça um panorama nacional para a proposta de pesquisa regional
que aqui está sendo apresentada.
Ronai Rocha trata de questões curriculares na obra Ensino de Filosofia e
Currículo (2008). O autor discute os conteúdos a serem trabalhados nas aulas de
Filosofia, bem como uma didática mínima para a disciplina, entre outros assuntos
importantes para a área.
No campo da História da Educação, Paulo Ghiraldelli problematiza a
relação entre Filosofia e História da Educação na obra Filosofia e História da
Educação Brasileira (2003).
Não posso deixar de mencionar Mattew Lipman, professor de filosofia
norte-americano. Falecido recentemente, Lipman foi docente da cadeira de Lógica
da Universidade de Columbia (EUA) e observou que certos alunos passavam por
processos de aprendizagem e levavam consigo diversos problemas de raciocínio e
abstração. A partir dessas constatações, desenvolveu, com o auxílio e a colaboração
de Ann Margareth Sharp, um programa de Ensino de Filosofia para Crianças. Suas
principais obras são A Filosofia vai à escola (1994) e O pensar na educação (1995).
Sobre a escola escolhida para ser analisada na dissertação, o Colégio
Municipal Pelotense, há obras que são de profunda relevância para se entender o
contexto desta comunidade escolar local. Essas foram escritas e organizadas por
Giana Lange do Amaral, intituladas O Gymnasio Pelotense e a Maçonaria: uma face
da história da educação em Pelotas, onde a autora trata do período de formação do
33
colégio; Gymnasio Pelotense, Colégio Municipal Pelotense: uma face da história da
educação em Pelotas, também organizado pela professora Giana, traz diversos
relatos de pessoas de diferentes épocas que passaram pela instituição escolar. Cito,
também a sua tese de doutorado, que tem como título Gatos Pelados X Galinhas
Gordas: Desdobramentos da Educação Laica e da Educação Católica na cidade de
Pelotas (Décadas de 1930 a 1960), onde é apresentada a “disputa” ideológica que
existia na época entre duas escolas de excelência em Pelotas: o Colégio Municipal
Pelotense e o Colégio Gonzaga.
Foi apresentado aqui um panorama inicial, de autores/professores que se
dedicam ao Ensino de Filosofia e que pode servir de “ponto de partida” para o leitor,
instigando novas leituras que possam ser realizadas e que mostrem um balanço
geral e inicial de como as questões propostas nesta dissertação estão, atualmente,
sendo trabalhadas por autores diversos. Preocupei-me em mostrar o que outros
autores fizeram com a finalidade de justificar que, embora existam outras pesquisas
com temas correlatos, minha pesquisa trás algo novo ao historicizar sobre o
percurso histórico da disciplina Filosofia de 1960 a 2008 no ambiente nacional e ao
abordar o Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense. Assim, com a
finalidade de contribuir cientificamente, exponho uma pesquisa com um objeto de
estudo novo, que não foi pesquisado anteriormente por nenhum outro autor.
Adiante, mostro o Referencial Teórico-Metodólogico, que tem como
intenção apresentar as escolhas em relação à metodologia e aos autores que deram
base para uma sustentação teórica nas diferentes áreas que esta pesquisa se
propõe a tratar. Pretendo expor também a escolha por alguns conceitos e meu
entendimento sobre eles.
CAPÍTULO 3. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
As discussões e análises são realizadas tendo como base pressupostos
teóricos oriundos da perspectiva histórico-crítica. Nesta perspectiva, Dermeval
Saviani aparece como um expoente, dada sua contribuição para a formulação da
teoria em questão. Entre os escritos de Dermeval Saviani, cito obras que foram
fundamentais para a execução do trabalho, como História das Idéias Pedagógicas
no Brasil (2007), Educação: do senso comum à consciência filosófica (1985), Escola
e Democracia (1999) e Pedagogia Histórico-Crítica (2008) que são textos
extremamente relevantes para todos aqueles que se preocupam com a educação
brasileira. A partir de uma Pedagogia Histórico-Crítica, o autor apresenta a sua
concepção de educação, traduzida por ideais democráticos e que valorizam a
formação de alunos questionadores e aptos a serem agentes de sua própria história
no âmbito social em que se encontram inseridos, sendo esta uma das principais
obras que utilizei em meu referencial teórico. Entretanto, não foram utilizadas
somente fontes relativas ao autor, o que justifica que se adote uma perspectiva
histórico-crítica ao invés de usar a teoria como o único referencial teórico.
São aqui utilizadas, também, as referências de autores que trabalham
com o Ensino de Filosofia e com a Filosofia da Educação. Entre esses, cito Antônio
Joaquim Severino, Silvio Gallo, Walter Kohan e outros.
Como a dissertação apresenta uma faceta ligada ao caráter histórico,
utilizo também autores que contribuem com aspectos que dizem respeito ao uso de
entrevistas, que são relativos às narrativas de memórias e que se utilizam da
História Oral, tais como: Verena Alberti e Julio Pimentel Pinto, entre outros.
Assim, o resultado final de escrita pretende apresentar referências
históricas, filosóficas e pedagógicas. A categoria principal utilizada no decorrer dessa
dissertação é o conceito de crítica, da forma como o compreendo. Visto que, em
minha pesquisa, utilizo frequentemente os termos crítica e criticidade, creio que seja
35
relevante dedicar uma parte do texto a descrever a definição operacional do que
entendo por crítica.
Crítica é uma palavra comumente associada à presença da Filosofia,
contudo, qual é a origem dessa associação? Tendo como base que para os
Professores de Filosofia, o conceito aparece como uma exigência fundamental e
como uma fala constante em seus discursos, o escrito pretende explorar e investigar
sua definição. Apresenta a etimologia da palavra, bem como conceituações do termo
por filósofos e pensadores, tais como Immanuel Kant, Karl Marx, Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paulo Freire; relacionando constantemente a ligação
da criticidade com a prática filosófica.
Assim, apresento a seguir três pontos que podem auxiliar o leitor a uma
melhor compreensão para o entendimento do texto. São eles:
− a metodologia utilizada para a construção da pesquisa;
− a conceituação da categoria crítica e
− a definição do que representa uma perspectiva histórico-crítica.
3.1. O trabalho por detrás da escrita: metodologias e ações desenvolvidas
Como possíveis procedimentos metodológicos utilizados na consecução
do estudo proposto, utilizei pesquisas bibliográficas de embasamento teórico e
pesquisas documentais através de fontes em arquivos históricos que compõem e
guardam a memória das antigas práticas de Ensino de Filosofia realizadas no
Colégio Municipal Pelotense, tais como:
- arquivos disponíveis na Biblioteca Jorge Salis Goulart (Biblioteca do
Colégio Municipal Pelotense)
-planos de ensino da instituição a ser pesquisada;
-documentos do colégio, arquivados em setores diversos – Coordenação
Pedagógica, Museu e Arquivo Morto;
-referências em legislações nacionais vigentes em cada época da
pesquisa – Lei de Diretrizes e Bases (1961), Plano Nacional de Educação (1962),
Plano Complementar de Educação (1966), Lei de Diretrizes e Bases (1971), Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 – 1996), Plano Nacional de
Educação (1998), Lei nº 11.684/08;
36
-entrevistas com professores de Filosofia que prestam depoimentos
através de memórias sobre as épocas propostas.
A pesquisa é de cunho qualitativo e explicativo e dialoga com as tradições
de Estudo de Caso. Segundo Antonio Carlos Gil, o estudo de caso “consiste no
estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu
amplo e detalhado conhecimento, tarefa praticamente impossível mediante outros
delineamentos já considerados.” (2002, p. 54). A dissertação não pretende
apresentar um aspecto amplo da realidade, mas visa mostrar um recorte dos
acontecimentos ocorridos em Pelotas através do caso de uma instituição muito
importante na cidade de Pelotas: o Colégio Municipal Pelotense. Intenciona-se que a
partir dessa pequena contribuição, possam surgir outras pesquisas que deem
continuidade ao estudo.
São utilizados dois métodos em especial: Análise Documental e
Entrevistas Semi-estruturadas (perguntas abertas, sem alternativas, dissertativas e
com roteiro prévio), Temáticas e Observacionais para diferentes etapas da pesquisa.
A coleta de dados se deu através de entrevistas, fontes impressas, manuscritas,
iconográficas, orais e procurou retomar informações que possam sustentar a
pesquisa proposta.
Presumo que tanto a Análise Documental quanto as Entrevistas
realizadas se complementem e deem o embasamento necessário à credibilidade da
pesquisa. Para Gamboa, “investigação vem do verbo latino Vestígio, que significa
‘seguir as pisadas’”. “Investigação significa a busca de algo a partir de vestígios”
(2007, p. 25). Assim, somados os vestígios encontrados, é que pretendo apresentar
como foi ocorrendo o Ensino de Filosofia nos diferentes períodos e extrair as
devidas conclusões que a investigação enseja.
Sobre as pessoas a serem entrevistadas, vale salientar que os sujeitos
foram escolhidos intencionalmente. Entrevistei todos os professores no período de
1960 a 2008 que aceitaram participar da pesquisa. Os relatos dessas pessoas nos
permitiram aprofundar e entender os sentidos que os sujeitos entrevistados podem
mostrar. A escolha por entrevistas também se deu pela necessidade de um
instrumento que pudesse desencadear revelações, fatos, emoções e subjetividades
nos entrevistados. No “Apêndice”, mostro o roteiro utilizado para dar margem às
entrevistas com tais pessoas. Encaminhei aos entrevistados um documento de
identificação como aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel,
37
bem como outro documento em que o sujeito entrevistado autoriza a publicação da
sua entrevista. Em relação ao CMP, também encaminhei um documento me
certificando da autorização da escola para a publicação do nome do colégio bem
como da pesquisa. Trago, ao final deste texto, como anexo, algumas das entrevistas
realizadas e algumas cópias de documentos coletados no colégio. Os nomes dos
entrevistados foram divulgados em virtude da autorização dos mesmos, mediante
documento assinado por eles. Verena Alberti (2005, p. 31), sobre a escolha dos
entrevistados, afirma:A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. O processo de seleção de entrevistados em urna pesquisa de história oral se aproxima, assim, da escolha de "informantes" em antropologia, tomados não como unidades estatísticas, e sim como unidades qualitativas – em função de sua relação com o tema estudado –, seu papel estratégico, sua posição no grupo etc.
Foram obtidos dados documentais importantes, como planos de
disciplinas, relações de alunos e turmas, entre outros. Foi possível também
conhecer um pouco da fala de pessoas que viveram estas épocas e que puderam
dar suas contribuições enquanto sujeitos dessa história e enquanto seres
questionadores do trajeto percorrido.
Em relação ao período de tempo proposto, apesar de 50 anos representar
um espaço temporal muito grande para ser analisado em uma dissertação de
mestrado, justifico a escolha da seguinte forma: em alguns períodos, tenho acesso a
uma forte presença de dados e, em outros, infelizmente, não. Em visitas aos setores
pesquisados no Colégio Municipal Pelotense, em especial ao Museu e ao Arquivo
Morto da instituição, observei que em alguns períodos não foram arquivados dados
pedagógicos sobre o Ensino de Filosofia na escola. Seja por uma imposição da
ditadura ou por simplesmente terem se perdido no tempo, há períodos nos quais
foram encontrados somente dados administrativos, tais como custos, manutenções
e livro-ponto de funcionários e professores. Nesses períodos em que não tive
acesso à análise documental de dados pedagógicos significativos para a pesquisa,
apresento as entrevistas como um complemento.
Por outro lado, existe o período em que não ocorre o Ensino de Filosofia
na instituição; logo, nesse período, não há muitos dados a ser pesquisados.
38
Sendo assim, foi possível trabalhar com um período longo de tempo, o
que possibilitou deter-me nos pontos mais significativos para a pesquisa e nos
dados coletados. Outro ponto a destacar é que a história nem sempre acontece de
forma linear, tampouco é etapista; ela parte de um ponto e segue seu curso
naturalmente, nos mostrando os fatos que a ocasionaram, os motivos e seus
contextos. E isso é um pouco do que pretendo apresentar.
A temática de estudo é o Ensino de Filosofia no Colégio Municipal
Pelotense. A partir daí, possuo alguns dados através de documentos históricos
arquivados na instituição e realizo entrevistas com pessoas que possam
complementar as informações a que não consegui ter acesso através dos
documentos. Essas pessoas foram professores da instituição (alguns da disciplina
de Filosofia), alunos das épocas investigadas, diretores e pessoas que, de uma
maneira ou de outra, têm suas histórias e memórias para contar e para contribuir
com relatos orais sobre o que presenciaram no educandário.
Na etapa de análise das entrevistas e dos documentos históricos, foi
possível ter uma visão geral sobre como foram as experiências com aulas de
Filosofia no Colégio e encontrei o universo de significações e relações que a
pesquisa se propõe a desvendar. Vale lembrar que, por se tratar também de uma
pesquisa filosófico/histórica, a mesma não é acabada, pois a cada momento, novos
acontecimentos ocorrem e dão sequência a essa história que por aqui percorrerá
seu ciclo e não há de cessar.
Nos Apêndices e Anexos deste trabalho trago os termos de autorização
da pesquisa, as entrevistas e depoimentos dos professores e alguns dos
documentos coletados no Colégio Municipal Pelotense. Os critérios de escolha para
cópias de documentos foram entre aqueles que traziam a palavra Filosofia em seus
registros.
Consegui muitas relações de turmas e documentos diversos e os
mantenho arquivados nos documentos sobre a pesquisa. No entanto, considero
mais relevante apresentar, neste momento, os Planos de Ensino da disciplina de
Filosofia de diversas épocas. Creio serem documentos valiosos para que possamos
ter uma visão de como era o Ensino de Filosofia em diferentes épocas, a partir de
conteúdos condizentes com seus períodos históricos.
Espero que os dados coletados possam embasar e fornecer fidelidade
aos compromissos qualitativos que a dissertação exige e que possibilitem
39
referências para novas pesquisas a serem feitas a partir do objeto de estudo aqui
apresentado.
Passo, então, a uma exposição do que pretendo dizer quando me refiro ao
conceito de crítica. Exponho minha compreensão acerca do assunto, com a
finalidade de esclarecer o leitor sobre a categoria eleita para centrar meu olhar para
este trabalho acadêmico. Conforme Walter Kohan (2011), (…) costumamos dizer coisas tal como: a Filosofia vai contribuir para a formação de cidadãos críticos ou para formar o pensamento crítico dos alunos ou, ainda, para fazer com que eles sejam mais críticos. Mas quase nunca explicitamos o que entendemos por “crítica”, e essa palavra, com a qual se costuma sintetizar, como uma mágica, as qualidades da Filosofia, foi apropriada por tantos discursos e para dizer coisas tão distintas que ficou esvaziada de um sentido mais preciso e elaborado, sentido que a própria tradição filosófica esforçou-se por determinar (KOHAN, 2011, p. 42).
A fim de que, ao usar o termo “crítica”, este texto não caia no
esvaziamento mencionado pelo autor, pretendo tornar explícita minha compreensão
acerca do conceito em questão, que consiste na categoria que escolho para realizar
meu olhar e minhas análises filosóficas sobre o tema pesquisado. Esclareço,
preliminarmente, que minha concepção acerca do caráter crítico do Ensino de
Filosofia possui um cariz muito próximo a uma pedagogia histórico-crítica, nos
moldes que mencionei anteriormente.4
3.2. Crítica: elemento indispensável ao Ensino de Filosofia
Nossa época, é propriamente a época da crítica, a qual tudo tem de submeter-se.
Immanuel Kant
Ao pensarmos em uma sala de aula onde se ministra a disciplina de
Filosofia, que ideias nos vêm à mente? Possivelmente, as relacionadas a alunos
questionadores, que debatem, criam e reveem conceitos, pensam o mundo em que
vivem e lutam contra a impregnação das ideologias estabelecidas? Se
respondermos “sim” a esta pergunta, estamos, certamente, levando em
consideração uma ferramenta, um tópico, um conceito, em especial: a crítica.
Crítica soa como uma palavra que “casa” e é facilmente associada à
presença da Filosofia. E qual a origem desta associação? Talvez a combinação 4 Conforme mencionado na p. 25.
40
ocorra em virtude de a crítica apresentar-se como uma característica fundamental da
Filosofia ou ainda de representar um elemento que se diferencia dos conhecimentos
científicos, ou ainda, de argumentos falaciosos, inconsistentes. Todavia,
indubitavelmente, temos uma evidência: para os educadores dessa disciplina, há o
desejo de ser capaz de formar alunos críticos e com consciência crítica que
empreendem um esforço sistemático em direção ao desocultamento dos fenômenos
cotidianos. Criticidade é, então, algo indispensável para o filosofar, para o despertar
do homem de um entorpecimento, de uma visão ingênua diante do mundo, dos
outros homens e de si mesmo.
Conforme Moacir Gadotti:A Filosofia pode servir para a formação do espírito crítico, com exceção da filosofia dogmática, essencialmente afirmativa; pode servir à análise reflexiva da situação do nosso estudante e do nosso professor e, sobretudo, daqueles a quem é negado pensar ou freqüentar a escola. Mas para isso é preciso que ela abandone a tradição de se perder no impessoal, no abstrato em si, para escutar e perceber o trabalho pelo qual o homem se constrói a si e a sociedade. (GADOTTI, 1985, p. 28)
Contudo, a crítica não é uma ferramenta da qual somente a Filosofia
apropria-se. Outras disciplinas que integram o currículo escolar dela se utilizam, ou
seja, a crítica também está presente no ensino de Artes Visuais, de Literatura, de
Sociologia e de tudo o que for possível conhecer e especular. Entretanto, em uma
aula de Filosofia, há o convite específico à crítica, há um espaço todo a ela
reservado e uma extrema valorização do chamamento à reflexão e às posturas que
envolvem criticidade. Sobre esta relação entre Filosofia e crítica, nos falam Gallo e
Kohan:
(…) o pensamento filosófico é marcado pela crítica radical. Nascida da necessidade existencial de colocar perguntas, por incomodar-se com o status quo, a filosofia incomoda pela crítica que exerce. A pergunta é a chave da crítica, e o incômodo frente ao dado é o seu motor. Sendo pensamento desviante, que não se contenta com o dado, que não se satisfaz com a mera opinião, a experiência filosófica deve ser radical. O pensamento filosófico é aquele que busca compreender o vivido em suas raízes, percebendo as inter-relações que se estabelecem e podendo agir sobre elas. É também o pensamento que, não satisfeito com o estado das coisas, age sobre elas produzindo conceitos críticos que são essencialmente transformadores. Assim, a filosofia parte de um incômodo existencial para tornar-se, ela mesma, um incômodo para a sociedade estabelecida. (GALLO, KOHAN, 2000, p. 193)
41
A palavra crítica tem sua origem na língua grega, através do termo5
crinein, que remete à ideia de julgar, separar. Desta forma, crítica está intimamente
ligada a avaliações qualitativas que se pode fazer acerca de algo. A crítica julga e
questiona se algo é ou não aceitável, se é bom ou mau, se é válido ou inválido.
Assim, a crítica nos tira de uma situação de ingenuidade e de aceitação pacífica
sobre todas as ditas “verdades” estabelecidas ideologicamente. Ao passarmos por
uma experiência que envolva criticidade, estaremos deixando de lado o senso
comum e partindo para uma avaliação pormenorizada e minuciosa sobre fatos,
pensamentos e argumentos do que se queira pesquisar e criticar.
Assim, existe uma relação antagônica entre ideologia e crítica. A ideologia
ocupa seu lugar em virtude da ausência de crítica. A ideologia se mantém através da
alienação com uma força imensurável. Não seremos ingênuos ao ponto de acreditar
que a Filosofia é capaz de “destruir” todos os conceitos ideológicos. Entretanto, não
podemos negar que, através da crítica, é possível identificar, questionar e lidar com
outro olhar para as ditas “verdades ideológicas”. Chauí (1982, p. 87) diz que
(…) enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum da vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá.
Sobre a possibilidade de nos valermos da crítica como um instrumento
para avaliarmos os pensamentos ideológicos, não posso deixar de mencionar que
valorizo na criticidade a possibilidade de se buscar os fundamentos de um
determinado problema, de se valer da faculdade de julgar. Não proponho
necessariamente que o processo educacional carregue consigo a “bandeira” de
combater toda e qualquer ideologia. Agindo desta forma, estaríamos colaborando
com a criação de contra-ideologias, e esta não é a aposta, dado que a contra-
ideologia, contraditoriamente, é, também, uma ideologia. Severino (1994, p. 74)
analisa a relação entre ideologia e contra-ideologia no processo educacional:
Assim, se de um lado a educação contribui para a reprodução da sociedade por meio da produção, da sistematização e da divulgação de uma ideologia, de outro, ela pode contribuir para a transformação da mesma sociedade através da produção, da sistematização e da divulgação de uma contra-ideologia. Ela pode proceder a uma crítica da ideologia vigente, desmascarando-a, denunciando seus compromissos com os interesses dos
5 Quando emprego “termo”, me refiro à palavra, signo; com a finalidade de distinguir de conceito, que remete a uma ideia abstrata que remete ao significado, à definição, ao sentido, etc.
42
grupos dominantes no interior da sociedade e gerando, então, uma nova consciência social entre os sujeitos. Evidentemente isso vai depender, em grande parte, do esclarecimento crítico dos agentes educacionais e de seu compromisso político no contexto histórico em que se encontram (grifos do autor).
Todavia, como se constrói a crítica? Como se adquire uma atitude de
crítico? E como este conceito aparece na História da Filosofia? Ao explorarmos o
conceito e sua ligação com o que vem a ser Filosofia, percebemos que tais questões
são de extrema relevância, pois não há como investigar sobre o que é crítica, sem
construirmos críticas, agirmos como críticos e sem levarmos em consideração as
formas como o conceito foi trabalhado por filósofos e teóricos que nos antecederam.
Desta forma, torna-se visível que a crítica tem ligação direta com a práxis, com a
aplicabilidade e com a ação que ela provoca. Longe de ser um conceito abstrato,
podemos observar visivelmente atitudes e comportamentos críticos.
Começarei, então, a investigar tais questões através da própria definição
de filosofia. Filosofia, segundo Marilena Chauí, pode ser definida como uma
“Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas” (Chauí, 2000,
p. 15). Conforme Maria Lúcia de Arruda Aranha, “A Filosofia é, portanto, a crítica da
ideologia, enquanto forma ilusória de conhecimento que visa a manutenção de
privilégios” (Aranha, 1993, p. 75). E ainda, de acordo com Antonio Xavier Teles, ela
“é uma reflexão sistemática e crítica sobre certos problemas que não caem sobre a
alçada das ciências e especificamente sobre os problemas do conhecimento e da
ação” (Teles, 1974, p. 66). Desta forma, fica evidente o quanto a crítica está inclusa
na Filosofia. Não há Filosofia sem crítica. A crítica é um ingrediente primordial para
um Ensino de Filosofia que pretenda ser congruente com o conceito de Filosofia.
Uma aula de Filosofia que não utilize a criticidade é apenas um mero convite a
decorar e memorizar conceitos presentes na história do pensamento filosófico. E
isto, nem de perto, é o que se espera de uma aula de Filosofia. Enquanto
professores de Filosofia, desejamos contribuir na formação de alunos críticos,
pensantes e filosofantes, capazes de posicionarem-se perante aos problemas
apresentados e de agirem de forma contrária a falácias e argumentos inválidos.
Aqui, percebemos a relação entre Epistemologia, Filosofia e Crítica. Dado
que a epistemologia é um campo da Filosofia que se preocupa com a origem, com o
processo e com a validade do conhecimento, verificamos que só é possível criticar o
que é possível conhecer. Almejamos que nossos alunos de Filosofia tenham acesso
43
ao conhecimento, que possam de fato ter experiências significativas. Nesse sentido,
a crítica apresenta-se como um “divisor de águas” na diferença entre uma aula que
estimula a memorização e uma aula que estimula o raciocínio e um mergulho no
mundo epistêmico. De acordo com Antônio Joaquim Severino:
A criticidade situa o conhecimento num contexto mais envolvente do que a relação entre um sujeito e um objeto. Todo conhecimento se engendra num âmbito de totalidade do existir humano e, como tal, precisa ser sempre reavaliado. Para além de sua transparência imediatamente epistêmica e expressão lógico-conceitual, o conhecimento resulta da trama dos relacionamentos sócio-culturais. O conhecimento é fruto de uma prática histórica e traz essa marca. Por isso, nunca estamos diante de verdades absolutas, mas ante certezas provisórias cuja consolidação nasce da aplicação sistematizada de recursos também aperfeiçoáveis. A criticidade oferece a vigilância na percepção e superação das aderências ideológicas em nossas atividades subjetivas e objetivas. (2001, p. 151)
A possibilidade de conhecimento e sua relação com o criticismo são bem
explicadas por Johannes Hessen em:
O criticismo examina todas as afirmações da razão humana e não aceita nada despreocupadamente. Onde quer que seja, pergunta pelos motivos e pede contas à razão humana. O seu comportamento não é dogmático nem céptico, mas sim reflexivo e crítico. É um meio termo entre a temeridade dogmática e o desespero céptico. Existem sinais de criticismo onde quer que apareçam reflexões epistemológicas. (1987, p. 54)
O conceito crítica foi teorizado por vários filósofos e teóricos. Entre eles,
não poderíamos deixar de mencionar Immanuel Kant, fundador do criticismo que
emprega a crítica como um verdadeiro tribunal formado unicamente para realizar
julgamentos sobre a razão. Segundo Nicola Abbagnano, a crítica foi um “termo
introduzido por Kant para designar o processo através do qual a razão empreende o
conhecimento de si: "o tribunal que garanta a razão em suas pretensões legítimas,
mas condene as que não têm fundamento" (Abbagnano, 1998, p. 232). Desta forma,
a razão seria posta em xeque, pensada, avaliada e questionada através da crítica.
Kant leva as questões filosóficas para este tribunal nas suas três críticas: as obras
Crítica da Razão Pura (1781), onde avalia o conhecimento; Crítica da Razão Prática
(1788) em que examina a moral e a Crítica da Faculdade do Juízo (1790) onde a
crítica da faculdade de julgar estética e teleológica são examinadas.
No Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura, Kant traça uma
oposição da crítica em relação ao dogmatismo, como podemos perceber:
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A crítica não é contraposta ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro como ciência (pois esta tem que ser sempre dogmática, isto é, provando rigorosamente a partir de princípios seguros a priori), mas sim ao dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo princípios há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica precedente da sua própria capacidade. Essa oposição da crítica ao dogmatismo não deve por isso defender a causa da superficialidade verbosa, sob o pretenso nome da popularidade, ou mesmo do ceticismo (KANT, 1999, p. 47).
Percebemos, então, o quanto a crítica se contrapõe ao dogmatismo, que
professa a crença e opiniões sobre determinados assuntos sem abrir margem para
possíveis questionamentos. O dogmatismo afirma determinadas verdades e as
mantém como saberes autoritariamente inquestionáveis. Algo é como é e não pode
ser de outra forma. O conhecimento é acabado e não está aberto para novas
verdades, por ser incontestável.
A crítica é composta por duas características:
A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico (CHAUÍ, 2000, p. 9).
Desta forma, primeiramente, negam-se as verdades pré-estabelecidas e
posteriormente se investiga o que é, e por que, de fato, algo é. Assim, se estabelece
uma postura crítica perante algo. Nos despimos das nossas crenças e partimos para
um olhar novo, um olhar de quem não acredita cegamente em tudo o que vê ou
como vê, de quem quer enxergar com os olhos da razão, do pensamento.
Certamente, esta não é uma atitude fácil. Por acomodação, é muito mais
simples nos entregarmos aos braços da ideologia6. Porém, esta atitude crítica pode
6 Marilena Chauí explica o conceito ideologia nessa passagem: “... os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas idéias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas” (CHAUÍ, 1982, p. 21).
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e deve ser estimulada e construída através de um ensino de filosofia que desperte,
que retire o aluno da quietude e da aceitação, dos pré-conceitos e o faça pensar por
si, que o liberte e o faça autônomo para poder ir contra as ideias massificadas e
enraizadas socialmente.
O conceito de crítica também aparece na obra de Karl Marx que emprega
o termo em várias de suas obras, entre elas: O Capital: crítica da economia política,
Crítica à Filosofia do Direito de Hegel e Contribuição à Crítica da Economia Política,
entre outras. Numa visão geral, Marx utilizava a crítica para analisar a realidade de
uma forma ontológica, para vê-la no seu processo de formação e desenvolvimento e
para buscar possíveis alternativas de transformação, como podemos perceber no
artigo escrito por Elaine Cristina dos Santos Lima, Estevam Alves Moreira Neto e Ivo
Tonet:
(…) para Marx, crítica é: a) análise genética das entificações (o que é), b) busca histórico-social dos pressupostos (como se formou), c) explicitação da processualidade do ser em si mesmo (como se desenvolve) e d) exposição dos limites e possibilidades de transformação do real (como ir radicalmente adiante). (LIMA; NETO; TONET, 2009, p. 5)
Assim, podemos perceber o caráter não somente conceitual do termo,
mas também a sua relação com o social. E, desta forma, fica evidente que a partir
de uma atitude crítica, a partir de uma mudança de pensamentos, o indivíduo pode
tornar-se capaz de efetivar ações e comportamentos sociais mais conscientes,
maduros e transformadores, visto que, quem critica algo não aceita de imediato as
“verdades” enraizadas socialmente: tenta compreendê-las e, se for o caso,
transformá-las.
Outro filósofo que enfatiza o senso crítico é o francês Michel Foucault. Na
introdução da História da Sexualidade 2 - O uso dos prazeres, o autor fala sobre o
filosofar:
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se
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sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O “ensaio” - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma “ascese”, um exercício de si, no pensamento. (FOUCAULT, 1998, p. 13) (Grifos meus)
Nessa perspectiva, percebemos o quão crítica é a Filosofia. Por vezes,
necessitamos construir, desconstruir e reconstruir conceitos. E estes passos estão
sempre inclusos em um processo de crítica: fazem parte de uma atitude de avaliar,
reavaliar, passar pelo crivo do julgamento e formular novamente os conceitos que
nos são dados. Este “jogo” torna-se incessante ao assumirmos uma postura crítica.
Tudo o que se sabe está sujeito a reformulações, mesmo as nossas verdades mais
legítimas. Nada é permanente, pois há um devir, há a possibilidade de revermos
nossos conceitos e existe sempre a chance de nos reapropriar de nossos
conhecimentos.
Nota-se que há, no senso comum, uma certa confusão entre criticar, no
sentido pejorativo, de discutir, nomear defeitos, etc., com o que estamos querendo
expressar aqui. Quanto a isso, falam e esclarecem muito bem Deleuze e Guattari:
Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio. Mas aqueles que criticam sem criar, aqueles que se contentam em defender o que se esvaneceu sem saber dar-lhe forças para retornar à vida, eles são a chaga da filosofia. São animados pelo ressentimento, todos esses discutidores, esses comunicadores. Eles não falam senão deles mesmos, confrontando generalidades vazias. A filosofia tem horror a discussões. Ela tem mais que fazer. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.42)
A crítica envolve criação e movimento. Este movimento implica também
no método dialético, que envolve, em seu processo, três momentos: tese, antítese e
síntese. Ao confrontarmos uma tese com sua antítese, é possível obter uma síntese
e esta síntese pode vir a ser uma nova tese. Esse movimento gera uma
circularidade em que é viável pensar e repensar criticamente nossas relativas
“verdades”. Retornando às questões propostas no início do texto, podemos pensar
esses elementos em uma aula de filosofia embasada por um currículo crítico. Não
47
basta simplesmente questionar, porquanto a crítica exige ainda que se crie e inove
conceitos, conforme nos fala Paulo Freire (1996, p. 86)
Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas. Isto não significa realmente que devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.”
A dialogicidade é capaz de estimular a curiosidade e a criticidade. Um
indivíduo curioso vai atrás dos conhecimentos que pretende descobrir e desvendar,
indaga, questiona e pensa consistentemente. Assume, enfim, a postura de um
sujeito crítico, de alguém que está na sociedade e que reconhece a si, aos fatos e
aos outros com olhos ingenuamente curiosos. Um ser que se torna um agente
transformador, ao invés de um espectador passivo. Desta forma, percebemos,
então, que a crítica é algo que não pode faltar em uma aula de Filosofia que
pretenda formar, como diria Freire, em sua Pedagogia da Autonomia, “gente mais
gente”. Gente que possa ir além e buscar verdades que estão por detrás das
aparências e que consigam ser cada vez mais independentes, autônomas e
emancipadas.
É na esteira da pedagogia freiriana e de outras teorias filosóficas
contemporâneas que o termo crítica passa a ostentar um semblante social, fazendo
aparecer a pedagogia crítica que, de acordo com Porto (2006), “ ... é uma junção do
marxismo humanista, da Escola de Frankfurt, com a pedagogia do oprimido, de
Paulo Freire” (p.26).
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Ainda, relativamente à teoria crítica frankfurtiana, a importante herança
que nos deixa é a de trazer à tona um tipo de dialética crítica persistente, em
especial da sociedade industrial e tecnológica. Segundo alguns autores, em
especial, destaco Habermas7, talvez tenha sido excessivo o empenho da Escola de
Frankfurt em reduzir tecnologia à ideologia. Porém, é inegável que o tom crítico dos
frankfurtianos conferiu a sua sociologia uma intensidade inequívoca de consciência
crítica do capitalismo.
Como educadora, penso que a educação possui um compromisso com a
crítica. E a Filosofia, nesse meio, não pode abster-se da tarefa de formação de
mentes críticas. Um educador que esteja interessado em formar pessoas que
inovam, ousam e vão além da reprodução daquilo que a sociedade lhes apresenta,
que buscam aptidão para questionar o status quo que vivem e que não se rendem
aos apelos alienadores das ideologias e de um pensamento massificado, certamente
manterá uma relação com a criticidade. Nas palavras de Streck:
O objetivo principal da educação é criar pessoas que são capazes de fazer coisas novas, não de simplesmente repetir ... O segundo objetivo da educação é formar mentes que sabem ser críticas, sabem verificar e não aceitam tudo que lhes é oferecido. O grande perigo, hoje, é de slogans: opiniões coletivas, correntes de pensamento prontas para o consumo. Nós temos que ser capazes de resistir individualmente, de criticar, de distinguir entre o que pode e o que não pode ser provado... (1994, p. 122).
Desta forma, ao aceitarmos a premissa de que a Filosofia consiste em
buscar a elaboração de um pensamento que pensa a si mesmo e que leva o sujeito
a uma reflexão e a um pensar elaborado, interrogado e maduro; ao levarmos em
conta que seu ensino deve estar de acordo com tais fundamentos, concluímos que a
criticidade é uma competência que necessita estar presente em todo e qualquer
ensino que se diga filosófico e reflexivo.
Na sequência do texto, apresento o que vem a ser uma perspectiva
histórico-crítica, o referencial teórico aqui escolhido para dar sustentação e base
filosófica à pesquisa.
7 Sobre este tema, ver Pedro Demo em Solidariedade como efeito de poder, p. 31.
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3.3. A Perspectiva Histórico-Crítica no contexto do Ensino de Filosofia
Porque a Filosofia não se exerce no vazio, da mesma forma que a História não se dá em abstrato; quer dizer, a Filosofia é uma atitude que se dirige a algo e a História é
uma história concreta, portanto, história de alguma coisa.
Dermeval Saviani
Assumir o compromisso de realizar um trabalho condizente com a
perspectiva histórico-crítica de Dermeval Saviani, é, no mínimo, provocador para
mim, enquanto pesquisadora e docente. Como pesquisadora, considero um desafio
escrever um trabalho acadêmico a partir de um referencial tão relevante como esta
perspectiva o é, tendo em vista a responsabilidade que me cabe e que de mim pode
ser exigida. Como docente, também, por defender o engajamento da prática
educativa em que é proposta uma educação transformadora, que leva em conta
seres históricos e que valoriza a formação de mentes críticas.
Em linhas gerais, a Pedagogia Histórico-Crítica
(…) surgiu no início dos anos de 1980 como uma resposta à necessidade amplamente sentida entre os educadores brasileiros de superação dos limites tanto das pedagogias não-críticas, representadas pelas concepções tradicional, escolanovista e tecnicista, como das visões crítico-reprodutivista, expressas na teoria da escola como aparelho ideológico do Estado, na teoria da reprodução e na teoria da escola dualista. (SAVIANI, 2008, p. XIV)
50
Assim, Dermeval Saviani, professor e pesquisador brasileiro, atento às
necessidades teóricas de sua época, propõe essa forma de conceber a educação.
Ao contrário de outros educadores, refuta formas não-críticas de docência e coloca-
se como contrário à Teoria Tradicional de Currículo8, ao Tecnicismo9 e às propostas
de uma Educação Redentora10; bem como todas as suas práticas, que elegem o
professor como detentor da verdade, que valorizam a memorização, afastam toda a
possibilidade de uma reflexão por parte do aluno e que elegem a educação como
um meio para redimir a sociedade à sua forma (perfeita) e original, respectivamente.
Mas, Saviani não parou por aí. Além de analisar as Teorias Tradicionais de Currículo,
ainda reservou um olhar atento para as Teorias Crítico-Reprodutivistas, que afirmam
a educação como uma reprodução da sociedade. Estas teorias traçam diagnósticos
do que acontece na educação inserida no âmbito social e a enxergam como mera
reprodutora dos problemas (e também dos aspectos positivos) dessa mesma
sociedade. De uma forma um tanto determinista, a educação funciona como um
reflexo do social, ou seja, ela encontra-se num processo de dependência e de
causalidade em relação ao seu meio social. Nas palavras do autor, a Teoria Crítico-
Reprodutivista
(…) revela-se capaz de fazer a crítica do existente, de explicitar os mecanismos do existente, mas não tem proposta de intervenção prática, isto é, limita-se a constatar e, mais do que isso, a constatar que é assim e não pode ser de outro modo.
8 A Teoria Tradicional de Currículo refere-se a uma concepção de ensino em que a crítica reflexiva, análises sociológicas e psicológicas da educação na sociedade são evitadas. Trata os conteúdos passados aos alunos como verdades inquestionáveis, onde o professor aparece como uma figura detentora de poder e como alguém que meramente transmite conhecimentos e reforça valores, sem a preocupação de problematizá-los.
9 O Tecnicismo é uma corrente pedagógica que tem inspirações behavioristas e busca adequar o ensino às exigências do mercado de trabalho capitalista. O aluno é, assim, “treinado” para o trabalho. O ensino, para esta tendência, é um mero condicionamento do aluno, através de reforços positivos ou negativos, visando à adaptação deste num futuro ambiente trabalhista. Para dar origem à produtividade, valorizam-se os métodos e as técnicas e evitam-se práticas de ensino de origem crítica.
10 A Educação Redentora é uma tendência filosófico-política que tem inspirações religiosas e confere à Educação a tarefa de “salvar” a sociedade e fazê-la retornar à sua verdadeira forma harmônica e orgânica. Para tal concepção, o que importa é manter e conservar a sociedade, regenerando os desvios que a mesma possa apresentar. De acordo com Cipriano Luckesi (1990, p.38), a Educação Redentora prioriza a formação da personalidade dos indivíduos e a veiculação dos valores éticos necessários à convivência social.
51
(…) segundo ela, é impossível que o professor desenvolva uma prática crítica; a prática pedagógica situa-se sempre no âmbito da violência simbólica, da inculcação ideológica, da reprodução das relações de produção. (SAVIANI, 2008, p. 67)
Saviani concorda com os autores crítico-reprodutivistas no sentido de que
estabelecem e prioriizam a importância de se perceber a sociedade tal qual ela é,
com suas mazelas, suas peculiaridades e suas reproduções. O autor valoriza ainda
o fato de essas teorias realizarem a crítica ao existente e explicitarem os
mecanismos de como isto acontece, pois a percepção do que está dado pode ser
um primeiro passo para uma transformação social. No entanto, a diferença entre o
pensamento do criador da Pedagogia Histórico-Crítica e dos teóricos reprodutivistas
se dá pelo fato de esses últimos apontarem somente para a análise da educação no
meio social, sem, entretanto, proporem nenhum tipo de ação pedagógica para
transformar o meio social. Os crítico-reprodutivistas não apontam um caminho ou
uma saída para o problema da reprodução, simplesmente a mostram e apresentam
uma visão um tanto pessimista dos fatos sociais. Saviani, por sua vez, não se
contenta com a determinação da reprodução. Procura estratégia teórica a fim de ir
além, de procurar romper com as barreiras existentes no ambiente educacional e de
contribuir para a transformação social. Assim, para dar conta de uma teoria que
contemple a crítica, e que apresente proposições e indícios para a educação,
Dermeval Saviani propõe a Pedagogia Histórico-Crítica que, por sua vez,
(…) vai tomando forma à medida que se diferencia no bojo das concepções críticas, [ela] diferencia-se da visão crítico-reprodutivista, uma vez que procura articular um tipo de orientação pedagógica que seja crítica sem ser reprodutivista. (Idem, Ibidem, p. 65)
É relevante ressaltar que a pedagogia de Dermeval Saviani valoriza
constantemente o espírito crítico na prática pedagógica. Outro aspecto a se destacar
é o de que sua teoria deve ser trabalhada desde uma ótica histórico-social, em que
52
se dá ênfase aos sujeitos inseridos numa sociedade; inserção esta que acontece
por meio de toda uma construção historicamente dada e que ainda salienta a
possibilidade de transformação da sociedade e da construção de novos momentos
históricos. E, não podemos esquecer, do papel da dialética no contexto educacional.
Esta teoria possui características peculiares que considero importantes e
adequadas para analisar a educação brasileira. Entre elas, ressalto o papel já citado
da dialética, onde se parte da síncrese, passa-se pela análise e chega-se à síntese.
E para o referencial teórico da Pedagogia Histórico-Crítica, este movimento de ideias
que ocorre no pensar dialético acontece também nos espaços educativos. João Luiz
Gasparin, na obra Uma didática para a Pedagogia Histórico-Crítica, aponta para o
fato de que:
Essa metodologia dialética do conhecimento perpassa todo o trabalho docente-discente, estruturando e desenvolvendo o processo de construção do conhecimento escolar, tanto no que se refere à nova forma de o professor estudar e preparar os conteúdos e elaborar e executar seu projeto de ensino, como às respectivas ações dos alunos. A nova metodologia de ensino-aprendizagem expressa a totalidade do processo pedagógico, dando-lhe centro e direção na construção e reconstrução do conhecimento. Ela dá unidade a todos os elementos que compõem o processo educativo escolar. (GASPARIN, 2009, p. 5)
Nessa metodologia, então, a dialética se dá da seguinte forma: parte-se
da prática (síncrese, tese, visão caótica do todo), teoriza-se sobre esta prática
(análise, antítese, momento de abstração e pensamento) e se retorna à prática
visando transformações (síntese, momento de ação sobre a totalidade). E esse
movimento se dá continuamente. A síntese dá origem a uma nova tese, que dá
origem a uma nova antítese e pode gerar uma nova síntese, dando margem para
novas (trans)formações. O próprio Dermeval Saviani afirma que a “pedagogia
histórico-crítica pode ser considerada sinônimo de pedagogia dialética” (SAVIANI,
2008, p. 87). Essa teoria só não foi assim denominada em função das diferentes
53
conotações que a palavra dialética poderia causar nos leitores, como aproximações
com o dialógico, entre outras. Entretanto, o sentido empregado aqui para o termo
“dialético” seria o de um “movimento objetivo do processo histórico” (Idem, Ibidem,
p. 87).
O Ensino de Filosofia “encaixa-se” nesta perspectiva por vários aspectos.
Entre eles, o fato de a disciplina de Filosofia ser um exemplo de um saber que, na
realidade curricular brasileira, sofreu um enorme movimento dentro de seu processo
histórico, em função de sua exclusão dos currículos escolares e de seu recente
retorno. E esse movimento não se deu somente no plano das ideias, das abstrações
filosóficas e da dialética propriamente dita. Deu-se, também, em seu caráter visível,
social, humano e cultural.
A Filosofia, nesses cinquenta anos a que a pesquisa se refere, já foi vista
de várias formas, passou por diferentes etapas, o que configura, sem dúvida, um
processo dialético, tanto no seu acontecer/aparecer quanto no seu ressurgimento. A
Filosofia, enquanto disciplina escolar, no caso que aqui relatamos, está, sim,
impregnada da dialética.
No início da década de 1960, ela ocupava um espaço na grade curricular
e ainda era valorizada como uma disciplina cujas contribuições eram muito
relevantes para a formação dos alunos dentro do espaço pedagógico. Este
pensamento pode ser entendido como uma tese, como uma proposição inicial de
onde partimos para analisar os processos a partir dos quais essa disciplina é
analisada dentro do contexto desta pesquisa, ou seja, o ponto de saída, o
pensamento primeiro, que consistia no fato de a Filosofia ser vista como disciplina
relevante para o âmbito educacional.
54
Visto que, no movimento dialético, uma tese pode gerar uma antítese, um
pensamento oposto e contrário ao anterior, a Filosofia, passa a ocupar, assim um
lugar totalmente oposto nas ideias e na realidade educacional brasileira. De
disciplina obrigatória e valorizada, passa a ser vista como perigosa, subversiva,
comunista e proibida nos espaços escolares em função do Golpe Militar de 1964 e
de todo o contexto ditatorial que o país se encontrava na época.
Enfim, através de uma tese e de uma antítese, a dialética nos proporciona
a capacidade de síntese, de uma junção dessas duas visões antagônicas de forma
que se possa ter uma visão geral da questão, de forma mais elaborada, pensada e
refletida e, ainda, de transformação das visões anteriores. Desta forma, depois de
36 anos de extinção e esquecimento da disciplina de Filosofia nos ambientes
escolares brasileiros, hoje temos o retorno da Filosofia nas escolas; e esta volta do
filosofar como uma atividade presente na grade curricular certamente acontece de
uma forma diferente daquele filosofar que tínhamos na década de 1960, pois, no
meio do caminho dialético, houve transformações que fizeram com que nossa visão
do filosofar nos dias de hoje venha impregnada desse trajeto, dessa caminhada – de
tese e antítese – e que, por sua vez, não se dá de forma dicotomizada.
Desta forma, esta dissertação pretende analisar o Ensino de Filosofia
desenvolvido no Colégio Municipal Pelotense, a partir dos elementos norteadores
oriundos de uma Filosofia da Educação que parte de pontos da Perspectiva
Histórico-Crítica, uma perspectiva que considera a educação como um elemento
que “interfere sobre a própria sociedade, podendo contribuir para a sua
transformação” (Idem, Ibidem, p. 93). Concordo com a Perspectiva Histórico-Crítica
e acredito que o Ensino de Filosofia possui o potencial de contribuir com a formação
da criticidade, de acrescentar elementos para que os alunos sintam-se mais
55
conscientes de seu papel histórico-social e motivem-se a despertar para o sentido
de transformação intrínseco a cada cidadão.
E de qual transformação estamos falando? De uma espécie de conversão
que acontece desde o momento em que o homem modifica a natureza a partir da
intervenção nela realizada. Transformação a partir da valorização do trabalho, do
papel que cada um desempenha dentro da sociedade. Transformação que se dá
desde os primeiros instantes de vida, pois, a todo momento, somos seres em
mudança. Somos seres em desenvolvimento, em constante devir, em contínuo
processo de aperfeiçoamento. Seres que já se converteram, que já cresceram,
deixaram de ser crianças, adolescentes e jovens. Seres que ainda se modificarão e
que, por possuir a marca da transformação em suas existências, podem modificar o
meio em que vivem e em que estão inseridos. Esta é uma marca do
desenvolvimento histórico, a marca da mudança e da cultura. Nas palavras de
Saviani:
(…) o homem necessita produzir continuamente sua própria existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é feito através do trabalho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é o trabalho (Idem, Ibidem, p. 11).
O trabalho ocupa, então, um lugar central da vida humana. É através do
trabalho que o homem age, modifica a natureza, transforma o mundo ao seu redor.
O trabalho dignifica o homem e através dele o homem constrói sua identidade, se
reconhece e se educa. Nesse sentido, a educação deve estar sempre acompanhada
de um trabalho produtivo, que se opõe ao trabalho alienado, realizado de forma
mecânica e sem reflexão. O trabalho alienado faz com que o homem não se
reconheça nos produtos resultantes de seu trabalho, como algo vindo de si mesmo.
Desta forma, produzir é educar e vice-versa. Quem produz, o faz porque aprendeu
56
algo, pois não há produção sem um aprendizado prévio. Da mesma forma que quem
educa espera uma transformação no educando, almeja que este possa apresentar
tanto produções apre(e)ndidas no processo educativo quanto uma transformação no
seu todo enquanto ser humano. Quem aprende algo se modifica, se transforma, pois
possui um conhecimento que antes não tinha. Assim, todo processo educativo
envolve o fazer técnico, pois não há aprendizado sem ação, sem atividades tanto
concretas, quanto no âmbito da abstração.
Neste ponto, Saviani parte de influências marxianas, onde há a
valorização do trabalho como princípio educativo. O princípio da educação marxiana
é desenvolver a omnilateralidade do ser humano, tendo como princípio de síntese o
trabalho. O ser humano necessita produzir para ser essencialmente humano. A
Pedagogia do Trabalho11 é, então, uma marca marxista. O trabalho produtivo é
aquele em que o indivíduo produz a si mesmo e alimenta o próprio ser. O trabalho
possui também uma dupla face: a de dignificar a existência humana (trabalho
produtivo) e a de desumanizar o homem (trabalho alienado).
Partindo da perspectiva do trabalho como um princípio educativo e
levando em consideração que a abstração, o raciocínio lógico e outras habilidades
de pensamento com que a Filosofia lida se constituem em trabalhos, ainda que no
âmbito intelectual, percebe-se que a aula de Filosofia é um espaço onde se pode
pensar determinadas questões em sala de aula e produzir subsídios teóricos para a
ação na práxis social, pois “A teorização é um processo fundamental para a
apropriação crítica da realidade, uma vez que ilumina e supera o conhecimento
imediato e conduz à compreensão da realidade social” (GASPARIN, 2009, p. 7).
11 Existe, na literatura marxista, a expressão Escola do Trabalho, expressão cunhada pelo autor alemão Georg Kerschensteiner (1852-1932).
57
Outro pedagogo que se enquadra na tendência histórico-crítica é o
francês Georges Gusdorf. Ao tratar do papel do professor de Filosofia, na obra
“Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia”, é interessante a sua
consideração acerca da questão, englobando a criticidade e a importância do
espaço global, onde se situam a consciência histórica e social. Para ele:
A aula de filosofia é esse momento privilegiado numa existência onde o espaço mental se alarga até coincidir com o espaço vital inteiro. Sócrates conta, no Fédon, a sua aula de filosofia com Anaxágoras; ao jovem, perplexo e perturbado perante a desordem, a contradição das aparências, o filósofo ensina que só a intervenção do espírito pode introduzir a ordem por toda a parte. Revelação surpreendente e maravilhosa: o mundo repousa no pensamento (2003, p. 252).
Moacir Gadotti e suas ideias pedagógicas podem ser mencionados como
pertinentes à Perspectiva Histórico-Crítica. Ao formular a Pedagogia do Conflito,
Gadotti expõe a forma como concebe a educação. A Pedagogia do Conflito traz
elementos da categoria dúvida, em seu sentido cartesiano. Semelhante aos demais
autores trazidos nesse escrito, a proposta de Gadotti também valoriza as questões
relativas à criticidade, às relações da educação com o âmbito político e com a
historicidade. Analisa, ainda, com um olhar mais atento, questões relativas à
Filosofia da Educação. O autor define sua abordagem da seguinte forma:
Uma pedagogia do conflito é essencialmente crítica e revolucionária. Isso significa que ela não esconde as relações existentes entre educação e sociedade, entre educação e poder, ou seja, ela não esconde o papel ideológico, político , da educação (1985, p. 59).
Assim, ao tratarmos de uma Perspectiva Histórico-Crítica e não somente
da Pedagogia Histórico-Crítica, a dissertação pode basear-se em vários autores que
fazem parte de uma linha de pensamento afim, a partir de possíveis comparações e
categorizações de elementos em comum de uma teoria com a outra. Ao compartir
dos pressupostos desta perspectiva, Antônio Joaquim Severino aparece também
58
como um autor que possui elementos em seus escritos que podem aproximá-lo
muito do paradigma Histórico-Crítico. Assim como Saviani, situa esses e outros
elementos no universo educacional. Sua obra mantém como axioma a ideia de que
o homem é definido por uma tríplice prática, em que se relaciona com o trabalho,
com a sociabilidade e consigo próprio, através da cultura simbólica. Nas palavras do
educador:
(…) o homem tem o seu ser definido pela sua prática real efetiva. Ele é aquilo que ele se faz, ao fazer as coisas. E para fazer as coisas, para agir, ele se coloca em relação com a natureza, com os outros homens e com os produtos simbólicos de sua subjetividade.
(…) o homem é um ser de relações efetivadas mediante uma prática complexa e ao longo de um tempo histórico. É o que se pretende dizer quando se afirma que o homem é um ser histórico-social (1994, p. 108, grifos do autor).
Por fim, gostaria de citar Paulo Freire como um autor que possui os
requisitos para ser classificado como pertencente à perspectiva da qual falamos.
Freire, ao valorizar a criticidade, a importância de se respeitar o “mundo”, os
saberes dos educandos (seus contextos histórico-culturais-políticos), ao apostar na
possibilidade de transformação e ao trazer inspirações marxianas da mesma forma
com que Saviani as carrega, mostra que tem muita coisa em comum com os demais
autores aqui citados. Nas palavras de Freire, identifico o método dialético na sua
definição do que vem a ser um bom professor:
Neste sentido, o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma “cantiga de ninar”. Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas (1996, p.86, grifos do autor).
Dessa forma, a pesquisa realizada foi norteada por diversos olhares,
mantendo presentes alguns princípios e pressupostos centrais, que serviram para
nortear os caminhos metodológicos percorridos. Dentre os quais se destacam:
59
− a valorização de um pensar crítico nos ambientes pedagógicos;
− a consciência de que os envolvidos na pesquisa (professores, alunos,
funcionários) são indivíduos dialeticamente histórico-políticos;
− a importância do trabalho produtivo como um elemento pedagógico e
como um elemento de transformação social; entre tantos outros pontos presentes na
perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica.
Tais pressupostos influenciaram os processos, tanto de busca de dados,
quanto de análise. Dados e análises que, acredito, possam contribuir para que a
história do Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense seja contada e possa
representar uma contribuição para aqueles que porventura se lancem a pesquisar
sobre a temática em questão.
O Ensino de Filosofia é aqui pesquisado pelo exemplo de uma escola
local. Entretanto, mesmo se tratando da análise de um caso, os processos filosófico-
formativos não acontecem de modo estanque e isolado, mas no contexto de uma
educação que clama por seres mais críticos e conscientes de seu papel histórico
dentro da sociedade da qual fazem parte.
Assim, minha opção pela visão histórico-crítica se dá pelo fato de
contemplar os princípios elencados, os quais considero apropriados e relevantes
para tratar do assunto em questão.
A seguir, passo à pesquisa de fato. Inicio pelo Ensino de Filosofia no início
da década de 1960, nos anos que antecederam o Golpe Militar de 1964 e,
posteriormente, passo aos períodos subsequentes, intencionando contar a história
da disciplina no período que me proponho retratar.
PARTE II – ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE
DE 1960 A 2008
CAPÍTULO 1. O ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE: PERÍODO ANTERIOR AO GOLPE MILITAR DE 1964
Num mundo destinado ao silêncio, a Filosofia, que é discurso, talvez deva ser
defendida e talvezvalha a pena lutar pela liberdade de
interrogar.
Marilena Chauí
1.1. Contextualização histórica
1960. Início de uma nova década. Jânio Quadros é eleito presidente do
Brasil. Com uma campanha bem popular, traz, como símbolo, sua “vassourinha” e,
como objetivo, apresenta o desejo de “varrer” toda a corrupção do país. Contudo, os
ideais imaginados por Jânio Quadros não se concretizam de modo tão fácil. Esse
período representa um momento de crise e de grandes mudanças, tanto no Brasil,
quanto em outros países. Em 13 de agosto de 1961, fora construído o Muro de
Berlim, na Alemanha. A construção do muro se dá como uma forte tentativa de
implantação do comunismo no país, representava uma ideia inspirada nos princípios
de Karl Marx e simbolizava a divisão do país em dois mundos. De um lado, estava
Berlim Ocidental com seu sistema político capitalista e, de outro, Berlim Oriental com
o sistema comunista, baseado no pensamento marxiano.
Dias após a construção do Muro de Berlim, em 25 de agosto de 1961,
acontece no Brasil a renúncia de Jânio Quadros. No dia 7 de setembro desse
mesmo ano, ocorre, depois de muita polêmica, a posse do vice-presidente João
Belchior Marques Goulart, popularmente chamado de “Jango”.
Era um período conturbado, em que ideais opostos mediam forças. De um
lado, Jango, com suas tendências ideológicas e de outro, representantes de direita,
que se opunham e temiam que o modelo socialista se implantasse no Brasil, como
62
ocorrera em outros países. Um exemplo disso pode ser visto no manifesto que os
senhores Silvio Heck, ministro da Marinha, em conjunto com o marechal Odílio
Denys, ministro da Guerra e com o brigadeiro Grün Moss encaminham na época à
nação:(…) no quadro da grave tensão internacional em que vive, dramaticamente, o mundo de nossos dias, com a comprovada intervenção do comunismo internacional na vida das ações democráticas e, sobretudo, nas mais fracas, avultam, à luz meridiana, os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil. (…) Estão as Forças Armadas profundamente convictas de que, teremos desencadeado no país um período inquietador de agitações, de tumultos e mesmo de choques sangrentos nas cidades e nos campos, de subversão armada, enfim através da qual acabarão ruindo as próprias instituições democráticas e, com elas, a justiça, a liberdade, a paz social, todos os mais padrões da cultura cristã. Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder ao chefe do Governo, o Sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em simples milícias comunistas. Arrostamos, pois, o vendaval já esperado, das intrigas e das acusações mais despudoradas, para dizer a verdade tal como é, ao Congresso dos representantes do povo e, agora, ao próprio povo brasileiro. As Forças Armadas estão certas da compreensão do povo cristão, ordeiro e patriota do país (Apud SILVA, 1975, p. 47).
Jango era visto como alguém que despertava um certo grau de
instabilidade e receio para os interesses dos representantes das forças militares.
Mesmo assim, através da Campanha da Legalidade, coordenada por Leonel Brizola,
conseguiu tomar posse e assumir o cargo da presidência do país até 1964.
Nesse período, uma Guerra Fria estava consolidada no ambiente global.
Sem armas bélicas, nem disputas sangrentas, esta guerra se traçava no âmbito
ideológico e social. De um lado, havia os países que defendiam que o socialismo
fosse o regime vigente e, de outro, aqueles que eram a favor de sociedades
capitalistas.
O contexto desenhado, no campo da educação brasileira, trazia uma
reforma. Era criada a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961. Através da Lei 4.024,
de 20 de dezembro de 1961, havia a possibilidade dos Conselhos Estaduais de
Educação de indicar disciplinas complementares e optativas aos estabelecimentos
de ensino, dita desta forma:§1º – Ao Conselho Federal de Educação compete indicar, para todos os sistemas de ensino médio, até cinco disciplinas obrigatórias, cabendo aos conselhos estaduais de educação completar o seu número e relacionar as de caráter optativo que podem ser adotadas pelos estabelecimentos de ensino (BRASIL. Decreto de lei no 4.024, de dezembro de 1961).
63
A Filosofia passa, de disciplina obrigatória ao posto de disciplina
complementar, ou seja, optativa aos estabelecimentos de ensino. Esta era, então, a
situação da disciplina de Filosofia no contexto que antecedia o Golpe Militar de
1964. Os fatos que se sucederam nos anos seguintes, relativos à retirada da
Filosofia dos currículos escolares, não aconteceram de um instante para o outro,
foram o mais claro reflexo de um processo que já vinha acontecendo nos anos
anteriores e que sofreu influência de todos os acontecimentos ocorridos tanto no
restante do Brasil quanto em outras partes do mundo.
Cruz Costa pode ser visto como um “visionário” desses fatos. Em sua
obra, Panorama da História da Filosofia no Brasil, escrita no ano de 1960, o autor já
nos fornece algumas pistas do que estava para acontecer nos próximos anos:Discutiu-se, e continua a ser discutida, a posição da Filosofia no currículo secundário. Há quem hoje queira eliminá-la dêste currículo como ontem também houve quem assim pensasse (COSTA, 1960, p. 112).
Adiante, o autor volta a falar sobre a iminência da extinção do Ensino de
Filosofia no Brasil, que se daria alguns anos após: ”Proponho, desde logo, (…) uma declaração, firme e decidida a favor da manutenção do ensino da Filosofia no currículo do ensino secundário, hoje ameaçado por uma nova reforma que, parece, pretende eliminá-lo” (Ibidem, p. 113).
Os acontecimentos que viriam a seguir foram intuídos de alguma maneira
por professores atentos aos acontecimentos sóciopolíticos de seu país, como foi o
caso do prof. Cruz Costa.
Sobre o Decreto-Lei nº 4.024, também chamado de Lei de Diretrizes e
Bases de 1961, e a posterior extinção do Ensino de Filosofia no contexto brasileiro,
Marilena Chauí fala:Cumpre lembrar, antes de tudo, que a supressão é facilitada pelo fato de ter sido precedida pela passagem da Filosofia à condição de optativa, de sorte que sua quase inexistência anterior preparou gradativamente um consenso difuso acerca de sua abolição necessária (1978, p. 8).
Assim, a retirada do Ensino de Filosofia das escolas não foi um processo
que se deu de um instante para o outro. Aconteceu através de pequenas mudanças
iniciais nos currículos, até o momento do ato derradeiro, o da implantação de um
sistema de ensino que não mais privilegiava o pensar e a reflexão filosófica.
64
1.2. Ensino de Filosofia no CMP – Início dos Anos 60
Podemos dizer que o início da década de 1960, período de tempo
escolhido para dar início à história do Ensino de Filosofia no educandário pelotense,
foi o “começo do fim”, o ponto de partida para todo o processo que irá se desenrolar
pelas próximas décadas, chegando até o ano de 2008. Felizmente, podemos dizer
que este “fim” foi ocasional e não definitivo. Todavia, merece que nos debrucemos a
desvendar todos os seus processos, a fim de que possamos estar esclarecidos com
relação aos episódios que culminam com a suspensão do Ensino de Filosofia na
história brasileira.
Diante dos fatos, o Ensino de Filosofia realizado no Colégio Municipal
Pelotense, logicamente, não poderia dar-se de forma isolada. O Colégio não era
uma “ilha”, distante e isolada do que acontecia em relação à legislação e ao contexto
de seu país e da história mundial. Uma instituição escolar é composta por pessoas
que vivenciam uma conjuntura; e estas pessoas sofrem influências ideológicas e
políticas que afetam suas relações no meio social do qual fazem parte. E a escola,
depois da família, é o grupo social em que os estudantes por mais tempo convivem,
consistindo no espaço onde são construídas visões, amizades e direcionamentos
diversos. De acordo com Camargo,As sociedades buscaram estabelecer o que deveria constituir a educação em uma determinada época e, a partir do aparecimento do Estado Moderno, foi sendo normatizada através das constituições nacionais e de legislações específicas. Essas leis tinham a intenção de definir os objetivos, os meios e as finalidades da educação, originando diversas ideologias e formas de conceber a educação, como também refletindo os anseios e o projeto político e social de cada sociedade. As instituições, via de regra, estiveram quase sempre submetidas ao controle centralizador do Estado. Entretanto, considerando a dinamicidade e a complexidade social, a educação foi sendo permeada por movimentos, anseios e desejos. Cada indivíduo, grupo, comunidade e instituição corroboram afirmando/ negando/ reconstruindo/ cultivando a educação e, com isso, transformando-a e sendo transformado por ela. Não há como restringir a educação como mera mantenedora, reprodutora, redentora ou transformadora da vida social (CAMARGO, In CORSETTI; TAMBARA, 2008, p. 253).
Assim, o Colégio Municipal Pelotense teve suas peculiaridades, seus
aspectos característicos e, mesmo sofrendo as influências inevitáveis do Estado,
ainda é capaz de revelar sua riqueza, além de representar, enquanto espaço
escolar, os anseios e desejos daqueles que por lá passaram.
Na esteira deste pensamento, Amaral (2003, p.12) nos fala:A compreensão de nossa realidade atual, suas características e possibilidades futuras nos remetem sempre à busca da compreensão dos
65
percursos trilhados, às origens do processo que estamos vivenciando. Um caminho necessário à contextualização deste processo leva à necessidade de regionalizar os estudos históricos, limitando no tempo e no espaço o trabalho de investigação histórica.
A partir desse objetivo, podemos enxergar o Ensino de Filosofia como um
processo que muito tem a nos contar não apenas para que possamos compreender
como se ensina e se aprende a filosofar. O ensino da disciplina foi profundamente
afetado por fatores diversos que nos fornecem indícios dos aspectos sociológicos,
políticos, culturais e pedagógicos de cada época.
Como o colégio é uma instituição municipal, penso que seja relevante
citar os nomes dos governantes de cada época. Nesse período, Pelotas tinha como
prefeito o Sr. João Carlos Gastal (PTB). No Colégio Municipal Pelotense, o diretor
da escola, de 1960 a 1963, foi o Prof. Rafael Alves Caldela.
A disciplina de Filosofia foi ministrada pelo Prof. Dr. Silvino Lopes Neto.
Em entrevista realizada na ocasião da pesquisa, através de memórias riquíssimas
que muito me ajudaram a compreender “aqueles tempos”, o professor Silvino
mostrou-me diversos elementos que nos ajudam a entender como acontecia o
ensino e como acontecia a condição de ser o professor de Filosofia no CMP naquela
época.
O professor Silvino Lopes Neto começou sua carreira docente aos
dezesseis anos, lecionando Língua Portuguesa no Colégio Gonzaga.
Posteriormente, cursou paralelamente os cursos de Direito e Licenciatura em
Filosofia, ambos oferecidos pela Universidade Católica de Pelotas. Após sua
formatura no curso de Filosofia, que se deu em 1955, em data não lembrada pelo
entrevistado, o professor foi contratado pelo município de Pelotas para lecionar as
disciplinas de Filosofia para os cursos Clássico e Científico, e Literatura para o
Curso Clássico. O professor não recorda exatamente até que ano permaneceu
como docente na instituição, mas estima-se que sua saída tenha se dado entre os
anos de 1962 e 1963, através de seu pedido de demissão, em função do desejo de
se dedicar de forma mais sistemática aos estudos relativos a sua formação em Livre
Docência na área do Direito. A carga horária dedicada à disciplina de Filosofia era
de três aulas de 45 minutos por semana, a serem oferecidas a cada turma, o que
nos mostra claramente uma valorização significativa em relação ao espaço
reservado ao ensino da disciplina na grade curricular do colégio nesta época.
66
Questionado sobre suas recordações relativas a estas aulas e ao
ambiente em que se desenvolvia o Ensino de Filosofia naquela instituição, o
professor respondeu-me que “são as melhores possíveis”12. Lopes Neto relatou-me
que “no Pelotense, havia um clima muito interessante”. Mesmo tendo muito apreço e
admiração pela escola que estudou e que na época mantinha uma espécie de
rivalidade com o Pelotense13, o Colégio Gonzaga, o professor manifesta o gosto
que teve em fazer parte do corpo docente do CMP. O educador ainda ressalta
inúmeras qualidades relativas aos discentes dessa época. Em anos em que o
acesso ao ensino era ainda muito elitizado para a população brasileira, poucos
ainda eram os que ocupavam espaços no Ensino Superior, os alunos “sabiam que
precisavam estudar muito para terem êxito. E eu tive alunos de elite lá no
Pelotense”. Outro ponto que o professor nos conta é que sua idade na época, em
torno de 23 anos, era próxima da idade dos alunos, então com 16, 17 anos, o que
facilitava a relação professor-aluno, sem, no entanto, prejudicar sua figura de
autoridade enquanto professor, bem como influenciar a disciplina necessária em
sala de aula.
A metodologia utilizada pelo docente para nortear suas aulas é descrita a
seguir:Eu trabalhava com exposição participativa. Provocação mediante questionamentos embaraçantes, para criar problemas para eles. As coisas que eles faziam, se era bem, se era mal ... Ênfase na necessidade de desenvolver um senso crítico sobre si próprio e suas atitudes. Exercício sobre a postura correta na convivência. Cosmovisão racional, reflexão sobre o projeto existencial. Aquela história que deixava os adolescentes enlouquecidos: “Da onde eu vim? Para onde vou?” E viam textos selecionados também que eram interpretados por eles e discutidos.
É possível observar que o professor trabalhava o Ensino de Filosofia
através de temas selecionados da própria Filosofia. Sua opção era a de não ensinar
a disciplina através da História da Filosofia, mas a partir de temáticas de interesse
dos alunos. Sem desprezar a História nem seus representantes, o professor fazia as
inserções relativas à História da Filosofia e aos filósofos que desenvolveram teorias
que sustentam temas, como ele mesmo nos fala “Ao longo das apresentações e
discussões dos conteúdos, remissão aos sistemas historicamente destacados e
seus protagonistas”.12 Todas as citações selecionadas da fala do professor Silvino Lopes Neto foram extraídas de entrevista coletada
por mim tendo como finalidade a contribuição nesta dissertação, disponível integralmente no item denominado “Apêndice” da dissertação.
13 Denominação pela qual popularmente se menciona o Colégio Municipal Pelotense nos dias atuais. Vale lembrar que o mesmo também é chamado pelas suas atuais iniciais, as letras “CMP”.
67
Cabe salientar que a escolha do professor (a de trabalhar com temas) é
uma corrente vigente até os dias hodiernos quando se trata de ensinar Filosofia. Há
os professores que preferem ensinar este saber a partir da ordem cronológica da
disciplina, ou seja, a partir de sua construção histórica. E há os que se identificam
com uma abordagem diferente, que preferem tratar, primeiramente, de temas
filosóficos e, a partir daí, apresentar seus processos históricos, como nos mostra o
exemplo do professor Silvino Lopes Neto. É importante a consideração de Lorieri
(2002, p. 51) acerca desta questão, da metodologia de trabalhar Filosofia a partir de
temas:Os conteúdos da Filosofia são temáticas que se apresentam na forma de certas perguntas e para as quais há diversas respostas, algumas das quais presentes com mais força no cultural de cada época histórica. Essas temáticas precisam estar sempre sendo examinadas, avaliadas e, eventualmente, reelaboradas ou mesmo substituídas. Não só: faz parte dos conteúdos da Filosofia uma maneira própria de trabalhar as temáticas, as perguntas e as respostas. Essa maneira própria, ou o método, torna-se conteúdo à medida que é constantemente examinado, estudado, avaliado e reconstruído. Há, aqui, algumas ideias importantes e, ao mesmo tempo, problemáticas – como tudo na Filosofia. No entendimento dos conteúdos do ensino da Filosofia, incluímos certas temáticas, questões ou perguntas, respostas diversas, exame, avaliação, reelaboração e substituição de respostas, métodos de investigação filosófica...
A partir do relato do professor, penso que sua forma de trabalhar segue
nessa linha de planejamento didático. Outro ponto a salientar é a preocupação do
educador com que suas aulas não fossem dogmáticas e em que nelas houvesse um
incentivo ao pensar crítico. Nas palavras do Professor Lopes Neto:Eles ficavam realmente interessados e [eles] debatiam muito, entre eles também. O Pelotense tinha essa situação de que é como se eles fossem livres pensadores, aquele sistema francês dos livres pensadores. Então, eles eram assim, libertários e tudo mais e eu insistia em não serem dogmáticos. Não serem dogmáticos ... eu exaltava muito o senso crítico.
Em relação às escolhas por parte do Professor Lopes Neto de trabalhar a
partir de temas centrais da Filosofia e de manter o objetivo de formar alunos críticos,
libertários e não-dogmáticos, Elisete Tomazetti, em seu artigo Ensino de Filosofia e
Formação do Pensamento Crítico, nos fala:(...) uma das perspectivas mais salientadas, escritas e apresentadas por aqueles que vêm pesquisando e refletindo sobre o ensino de filosofia tem sido a superação da tradicional aula de História da Filosofia ou da aula como um mero exercício de verbalização de opiniões, sem qualquer sustentação crítica e teórica (In: GHIGGI, PITANO, PIZZI, 2009, p. 34).
68
Ou seja, é possível dizer que, já em 1960, o educador responsável pela
disciplina de Filosofia no CMP trabalhava com uma concepção de ensino filosófico
que é defendida por estudiosos da área, nos dias atuais. Vale ressaltar que o fato de
ensinar Filosofia e filosofar a partir de temas não é algo novo. Os próprios filósofos
clássicos, na Grécia Antiga, tinham por metodologia filosófica esse princípio. Os pré-
socráticos, por exemplo, indagaram tendo como tema norteador o problema
cosmológico. Sócrates, Platão e Aristóteles também partiam de temas diversos para
iniciar suas indagações filosóficas. Como ainda não existia uma História da Filosofia
consolidada, como temos hoje, a tendência de ensinar Filosofia e filosofar a partir de
temas era uma corrente forte. Nos pensamentos dos filósofos que vieram
posteriormente, foi possível uma nova forma de filosofar: questionar a partir do que
outros pensadores já o fizeram para, assim, ser possível novos pensamentos,
dialeticamente falando; o que acredito que seja um dos objetivos da abordagem de
se ensinar a partir da História da Filosofia .
O método de trabalhar Filosofia a partir de temas vai ao encontro de uma
recusa aos métodos tradicionais de ensino. A escolha por não se trabalhar
diretamente com a História da Filosofia se dá também em função da não-intenção de
exigir dos alunos memorizações a respeito de datas, nomes de filósofos, escolas
filosóficas, títulos de obras e citações prontas. Pretende-se justamente o contrário,
intenciona-se que os alunos possam pensar filosoficamente e logrem adquirir uma
certa habilidade de questionamento em relação ao mundo em que vivem. No
entanto, como nos adverte Tomazetti, uma aula assim também não deve resumir-se
a simples manifestações vazias de opiniões, partindo em direção ao universo da
doxa. Os elementos que fazem com que uma aula filosófica não se resuma
simplesmente à doxa ou ao dogmatismo são a crítica e a sustentação teórica, o
conhecimento de certos conteúdos. Ao conhecer certos conteúdos apresentados na
História da Filosofia, o aluno é capaz de identificar correntes de pensamento e de
entender o método de trabalho filosófico. Como nos diz Paulo Freire,O melhor aluno de filosofia não é o que disserta, ipsis como na universidade, não é o que mais memorizou as fórmulas, mas sim o que percebeu a razão destas. O melhor aluno de filosofia não é o que disserta, ipsis verbis, sobre a mudança em Heráclito; sobre o problema do Ser em Parmênides; sobre o “mundo das idéias” em Platão; sobre a metafísica em Aristóteles; ou mais modernamente, sobre a “dúvida” cartesiana; a “coisa em si” em Kant; sobre a dialética do Senhor e do Escravo em Hegel; a alienação em Hegel e em Marx; a “intencionalidade da consciência” em Husserl. O melhor aluno de
69
filosofia é o que pensa criticamente sobre todo este pensar e corre o risco de pensar também (1983, p. 35, grifos do autor).
O aluno de Filosofia do Colégio Pelotense daquela época, se não era “o
melhor”, como nas palavras de Freire, apresentava algumas peculiaridades.
Conforme as lembranças do professor entrevistado, o aluno do CMP era dotado de
um perfil característico. Tinha o verdadeiro “espírito Gato Pelado”, da forma mais fiel
possível. Eram muito interessados nas aulas, eram politizados e com intenções
libertárias. Como características principais do Colégio Municipal Pelotense, o
professor enumera os fatos de o colégio ter sido criado pela Maçonaria14 e também
de, na época, ser o único colégio misto, aceitando meninos e meninas que
frequentavam o mesmo espaço. A classe média-baixa o buscava em função da
instituição ser pública; a Classe “A”, por sua vez, escolhia o CMP em função da
qualidade do ensino e por não ter um direcionamento religioso específico. As
famílias não católicas o preferiam para a educação dos seus filhos e a ausência da
religiosidade influenciava a formação do espírito crítico nos alunos. O Colégio
mantinha ainda um Grêmio Estudantil com muita representatividade, que organizava
passeatas e festivais que escandalizavam os setores conservadores da sociedade.
No Curso Científico, os alunos eram interessados em carreiras como Medicina,
Odontologia, Agronomia e Engenharia e eram muito dispostos para debates em sala
de aula. No Curso Clássico, as turmas eram pequenas, predominantemente
femininas e as alunas tinham intenções de seguir carreiras em cursos mais
direcionadas às áreas das Ciências Humanas, como Direito, História, Geografia e o
Magistério em geral. Amaral (2005, p. 133) reforça a observação do entrevistado em
relação à participação discente do educandário:As atividades políticas e culturais do Grêmio de Estudantes foram reconhecidamente marcantes na vida da cidade nas décadas de 40, 50 e 60, período em que o Brasil viveu um processo de democracia e intenso populismo. Os alunos, neste período, organizados pelo grêmio, manifestavam-se através dos Festivais dos Gatos Pelados, de passeatas que realizavam pela cidade e de jornais e revistas literárias. O humor,
14 A Maçonaria consiste em um instituição filosófica e filantrópica que preza pelos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Os ideais da Maçonaria casam com a proposta de ensino no Pelotense pelo fato do colégio ter sido fundado por maçons, que passaram ao educandário a proposta de uma escola condizente com o que eles acreditavam e que viam na Educação uma forma eficaz de propagar suas ideias. O Pelotense, anos depois, mesmo não tendo mais influências diretas e nenhuma ligação com qualquer Loja Maçônica, conservou esses princípios e os manteve como uma identidade do educandário. Para maiores esclarecimentos sobre a relação entre o CMP e a Maçonaria, indico a leitura de AMARAL, Giana Lange do. O Gymnasio Pelotense e a Maçonaria: uma face da história da educação em Pelotas. Pelotas: Seiva Publicações, 2005.
70
geralmente refinado e irônico, era a tônica de todas estas manifestações que tinham um forte conteúdo político de protesto. É preciso ressaltar, entretanto, que essa atuação dos alunos já era uma prática que remontava aos primeiros anos do século XX, só que dentro de um outro contexto histórico, mas tendo sempre como pano de fundo os ideais maçônicos de liberdade, patriotismo, culto à verdade e à justiça. Esta seria, segundo os maçons, a única forma de criar cidadãos capazes de defender seus direitos e de reconhecer seus deveres, assim como os interesses de sua pátria.
É interessante perceber que todos esses elementos culturais, históricos,
sociais e políticos, narrados pelo professor e contextualizados no início deste
capítulo, influenciavam diretamente e refletiam na dinâmica das aulas e no cotidiano
escolar, de acordo com o ex-professor do Colégio.
Como referências teóricas e instrumentos de trabalho para suas aulas, o
professor Silvino Lopes Neto adotava os seguintes livros didáticos:Na Introdução à Filosofia, Ortega y Gasset (Que es filosofía e Rebelião das Massas), que também entrava no Socialismo, na rebelião das massas, em Marx e no marxismo. Garcia Morente que tem uma introdução muito boa à filosofia e Julian Marias, isso na área de introdução. Usava-se na época também o Charles Lahr, que é um padre francês, que tinha uma obra muito boa. E era atualíssimo para a Filosofia Cristã ... Jacques Maritain, Filosofia Romana. O Hessen, por causa da Teoria do Conhecimento. Os Existencialistas e Marxistas naquelas implicações da vida mesmo e do ser. Na História da Filosofia, eu usava o Abbagnano. Usava muitos outros, mas estou só citando estes porque estes dois eram muito acessíveis pra eles. O Leonel Franca era um jesuíta tinha uma “História da Filosofia” muito conhecida no Brasil. É uma síntese, mas ele é francamente escolástico, como jesuíta, mas é um homem intelectualmente com uma pesquisa muito boa. E tinha um outro menos profundo que era o Theobaldo Miranda Santos. Se usava também. Mas, esse era livro didático mesmo, as normalistas usavam e tudo mais. O Leonel Franca se usava muito na faculdade de filosofia por causa do tomismo. Jacques Maritain era um tomista intransigente. E esses dois eram em português, então era muito fácil para eles consultarem. Na pedagogia, elas usavam largamente o Theobaldo Miranda Santos porque ele também tratava de outros dados, de outros aspectos da Filosofia vinculados à Pedagogia e não só História da Filosofia. Mas esses eram livros de divulgação acessíveis para eles. Mas eles não compravam livros porque não tinham dinheiro para isso.
Perguntado se havia algum filósofo ou escola filosófica especialmente
enfocados nas aulas e qual(is), o professor aponta que:
Quando eu falava em Lógica Formal, eu falava em Aristóteles. Em Gnosiologia, eu falava em Descartes, por causa do método, da busca pela verdade. E Kant, nos limites do conhecimento. Depois, eu dava Axiologia. Na hierarquia dos valores, a bipolaridade, a presença inevitável das valorações existenciais, e aí começava a trabalhar com esses filósofos dos valores e tudo mais. Aqui na definição de Direito, Johannes Hessen. Na Teoria do Conhecimento, também Johannes Hessen, na Gnosiologia, que tem uma obra muito boa e que é uma obra acessível, que se chama “Teoria do Conhecimento”. Quando entrava em Ontologia, aí também falava de Aristóteles. Ser e não ser, falava também em Tomás de Aquino por causa da linha aristotélica. Mas aí era indispensável falar também sobre Platão. Vinha o Livre-arbítrio, a pressão determinista, todos esses elementos. E Platão
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sobretudo na Ética. Além de Aristóteles com a “Ética a Nicômano”, também os diálogos de Platão, sobretudo por causa do bem. Como o bem era a essência do pensamento de Platão, a ideia era a de agir com correção e de acordo com a decência imprescindível. Eu batia muito com eles na decência.
Em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, como dito
anteriormente, eram selecionados temas da Filosofia. Dentre os assuntos, eram
trabalhados os já citados e outros de conveniência com a necessidade dos alunos.
Acredito que estes mereçam nossa atenção. Em meio a todos os temas clássicos do
filosofar, apareciam nas aulas de Filosofia do CMP do início da década de 60, outros,
próprios daquela época. Segundo documentos arquivados no colégio, como Listas
de Pontos Organizados para avaliações15 e de acordo com informações confirmadas
pelo professor, eram discutidos no ambiente desta disciplina curricular os conteúdos
de Parlamentarismo, Fases do Nirvana, Psicologia (Métodos, Conceito, Objeto e
Atualidade), Estudo do Eu, Discussão Sobre o Instituto da Pena de Morte, Budismo,
O Poder Executivo (Atribuições), Presidencialismo, O Desquite na Legislação
Brasileira, Personalidade (Sínteses) e Faculdades Psíquicas.
Vale observar que esses pontos pendiam para algumas áreas,
particularmente. Em meio a essas áreas, estava a Psicologia, bem como conteúdos
que são de sua alçada, como os de Estudo do Eu, Personalidade e Faculdades
Psíquicas. Como motivos pertinentes aos da Psicologia adentrar as aulas de
Filosofia, vale observar que nesse período a Psicologia consolidava-se enquanto
ciência e que, na cidade de Pelotas, ainda não havia nenhum curso superior de
Psicologia, o qual foi criado pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) somente
na década de 1980. Assim, eram tratados, no curso de Filosofia, alguns pontos
relativos à Psicologia, na instituição formadora do professor da época.
Sobre temas sociais e políticos, aparecem os conteúdos de
Parlamentarismo, Presidencialismo, O Poder Executivo (Atribuições), O Desquite na
Legislação Brasileira e Discussão Sobre o Instituto da Pena de Morte. A respeito dos
temas envolvendo regimes políticos, Lopes Neto nos fala:Isso tudo era exatamente por causa da discussão que havia no contexto político, porque nós estávamos saindo de um contexto de ditadura, se imaginava e se falava muito em se colocar, e aliás se colocou o parlamentarismo, pois não sei se você se lembra que o João Goulart é que foi um presidente parlamentarista, porque o João Goulart assumiu o governo e a oposição não permitiu que ele exercesse a presidência no regime presidencialista, porque ele teria muito poder.
15 Disponíveis nos anexos deste trabalho.
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(…) Mas agora, depois nós vínhamos discutindo de novo se viria ou não o parlamentarismo, daí o interesse dos alunos. E como a gente vive procurando o interesse dos alunos, nós chegamos também a isso.
Assim, temas que a princípio não são do campo da Filosofia, eram
também tratados pela mesma. Fica, então, a seguinte questão: como um professor,
atento ao seu tempo, pode desconsiderar temas candentes no contexto de suas
aulas? Ao perceber o interesse e as necessidades dos alunos, o ex-professor de
Filosofia levantava os temas, instigava o debate e fazia as inserções filosóficas.
Acredito que o tema sobre O Desquite na Legislação Brasileira tenha sido capaz de
despertar diálogos interessantes sobre questões de gênero e o papel da mulher na
sociedade, em anos em que movimentos feministas estavam em seu auge, após a
publicação d'O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, na França. A discussão
sobre a implementação ou não da pena de morte no país e a Bioética podem ter
levado a discussões inclusive desde o âmbito jurídico.
E, por fim, na lista de áreas não-filosóficas incluídas nas aulas de Filosofia
do CMP, mas nem por isso “não-filosofáveis”, aparece ainda o debate sobre
Budismo e Fases do Nirvana. O professor Lopes Neto, em entrevista realizada, se
revela como alguém que, pessoalmente, não possui uma identificação religiosa.
Dessa forma, procurava se abster de discussões relativas à Metafísica ou Filosofia
da Religião, por não ter a intenção de demonstrar suas crenças em relação à
religião. Como o próprio professor nos fala:(…) você imagina, agarra um menino ou uma menina de dezesseis anos, ou dezoito, dezenove, sem nenhuma fundamentação e que está consciente de que professa uma religião que pode levar à felicidade, que o tranquiliza, desenvolve um sistema de solidariedade e de justiça, etc e tal , como todas as religiões fazem, aí você chega lá, tira isso da cabeça deles e não coloca nada de volta. Como é que fica? Então, eu nunca assumi esta responsabilidade e acho que isso é antiético.
Assim, a escolha pelo Budismo se dava em função da doutrina budista
não estabelecer ligações com divindades e dar muita ênfase ao autoconhecimento.
Outro conteúdo ministrado em sala de aula nesta época, já no âmbito da
Filosofia propriamente dita, foi o marxismo. Penso que seja relevante apresentar
que, no início da década de 60, no Pelotense, ainda era possível falar sobre a teoria
de Karl Marx e sobre autores marxistas, sem qualquer problema, sem que este
fosse considerado um conteúdo “proibido” ou “subversivo”, conforme foi considerado
anos depois pelo Regime Militar.
73
Perguntado sobre – em 1961, quando foi a LDB modificada, e a Filosofia
passou de disciplina obrigatória ao status de disciplina complementar ou optativa –
como o colégio reagiu a esta modificação, se houve alguma discussão sobre a
retirada da disciplina da grade curricular do colégio, o educador respondeu-me que,
de maneira alguma, cogitou-se a possibilidade da retirada da disciplina do currículo.
Questionado ainda sobre se havia valorização por parte da direção da escola em
relação à disciplina de Filosofia, o professor Silvino Lopes Neto respondeu:Enquanto eu estive no Pelotense, muito, muito. Eu, enquanto professor de Filosofia, no caso, era exigente, reprovava, frequência obrigatória e tinha o mesmo status das mesmas disciplinas. Era uma congregação, eu era uma voz autorizada, como qualquer outra, [era] ouvido...
Assim, em síntese, os dados coletados nos indicam que a Filosofia no
início da década de 60 no Colégio Municipal Pelotense era uma disciplina valorizada
perante à comunidade escolar e muito bem trabalhada através do ensino e do
comprometimento de um docente dedicado e competente com seu trabalho. Os
conteúdos de Filosofia eram ministrados através de uma carga horária considerável
(três aulas de 45 minutos por semana). Ao fim e ao cabo, a Filosofia manteve-se no
educandário mesmo com a alteração na lei que a tratava como uma disciplina
optativa.
Penso que o Ensino de Filosofia no CMP, nesse período, tenha sido
congruente com a afirmação de Saviani (1985, p. 40): “O homem é um ser situado”.
Parafraseando o autor, digo que esse ensino foi um ensino situado. Ou seja, não foi
e nem poderia ter sido “descolado” de seu espaço e de seu tempo. E, em meio a
isto, aparecem como “atores” do processo, um professor e seus alunos, ou seja,
gente, pessoas, inseridas no desenvolvimento de ensino e de aprendizagem. E a
disciplina de Filosofia aparece como uma possibilidade de pensar a situação e de
estabelecer uma atitude crítica sobre as determinações impostas, levando à
possibilidade de formação de seres mais humanos, mais aptos a conviver com as
situações e de contribuir para as épocas futuras.
CAPÍTULO 2. A TRANSIÇÃO, RUPTURA E EXTINÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA NO CMP
No que diz respeito à Filosofia, podemos argumentar que ela é uma área singular de
reflexão que se ocupa de temas fundamentais na experiência humana e que
sua ausência no currículo escolar priva o estudante de um espaço de formação a que
ele tem direito, sem o qual surge uma lacuna em sua vida.
Ronai Rocha
2.1. Contextualização Histórica – o Brasil depois do Golpe Militar de 1964
Existem, desde o início dos tempos e de todas as sociedades, anos
pacatos e anos marcantes, historicamente falando. Logicamente, a passagem de
cada ano, mesmo se tratando dos anos mais calmos, sempre deixa a memória de
acontecimentos e características de sua época. Todavia, não podemos negar que
alguns anos apresentam-se de forma mais significativa, geralmente por
apresentarem mudanças e revoluções, grandes alterações políticas, sociais e
culturais, que abalam vidas dos cidadãos que vivem tal realidade. E, no cenário do
Brasil, não poderia ser diferente.
O ano de 1964 se apresenta na História Brasileira como um marco, um
“divisor de águas”, um período em que os fatos ocorridos abalaram definitivamente
tanto as gerações desta época, quanto as futuras.
O dia primeiro de abril de 1964, ironicamente conhecido na cultura
popular como o “dia da mentira” ou “dia dos bobos”, marca decisivamente o
chamado Golpe Militar no Brasil, que se deu através de vários acontecimentos
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iniciados em 31 de março, que culminaram no Golpe de Estado acontecido no dia
seguinte, que deu fim ao governo do presidente João Goulart e marca o início de 21
anos de Governo Militar no país.
Jango foi um presidente com ideais democráticos, que liderou o país
através de dois regimes distintos em um mesmo mandato. De 61 a 63, governou
através do Regime Parlamentarista, que concedia ao chefe de Estado pouco poder,
em função da dependência do plenário. Em plebiscito realizado em janeiro de 63, o
povo decidiu democraticamente a instauração do Regime Presidencialista. A partir
de então, e até o Golpe de Estado, Jango governou com poderes amplos, pintando
um quadro a favor de Reformas de Base, entre as quais estavam incluídas
modificações nos âmbitos bancários, fiscais, urbanos, eleitorais, agrários e
educacionais. Defendia ainda o direito de voto para os analfabetos.
Em meio a essas mudanças por nós referidas, outros setores da
sociedade sentiram-se intimidados e rejeitaram suas propostas reformistas. Jango
começou, assim, a perder apoio popular, como nos mostra Nelson Piletti (1992,
p.167), devido aos seguintes fatores:
(…) ao êxito da propaganda do segmento mais conservador da Igreja Católica e das organizações reacionárias, que convenceram a classe média de que o presidente pretendia implantar uma República sindicalista, abolir a propriedade privada e a religião, etc.
Em meio a isto, as Forças Armadas também se sentiram ameaçadas no
que diz respeito à disciplina e à hierarquia militar. Assim, organizaram um esquema
chamado por eles de “revolução”, através da deposição de João Goulart, com a
finalidade de instaurar um modelo governamental que fosse de acordo com os
preceitos relativos aos interesses da ordem e da organização militares, resultou em
uma severa ditadura que se estendeu aos anos seguintes, alterando a vida de todos
os brasileiros. Os processos repressivos verificaram-se de forma controladora,
autoritária e, muitas vezes, inconstitucional.
No ambiente mundial, o “clima”, a partir de 1964, também era tenso. Os
anos sessenta foram, sem dúvida alguma, tempos de revolução, de protestos e de
movimentos estudantis, não só no Brasil, mas, também, no restante do mundo.
No Brasil, os estudantes universitários mobilizavam-se e lideravam
resistências à opressão realizada pelos militares. Censura, prisões, torturas e mortes
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a toda e qualquer pessoa que se opusesse ao Regime Ditatorial eram comuns, mas
nem por isso essas imposições barraram a luta armada que se daria entre militantes
políticos e o Exército.
Na França, o movimento que ficou conhecido como “Maio de 68” também
se deu a partir dos movimentos estudantis. As ideias revolucionárias de Herbert
Marcuse, bem como os escritos de Karl Marx corriam o mundo e influenciavam
aqueles que lutavam por modelos diferentes de sociedade. O guerrilheiro argentino
Che Guevara aparece como um ícone. Líder da Revolução Cubana, representava
uma espécie de modelo para pessoas que almejavam um tipo de sociedade mais
justa. No campo das artes, as músicas e o teatro eram instrumentos de protesto,
com a intenção de exprimir sentimentos de indignação contidos. Em poucas
palavras, esse era, então, o quadro geral que caracteriza o período do qual estamos
tratando neste escrito.
No ramo educacional, o período que vai de 1964 até 1971, pode ser
resumido como um espaço curto de tempo em que muitas reformas foram realizadas
na legislação que regulamenta a educação brasileira. Entre elas, podemos citar,
especialmente, a Lei nº 5.540/68, que se refere à Reforma do Ensino Superior; o
Decreto-Lei 869/69, que inclui a disciplina Moral e Cívica como disciplina obrigatória
nas escolas brasileiras; e a Lei 5.692/71, conhecida como a segunda Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que reformula o ensino do 1º e
do 2º graus.
Assim, volto a afirmar: a extinção da Filosofia nas escolas do nosso país não se deu ao acaso, muito menos de uma hora para a outra. O primeiro
passo foi dado no momento em que a mesma foi “rebaixada” para a situação de
disciplina complementar, enquanto antes ocupava o espaço de disciplina obrigatória.
E, ao analisar a conjuntura dos fatos, percebo que o segundo passo, preparando a
transição para sua posterior extinção, se deu no momento em que foi promulgado o
Decreto-Lei 869/69. E por que digo isto?
O Decreto-Lei 869/69 é um documento que dispõe sobre as orientações
conceituais com que a disciplina Moral e Cívica deverá tratar, bem como sua
obrigatoriedade, não somente em relação aos estabelecimentos de ensino, mas
ainda decretando que estes princípios deverão se estender ainda aos setores de
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imprensa, publicidade, teatro, cinema, entidades esportivas, organizações sindicais,
etc, através de uma então criada Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC). A
CNMC tinha como função regulamentar os princípios do Moral e Civismo, controlar
os órgãos ideologizantes do Estado e escrever livros didáticos para ser utilizados em
aulas de Moral e Cívica. Fora isto, a CNMC ainda cria a “Cruz do Mérito da
Educação Moral e Cívica”, que oferecia um prêmio a personalidades que se
salientassem pregando a doutrina da Moral e do Civismo. Os princípios que a
disciplina propõe apresentam-se de forma totalmente dogmática e visando a
propagação de ideologias que serviam aos interesses do autoritarismo defendido
pelo Exército naquela época, tais como:
Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade:
a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valôres espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;
d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;
e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-ecônomica do País;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;
h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (BRASIL. Decreto-Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969).
Dito de outra forma: o Estado pretendia formular e colocar, nos currículos
escolares, uma disciplina que formasse cidadãos que pensassem de acordo com o
sistema vigente. Enquanto a Filosofia se apresenta como uma disciplina que preza
pelo questionamento, a Moral e Cívica prima pela aceitação. Enquanto uma tem por
objetivo “retirar os alunos da caverna”, – recordando o mito platônico, – a outra
objetiva fazê-los acomodarem-se e, ideologicamente, moldarem-se às exigências do
modelo militar.
E assim, dez anos depois da criação da primeira Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN), acontece, em 1971, uma outra reforma, acontece a
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segunda LDB, através da Lei 5692/71. Nessa lei, a Filosofia é sutilmente extinta
através do seguinte artigo:
Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969 (BRASIL, Lei 5692, de 11 de agosto de 1971).
Desta forma, a Filosofia, por não atender às solicitações tecnicistas da
época, tampouco às necessidades político-ideológicas do Estado, foi escanteada e
substituída pela Educação Moral e Cívica, provocando e desencadeando uma nova
organização dos cursos secundários. Na LDB de 71, não aparece explicitamente a
extinção da disciplina de Filosofia. Entretanto, o Estado, ao lotar a carga horária
obrigatória dos currículos escolares, através da inserção obrigatória de Moral e
Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), não enseja criação de
espaço para a Filosofia, ocasionando a sua extinção e total desaparecimento dos
ambientes escolares. Com a Reforma de 71, o lugar da Filosofia como disciplina
optativa foi confirmado. Todavia, sua extinção se deu devido ao fato da inviabilidade
de se incluí-la na carga horária, enquanto havia a obrigatoriedade de se abrir espaço
para as duas novas disciplinas incluídas na grade curricular dos colégios. Mesmo
sendo optativa, a Filosofia não permaneceu nas escolas. Quanto aos motivos disso
ter acontecido, Silveira (1994, p. 81) contribui:
Podemos levantar algumas hipóteses a fim de tentar clarear um pouco esta questão. Em primeiro lugar, a descentralização decantada pela Lei 5.692 que permitiria às escolas organizarem parte de seus currículos de modo a adequá-los às suas peculiaridades, na realidade não se efetivou plenamente. Limitadas pelo número excessivo de matérias obrigatórias (as do Núcleo Comum mais as relacionadas nominalmente pela Lei, entre as quais estava Educação Moral e Cívica), sufocadas pelas exigências burocráticas e amarradas pela falta de professores habilitados para trabalharem com as “novas” disciplinas, muitas escolas preferiram a comodidade de deixar tudo como estava ou, quando muito, acatar sugestões vindas de instâncias administrativas superiores, as quais nunca incluíam Filosofia. Em segundo lugar, apesar do caráter profissionalizante conferido ao ensino médio, ele continuava sendo visto por muitos professores e diretores como preparatório para o vestibular. Como a Filosofia não era matéria de vestibular, não havia por que inserí-la no currículo. Em terceiro lugar, considerando-se o caráter profissionalizante do segundo grau, a Filosofia não teria função alguma visto não se tratar de matéria desta natureza.
79
2.2. Ensino de Filosofia no CMP – de 1964 a 1972
No Colégio Municipal Pelotense, o Ensino de Filosofia no período entre
1964 e 1972, se deu da seguinte forma: os primeiros anos daquele período foram
lecionados pela Profª Drª Arabela Rota e os anos subsequentes, a partir de 1968,
foram ministrados pelo Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite.
Os prefeitos da época, que governavam e, certamente, influenciavam
direta ou indiretamente a direção do CMP foram: de 1964 a 1969, o Dr. Edmar Fetter
(ARENA); e de 1969 até 1973, o Dr. Francisco Louzada Alves da Fonseca (ARENA).
O CMP era liderado, de 1964 a 1973, pelo Prof. Platão Louzada Alves da Fonseca.
A partir de um depoimento por escrito, redigido especialmente para a
ocasião desta pesquisa, a Profª Drª Arabela Rota mostrou-me diversos elementos
importantíssimos que me ajudaram a entender de uma forma mais ampla o Ensino
de Filosofia naqueles anos.
A professora do CMP foi também aluna do colégio, ou seja, uma Gato
Pelado. Em relação à sua experiência como discente no Pelotense, em 1959, afirma
não ter tido aulas de Filosofia na sua formação:
A disciplina de Filosofia não fazia parte ainda do currículo dos cursos médios, mas ela fluía de todas as partes impregnando o clima do colégio, professores de ciências exatas faziam pregação ideológica e tratavam de temas políticos e sociais com toda a liberdade. Tínhamos professores “comunistas” e outros, absolutamente “direitistas e conservadores”. Eu era uma autêntica “gato pelado” assumida e feliz.16
Após a conclusão de seu Curso Clássico no educandário e assim como
os professores Silvino Lopes Neto e José Luiz Marasco Cavalheiro Leite, a
professora Arabela Rota cursou concomitantemente os cursos de Filosofia e Direito,
na Universidade Católica de Pelotas.
Sua primeira experiência com o Ensino de Filosofia no Colégio Pelotense
aconteceu em 1961, ao substituir o Professor Lopes Neto pelo período de trinta dias,
em função de um afastamento do professor para uma licença de saúde. Através do
bom desempenho que obteve com suas aulas, Rota foi convidada para lecionar no
ano seguinte com turmas próprias, não mais em caráter de substituição. Em 1963,
através de Concurso Público para a disciplina de Filosofia, Arabela Rota foi efetivada
16 Todas as citações selecionadas a partir da fala da professora Arabela Rota foram extraídas de depoimento escrito pela professora com a finalidade de contribuição nesta pesquisa. O depoimento encontra-se disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho ou mais especificamente, no item 11.3.1 da dissertação.
80
como docente na instituição, permanecendo no cargo até 1968, data que começa a
lecionar na Universidade Católica de Pelotas.
Além das áreas de Filosofia e de Direito, a professora estudou pós-
graduação (fora do Brasil), na área de Sociologia, no ano de 1965, fazendo uma
pausa no seu ofício docente a fim de se especializar. No ano seguinte, retornou ao
Brasil e retomou suas aulas de Filosofia, tendo iniciado a lecionar também a
disciplina de Sociologia. Nas palavras da educadora:
Retornei às minhas aulas de Filosofia, nessa época também recebi turmas de Sociologia, nos Cursos Clássico e Científico do Pelotense e História para alunos do Ginásio no Nossa Sra. de Lourdes. A Sociologia, naquela época, já me havia contagiado para o resto de vida. Era uma decorrência lógica de minhas tendências inquisitivas e de permanente questionamento diante das relações políticas e sociais.
Neste ponto, vale ressaltar que as disciplinas de Filosofia e de Sociologia,
se assemelham em diversos aspectos em relação ao seu espaço no ambiente
escolar. Assim como a Filosofia, a Sociologia também foi banida das escolas. Além
do mais, recentemente, através da Lei nº 11.684/08, ambas retornaram juntas em
caráter obrigatório nos currículos escolares. Ou seja, as duas disciplinas têm muita
coisa em comum: saíram juntas das grades curriculares, sofreram o mesmo
desprestígio, comemoraram a vitória no ano de 2008 e lutam ainda para que seus
lugares nas aulas de Ensino Médio permaneçam e que a história não venha a se
repetir novamente, em hipótese alguma. E o que será que ambas têm em comum?
Arrisco dizer que o principal motivo do banimento das duas dos currículos é o fato de
ambas despertarem o aluno para questionamentos. No caso da Filosofia, questionar
todo e qualquer conceito, físico ou metafísico, do mundo da vida, da ética, estética,
epistemologia, e de tantas outras áreas que seja possível investigar. No âmbito da
Sociologia, questionar e detectar aspectos do status quo, da sociedade em que
vivemos, dos sistemas de governo, das ideologias dominantes. É certo que nem uma
e nem a outra seriam úteis num sistema político ditatorial. Em síntese, vale chamar a
atenção para o fato de que as duas disciplinas andaram por muito tempo “ligadas” e
isso, certamente, não se deu por força do acaso.
A Sociologia, da mesma forma que todas as outras ciências, nasce da
Filosofia. Seu fundador foi Auguste Comte, em 1838, um filósofo francês, fundador
da Sociologia e do Positivismo. Ademais, não podemos deixar de considerar a
importância de outro grande filósofo para o campo da Sociologia: Karl Marx. Ou seja,
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a Filosofia e a Sociologia são duas áreas do conhecimento que se entrecruzam
mutuamente – a Sociologia nasce da Filosofia, tornando-se um campo cientifico e
delimitado, que oferece margem para o filosofar. Também a Filosofia, por não se
abster de questionar o âmbito político, oferece subsídios para pensar-se
sociologicamente.
A professora Rota nos fala sobre o papel da Filosofia e da Sociologia em
tempos de ditadura:
Havia respeito pela disciplina de Filosofia e seus professores, mesmo quando entendida por alguns como um acessório. Ousaria dizer que os teóricos do período da ditadura (leia-se Golbery do Couto e Silva) custaram a perceber o quanto o seu ensino levava a pensar o mundo e suas relações políticas e sociais. Talvez por esse motivo só em 1972 foi retirada dos currículos escolares. É obvio o porquê de sua eliminação. Mas a Sociologia assustava muito mais. Ser sociólogo era pressuposto de esquerdista e comunista. Só após a abertura política conseguimos registrá-la como profissão e eu fui uma das primeiras, já residindo em Brasília, a fazer meu registro como Socióloga.
Em relação à forma de trabalho da professora nas aulas de Filosofia e de
algumas de suas preferências, é fato que cada professor, assim como cada pessoa,
é único no mundo. E por ser único, é diferente dos demais, ricas e diversas são suas
existências e experiências nos lugares por onde passa. No caso da Profª Arabela
Rota, cabe salientar que, mesmo com muitas semelhanças com seus colegas,
algumas diferenças também são notadas. Não se objetiva neste trabalho traçar
comparações, tampouco juízos de “melhor” ou “pior”, de forma alguma. Até mesmo
porque minha admiração é comum a todos os docentes entrevistados e ouvidos
nesta pesquisa. O que me interessa é mostrar a diversidade, que se dá em função
de cada professor carregar consigo a marca da existência: suas singularidades e
suas marcas pessoais, como nos diz Cunha: “(...) a história de cada professor é
própria e única, não havendo dados que permitam generalização, a não ser de que a
experiência de vida é fundamental no encaminhamento das pessoas” (1989, p. 85).
Dessa forma, ao contrário dos demais professores, do que a antecedeu e
do que a sucedeu, que relataram o fato de suas aulas serem mais proveitosas no
Curso Científico, a professora narra ter tido uma identificação maior nas turmas do
Curso Clássico:
Contrariamente ao que eles afirmam, minha identificação total era com os alunos e alunas do Clássico. Era eu de um lado e eu do outro. Entende?Esse grupo eu não precisava conquistar, enquanto que com os alunos do Científico era necessário, antes de mais nada, situá-los no campo da
82
Filosofia e o porquê daquela disciplina que, para eles, não tinha nada a ver com as matérias do famoso Vestibular. Até fazê-los entender que os primeiros filósofos foram grandes matemáticos, físicos, astrônomos etc. e que Pitágoras antes de ser um Teorema era um importante filósofo, levava tempo.
Vale ressaltar que o relacionamento entre professor e alunos não se dá
ao acaso. Vai muito além de técnicas, entra no campo das subjetividades e da
afetividade. Assim, ao trabalhar com pessoas, o trabalho docente realiza-se levando
em conta também os sentimentos e as identificações tanto de alunos quanto de seus
professores. Como afirma Paulo Freire:
Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de de ditadura reacionalista (1996, p. 145).
Como metodologias de seu ensinar, Rota fala da maneira de administrar
as aulas:
O conteúdo de minhas aulas era preparado cuidadosamente e, posso confessar que aprendi realmente Filosofia e História nessa época. Observava o Programa do Curso e cada aula tinha começo e fim, ou seja, nunca deixava o tema abordado sem uma conclusão. Apresentava o tema e suscitava a discussão e o debate. Como em todo o grupo, havia sempre alguém querendo monopolizar e eu administrava os tempos. Havia um clima de bem estar e tranquilidade, costumava sentar “na” (sobre a) mesa do professor, isto causava um certo espanto por ser inovador. Caminhava ente eles e costumava dizer que minhas aulas eram “peripatéticas” como as de Sócrates e Platão e me imaginava caminhando pelo Parthenon.
Ressalto a atitude da professora de instigar discussões e debates em sala
de aula. Ao se debater sobre determinado assunto, valoriza-se o diálogo. E dialogar,
em época de ditadura, é um grande desafio. Em tempos de silêncio e repressão,
vozes são escutadas e faladas com outras vozes, o que se permite que se
compreenda e que se troque mutuamente ideias sobre os assuntos tratados.
Hermann, sobre o diálogo, nos diz: “O diálogo possibilita condições de reflexão
sobre um entendimento ainda não disponível; ou seja, concede aos participantes a
oportunidade de fazer uma auto-reflexão sobre seus pontos de vista” (2002, p. 58).
Em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, a Profª Rota
ensinava Filosofia através da própria História da Filosofia. Relata que, no Curso
Clássico, tinha um período de tempo maior para desenvolver os conteúdos, eram
dois anos reservados para o ensino da disciplina, podendo partir desde o ensino dos
pensamentos dos pré-socráticos até chegar a contemporâneos como Ortega y
83
Gasset. Já no Curso Cientifico, os conteúdos eram mais básicos e resumidos,
tratando mais especificamente da Introdução à Filosofia e de uma noção mais geral
da História da Filosofia. Sobre a escolha de ensinar Filosofia através da sua história,
Rota fala:
A História da Filosofia não era uma simples narrativa cronológica e engessada, isenta de análise crítica. Era o meu prumo para, dependendo da turma e do interesse despertado, aprofundar e/ou destacar doutrinas e correlacionar com o momento vivido. Tudo com muito cuidado, sem deixar de explicar a Dialética de Hegel e a fundamentação filosófica do marxismo em Engels.
Conforme já mencionei anteriormente, em relação à maneira de
apresentar os conteúdos filosóficos aos alunos, há entre os professores dessa área
duas vertentes: os que se propõem a trabalhar a Filosofia através de temas, como
foi o caso do Prof. Lopes Neto e os que se dispõem a lecionar Filosofia a partir da
sua própria história, como o caso da Profª Arabela Rota. As duas vertentes são
aplicadas até hoje, dependendo da opção feita pelo docente ao planejar suas aulas,
ou dos conteúdos propostos pelas escolas. Sobre a opção escolhida por Rota, de
lecionar Filosofia tendo como fio condutor a sua ordem histórica, fala Nascimento:
(…) não é possível fazer filosofia sem recorrer a sua história. Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que os alunos pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou que mais preocupam o homem moderno, sem oferecer-lhes a base teórica para o aprofundamento e a compreensão de tais problemas e sem recorrer à base histórica da reflexão em tais questões, é o mesmo que, numa aula de física, pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da lei da gravitação sem estudar física, esquecendo-se de todas as conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforço e do trabalho monumental de Newton (1986, p. 116).
Arabela Rota nos conta que sua bibliografia era mencionada nas aulas,
mas que os alunos não seguiam o roteiro de livros didáticos. Os conteúdos
aprendidos eram extraídos de anotações dos educandos nas aulas, pois os livros
tinham um valor aquisitivo que não era acessível a todos os alunos. Como
referências bibliográficas principais para o planejamento das aulas, a professora
usava as obras de Leonel Franca e Ortega y Gasset. Relata ainda que tinha por
hábito levar livros escritos pelos filósofos clássicos para as aulas, apresentar para os
discentes e deixar que os manuseassem.
84
Sobre a carga horária dedicada ao ensino de Filosofia, vale ressaltar que,
mesmo após o Golpe Militar de 1964, a disciplina ainda se manteve com um bom
espaço de tempo a ela dedicado na grade curricular dos cursos de nível médio. Rota
diz: “Creio que eram duas ou três aulas semanais para o Clássico e uma ou duas
para o Cientifico”. Ou seja, se tratando do forte da Ditadura Militar, sem dúvida, era
uma carga horária considerável.
As avaliações eram realizadas da seguinte forma: “eram provas escritas,
dissertativas e exigiam uma boa análise crítica e capacidade de raciocínio, além da
comprovação de conhecimento dos conteúdos trabalhados em aula”. Questionada
sobre se algum filósofo ou escola filosófica eram enfatizados nas aulas, a professora
narra que “A Filosofia Grega e, mais adiante, a alemã, (pontificada por Kant) e o
Budismo, tinham a minha preferência”.
Em entrevista com o Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite17, pude
ter contato com informações muito valiosas que me auxiliaram na compreensão dos
acontecimentos do período. O Prof. Cavalheiro Leite assumiu a disciplina de
Filosofia no ano de 1968 no CMP. Um ano histórico, chamado por alguns de o início
dos “anos de chumbo” no país. Um dos anos mais difíceis da Ditadura Militar,
certamente. O ano em que o estudante Edson Luiz de Lima Souto foi assassinado
pela Polícia Militar durante um confronto e o ano em que o povo foi às ruas para
protestar contra a repressão e a violência, através da Passeata dos Cem Mil; e por
fim, o ano em que foi instaurado pelo Governo Federal o AI-5, o mais rígido dos
dezessete Atos Institucionais que o Exército decretou.
Ou seja, ensinar Filosofia em um tempo desses, indubitavelmente, foi
uma grande tarefa exercida pelo Professor Cavalheiro Leite no Colégio Pelotense.
O professor foi aluno do Pelotense, ou seja, um Gato Pelado. Foi o fundador do
Teatro dos Gatos Pelados, professor de Teatro e de Educação Artística. Entretanto,
seu grande desejo era o de ensinar Filosofia. Cursava Bacharelado e Licenciatura
em Filosofia na Universidade Católica e começou a lecionar ainda antes de estar
graduado na área. Permaneceu com a Regência de Classe da disciplina de Filosofia
até assumir o cargo de Orientador Educacional, alguns anos depois. O entrevistado
não recorda exatamente o ano de sua saída como docente da disciplina, mas situa 17 Todas as citações selecionadas a partir da fala do professor José Luiz Marasco Cavalheiro Leite foram
extraídas de entrevista realizada por mim. A entrevista encontra-se disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho ou mais especificamente, é o, item 11.2.2 da dissertação.
85
que isto ocorreu entre 1970 e 1971. Sua saída do CMP se deu por motivos políticos,
através da intervenção da gestão de “Ary Alcântara, um prefeito que na área da
Educação fez um ajuste de contas com as pessoas que eram dissidentes dele.
Nessa época é a minha saída”.
A disciplina era direcionada aos alunos dos três anos do “Colegial
Clássico” e do último ano do “Colegial Científico”. O professor enfatiza que mesmo
soando um tanto contraditório, suas aulas eram mais interessantes no “Colegial
Científico” do que no “Clássico”, que era mais dirigido ao ensino de conteúdos mais
afins com as Ciências Humanas.
Assim como o Professor Silvino Lopes Neto, o Professor Cavalheiro Leite
também adotava a escolha de ensinar Filosofia através de temas. Em relação aos
conteúdos abordados em sala de aula, o docente fala:
Eu não tinha muito a preocupação de ensinar a História da Filosofia, as grandes linhas do pensamento filosófico, mas eu gostava muito de falar sobre Teoria do Conhecimento, Epistemologia. A Psicanálise era muito querida pelos alunos e a Sociologia, com um viés marxista era um pouco de meu interesse. Eles também tinham bastante interesse na Filosofia Oriental. Na época tinha um autor chamado Herman Hesse, que escrevia livros de grande sucesso, o “Sidarta” é um exemplo. Os alunos gostavam, era moda. Os Beatles encontram gurus orientais, o Movimento Hippie era também orientado por essas filosofias, por essas maneiras de pensar e eu me lembro de ter estudado um pouco isso e de ter passado para os meus alunos algumas dessas coisas.
Percebe-se que, também aqui, o contexto cultural influenciava o ensino. O
professor ainda abordava outros conceitos como os de Gnosiologia, os fundamentos
da Psicanálise, Realismo Aristotélico e Idealismo Platônico. Em relação ao
Marxismo, tema dito pelo entrevistado como sendo “perigoso” para a época, relata
que era uma discussão presente nas aulas, pois apreciava que os alunos
entendessem conceitos como o de classes sociais, e compreendessem como se
formam as ideologias. Outro tema bastante enfatizado pelo educador é o
Existencialismo, em especial o de Jean-Paul Sartre.
A maneira como eram conduzidas as aulas de Cavalheiro Leite nesse
período era a seguinte: Fazia com que lessem algumas coisas, alguns textos que eu selecionava, alguns alunos eles mesmos preparavam exposições deles em aula. No geral, eram aulas expositivas, os alunos apresentavam aulas, às vezes com a minha condução. Provas com perguntas discursivas em que o aluno tinha que apresentar uma resposta dissertativa.
86
A metodologia trabalhada pelo professor, embora vista pelo próprio com
algumas ressalvas a respeito de declarar-se um educador crítico, leva-me a pensar
que consistia em uma postura condizente com a criticidade. Todavia, se tomarmos
sua fala em relação ao que vem a ser uma formação crítica, notamos que Cavalheiro
Leite a define da seguinte forma: “Acho que uma formação crítica é aquela que dá
ao aluno a capacidade de fazer julgamentos”. Em suas aulas, eram apresentados
estímulos através de textos que possibilitavam a reflexão e apresentações em forma
de seminários; atividades em que os alunos tinham a oportunidade de se posicionar
em relação aos temas discutidos. Saliento, ainda, o fato das avaliações com a
finalidade de perceber os rendimentos dos alunos darem-se através de testes com
perguntas abertas, exigindo respostas dissertativas, em lugar de provas com
questões objetivas que valorizassem o “certo” ou o “errado”. As provas eram
dissertativas ao invés de objetivas, o que possibilita a reflexão, a crítica e o
argumento e elaboração teórica do pensamento sobre algum tema, ou seja, que se
desenvolva também a capacidade de fazer julgamentos e de se expressar em
relação a algo; o que, em se tratando de tempos de ditadura, era uma grande
aposta.
Sua intenção como educador era a de “despertar” os alunos para os
acontecimentos daqueles tempos. Nas palavras do professor: Na época, considerando quem eu era e o tempo em que eu vivia, eu não tenho dúvida que eu orientava meus alunos a contestarem o “status quo” e para que fossem revolucionários. Queria perpassar um pouco uma mentalidade revolucionária. Hoje, eu não faço mais isso.
Questionado sobre a possibilidade de que suas aulas auxiliaram a formar
cidadãos críticos, o professor respondeu-me:Acho que sim, algumas pessoas, que eu sei, conheço elas, me encontro com elas, não posso atribuir que tenham sido as minhas poucas aulas de Filosofia, mas eu acho que são pessoas representativas de uma certa época, de uma certa educação que naquela época se dava. É difícil dizer qual o percentual de alunos que passam pela gente que reproduzem ou que não reproduzem a maneira como a gente gostaria que eles se caminhassem, esse percentual é relativamente pouco, um percentual pequeno, mas, se numa turma de trinta alunos, houver dez que tenham um comprometimento, já está muito bom.
Sobre os livros didáticos utilizados nas aulas, o docente recorda ter
utilizado os textos de Gnosiologia de Bochenski, por ser uma obra acessível a
pessoas que não fazem parte do métier da Filosofia. Outras obras usadas na época
foram os escritos de Manuel Garcia Morente, Julian Marias e Ortega y Gasset.
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O professor Cavalheiro Leite considera que naquela época “Havia muito
mais espaço para a reflexão filosófica”. Acredita que a Filosofia estudada nos anos
60 está um tanto superada, devido ao desenvolvimento das tecnologias e do
imediatismo que a internet oferece nos dias de hoje. Atribui esta obsolescência ao
fato de que novos autores apareceram de lá para cá e a renovação da Filosofia vai-
se dando na medida do rearranjo dos cenários em geral.
Quanto ao papel que o professor de Filosofia ocupava no ambiente
escolar, Cavalheiro Leite narrou-me que “Havia um certo estereótipo do professor
de Filosofia, mas o professor de Filosofia era bastante respeitado”. Imagino que
este estereótipo a que o professor se refere seja aquele em que o professor de
Filosofia é rotulado como alguém fora da realidade, desligado de problemas
“palpáveis”, que vive somente na abstração e no “mundo das ideias”, como diria
Platão. O professor Silvino Lopes Neto disse que “Muitas vezes apresentam o
filósofo desligado dos bens materiais completamente, essa visão do filósofo
necessariamente desleixado”. Penso, então, que o estereótipo do professor desta
disciplina seja este, assim como praticamente todas as profissões possuem também
seus estereótipos. No entanto, deve-se lembrar que um estereótipo constitui-se em
uma imagem constituída a priori de alguém, ou seja, também é um tipo de pré-
conceito, de um conjunto de características que se formula a respeito de alguém
antes mesmo de conhecer esta pessoa. Entretanto, no dizer do professor
Cavalheiro Leite, mesmo com todos os estereótipos que se pode ter em relação a
um professor que lecione Filosofia, ainda assim havia respeito pela figura desse
docente assim caracterizado.
Em relação à inclusão das disciplinas de Moral e Cívica e de Organização
Social e Política Brasileira (OSPB), vale ressaltar o seguinte aspecto: as duas
disciplinas foram incluídas em 1969 através do Decreto-Lei 869/69 e a disciplina de
Filosofia foi extinta, de fato, através da Lei 5.692/71. Ou seja, as três disciplinas
conviveram por dois anos, dividindo o mesmo espaço escolar. Quanto a isto, o
educador Cavalheiro Leite conta como era o relacionamento entre os professores
dessas disciplinas no ambiente do Colégio:Sempre tive pavor dessas coisas, sempre achei isso disciplinas da Ditadura, que realizavam lavagem cerebral. E no tempo em que elas conviveram com a Filosofia, havia uma grande animosidade entre os professores e essas disciplinas eram disciplinas completamente acríticas. Nem conservadorismo, nem revolucionarismo, eram do tipo “é assim e fim de papo”. Havia uma
88
dificuldade de convívio entre os professores de Filosofia, os que gostavam de Filosofia e os que davam essas disciplinas.
Gracia Passos18, ex-aluna do Colégio Pelotense em 1970, nos oferece um
panorama de como era ser aluna dessas duas disciplinas, concomitantemente. Em
relação à Filosofia, Passos avalia a disciplina como uma parte importante de sua
formação, visto que, até então, desconhecia o que vinha a ser Filosofia e os saberes
filosóficos. Afirma ainda que, em especial, o ensino da disciplina teve um papel
importante em sua vida: Pra mim foi um começo para eu saber o que eu queria escolher como futura profissão. Como a Filosofia trata de assuntos muito humanos e questiona sobre tudo, sobre a vida, sobre nós mesmos, para mim foi a primeira porta para eu descobrir quem eu queria ser futuramente.
Sobre a disciplina de Moral e Cívica, Passos fala:As aulas de Educação Moral e Cívica e OSPB eram muito boas em relação ao ensinar o respeito e a valorização à pátria, contudo, tinha o outro lado que era o de quererem fazer os alunos acreditarem em coisas que eram bem questionáveis.
Penso que realmente deva ter sido muito difícil o convívio dessas
disciplinas em uma mesma grade curricular. Fico imaginando como seria, enquanto
aluna, assistir a uma aula de Filosofia que instiga o pensamento lógico, a valorização
de questionamentos e da curiosidade e que adverte os alunos a respeito de
ideologias, etc, e logo após, assistir a uma aula de Moral e Cívica, em que é
ensinado que devemos amar a pátria, respeitar o Estado, não questionar o porquê
de certas coisas serem de um jeito e não de outro e “ponto final”. Creio que,
realizando este exercício empático, certamente eu me sentiria, no mínimo, confusa
em relação à minha formação e a qual caminho seguir. Enquanto uma das
disciplinas preza pela formação crítica, a outra valoriza o pensamento acrítico.
Jovino Pizzi, no artigo Filosofia, Ciências Sociais Críticas e Práticas
Educativas, tem um consideração importante acerca da questão da crítica dentro
deste contexto:Para nós – e me refiro particularmente ao Brasil – a recusa da crítica fez parte de uma etapa influente de nossa filosofia. Sem dúvidas, as inspirações positivistas foram decisivas para gerar um medo enorme à crítica, reduzindo a filosofia a seus pressupostos dogmáticos, a ponto de obstruir outras interpretações. No entanto, em épocas mais recentes, os regimes militares também trabalharam no sentido de impedir, derrogar e asfixiar qualquer crítica. Nesse sentido, toda e qualquer tentativa de crítica
18 Todas as citações selecionadas da fala da professora Gracia Passos foram extraídas de entrevista coletada por mim tendo como finalidade a contribuição nesta dissertação, disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho.
89
significa sempre um perigo e uma ameaça à situação e à ordem vigente (PIZZI, In GHIGGI, PITANO, PIZZI, 2009, p.104-105).
Em síntese, não tenho dúvidas de que essa era a visão dos militares em
relação à crítica e, consequentemente, à Filosofia – a de que criticar representava
um perigo à ordem vigente e ao funcionamento da sociedade. Daí a necessidade de
uma disciplina totalmente contrária, que ensinava a aceitação e “acalmava os
ânimos” dos estudantes dessa época.
E assim se deu, então, a ruptura e a extinção do Ensino de Filosofia a
partir do Regime Ditatorial. Ao que consta nos arquivos do CMP e também de acordo
com o relato do professor Cavalheiro Leite, a disciplina de Filosofia permaneceu até
o ano de 1972 no colégio dos Gatos Pelados. Acredito que seja importante ressaltar
que a Filosofia, em nossa escola, permaneceu até onde pode, até o momento em
que foi possível permanecer, enquanto que, em função do caráter optativo da
disciplina no que se refere à legislação, ela poderia ter sido extinta há vários anos
antes. Penso que o fato de manter a disciplina até o “último segundo possível” seja
uma atitude congruente com o ideal de um colégio que sempre clamou por princípios
libertários, laicos e contrários a toda e qualquer forma de dogmatismo, de acordo
com o que nos diz Renato Luiz Mello Varoto (In Amaral, 2002, p. 146) “O Colégio
Municipal Pelotense foi sempre um vanguardeiro na luta pela liberdade, em especial
a liberdade de pensar”.
CAPÍTULO 3. A SUBSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA PELAS DISCIPLINAS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA BRASILEIRA (OSPB) NO EDUCANDÁRIO
Lamentar a exclusão do ensino de filosofia no Ensino Médio e lutar por seu
retorno significa defender a inegável contribuição para a formação integral do
estudante.
Maria Lúcia de Arruda Aranha
3.1. Contextualização histórica – Do “milagre econômico” ao fim da ditadura
O Brasil do início dos anos 70 poderia ser caracterizado como um país
marcado pelo “milagre econômico”. A nação, através de grandes empréstimos e
investimentos financeiros entra em um período de desenvolvimento surpreendente.
A preocupação central dos governantes dava-se às questões relativas ao
“progresso” e à expansão do país. O Regime Ditatorial continuava a exercer seus
plenos poderes e seus representantes o levavam às últimas consequências.
Em março de 74, o presidente Ernesto Geisel anuncia a proposta de um
“gradual, mas seguro, aperfeiçoamento democrático” (Apud PILETTI, 1991, p. 181).
Começa, então, o período da “abertura política”. Uma abertura que, obviamente,
não se deu ao acaso. Foi um processo crescente, que se deu tanto através da ida
da população às ruas, para mobilizar contra os atos de tortura cometidos contra
91
civis, como no caso da morte do jornalista Vladimir Herzog; quanto pelo
descontentamento da nação em relação a uma crise econômica que se instalara em
função do endividamento externo. A censura também se apresentava com um outro
elemento que desagradava. O regime autoritário, enfim, começava a perder força. A
abertura se apresentava para os militares não como uma escolha, mas como uma
necessidade para continuarem a governar.
No restante do mundo, em outros países, a situação econômica também
começava a apresentar momentos de recessão. Os Estados Unidos são abalados
através da crise do petróleo, que repercute no Brasil dando início a um processo de
inflação que cresceria progressivamente nos anos seguintes.
No contexto da LDB de 1971, que se manteve vigente até 1996, a
Filosofia simplesmente desaparece. Tampouco é citada na reforma de ensino que
se deu na Lei nº 5692. Não contente com a total ausência da palavra Filosofia na
segunda LDB, me debrucei a rastrear, de 1971 até 1985 (fim da ditadura) por todas
as Lei Ordinárias, Leis Complementares e Decretos-Leis da legislação brasileira
nesse período. Para um espanto ainda maior, me deparo com exatamente nada
constando sobre a disciplina de Filosofia.
Daí, aponto para a seguinte questão e total indignação: como uma
disciplina simplesmente “evapora” e desaparece da grade curricular das escolas?
Como pode ter sido sequer mencionada na legislação? O que me parece é que
houve um total desprezo pela mesma e pela categoria docente que a lecionava, isto
sem mencionarmos os alunos, privados de senso crítico e de conhecimentos que a
Filosofia pode oferecer.
Alguns estudiosos sobre o assunto afirmam que a Filosofia foi proibida
pelo sistema militar por não oferecer-lhes instrumentos úteis para a ideologização
92
que a ditadura necessitava. Ouso dizer que preferia que assim tivesse acontecido:
que a disciplina tivesse, da fato, sido proibida. Não me contradigo quando assim
faço esta afirmativa. Acredito apenas que, se ela tivesse sido explicitamente
proibida, ao menos os professores que a lecionavam poderiam ter tido elementos
para uma luta mais enfática contra sua extinção e sua substituição pelas disciplinas
de Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Entretanto, isto não
ocorreu. A Filosofia foi, ferindo o Princípio de Não-Contradição Aristotélico, proibida
e não-proibida. Proibida, porque seu ensino não era aconselhável aos princípios
ditatoriais, pois quem filosofasse poderia ser visto como um subversivo, comunista e
anarquista, o que de fato era totalmente proibido na época. Ao mesmo tempo, não
foi proibida, pois não há nenhuma lei que afirme esta proibição e, o que não é
proibido, teoricamente, seria permitido.
Entretanto, o que ocorreu é que todas as mudanças pelas quais a
disciplina passou deram-se de modo sorrateiro, com muito pouco alarde ou barulho.
A fim de não despertar protestos por parte da classe docente que a lecionava, os
fatos que culminaram na extinção da Filosofia foram acontecendo gradualmente e
de forma implícita. O que, certamente, pode às vezes, ser pior do que uma proibição
explícita.
Ao se retirar a Filosofia das escolas, pergunto-me: o que aconteceu com
os professores que a lecionavam? O que fizeram? Com o que trabalharam? Penso
no seguinte: um professor, que conclui sua graduação na área, após estudar por
quatro anos para lecionar a disciplina de Filosofia, o que faz quando lhe retiram
totalmente o lugar, o espaço, o campo de sua atuação? Minha pergunta ganha
maior sentido quando o fazem de forma calada, sem que a classe de professores
perceba o que está ocorrendo.
93
Evidentemente que, mesmo em face do descaso dos governantes para a
disciplina de Filosofia, houve professores, alunos e políticos atentos ao que
acontecia na Educação brasileira. Em Pelotas, alunos da Universidade Católica
(UCPel), organizavam-se propiciando eventos para debater a questão. Na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) em Porto Alegre, alunos e professores do Curso de
Filosofia e Ciência Humanas elaboraram um documento entregue à Direção do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da instituição argumentando a favor do
Ensino de Filosofia no 2º grau. No âmbito nacional, professores e pedagogos de
universidades diversas se manifestavam a favor da reintrodução da Filosofia nas
escolas.
Entretanto, a maior ação em prol da reinserção da Filosofia como
disciplina obrigatória nas escolas nesse período foi, indubitavelmente, o Projeto de
Lei Nº 356-A, de 1983. De autoria do Deputado Federal José Fogaça, o projeto
propunha que se tornasse obrigatório o ensino de Filosofia nos estabelecimentos de
ensino de 2º grau. Na justificativa do projeto, José Fogaça argumenta: “A Filosofia
conduz a uma formação integral, acentuando o espírito crítico e valorático do
estudante, para que ele, ao invés de se acostumar com as injustiças, passe a lutar
contra elas”19.
O projeto foi aprovado, em 12/05/1983, por unanimidade, pela Comissão
de Constituição e Justiça, representada pela figura do Deputado Hamilton Xavier.
Pela Comissão de Educação e Cultura, em 17/08/1983, o projeto também obteve
aprovação, sendo representado pelo parecer vencedor do Deputado João Bastos,
contra os votos dos Deputados Rômulo Galvão e Eraldo Tinoco, que deram seus
pareceres desfavoráveis à aprovação do projeto, argumentando que os
professores de Filosofia eram demasiadamente escassos para suprir a demanda
que se daria com a obrigatoriedade do ensino da disciplina nas escolas. Todavia,
não bastara a aprovação somente da Comissão de Constituição e Justiça e da
Comissão de Educação e Cultura, restava ainda a aprovação no Plenário. No
Plenário, a primeira tentativa de votação ocorre em 11/10/1984, a qual foi adiada por
falta de quórum; estendendo-se por mais outra tentativa em outubro do mesmo ano
e mais uma em março de 1985, todas sem êxito, adiadas por falta de quórum; até
chegar em 02/05/1985 quando o Deputado Darcy Passos solicitou adiamento da
19 Todas as citações do Projeto de Lei nº 356-A, de 1983 foram extraídas do documento original, disponível na íntegra nos anexos desse trabalho.
94
votação por cinco sessões. Infelizmente, o projeto nunca chegou a ser votado em
Plenário, resultando no seu arquivamento pela Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados em 05/04/1989.
A tentativa de José Fogaça, mesmo sem ter conseguido sucesso, foi de
suprema importância. Demonstra que havia pessoas interessadas em reverter a
situação, engajadas que estavam na luta pela valorização da Filosofia. Porém,
mesmo com tais investidas, a disciplina de Filosofia acabou transformando-se, nos
anos setenta, oitenta e noventa, uma disciplina “fantasma”. Transformou-se em algo
“quase morto”, “pairando pelo ar”. Um desrespeito a tantos professores que
encaravam o ensino de Filosofia como sua profissão, como seu modo de sustento e
de prover as necessidades à vida. O caminho, para alguns, foi partir para outras
áreas, não restando muitas outras opções para quem quisesse seguir lecionando na
Educação Básica. No Ensino Superior, a Filosofia, de alguma forma, permaneceu,
mas de que forma? Que Filosofia consegue conviver com a Ditadura e com o não
questionar?
Acontece que, citando o exemplo de um outro país, no caso o Uruguai, a
Filosofia, mesmo no contexto da Ditadura, não foi extinta dos currículos escolares.
Não me proponho, neste trabalho, fazer um estudo comparativo entre os dois
países, o que certamente, no momento, seria inviável. Entretanto, não poderia
deixar de mencionar o fato de que alguma Filosofia, em um país vizinho do nosso,
latino-americano como o nosso, permaneceu, mesmo em tempos ditatoriais. As
razões desta permanência na educação uruguaia, indubitavelmente, são distintas
das razões da exclusão no nosso país. Saliento, com este exemplo, o fato de que a
Ditadura não foi o único elemento causador do desaparecimento da Filosofia das
escolas; sem dúvida, a ausência de um governo democrático foi um dos fatores
para que houvesse a extinção, mas outros elementos também contribuíram para o
que acabou ocorrendo.
A época de 1970 foi um tempo em que o Governo Federal, movido pelos
efeitos do Milagre Econômico, priorizou o Ensino Profissionalizante. A partir do
95
acordo Mec-Usaid, realizado entre os Estados Unidos e o Brasil, o tecnicismo se
torna a meta educacional. Maria Lúcia de Arruda Aranha nos descreve a educação
deste período, bem como os efeitos que se deram a partir da Reforma de Ensino de
1971:
Atrelada aos interesses ideológicos da ditadura, a reforma se ocupou também com a “formação do cidadão consciente”, introduzindo no currículo disciplinas sobre civismo e problemas brasileiros. Imposta de maneira autoritária e manipuladora, a reforma fracassou, provocando prejuízos que podem ser contabilizados até hoje. O projeto de profissionalização resultou em meta não-cumprida – mesmo porque o governo não se preocupou com os meios para torná-la viável – e no desmantelamento do currículo, decorrente da diminuição da carga horária de disciplinas como língua portuguesa, literatura, história, geografia, além da exclusão da filosofia. Mais ainda: nos exames vestibulares para as universidades foram adotadas provas com testes, dispensando-se as respostas discursivas. Com a desculpa de treinar seus alunos, as escolas de Ensino Médio aderiram à moda das “cruzinhas”, recurso muito cômodo para professores cuja carreira tomava rumos cada vez mais sombrios: mal-remunerados, precisavam aumentar o número de aulas para sobreviverem e, conseqüentemente, sempre tinham provas demais para corrigir (ARANHA, In: GALLO; KOHAN, 2000, p. 113).
3.2. Ensino de Filosofia no CMP – Tempos não-filosóficos ou não-filosofáveis?
No Colégio Municipal Pelotense, o Ensino de Filosofia foi extinto em 1972
e retornou somente em 1989. Ou seja, foram dezessete anos sem Filosofia no
educandário. Uma lástima, certamente. A disciplina de Filosofia foi “sufocada” pela
inserção das disciplinas de Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira.
Em função da Reforma de 1971, o ensino do Colégio teve que se adequar às
exigências do tecnicismo, formando pessoas “aptas” e treinadas para o mercado de
trabalho. Frente aos fatos, Maria Isabel Cunha nos fala da situação do Pelotense
nesses anos:
O Colégio Municipal Pelotense é o mais antigo da cidade, funcionando há mais de oitenta e cinco anos. É um estabelecimento de tradição entre os pelotenses voltado, até o advento da Lei 5.692/71, ao ensino propedêutico. Sua história é permeada pelos valores liberais e sua participação na comunidade foi sempre reconhecida, em especial, pelo padrão de excelência de seus alunos vestibulandos e de seus professores. A referida
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legislação obrigou o Colégio Pelotense a assumir a profissionalização. Esta foi, entretanto realizada de forma a não ferir a sua trajetória acadêmica. A deterioração em que caiu a escola pública em geral e a escassez de recursos do município tiveram conseqüências no Colégio que até hoje tenta recuperar sua imagem e retomar o ensino acadêmico (1989, p.49).
Vale ressaltar que a autora escreveu estas palavras exatamente no ano
de 1989, ano que acontece o retorno da Filosofia na escola. Então, o período que
Cunha relata é exatamente o da extinção da Filosofia no colégio, que se dá entre
1972 e 1989. Ainda em relação à citação acima, um dado que vale atualizar é que,
em 2012, a escola completará, no dia 24 de outubro, cento e dez anos de existência
e funcionamento.
Os prefeitos desse período foram: de 1973 a 1977, o Sr. Ary Alcântara
(PDS); de 1977 a 1982, o Dr. Irajá Andara Rodrigues (MDB), de 1982 a 1983, o Sr.
Pedro Machado Filho e de 1983 a 1987, o Dr. Bernardo Olavo de Souza (MDB). A
direção do Colégio Pelotense, na época, foi através da gestão de: Prof. Walney
Joemir Hammes (1973 a 1976); Prof. Dario Francisco de Castro Ribeiro (1976 a
1977); Prof. Antonio Edgar Nogueira (1977 a 1982); Prof. Osmar Jorge Nunes (1982
a 1983); e Prof. Luiz Carlos Corrêa da Silva (1983 a 1985).
No caso específico dos docentes que lecionavam Filosofia no CMP, a
maior parte deles deixou o educandário por motivos pessoais, como o interesse em
estudar fora do país, trabalhar em uma universidade, etc. No caso dos três
professores entrevistados, que lecionavam Filosofia no Pelotense antes do período
da extinção da disciplina, suas saídas se deram da seguinte forma: o Prof. Dr.
Silvino Lopes Neto relata que “a minha história no Pelotense eu só deixei quando
me formei em Direito, comecei a advogar e aí o tempo ficou muito curto”. Saiu
também em função de seus estudos: foi para a Espanha estudar Filosofia do Direito.
A Profª Drª Arabela Rota também permaneceu um período afastada do CMP para
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estudar no exterior: estudou Sociologia na Itália. Retornou após seus estudos e nos
conta que “em 1968, a Universidade Católica assinou um Convênio com o Colégio
Pelotense para a cessão de cinco professores. Eu fui um deles”. Já o Prof. Dr. José
Luiz Marasco Cavalheiro Leite cessou sua atividade enquanto professor de Filosofia
para exercer a atividade de Orientador Educacional no colégio. Cavalheiro Leite fala
de sua demissão da instituição e dos porquês de sua saída do Pelotense, que se
deu alguns anos após ao término de sua atividade docente:
Eu fui demitido em 1974, por razões políticas. Saí por uma conjunção de dois motivos: ia fazer uma pós no Canadá em Sociologia e porque tinha assumido, no Governo da Prefeitura de Pelotas, um novo Prefeito e um Secretário de Educação muito “de direita”, que tinha contas a acertar com alguns professores do Colégio Pelotense. Então, ele fez uma “limpa” no Colégio Pelotense e eu fui um dos que saiu nessa ocasião. Mas o período coincidiu com meu interesse em estudar fora do Brasil, o que foi muito bom.
Ou seja, nenhum dos professores da época permaneceu na instituição no
período em que se dá a ruptura com o Ensino de Filosofia. Dessa forma, não tenho
como avaliar os efeitos da Segunda LDB na vida desses educadores enquanto
professores de Filosofia do Pelotense na época. Em outros lugares, acredito que
alguns professores de Filosofia tenham sido deslocados de suas áreas para lecionar
outras disciplinas. Todavia, no caso do CMP, não há dados que me permitam falar
mais amplamente sobre os efeitos da reforma de ensino de 1971 no Colégio,
especificamente no campo da Filosofia.
Na visão dos professores que lecionaram no colégio, há um consenso de
que a extinção da Filosofia foi um acontecimento extremamente negativo na história
da nossa educação. Alguns dos professores trazem elementos importantes para
olharmos o passado.
Lopes Neto enxerga a extinção da Filosofia como uma coação que serviu
aos interesses do Estado. Em suas palavras: “foi uma arbitrariedade. Não era
interessante. Tudo que te tira a liberdade é antijurídico”. Assim, de uma forma
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“antijurídica”, fomos privados da liberdade de um ensino crítico e de tantas outras
atividades que um governo ditatorial reprime e proíbe.
Cavalheiro Leite também lamenta a extinção da disciplina. Afirma que
“Em todos os campos, (...) a Filosofia abre a perspectiva de discussão. Filosofia é
fundamental”. Como reflexos da ausência deste ensino para uma geração, o
professor dá o exemplo de seus filhos: “(...) meus filhos também não tiveram
Filosofia e não têm gosto pela Filosofia. Então, de perguntas do tipo “o que é o
conhecimento?”, eles foram privados”. Ou seja, foi criada uma geração não-
filosofante, da qual eu, enquanto aluna na minha formação inicial, tive o desprazer
de fazer parte.
O Prof. Dr. Manoel Vasconcelos20, docente da disciplina de Filosofia já em
tempos de democracia, também considera a retirada da Filosofia uma lástima e
concorda com a posição do Prof. Cavalheiro Leite. Vasconcelos afirma que “A
Filosofia faltou e prejudicou toda uma geração”.
Luís Felipe Claus, professor de Filosofia nos anos 1990 no CMP, também
lamenta a extinção do ensino de Filosofia e percebe que uma geração inteira ficou
alijada de um conhecimento mais crítico.
O Prof. Ubirajara Velasco, docente da disciplina de Filosofia no CMP de
1998 até os dias atuais, considera que, como consequências da retirada da Filosofia
das escolas, percebe-se uma série de dificuldades herdadas por essa lacuna no
ensino:
O que se vê é uma dificuldade imensa de pensar criticamente, desenvolver um texto com uma certa lógica, de desenvolver um texto minimamente exigido pela Língua Portuguesa, com uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão; as pessoas têm dificuldade de fazer uma redação, por mais simples que seja. Penso que em grande parte, o Regime Militar, além de todas as outras coisas que a gente poderia dizer sobre ele, mas em termos de Educação, prestou um desserviço imenso ao desenvolvimento social do país. Evidentemente, pessoas que não pensam são muito mais
20 Todas as citações do Prof. Dr. Manoel Vasconcelos foram extraídas de entrevista realizada, disponíveis nos apêndices deste trabalho.
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facilmente dominadas. E isso ainda vigora e ainda há gente que pensa que o mundo está aí, interpretado e pronto e vamos deixar assim. Está bom do jeito que está. Eu tenho plena convicção que atrapalhou bastante essa geração que não pôde ler, que não teve acesso à Filosofia, aos grandes pensadores, a pelo menos, algumas leituras, mínimas que fossem, que pudessem jogá-los numa busca maior, numa tentativa de descoberta do mundo a partir de leituras diversas pra formar a sua própria convicção sobre as coisas.21
Uma das atuais professoras de Filosofia, que leciona para os cursos de
formação de professores no Pelotense, a Profª Me. Ana Lúcia Almeida22 salienta o
fato da saída de muitos professores do país nesse período: “Imagino que deva ter
sido uma grande perda intelectual brasileira, esse período rompe com a trajetória de
crescimento intelectual, as pessoas que pensavam aqui tiveram que ir pensar fora,
foi uma lástima”.
Sendo assim, espero, positivamente, que esse seja o único episódio de
retirada da possibilidade do Ensino da Filosofia no Brasil. O Colégio Municipal
Pelotense certamente perdeu muito nesse período que se deu entre 1972 e 1989. O
Brasil, no seu sentido geral, perdeu ainda mais: ficou com esta lacuna entre 1972 e
2008. Desta forma, a atitude dos diretores do Colégio Pelotense de extinguir a
Filosofia somente quando foi obrigada a fazê-lo e de retornar assim que as
possibilidades se fizeram presentes, é um exemplo para a nossa educação
pelotense, gaúcha e brasileira. Que esse período sem Filosofia seja, então, o único
“vácuo” na história tanto dos Gatos Pelados, quanto da educação do Brasil.
21 Todas as citações do Prof. Ubirajara Velasco foram extraídas de entrevista coletada por mim, disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho.
22 Todas as citações do Profª Me. Ana Lúcia Almeida foram extraídas de entrevista realizada por mim, disponíveis nos apêndices deste trabalho.
CAPÍTULO 4. O RETORNO DA FILOSOFIA APÓS OS MOVIMENTOS DE MOBILIZAÇÃO COM VISTAS À REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS – DE 1985 A 2000
O momento é importante no Brasil. Todos o são. A filosofia tem uma
oportunidade de atualizar suas possibilidades educacionais. Para tal,
precisa transformar seu presente. Como? Transformando-se a si mesma.
Como? Pensando-se a si mesma. Como? Através de si mesma.
Sílvio Gallo e Walter Omar Kohan
4.1. Contextualização Histórica – Por uma nova democracia
O ano de 1985 é um marco na história brasileira, indubitavelmente.
Depois de vinte e um anos de um regime severo e repressor, como foi a ditadura no
nosso país, finalmente, a democracia tão sonhada pelo povo brasileiro é
conquistada.
O movimento de redemocratização no Brasil, por certo, não ocorreu
automaticamente. Construiu-se através de um processo, de um enfraquecimento do
regime ditatorial, e do movimento social das Diretas Já23, que mobilizou o povo em
uma luta pelo direito de eleger seus próximos governantes através de eleições
23 O movimento social “Diretas Já” foi uma campanha popular que reivindicava o direito de eleições diretas para presidente da República. Intensificou-se nos últimos meses de 1983 e teve seu ápice em 1984, com diversas manifestações públicas nas ruas, onde o povo saía vestindo camisetas amarelas (que significavam a cor da campanha), levando bandeiras e faixas e fazendo o maior barulho possível (batendo panelas, tocando a buzina dos carros, gritando, etc). De acordo com PILETTI (1992, p. 187) “O país, em toda a sua história, nunca vira manifestações públicas tão numerosas, alegres e ordeiras, sem distúrbios, sempre terminando com o Hino Nacional entoado por todos os presentes, de mãos dadas para o alto, num clima de grande emoção”.
101
diretas. No entanto, em 85, isto ainda não aconteceria. O Governo Federal
conseguiu barrar a Lei Dante de Oliveira e o próximo governante ainda foi eleito
indiretamente pelo povo, representado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado
Federal. Assim, Tancredo Neves foi escolhido para ser o próximo Presidente da
República.
No entanto, por uma fatalidade, Neves não chegou a tomar posse no
cargo, vindo a falecer em 21 de abril de 1985. Uma frustração para o povo brasileiro,
que apostava no futuro governo com esperança de tempos melhores. Dessa forma,
José Sarney, vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, assume o poder e se
torna o presidente que consolidou em seu governo a esperada democracia
brasileira.
O Governo Sarney pouco ou quase nada avançou em relação à
diminuição da desigualdade brasileira e em suas tentativas de estabilizar o setor
econômico. Porém, é durante seu governo que, por pressão da sociedade civil
organizada, acontece a confirmação do espaço democrático e a promulgação da
Constituição de 1988, que se mantém vigente até os dias de hoje.
No ambiente mundial, acontece em 1989 a queda do muro de Berlim, que
marca a decadência do socialismo na Europa, simboliza o fim da Guerra Fria e
representa para o resto do mundo a descrença em um sistema político com ideais
marxistas de igualdade e divisão entre povos.
No Brasil, a esperança de eleger um presidente por voto direto finalmente
concretiza-se nas eleições de 1989. Fernando Collor de Mello é eleito pelo povo,
através de voto direto, ou seja, democraticamente. No entanto, seu governo deixou
muito a desejar e se tornou uma grande decepção para a nação que o escolhera.
Collor, além de não conseguir êxito em seus planos para conter a inflação que
102
dominava avassaladoramente o mercado financeiro da época, foi ainda acusado de
corrupção política e desvio de dinheiro público; culminando na impugnação de seu
mandato como presidente, através de um processo de Impeachment, sendo
substituído por seu vice-presidente, Itamar Franco, que permaneceu na presidência
até o término do mandato.
O período pós-1985 pode ser caracterizado como um tempo de
reconstrução. O Brasil clamava por mudanças e já havia conquistado algumas,
como a tão sonhada trajetória inicial em direção à democracia, no sentido de uma
maior abertura política e do direito de eleger seus representantes. Mas, de fato,
muita coisa ainda teria que ser modificada. A inflação era um problema constante,
que atingia de forma acentuadíssima e diretamente a cada um dos brasileiros. A
escolha democrática ainda não fora atingida com êxito, pois o presidente eleito não
cumpriu seu mandato devido à descoberta de diversas irregularidades em sua
administração e de denúncias de corrupção e de desvio de dinheiro público. E na
Educação, a Lei de Diretrizes e Bases escrita nos anos 70 tornara-se obsoleta e
ultrapassada para um país que precisava mudar também a sua forma de educar as
atuais gerações. Ghiraldelli Júnior (2001, p. 161-162) nos fala desse período de
redemocratização:
A nova democracia tem sido, de fato, o período de maior liberdade e de maior respeito dos diversos setores sociais para com as instituições políticas democráticas brasileiras, se comparado com toda a história do país. Paradoxalmente, durante todos esses anos, a concentração de riqueza no país aumentou assustadoramente. A discussão da política educacional, o embate das ideias pedagógicas e a legislação, tudo isso, ganhou um nível de complexidade jamais visto, dada a complexidade [sic] da própria população brasileira, que depois dos anos setenta ultrapassou a casa dos cem milhões de habitantes.
103
4.2. - Ensino de Filosofia no CMP – a reinserção da Filosofia
Pelotas, no período de 1985 a 2000, foi governada pelos seguintes
prefeitos: (1987-1989) José Maria Carvalho da Silva (MDB); (1989-1993) José
Anselmo Rodrigues (PDT); (1993-1997) Irajá Andara Rodrigues (PMDB); e (1997-
2000), novo mandato de José Anselmo Rodrigues. O CMP teve como diretores os
professores Luís Magno D'Ávila Bonini (1986-1989); Maria Laura Vianna Villela
(1989-1995); e Luiz Eduardo Brod Nogueira (1996-2005). Este último, é hoje
vereador na cidade de Pelotas pelo PPS, tendo seu primeiro mandato em 2005/2008
e o segundo mandato em 2009/2012.
O Colégio Pelotense, obviamente, como toda e qualquer instituição ou
lugar, era afetado culturalmente e politicamente pelos acontecimentos históricos que
ocorriam no Brasil. Sentia a necessidade de renovação e de aperfeiçoamento
constante. O espírito libertário e crítico, constantes em toda a sua história, eram
mantidos. E o momento, no final dos anos oitenta e início dos anos 90, tornava- se
propício para modificações curriculares e aberturas nos conteúdos de ensino.
Sob essa perspectiva, o diretor da época, o Professor Luiz Magno D'Ávila
Bonini, bem como sua equipe, resolveram reintroduzir a Filosofia na escola.
Convidaram, então, o Prof. Dr. Manoel Vasconcelos para lecionar a disciplina na
instituição. O Prof. Dr. Manoel Vasconcelos lecionou no colégio de 1989 até a
metade de 1991. Com sua saída, o professor Osvaldo Zolet assumiu a disciplina,
concluindo o ano letivo de 1991. Nesse mesmo ano, houve Concurso Público para
suprir a vaga de professor de Filosofia. Quem assumiu o cargo foi o Prof. Luis Felipe
Claus, em 1992, o primeiro professor de Filosofia efetivo após a reimplantação do
sistema político democrático. O professor Claus permaneceu no cargo até o ano de
1995. Em 1996, foi empossado o Prof. Ubirajara Velasco, que leciona no Pelotense
104
até os dias de hoje. A Filosofia, depois de dezessete anos, finalmente retornava ao
educandário! Sem dúvida, uma atitude singular para a época, já que as escolas não
tinham a obrigação de manter um espaço para o ensino da disciplina. Vasconcelos
nos fala sobre como se deu o retorno da disciplina no CMP:
O CMP foi a primeira escola em Pelotas que retornou o Ensino de Filosofia, em 1989, depois da Ditadura. Oportunizaram duas aulas por semana na carga horária para os terceiros anos do Ensino Médio, por acreditarem que os alunos já estavam em uma fase de amadurecimento maior. Não tinham professores de Filosofia. Fui convidado e o convite se deu a partir do diretor Bonini. Eu era professor da UCPel e fui cedido através de um empréstimo de professores. O Prof. Isvani, que era do CMP foi cedido para a UCPel e eu fui cedido para o CMP; foi uma troca. Trabalhei até 1991, até passar no concurso da UFPel. Era professor da Católica cedido no Colégio Pelotense, sem vínculo com a Secretaria de Educação. Na época, eu tinha 25 anos e estava com toda vontade de trabalhar. Foi das minhas melhores experiências educacionais e tenho muito orgulho de ter participado deste processo, de ter sido o primeiro professor de Filosofia depois da Ditadura e de ter trabalhado no CMP.
Vasconcelos relata que suas lembranças dessa época são muito boas.
Afirma que os alunos eram muito receptivos, sedentos por reflexões que
conduzissem à possibilidade de crítica, apesar de haver alguns que questionassem
o ensino e a presença da disciplina na escola, já que se tratava de um conhecimento
que não era cobrado nas provas dos vestibulares da região. Conta que o apoio e a
valorização da direção do colégio foi muito importante e que ele mesmo elaborava
os planos de ensino e escolhia os conteúdos a ser trabalhados nas turmas. Relata
que suas aulas eram expositivas e que trabalhava a partir de textos e os alunos
preparavam seminários para ser apresentados aos colegas de aula, realizando o
trabalho a partir de temas filosóficos.
Chamo atenção para o fato de o professor da época propor aos discentes
a apresentação de seminários. Creio que esta metodologia é um recurso de acordo
com uma pedagogia que propõe o aprendizado e que instiga o espírito reflexivo dos
alunos. Um seminário consiste em informar um público sobre um tema determinado.
105
Para isto, o(s) apresentador(es) deve(m) ter pleno domínio oral do assunto tratado,
pois não se consegue uma comunicação com a plateia que o(s) assiste(m) se não
se conhecem os temas a serem apresentados. O professor interfere atuando como
um mediador entre o(s) apresentador(es) e o restante da turma que os assistem.
Ademais, uma outra vantagem do uso da metodologia consiste no diálogo que pode
ocorrer entre o(s) alunos que apresenta(m) o trabalho e os demais, podendo ser um
instrumento eficaz para se promover a criticidade, o questionamento dos
conhecimentos passados e para uma integração maior entre o(s) grupo de alunos.
Sobre a realização de seminários, Severino fala: “O objetivo último de um seminário
é levar todos os participantes a uma reflexão aprofundada de determinado
problema, a partir de textos e em equipe” (2000, p. 63). Embora Severino faça tal
afirmação direcionando a metodologia para os cursos universitários, creio que esta
metodologia possa também ser estendida para os cursos de Ensino Médio. Penso
ainda que, o quanto antes os alunos se habituarem a este tipo de trabalho, melhor
serão suas reflexões e amadurecimentos nas próximas experiências com
seminários.
Os temas trabalhados nas aulas do Prof. Vasconcelos foram Introdução à
Filosofia, História da Filosofia, Ética e Antropologia Filosófica, com destaque
principal para os dois últimos assuntos. O docente não usava nenhum livro em
especial para trabalhar em sala de aula, mas lembra de, eventualmente, utilizar a
obra Filosofando, de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Caracteriza o ensino realizado
de acordo com os modelos críticos. Perguntado se o ensino da disciplina de Filosofia
havia contribuído para a formação de consciências críticas, Vasconcelos respondeu-
me: “Sim, mas não a Filosofia isoladamente e sim em conjunto com as outras
disciplinas. A escola era muito democrática, o que contribuía para um ambiente
106
favorável para isso. Tudo na escola era votado, escolhido por todos. O conjunto
disso tudo é que favoreceu a criticidade”. Severino, a respeito da democracia,
afirma:
A democracia é também uma qualidade da vida dos homens, baseada no reconhecimento e no respeito mútuos, ou seja, é modalidade de convivência social, em que as relações entre os homens não sejam relações de dominação, opressão, exploração ou alienação (1994, p. 98)
Assim, percebe-se que a totalidade do ambiente escolar, através de uma
democracia efetiva, auxilia, indubitavelmente, na formação da crítica do educando. A
criticidade, apesar de ocupar um lugar de excelência nas aulas de educação
filosófica, não acontece somente no ensino da disciplina. Se o meio escolar favorece
o pensar, através de decisões compartilhadas democraticamente, do trabalho das
outras disciplinas atuando de forma contrária aos padrões tradicionais de ensino,
certamente, o ensino da Filosofia será muito mais satisfatório. A Filosofia tem a sua
importância e possui a missão de formar habilidades que possam contribuir para a
construção de alunos críticos e pensantes, mas não deve ser a “mártir” ou a grande
“salvadora” dos problemas escolares. Um ensino entrelaçado com outras disciplinas
é fundamental para um trabalho integrador, que seja contrário ao “conhecimento de
gavetas”, em que cada conteúdo acontece de forma distante e isolada dos outros.
Todos os conhecimentos que compõem a grade curricular das escolas visam um
único objetivo: a formação dos alunos para que esses possam tornar-se seres
desenvolvidos em todos os seus aspectos e potencialidades. Ou seja, o aluno é um
ser unificado, podendo (e devendo) aproveitar os conteúdos apre(e)ndidos em todos
os instantes de seu viver e desenvolvendo habilidades não apenas em uma ou outra
aula, mas no todo de suas experiências.
Vasconcelos permaneceu como docente da disciplina de Filosofia até a
metade do ano de 1991. Com sua saída, o Professor Osvaldo Zolet assumiu as
107
turmas em que o Prof. Manoel Vasconcelos lecionava. Neste mesmo ano, houve um
Concurso Público para suprir a necessidade da vaga e a fim de que se pudesse ter a
garantia de um professor efetivo. Luís Felipe Claus foi classificado em primeiro lugar
para exercer o cargo de professor de Filosofia. Em maio de 1992, o professor
assume a vaga, permanecendo no cargo até o ano de 1995, lecionando para os
terceiros anos do Ensino Médio e para o curso de Magistério.
Para a escrita da dissertação, entrevistei o Prof. Luís Felipe Claus. Claus,
ao recordar suas aulas nos anos 90 no CMP, avalia sua experiência como
extremamente válida e relata que tinha uma grande dificuldade em relação aos
conteúdos e aos materiais utilizados nas aulas. Por serem aulas incipientes, os
temas eram abrangentes e não muito delimitados. Não existiam livros didáticos a
recomendar aos cursos de Ensino Médio, o que dificultava o planejamento do
professor em relação a escolhas de textos e materiais a serem trabalhados em aula
e o professor permanecia, assim, em uma constante busca do que e de que forma
trabalharia com os alunos.
Em relação a metodologias, Claus conta como era a sua forma de
trabalhar Filosofia no Colégio Pelotense:
Aulas expositivas, dialogadas, conteúdos no quadro, alguns textos, um pouco de leitura dos clássicos, eu gosto muito dos clássicos, a gente não pode fugir deles, não podemos menosprezar Aristóteles, Sócrates, os próprios Pré-Socráticos ... Da literatura clássica eu lia alguns textos, então, se eu falava sobre política eu lia ali um pedacinho do “Contrato Social”, alguma coisa sobre Thomas Hobbes, John Locke, pequenos textos assim, não todo, mas uma parte principal que elucidava, corroborava com o conteúdo que eu estava dando, para que o aluno criasse o amor, ou criasse ao menos a intenção de saber que existe um clássico, que foi tirado aquele conteúdo daquele clássico. Até hoje eu procuro ler pedaços de clássicos e trazer o livro e mostrar o livro pro aluno. Manusear, ver o livro ali e tal, criar amor ao livro. Gostava muito disso.
Saliento a posição do professor de ensinar Filosofia através dos clássicos
da Filosofia. Perguntado se preferia trabalhar a disciplina através de temas
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filosóficos ou da própria História da Filosofia, o docente respondeu-me: “Eu prefiro
através da História da Filosofia. Eu sou bem conteudista. Eu pego uma linha de
pensamento e eu venho por ali”. Claus se preocupava com o cumprimento dos
conteúdos propostos e estes conteúdos eram organizados de forma que pudessem
contribuir com o ensino posterior que alguns alunos teriam: o Ensino Superior.
Devido ao fato de trabalhar com terceiros anos, o educador considerava importante
preparar os estudantes para o que veriam nos anos seguintes dentro da
universidade. Nas palavras de Luís Felipe Claus, os conteúdos eram selecionados
“tentando usar a Filosofia como utilidade dentro da universidade. Para que eles não
chegassem na universidade e ouvissem termos e vissem filósofos que eles nunca
tinham visto. Tem que ter um conhecimento prévio”. Ademais, eram trabalhados
também nas aulas do docente, o Existencialismo, com ênfase nas teorias de Jean-
Paul Sartre e de Soren Kierkegaard.
Quanto à posição do professor de trabalhar Filosofia de forma conteudista
e através da História da Filosofia, cito as palavras de René José Trentin Silveira,
extraídas do artigo “Um sentido para o Ensino de Filosofia no Ensino Médio”, que
auxiliam a elucidar a proposta pedagógica de Claus:
A ênfase nos conteúdos, vale dizer, não significa que se deva transformar o ensino de filosofia em transmissão mecânica, fixa e abstrata das ideias dos filósofos. Antes, é preciso que esses conteúdos estejam em conexão com os problemas concretos escolhidos como objeto da reflexão filosófica e que sejam apresentados em sua dimensão histórica, isto é, como resultado do esforço dos filósofos de responderem aos problemas de seu tempo, muitos dos quais se conservam pertinentes e relevantes ainda hoje. De fato, a reflexão não deve partir do zero, ainda que seu objeto seja um problema atual, mas sim do conhecimento historicamente acumulado sobre ele, pois é essa referência histórica que fornecerá aos alunos a base histórica para uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto, evitando que permaneçam no nível do senso comum (In: GALLO, KOHAN, 2000, p.142).
Silveira, ao visar uma “reflexão radical, rigorosa e de conjunto" remete à
definição de Reflexão Filosófica postulada por Saviani. Para o autor, a “reflexão
filosófica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto” (SAVIANI, 1985, p.
109
24). Radical, no sentido de “que se opere uma reflexão em profundidade” (Idem,
Ibidem). Rigorosa, como um sinônimo de sistematizada; e de conjunto, ou seja, sem
que o contexto seja menosprezado.
Assim, o professor de Filosofia do CMP nos anos 1990, relata que os
alunos gostavam da disciplina de Filosofia. Apesar do rigor, da lógica e das
atividades de pensamento que a Filosofia propõe, o docente acredita que os
estudantes apreciavam a disciplina por considerarem algo diferente das demais e,
de certa forma, mais “fácil”. Cito as palavras de Claus ao se referir à Filosofia no
CMP naquela época: “Era um 'refresco' para eles, uma coisa diferente assim das
agruras da Matemática e da Física, a Filosofia era um 'refresco'”. Todavia, se houver
uma reflexão filosófica que seja congruente com a definição de Saviani exposta
anteriormente, “radical, rigorosa e de conjunto”, a disciplina poderá servir, dentro do
espaço escolar e fora dele, para algo além de um “lustro” ou um “ornamento” que
possa visar a um conhecimento elitizado e intelectualizado. Acredito no poder que a
Filosofia tenha de contribuição para que se possa pensar sobre o mundo da vida. No
mundo da vida24 se lida com política, ética, lógica, metafísica, ontologia, entre tantos
outros campos. Por isso, defendo o ensino da disciplina para crianças, jovens,
adultos e idosos: a Filosofia não requer idade mínima nem máxima, requer apenas
que se aprenda a refletir com radicalidade, rigorosidade e levando em consideração
o contexto em que se está inserido. A Filosofia deve contribuir para a formação da
cidadania. Severino define o cidadão da seguinte forma:
O homem só é plenamente cidadão se compartilha efetivamente dos bens que constituem os resultados de sua tríplice prática histórica, isto é, das efetivas mediações de sua existência. Ele é cidadão se pode efetivamente
24 De acordo com Abbagnano (1998, p. 689), “Mundo da Vida” ou Lebenswelt é um: “Termo introduzido por Husserl em Krisis, para designar "o mundo em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente na experiência simples e depois também nos modos em que sua validade se torna oscilante (oscilante entre ser e aparência, etc.)" (Krisis, § 44). Husserl contrapõe esse mundo ao mundo da ciência, considerado como um "hábito simbólico" que "representa" o mundo da vida, mas encontra lugar nele, que é "um mundo para todos" ((Ibid., Beilage, XIX)”.
110
usufruir dos bens materiais necessários para a sustentação de sua existência física, dos bens simbólicos necessários para a sustentação de sua existência subjetiva e dos bens políticos necessários para a sustentação de sua existência social (1994, p.98).
De acordo com o conceito de cidadania exposto acima, em dezembro de
1996 o Congresso Nacional aprovou a Lei Nº 9394/96, a chamada Lei de Diretrizes
e Bases de 96, ou apenas LDB de 96. As transformações esperadas, a atualização
da legislação para o campo da educação, enfim, aconteciam. No entanto, para a
Filosofia, uma frustração: a disciplina não era indicada como disciplina obrigatória no
presente documento. Era apenas citada e havia a indicação de que, ao final do
Ensino Médio, esperava-se que o aluno fosse capaz de desenvolver o “domínio dos
conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”
(Lei Nº 9394/96). Paradoxalmente, esperava-se que o aluno desenvolvesse o
domínio dos conhecimentos, mas a disciplina não era obrigatória nas instituições de
ensino. A LDB/96 representou, para o ensino de Filosofia, um pequeno avanço, que
daria margem para as modificações que aconteceram em 2008.
O CMP, antes mesmo da promulgação da LDB de 1996, já oferecia a
disciplina na escola e permaneceu oferecendo, mesmo sem qualquer obrigação
legal para isso.
Para a ocasião desta pesquisa, tive a oportunidade de entrevistar o Prof.
Ubirajara Velasco, o professor de Filosofia com mais tempo de docência no ensino
de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense, atualmente. As informações prestadas
pelo professor foram de fundamental importância, bem como todas as outras
entrevistas coletadas.
Velasco começou a lecionar no Pelotense em 1996 e foi nomeado para a
função de professor através de concurso público. Foi empossado para lecionar para
o curso de Magistério, todavia, como sua carga horária era maior do que o número
111
de aulas que o curso de Magistério necessitava, Ubirajara Velasco assumiu também
as turmas de Ensino Médio. Os conteúdos abordados eram sobre a origem da
Filosofia, o que é Filosofia, o estudo da Filosofia, a Filosofia – uma atitude natural do
homem, o homem e a utopia, análises ético-antropológica do homem da sociedade
o liberalismo, o socialismo, a perspectiva existencialista, a Filosofia e a realidade
latino-americana. Como temas de Antropologia Filosófica, a Filosofia e Ciência,
questão da liberdade, Filosofia e o amor, o homem e a morte, e a dimensão política
do homem eram tratados. Também Filosofia e trabalho, as principais concepções
sobre trabalho, a civilização primitiva, as civilizações gregas, capitalismo,
socialismo, o homem e o trabalho, trabalho e dignidade humana e a dimensão ético-
antropológica do problema do trabalho.
Em relação à valorização da inclusão da disciplina pela comunidade
escolar, o professor relata: “Era uma coisa a mais no currículo. Nem os próprios
professores das disciplinas chamadas “humanas” (História, Geografia e tal), nem
eles viam com bons olhos. (…) O professor de Filosofia era algo estranho dentro do
colégio”.
Perguntado se preferia trabalhar a Filosofia a partir da sua história ou
através de temas filosóficos, o Prof. Velasco respondeu-me: “(...) eu trabalhava com
primeiros e segundos anos, então, eu trabalhava com História da Filosofia no
primeiro ano e trabalhava temáticas, temas de Filosofia no segundo ano. Sempre
dei muita importância pra História da Filosofia”. Penso que a escolha do professor
esteja de acordo com a proposta de um ensino que organiza seus conteúdos de
uma forma “equilibrada”; pois não despreza nenhuma abordagem, nem outra. Utiliza
as duas formas de ensinar a disciplina, no qual ambas possam se complementar.
112
Ubirajara Velasco, apesar das dificuldades encontradas em sua carreira
docente, considera sua prática interessante e avalia de forma positiva sua trajetória.
Sobre sua maneira de trabalhar em aula, seus métodos de ensino, Velasco também
aposta na proposta de seminários nas aulas de Filosofia. Avalia os alunos dando
especial atenção à participação destes nas aulas, o desempenho oral nas
apresentações dos seminários, o trabalho escrito resultante da pesquisa para o
seminário e utiliza também, como instrumento de avaliação, uma prova escrita, por
ser esta uma obrigação legal. O professor considera fundamental o papel do diálogo
e do debate nas aulas de Filosofia.
Com a finalidade de fazer ainda mais do que a sua prática docente em
sala de aula, o Prof. Velasco, de 2000 a 2008, desenvolveu um projeto extraclasse
com seus alunos do segundo ano do Ensino Médio. O projeto intitulado
“Filosofando” tinha como lema “É possível construirmos juntos a cidade que
queremos e a sociedade que merecemos?”. O tema principal deste projeto era “a
cidade que estamos construindo – Utópolis”.
Com o olhar voltado para a aplicabilidade da Filosofia à práxis, o docente
propunha aos seus alunos, em turno inverso ao horário de aulas, o reconhecimento
da cidade que esses alunos habitavam, a nossa Pelotas. A partir daí, foram
selecionados temas para se pensar sobre a cidade, tais como: Educação, Saúde,
Meio Ambiente, Habitação, Transporte e Segurança Pública. Os assuntos,
primeiramente, foram desenvolvidos através de diversos grupos, cada um
trabalhando um tema. No decorrer do projeto, os alunos solicitaram que todos
pudessem trabalhar sobre todos os temas, com a finalidade de perceber a cidade no
seu todo e não de forma isolada. O trabalho era desenvolvido no decorrer do ano
letivo. Um dos objetivos do projeto era fornecer um retorno à comunidade pelotense,
113
através da apresentação dos dados coletados e das propostas para uma cidade
utópica, imaginária, que foi batizada de “Utópolis”. O termo “Utópolis”, com a original
junção dos termos Utopia e Pólis, acabou, ao meu ver, fornecendo fiel identidade ao
projeto, tanto que, por vezes, o projeto foi mais chamado de Utópolis do que pelo
seu nome original, Filosofando. Ou seja, primeiramente, era idealizada a cidade que
poderíamos ter, de forma fictícia, (Utópolis) e, posteriormente, era feito um
diagnóstico da cidade que temos (Pelotas) para a realização de uma comparação
entre a ficção e a realidade. Na fase de identificação da cidade que se tem, os
alunos faziam entrevistas com a população, nas ruas de Pelotas. O principal texto
filosófico que embasava o projeto era a obra “Utopia” (1516) de Thomas More.
Sobre a relação entre escola e comunidade, Ubirajara Velasco fala:
O projeto é voltado para a comunidade. É a relação escola e comunidade. Como é que nós vamos transformar um aluno num sujeito autônomo, livre, crítico se ele não se envolve com a sua comunidade? Não adianta ser crítico em relação ao problema financeiro da Grécia. Nós temos que olhar para a nossa cidade. O mundo em que vivemos e sobre o qual nós podemos agir de maneira a transformar alguma coisa, a melhorá-lo. Melhorando a nós mesmos, evidentemente. Uma Filosofia que não pensa a si mesma pode ser qualquer coisa, menos Filosofia.
Assim, o que percebo é que a prática de trabalhar Filosofia ampliando os
limites do espaço e do tempo da sala de aula, de trabalhá-la através de projetos
extraclasse, possibilita que os alunos possam muito mais do que simplesmente ler
os clássicos textos filosóficos. A prática de Velasco nos mostra claramente que, ao
proporcionar um espaço de aplicabilidade dos conhecimentos filosóficos visando
transformações reais e não abstratas na vida dos estudantes, propicia-se ainda um
espaço para a conscientização, o engajamento e a formação crítica desses jovens.
Em síntese: um espaço mais amplo para o filosofar. Desidério Murcho, no artigo “A
divulgação da Filosofia”, nos fala sobre a importância do filosofar, como uma
habilidade a ser desenvolvida:
114
Talvez seja possível ensinar e divulgar a filosofia de um modo que dê às pessoas a capacidade para apreciar os grandes escritos dos filósofos do passado e do presente. Mas, ensinar e divulgar a filosofia de um modo que dê às pessoas a experiência do filosofar, que lhes faça sentir a força e a realidade dos problemas e a dificuldade de lhes dar a resposta, parece uma estratégia muitíssimo mais adequada. Ao fazer isso, estaremos a dar aos estudantes e ao grande público capacidades analíticas e críticas transversais, que podem depois ser aplicadas em qualquer área da vida (In: HENNING, 2010, p. 346, grifos do autor).
Percebo, tanto na atuação de Velasco quanto na citação de Murcho, a
tese kantiana, “não se ensina Filosofia, se ensina a Filosofar”. Esta é uma proposta
defendida por vários educadores de Filosofia e teóricos da área, tese que mostra a
Filosofia não como um conhecimento meramente abstrato, com ideias longínquas e
fora da realidade. Consiste em uma habilidade, em uma capacidade de pensamento,
em algo que se constrói e que se aprende. Nesta linha de pensamento, Velasco
mostra outros benefícios, congruentes com a tese kantiana, que o projeto
desenvolvia:
(…) este projeto aqui ele não só fez com que alguns deixassem de usar uma droga à tarde para ir ao projeto, para se ocupar com alguma coisa válida, alguma coisa significativa, importante para ele, para a família, para a comunidade, não só trouxe um certo despertar, um certo amadurecimento, como fez com que o aluno da tarde fosse para a aula da manhã no outro dia mais esperto, mais livre, mais solto, pronunciando-se melhor, dizendo o que pensa sobre as coisas.
A prática filosófica vai muito além de teorias abstratas. Contribui para a
formação de um raciocínio lógico mais burilado, de uma capacidade de
argumentação mais ampla e embasada, do desocultamento das ideologias
massificadas e aceitas como “verdades” pelo senso comum, entre tantos outros
benefícios para o aluno. Em entrevista para o jornal “Diário Popular”, a aluna Paola
Vasques, com 17 anos na época, participante do Projeto “Filosofando” afirma: “Muita
gente pensa que nas aulas de Filosofia a gente fica só falando, falando, e não é
assim. Discutimos a realidade e tentamos fazer alguma diferença” (Diário Popular, 4
de abril de 2004, p. 7).
O Projeto Filosofando tinha como objetivo geral:
115
Construir um espaço revigorado da vida escolar e da prática pedagógica, estimulando o debate dentro e fora do ambiente escolar, permitindo uma maior conexão com a realidade dos educandos visando uma ação consciente das posturas em relação ao mundo e aos semelhantes. 25
E, de fato, era o que acontecia. Filosofando oferecia um ambiente
democrático para os alunos, onde os mesmos podiam manifestar-se, colocando em
prática os conhecimentos adquiridos nas aulas de Filosofia, oportunizando um lugar
onde se possibilitava o pensar sobre o lugar que se tem, o que se pode conquistar
e o que seria ideal que pudessem ter. Assim, o espírito de Filosofando ou Utópolis
era exatamente esse: o de propiciar aos estudantes a compreensão de que filosofar
não é somente um mero exercício intelectual e abstrato, mas que carrega consigo a
possibilidade de, a partir desse pensamento filosófico, investigar, analisar, projetar o
ideal e constatar que mudanças são possíveis.
Uma participante do projeto, a aluna Larissa Caldeira, afirma: “A utopia é
uma forma de sociedade ideal, talvez seja impossível de realizar na Terra, mas é
nela que um sábio deve depositar todas as suas esperanças”26. Percebo, a partir do
dizer da aluna, que a utopia é um elemento importantíssimo para identificarmos o
quanto a nossa atual sociedade se distancia daquela que temos como ideal para se
viver.
Os alunos do Projeto Filosofando pensaram e estabeleceram como seria
Utópolis, a cidade perfeita. No dizer do Prof. Velasco:
Então, nós pensamos numa cidade, pensamos um perfil de um prefeito, um prefeito que tem sua sala, o seu gabinete, que toma café pela manhã, que caminha pela feira livre, que conversa com as pessoas humildes e o seu partido é o “Partido da Criatividade Social”. E esse prefeito tem uma relação de amor e ódio com determinados vereadores, também ouve críticas fortes da comunidade, alguns chegam a chamá-lo de demagogo, e esse prefeito faz coisas boas mas ele também, enfim, enfrenta problemas sérios por aí, ele chama-se Heráclito Fontes e ele aumentou em 20% o número de vagas nas escolas, ele diz que quem trabalha trabalha silenciosamente, não é
25 Texto extraído do Projeto Filosofando, de Ubirajara Velasco, disponível nos anexos deste trabalho.26 A afirmação da aluna Larissa Caldeira está presente no relato do Prof. Ubirajara Velasco, em entrevista
realizada por mim, disponível nos apêndices deste trabalho.
116
necessário grandes propagandas, o trabalho é divulgado na medida em que as pessoas vêm “Aqui há uma obra pública”. E ele diz, o prefeito, que os bilhetinhos acabaram e com eles também as indicações para cargos e empregos. O clientelismo, o conchavo e a corrupção foram banidos da cidade. Hoje em “Utópolis” o prefeito atende reivindicações por meio da Associação de Moradores, além disso, as contratações emergenciais obedecem critérios que no primeiro momento são liberados pela comunidade, sem entretanto, ignorar o serviço público. Ele tem um desafeto na Câmara de Vereadores com o vereador Ulisses, o vereador Ulisses ele diz que: “Tudo é uma questão de discurso”. Pois o filósofo Górgias já ensinava que o bom orador é capaz de convencer qualquer um sobre qualquer coisa. Então, em que pese todas as suas ideias colocadas em prática, sempre há uma crítica também severa a respeito do que ele faz. Um projeto habitacional e uma tentativa de auxílio para com os mais idosos também. Há quem fale em impeachment e ele lembra que Sócrates ensinou: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses da cidade”.
Entretanto, Velasco propunha ir além da utopia. Num segundo momento
do projeto, os alunos saíram às ruas numa pesquisa de campo, procurando
identificar aspectos da realidade pelotense. Nesta fase do projeto, ficava explícito
que Filosofando era um projeto voltado para a comunidade. Os dados colhidos eram
organizados, analisados e publicados na imprensa local. E, certamente, comparados
com o ideal de cidade que se tinha traçado anteriormente.
A Filosofia com aplicabilidade social, conforme propunha Velasco,
representou uma aposta pioneira e de extrema originalidade. Contrário ao
argumento de que a Filosofia bastaria por si e que não deve ser instrumentalizada,
Velasco fez com que seus alunos filosofassem, conhecessem a sua realidade social
e política, propusessem alternativas de melhorias para os problemas diagnosticados
e que saíssem mais maduros, críticos e conscientes depois desta vivência. Que
pudessem utilizar os conhecimentos adquiridos nas aulas de Filosofia nas suas
vidas, que percebessem que a Filosofia é útil em todos os segmentos da vida.
Assim, ao conhecermos o trabalho dos professores de cada época, é
possível percebermos as peculiaridades de cada período e as produções que o
relacionamento entre professores e alunos é capaz de apresentar. Cada um dos
docentes, ao fazer o seu trabalho, deixa a sua “marca” na instituição e na vida de
117
cada aluno. Todavia, a vida tem sua continuidade, enquanto os trabalhos por vezes
são concluídos. Vasconcelos atualmente leciona no curso de Licenciatura em
Filosofia da UFPel e o Projeto “Filosofando”, de Velasco, teve seu fim no ano de
2008. Atualmente, Ubirajara Velasco ainda leciona no CMP para o curso de Ensino
Médio, além de atuar na rede estadual e na Educação à Distância da UFPel. E Luis
Felipe Claus retornou em 2010 ao Colégio Municipal Pelotense, sendo, atualmente,
um dos professores de Filosofia da escola.
Enfim, ao reinserir a Filosofia no colégio muito antes da sua
obrigatoriedade, o CMP mostrou, mais uma vez, que é uma escola diferenciada,
aberta para a crítica e para o filosofar. Depois de muitos anos de ausência da
Filosofia nas escolas, o Pelotense manteve seu espírito inovador, recolocando-a em
seu currículo. Uma atitude totalmente de acordo com os ideais cantados no hino da
escola, que, em um de seus versos, diz: “Avante, Avante, para vencer... E no campo
da luta, Vai mostrar teu valor”... Uma instituição com 110 anos de história como essa,
segue adiante, supera as intempéries do caminho e, da mesma forma que supera os
problemas cotidianos, ainda revela-se capaz de mostrar por que é uma instituição
que valoriza o espírito crítico de seus alunos. E a reinserção da disciplina de
Filosofia neste período, é mais um fato que comprova tal afirmação.
CAPÍTULO 5. OS MOVIMENTOS DE LUTA PELA OBRIGATORIEDADE DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA NOS CURRÍCULOS DE ENSINO MÉDIO
O novo surge do velho. A sociedade nova é forjada a partir desta que está aí. Acontece que, sendo contraditória,
a sociedade existente traz em seu bojo as forças do novo e as forças do velho
em choque.
Dermeval Saviani
5.1. Contextualização histórica (2000-2008)
Uma virada de milênio carrega consigo mitos e esperanças. E não poderia
ter sido diferente com a chegada dos anos 2000. Se o mundo avançava no
desenvolvimento de novas tecnologias, trazia a popularização da internet e, através
dela, a possibilidade de novos hábitos, culturas e comunicações virtuais, os anos
2000 trouxeram também um universo de incertezas e crises.
Entramos na era da Modernidade Líquida, como diz Zygmunt Bauman.
Nas palavras do autor:
Los fluidos se desplazan con facilidad. “Fluyen”, “se derraman”, “se desbordan”, “salpican”, “se vierten”, “se filtran”, “gotean”, “inundan”, “rocían”, “chorrean”, “manan”, “exudan”; a diferencia de los sólidos, no es possible detenerlos fácilmente – sortean algunos obstáculos, disuelven outros o se filtran a través de ellos, empapándolos -. Emergen incólumes de sus encuentros con los sólidos, en tanto que estos últimos – si es que siguen siendo sólidos tras el encuentro – sufren un cambio: se humedecen o empapan. (…) Estas razones justifican que consideremos que la “fluidez” o la “liquidez” son metáforas adecuadas para aprehender la naturaleza de la fase actual –
119
en muchos sentidos nueva – de la historia de la modernidad (2003, p.8, grifos do autor).
O contexto de crise a que me refiro remete ao estado de liquidez de que
Bauman fala. Passa-se a viver em um estado que se apresenta de forma líquida: ao
mesmo passo em que tudo é muito rápido, também é tudo muito fugaz, muito
efêmero. Para Bauman, a Modernidade Sólida cessa de existir e em seu lugar surge
a Modernidade Líquida. A primeira seria a que tem início com as transformações
clássicas e o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida cultural e
política. Já na Modernidade Líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são
mais tão tangíveis e a vida em conjunto, ou seja - familiar, de grupos, de afinidades
políticas - perde a consistência e a estabilidade.
Em tempos de Modernidade Líquida, o mundo se apresenta de forma
caótica. Os Estados Unidos da América e o Oriente Médio entram em conflito e, sem
dúvida alguma, o principal acontecimento mundial da primeira década do ano 2000
foi o ataque feito por terroristas da Al-Qaeda aos Estados Unidos no dia 11 de
setembro de 2001, deixando o mundo inteiro estarrecido com o que ocorrera e com
o terrorismo que se instalava.
No Brasil, situações de grande instabilidade social também
predominavam (e predominam). Violência urbana, miséria, individualismo,
desigualdade e tantos outros problemas sociais mostram o quão “dissolvidas” estão
as relações humanas, principalmente quando tais problemas são vistos como
“banais e cotidianos”. E esta situação não acontece somente no nosso país.
Estende-se a outros lugares, como sintomas e sinais típicos dos tempos
contemporâneos do qual fazemos parte. A contemporaneidade e os sentimentos que
derivam dela, são bem caracterizados por Carla Gonçalves Rodrigues, no artigo
120
“Educação nesta contemporaneidade: ainda podemos traçar perspectivas e
limites?!”:
Por ora, resta a forte sensação de perda de toda e qualquer mediação. Em estado de puro estranhamento, os olhos têm as pupilas dilatadas quando suportam ver, escutar e dizer diante dos movimentos velozes que arrebatam os modos cotidianos de estar no mundo. Sem maiores dúvidas, esta contemporaneidade pode ser dita como uma nova época. Desse modo, produz questões desse momento, problematizações expostas a céu aberto com a crueza daquilo que a razão sozinha não pode entender. Há urgências neste presente insistindo em pulsar no dia a dia. Por vezes, perturbadoras elas se fazem, exigindo outra atenção, quem sabe mais redobrada (In: GHIGGI; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2010, p. 293)
No campo da educação, os problemas sociais, políticos e
contemporâneos, obviamente, se refletem nas escolas brasileiras; que são cada vez
mais acometidas seja por alunos que praticam e sofrem bullyng, quanto por
professores que apresentam sintomas e que desenvolvem a “Síndrome de
Burnout”27.
O Brasil fora governado, de 1995 a 2003, pelo sociólogo Fernando
Henrique Cardoso; e de 2003 a 2011, pelo ex-metalúrgico e ex-sindicalista Luís
Inácio Lula da Silva.
A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 continua vigente até os dias de hoje,
embora com muitas modificações. Entre as principais, destaco às referentes à
Educação Básica. Atualmente, as crianças de seis anos devem ir obrigatoriamente
para as escolas; o Ensino Fundamental passou a ser oferecido em nove anos; e as
disciplinas de Filosofia e Sociologia passaram a ser obrigatórias em todos os anos
do Ensino Médio.
Entretanto, para que se chegasse à situação atual das disciplinas de
Filosofia e Sociologia no Brasil, hoje obrigatórias em toda as escolas de Ensino
27 A Síndrome de Burnout consiste em um distúrbio psíquico, caracterizado por um forte esgotamento do indivíduo em sua prática profissional. O termo foi definido pelo psicanalista norte-americano Herbert Freudenberger. Em inglês, to burn out quer dizer “queimar por completo” e esta síndrome se relaciona diretamente ao trabalho docente, causando nos professores um grande mal-estar, tendo tanto consequências físicas (dores de cabeça, distúrbios do sono, etc) quanto psicológicas (depressão, etc).
121
Médio do país, um caminho difícil e tortuoso foi percorrido. Em 2000, foi proposto o
Projeto de Lei nº9 (nº 3178/97 na Câmara dos Deputados) que objetivava alterar a
Lei de Diretrizes e Bases de 1996, colocando as disciplinas de Filosofia e Sociologia
como obrigatórias para o Ensino Médio. Todavia, em 8 de outubro de 2001, através
da Mensagem nº1073, o projeto foi vetado, ironicamente, pelo Presidente da
República da época, o sr. Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e professor de
Sociologia.
Os argumentos a favor do veto, redigidos pelo MEC, representado pelo
Ministro da Educação da época, o Sr. Paulo Renato Costa Souza, foram os
seguintes:
(…) o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público (BRASIL, Mensagem nº1073, de 8 de outubro de 2001).
Porém, ao analisar a conjuntura, percebo que os dois argumentos
expostos acima são falaciosos e não condizem com a realidade. Em primeiro lugar,
não se trataria de aumentar a carga horária dos cursos, tampouco gerar ônus com a
contratação de novos professores a mais no quadro docente: o que caberia ser feito
é uma reavaliação das grades curriculares, diminuindo a carga horária de algumas
disciplinas em favor da inserção da Filosofia e da Sociologia, portanto, a verba para
o pagamento dos professores seria a mesma, sem gerar aumento nos custos da
Educação Básica. Em segundo lugar, o argumento que afirma não haver número
suficiente de professores para suprir a demanda é mentiroso, pois existem inúmeras
universidades no país que oferecem os cursos de Licenciatura em Filosofia, com
número de egressos de tais cursos, aptos ao ingresso no mercado de trabalho.
122
Assim, em tempos de crise e Modernidade Líquida, a Filosofia mais uma
vez, no âmbito nacional, foi rejeitada. Passo, então, à análise de como se deu esse
período no Colégio Municipal Pelotense, com a constatação de que ainda existem
escolas onde, mesmo que as condições nacionais não sejam as preferíveis, ainda é
possível fazer escolhas que privilegiam a formação do aluno em seu sentido amplo e
humanizador.
5.2. Ensino de Filosofia no CMP de 2000 a 2008 – da presença à obrigatoriedade da Filosofia
Pelotas, dos anos 2000 a 2008, foi governada por Otelmo Demari Alves
(PDT - 2000-2001), Fernando Stephan Marroni (PT - 2001-2005), Bernardo Olavo
Gomes de Souza (PP - 2005-2006) e Adolfo Antônio Fetter Júnior (PP - 2006 – dias
atuais). O Colégio Municipal Pelotense foi dirigido pelos professores Luiz Eduardo
Brod Nogueira (1996-2005) e Marita Nebel (2005 - dias atuais).
O Colégio Municipal Pelotense, em 2002, foi marcado pelas
comemorações de seu centenário; com diversas festividades relativas à data.
Seguiu, nesses anos, sua trajetória, comum a de tantas outras escolas, com o
compromisso de educar em todos os setores de seu espaço escolar. Acompanhei
esse período da história do CMP ao assumir o cargo de Oficial Administrativo na
biblioteca da escola. Ingressei no cargo em 2003 e permaneci até 2010. Embora
não tenha exercido efetivamente a docência nessa época no Pelotense, posso falar
sobretudo do que eu observava ao trabalhar no colégio. E o que tenho a dizer é que
vi de perto o trabalho exercido por vários setores, atendendo a professores e alunos.
E conheci muitas pessoas que desempenhavam seu trabalho com compromisso e
afinco, da melhor maneira possível. Acredito que a educação e formação acontecem
em todos os seus espaços físicos. E o trabalho desenvolvido na Biblioteca Salis
Goulart era realizado nesta perspectiva: não apenas de empréstimo de livros e
periódicos, mas de educação e conscientização quanto à importância da leitura e da
responsabilidade quanto aos prazos de entrega dos materiais emprestados. Falando
mais especificamente do meu trabalho lá nesses anos, posso dizer que tentei
123
contribuir para a formação de leitores de obras filosóficas, indicando livros e
incentivando a leitura dos alunos que se interessavam por esta área.
A Filosofia, mesmo em tempos de veto nacional, no Colégio Municipal
Pelotense já encontrara um espaço consolidado. Presente desde 1989 para o
Ensino Médio, nos anos 2000 amplia seu papel. O pensamento de Mattew Lipman,
com seus estudos sobre Ensino de Filosofia para crianças, nessa época começa a
ser difundido no Brasil e o CMP resolve adotar o Ensino de Filosofia também para
os alunos das séries finais do Ensino Fundamental. De acordo com Vânia Alves
Martins Chaigar, coordenadora pedagógica na gestão 2000-2002, a Filosofia passou
a ser ensinada para os alunos de quintas, sextas, sétimas e oitavas séries em 2002.
A inserção da disciplina para estas séries dá-se através do interesse, da mobilização
e da valorização do diretor da escola nessa época, o Prof. Luiz Eduardo Brod
Nogueira, popularmente conhecido como Professor Adinho, e do trabalho dos
representantes das áreas das Ciências Sociais do Serviço de Orientação
Pedagógica (SOP). Nas palavras de Chaigar:A crise da vida moderna com a destruição do planeta em níveis alarmantes e o afastamento do homem de valores como a cooperação e a solidariedade, só para citar dois exemplos, está a evidenciar a falência desse modelo. Isto gerou a re-significação de currículo, no Colégio, como sendo:“Conjunto de habilidades, competências e conhecimentos desenvolvidos, preferencialmente, de forma integrada pelas diferentes áreas de saber de modo a possibilitar ao/a aluno/a a compreensão dos fenômenos do cotidiano em sua totalidade e o exercício de uma cidadania ativa” (Regimento Escolar do Colégio Municipal Pelotense, Pelotas, RS, p. 12, 2001).Essa visão de currículo escolar levou-nos, no Colégio, a uma distribuição mais equilibrada entre as cargas horárias das Ciências Exatas, Ciências Humanas e Artes. Levou-nos também a incluir a Filosofia em todo o ensino fundamental, da 5ª a 8ª série; criar as disciplinas de Literatura, e incluí-la da 5ª série até o 3º ano do ensino médio, Sociologia, no 1º e '2º ano do ensino médio noturno e Língua Espanhola, da pré-escola à 5ª série do ensino fundamental, mantendo-se as demais disciplinas tradicionais (CHAIGAR, In: AMARAL, 2002, p. 197/198, grifos meus).
Considero este ponto mais um item a favor da inovação do Colégio em
termos do Ensino de Filosofia. Em tempos em que a disciplina sequer era solicitada
no Ensino Médio, o Pelotense já havia inserido a disciplina, também no Ensino
Fundamental. Vale ressaltar que o Ensino de Filosofia para o Ensino Fundamental
até hoje não é obrigatório por lei e a instituição ainda o mantém, sem que esteja
legalmente obrigado a isso, mas, pelo simples fato de valorizá-lo em seu Projeto
Político Pedagógico.
124
O Ensino de Filosofia, certamente, logrará maior êxito se for iniciado o
mais cedo possível. De acordo com Lipman:(…) a filosofia oferece às crianças a oportunidade de discutir conceitos, tais como o de verdade, que existem em todas as outras disciplinas mas que não são abertamente examinados por nenhuma delas. A filosofia oferece um fórum no qual as crianças podem descobrir, por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a vida de todas as pessoas. Com o passar do tempo, a presença da filosofia nas escolas é mais aceita, mais aprovada, e o que cada vez mais surpreende é o fato de ter estado ausente até agora (1990, p,13).
O Colégio Pelotense, no período de 2000 a 2008, contou com o trabalho
de sete professores de Filosofia. Procurei, ao longo da pesquisa, entrevistar ou
recolher depoimentos por escrito de todos os professores da instituição, com a
finalidade de que não houvesse dúvidas em relação à escolha dos sujeitos da
pesquisa. As pessoas entrevistadas foram todas aquelas que se dispuseram a
participar do estudo proposto; com a intenção de valorizar cada docência por igual,
ao invés de recolher relatos de um professor e não de outro, o que poderia valorizar
o trabalho do colaborador e não valorizar o daqueles que pudessem não ter sido
escolhidos ou convidados para participarem da pesquisa. Desta forma, foram, ao
todo, entrevistados dez professores e uma aluna no decorrer da pesquisa.
Todavia, a participação na pesquisa é livre e os docentes têm o direito de
não querer fornecer os dados necessários ao estudo, sem quaisquer ônus ou
prejuízo aos que não participaram. Nos outros períodos (de 1960 e 2000), consegui
a colaboração de todos os docentes da disciplina de Filosofia. Entretanto, no
período de 2000 a 2008, dos sete professores de Filosofia que integraram o quadro
docente da instituição, apenas quatro se dispuseram a participar da pesquisa.
Quanto a isto, acredito que a não participação destes docentes seja um dado
também a ser avaliado. Possuo algumas hipóteses em relação à não-participação:
em função da falta de tempo disponível para que fosse respondido um questionário
com perguntas semi-estruturadas, já que o docente atual é sobrecarregado por uma
jornada exaustiva de trabalho, aliando duas ou mais escolas e atividades
concomitantes para garantir um sustento digno para si e sua família; em função do
desinteresse e desmotivação para pensar e refletir sobre suas práticas, ou ainda,
por motivos pessoais de cada professor, que nada têm a ver com as hipóteses
anteriores.
Pois bem, dos sete professores de Filosofia neste período, me deterei
aqui em relatar os dados que possuo, através dos relatos dos quatro professores
125
que se dispuseram e autorizaram a publicação de seus nomes na escrita da
dissertação. Em relação aos demais, opto por não divulgar nomes e não mencionar
atividades desenvolvidas na escola.
Os professores que integraram o quadro docente da disciplina de
Filosofia, no período de 2000 a 2008, e que aceitaram participar desta pesquisa
foram os seguintes: Prof. Ubirajara Velasco, Profª Me. Ana Lúcia Almeida, Prof.
Maurício Cunha e Profª Flávia Schaun.
Sobre a atuação de Ubirajara Velasco, penso que não seja necessário
apresentá-la novamente, visto que, no capítulo anterior, já expus sua trajetória
docente na escola, bem como minhas análises sobre sua prática como professor.
Gostaria apenas de enfatizar que o professor Ubirajara Velasco desenvolveu suas
atividades em dois períodos estudados pela minha pesquisa: Velasco atuou tanto
nos anos 90, período de reintegração da disciplina de Filosofia no CMP, quanto nos
anos 2000, desenvolvendo um trabalho com grande participação dos alunos através
do Projeto Extra-Classe intitulado Filosofando. Velasco, até os dias atuais, ainda
leciona Filosofia na instituição.
A Profª Me. Ana Lúcia Almeida ingressou no corpo docente do CMP em
2003, lecionando, inicialmente, para uma turma do Ensino Médio e tendo sua carga
horária dividida entre o Pelotense e outra escola do município; através de um
contrato com a Secretaria de Educação de Pelotas. No ano seguinte, passou a ser
efetiva na instituição, através de nomeação realizada a partir de um concurso
público para o cargo de professora de Filosofia. Nesse ano, em 2004, lecionou
turmas de 6ª série. E em 2005, foi convidada pela direção do colégio para lecionar
no curso de formação de professores em Educação Infantil, função que exerce até
os dias atuais.
Através de entrevista realizada para a pesquisa, a Profª Ana Lúcia
Almeida relatou-me diversos elementos importantes que fazem parte das memórias
de seu trabalho no CMP. Entre eles, a docente relata a dificuldade que tinha em
lecionar para os alunos surdos, em função deles não terem um vocabulário
diversificado como a Filosofia exige. Neste ponto, ressalto que o Colégio Pelotense
é uma escola que propicia a inclusão no que se refere ao acesso e à presença de
alunos com necessidades especiais. A escola é toda adaptada com rampas, portas
largas e lugares amplos. Conta com vários intérpretes de LIBRAS e atende alunos
surdos, cadeirantes, portadores da Síndrome de Down, entre outros. No Pelotense,
126
encontra-se um número expressivo de alunos surdos e a escola promove políticas
educacionais direcionadas a uma educação que ensine para a diversidade e para as
diferenças, em que todos os alunos possam viver de forma integrada, respeitando
ao próximo. Como funcionária da instituição, lembro-me também da dificuldade de
me comunicar com os alunos surdos. Atenta à isto, a Secretaria de Educação
ofereceu, aos docentes e funcionários do Pelotense, cursos em vários níveis, da
Linguagem Brasileira de Sinais. No início, para toda a comunidade, as diferenças
assustavam a todos. Entretanto, aos poucos elas foram se naturalizando, fazendo
parte de nossos cotidianos e as adaptações de ambos os lados foram se efetuando,
da melhor forma possível.
Almeida, ao falar de sua prática como professora de Filosofia, afirma:Eu gosto de ser professora e gosto de ser professora de Filosofia, então quase sempre, meu discurso é o mesmo para meus alunos, que fui ser professora de Filosofia para “botar minhoca na cabeça dos outros”. Sempre explico pros meus alunos qual é a função da “minhoca”, que a minhoca da terra serve para arejar, ela mexe com aquela terra que está endurecida, fazendo com que ela respire, para que assim possam brotar coisas novas. E essa é muito a função do professor de Filosofia, pelo que me proponho, não me preocupo tanto com a questão da História da Filosofia ou de conceitos muito prontos de Filosofia, me preocupo com que eles construam, que eles se ponham a pensar as coisas e comecem a pensar por eles mesmo. É cansativo, é difícil, mas eu gosto muito de fazer isso.
Suas metodologias de Ensino de Filosofia são diversificadas e adaptadas
a cada público de alunos. Com as crianças, a educadora prefere trabalhar Filosofia
através de contos e histórias que levam o aluno a pensar sobre os temas
apresentados, seguindo o referencial e as propostas de Mattew Lipman. Para alunos
maiores, aulas expositivas são a opção preferencial da professora. Trabalha ainda
com projetos. Para as avaliações, Ana Lúcia Almeida opta por não aplicar provas.
Propõe trabalhos que levem o aluno a raciocinar, com um grau de complexidade que
exige tanto quanto uma prova escrita em relação ao nível de dificuldade, mas que
não tenha perguntas tão “prontas”, que levem a respostas decoradas, como por
vezes se observa em provas. Sobre os conteúdos escolhidos para suas aulas, a
docente enfatiza questões de Cosmologia, que acredita envolver o aluno iniciante no
universo filosófico. Trabalha ainda com Teoria do Conhecimento, Antropologia
Filosófica, Política e Mitologia Grega. Afirma que seus alunos se identificam bastante
com os filósofos pré-socráticos e que Aristóteles também é um filósofo que costuma
atrair a atenção dos estudantes.
127
Em relação à escolha de livros didáticos, Almeida afirma: “Gosto muito do
“Filosofando” (de Maria Lúcia de Arruda Aranha) “casado” com o “Pensando Melhor”
(de Angelica Sátiro e Ana Miranda Wuensch)”.
Sobre a opção entre trabalhar Filosofia através de sua história ou a partir
de temas filosóficos, Ana Lúcia Almeida afirma que usa a História da Filosofia como
uma ferramenta quando necessária, mas que suas aulas não seguem a História da
Filosofia. Acredita que, hoje em dia, seja possível trabalhar dessa forma devido à
abertura social e política que temos no momento, o que proporciona um ambiente
capaz de tornar possível aulas mais questionadoras e críticas.
Questionada se a Filosofia é valorizada pela comunidade escolar do
Colégio Municipal Pelotense, Almeida fala:São vários colegas, com vários olhares. Tem o olhar do colega que acha a filosofia inútil, tem o olhar de alguns colegas que respeitam e pedem para trabalhar junto. De modo geral, acho que a Direção do Colégio valoriza a Filosofia. De parte dos alunos, acho que eles ainda têm um pouco de preguiça, mas têm muita curiosidade. Pego alunos muito bons. Se aprende melhor com o professor que tu gostas, o vínculo afetivo é importante, tento trabalhar bem dessa forma. A Filosofia é uma área humana e deve ter tolerância com a questão do humano.
Almeida, no final da consideração exposta acima, além de avaliar o olhar
da comunidade escolar para a disciplina de Filosofia, chama a atenção para um
ponto de extrema importância para a prática docente. Valoriza a afetividade, o
contato entre professor e alunos de uma forma que ambos enxerguem-se como
pessoas, seres humanos. Acredita ainda no potencial humanizador da Filosofia. Por
tratar de questões que são comuns a todos os homens, a Filosofia é capaz de
humanizar e abrir os olhos dos alunos para questões éticas, solidárias e
congruentes com a coletividade do mundo e da sociedade que todos nós vivemos.
Em relação aos conteúdos, a professora também se preocupa com o envolvimento
dos alunos com a disciplina e com a contribuição, o sentido, que a Filosofia possa
fazer para cada estudante. Visto dessa forma, um conteúdo não é apenas um saber,
mas algo do que o aluno apropria-se, que passa a fazer parte de si, do seu eu, de
sua formação enquanto humano. E só carregamos para nossas vidas aquilo que
realmente nos toca, nos faz sentido; da mesma maneira que o vínculo afetivo
também é essencial: por vezes um aluno passa a gostar do conteúdo exposto em
função do relacionamento com o professor, da maneira como é tratado durante as
128
relações pedagógicas. Na esteira deste pensamento, trago as palavras de René
José Trentin Silveira:(…) se a filosofia é um trabalho sério de reflexão, é também amor, desejo (philo) pelo saber. Nesse sentido, é importante que as aulas de filosofia consigam seduzir os alunos e despertar neles o prazer da reflexão, da busca da verdade, da crítica rigorosa, para que tomem gosto pela prática do filosofar e se disponham a continuá-la após o término do processo pedagógico (In: GALLO; KOHAN, 2000, p. 143).
Ana Lúcia Almeida enxerga o retorno da Filosofia dos tempos hodiernos
como algo difícil. Percebe que os dias atuais são marcados pela evolução da
informática e das tecnologias e que a Filosofia ainda é muito presa a livros. Diz
também que o mundo age de uma forma muito rápida e que a Filosofia é um
processo lento, que exige um certo tempo para que se possa pensar sobre certas
questões. Almeida descreve a capacidade que a Filosofia possui de se atualizar,
pois a cada dia surgem novas questões possíveis para o filosofar. Como exemplos,
a professora cita a Bioética, a Inteligência Artificial, a Eutanásia, a Estética
Contemporânea e as questões relativas à linguagem. Almeida indica sugestões para
um melhor Ensino de Filosofia, que apontam para as dificuldades de ser professor
na realidade brasileira. Penso que as palavras de Almeida, embora aqui estejam
sendo direcionadas ao professor de Filosofia, sejam cabíveis aos demais
professores da Educação Básica. No dizer da educadora:Acho que tem que haver cursos de formação pra quem está na rede28, a carga horária de Filosofia deveria aumentar para os alunos, mas diminuir o número de turmas que o professor de Filosofia tem. É muito estressante o cotidiano e as questões da Filosofia são profundas, é um desafio.
No ano de 2004, o Prof. Maurício Cunha passou a fazer parte do quadro
de professores de Filosofia do CMP. É efetivo no cargo que ocupa, tendo sido
empossado através de concurso público. Atualmente é também o Coordenador da
disciplina de Filosofia do Colégio Pelotense. Leciona, no momento atual, turmas de
8ª série, mas já foi docente de turmas de 7ª séries do Ensino Fundamental e de 2º
anos do Ensino Médio.
Através de depoimento escrito pelo professor com a finalidade de
contribuir para este trabalho dissertativo, Cunha cita os conteúdos trabalhados em
suas aulas. Os principais pontos abordados pelo professor são: Ética, Percepção,
Senso Comum, Senso Crítico, Nascimento da Filosofia, Política, Lógica, Estética,
Verdade, Pensamento, Razão, Discriminação e Violência. Ressalto a abordagem
28 Neste ponto, Ana Lúcia Almeida se refere à rede municipal de ensino.
129
dos dois últimos conteúdos: Discriminação e Violência. São temas que não são
especificamente filosóficos, mas passíveis de reflexões filosóficas e que, ao meu
ver, surgem nas aulas de Filosofia como problemas sociais típicos dos nossos
tempos de crise e de Modernidade Líquida. Questionado se algum filósofo ou escola
filosófica em especial são abordados em suas aulas, o docente respondeu-me que
“Dependendo do assunto são trabalhadas várias visões para que o aluno tenha uma
percepção global do assunto”.29
Maurício Cunha utiliza as obras de Gilberto Cotrim, Marilena Chauí e
Maria Lúcia Arruda Aranha como material didático. Tenta, no exercício de sua
função docente, aliar o cumprimento dos conteúdos com a prática de debates e
discussões em sala de aula. Crê que o Ensino de Filosofia tenha o potencial de
contribuir com a formação do cidadão crítico em nossa sociedade e enxerga a
obrigatoriedade do Ensino de Filosofia como “um ato que tenta fazer o nosso
cidadão ser mais consciente no mundo”.
Em 2007, a Profª Flavia Schaun tomou posse no cargo docente para a
disciplina de Filosofia do CMP. A educadora também é efetiva na atividade que
desempenha e leciona atualmente turmas de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental.
Schaun relata que, no início de sua docência no CMP, teve dificuldades
em relação à falta de interesse dos alunos pela disciplina de Filosofia. Acredito que
isto se deva às dificuldades com que todo professor se depara quando inicia uma
nova atividade em uma instituição. A professora avalia-se como alguém que tem
muito a aprimorar e se considera uma pessoa em constante busca de novas
maneiras de trabalhar os assuntos filosóficos que as aulas exigem. Em suas aulas,
como recursos didáticos, utiliza textos para reflexão, debates e filmes. Ressalta o
uso de filmes como uma ferramenta que atrai a atenção dos alunos e facilita o
entendimento sobre o conteúdo. Confesso que compartilho com Schaun a opção de
trabalhar desta forma o ensino da Filosofia. Gosto de expor a teoria clássica de um
pensador e, posteriormente, ilustrá-la com algum recurso audiovisual e/ou
multimídia que venha a atrair a atenção dos estudantes e despertá-los para a
temática proposta. Sobre a escolha de ousar em filosofar com recursos diferentes
dos clássicos textos filosóficos, Gallo e Kohan falam:(…) há diversas posturas em relação ao espaço propriamente filosófico. Embora a grande maioria dos professores de filosofia atuantes no Ensino
29 Todas as citações do Prof. Maurício Cunha foram extraídas de depoimento escrito pelo próprio docente, disponível no Apêndice desta pesquisa.
130
Médio brasileiro considere que a filosofia se encontra nos textos, as perguntas “o que é um texto?” e “o que é um texto adequado para ensinar filosofia?” podem ser compreendidas de forma muito diversas, desde uma postura mais restritiva, concentrada nos textos escritos pelos filósofos clássicos, até formas menos tradicionais, que propõem a utilização de outros instrumentos, como filmes, estórias em quadrinhos, literatura, músicas e outras produções culturais não desenvolvidas pelos filósofos profissionais (2000, p. 180).
A Profª Flávia Schaun relata que os conteúdos com mais ênfase nas suas
aulas são os relativos à Origem da Filosofia, aos Períodos da Filosofia, ao
pensamento dos filósofos gregos (Sócrates, Platão, Aristóteles) e a
questionamentos sobre o conhecimento. Adota como principais livros didáticos para
o trabalho em aula, as obras de Cotrim e Chauí. Procura, no decorrer de suas aulas,
expor e cumprir os conteúdos propostos; entretanto, mantém-se atenta às reações
da turma em relação ao interesse dos alunos para os temas apresentados por ela.
Na opinião da professora, a Filosofia não é muito valorizada pela
comunidade escolar. Acredita que a Filosofia é vista como algo desnecessário, que
se mantém somente por sua obrigatoriedade no Ensino Médio. Para a educadora, a
Filosofia tem o seguinte papel no contexto social: “(...) contribui para desenvolver a
capacidade dos alunos de criticar, de pensar, de ter opiniões sobre os
acontecimentos do mundo, e não apenas assistirem e aceitarem tudo como está”30.
Schaun percebe que, depois da obrigatoriedade do Ensino de Filosofia nas escolas
brasileiras, através da Lei nº11684/08, aos poucos, as pessoas estão conhecendo e
vendo o quanto a Filosofia é algo importante. É um processo novo e lento, que no
olhar da docente, “a lei só se fez cumprir algo que já deveria existir”. Acredita que,
no momento atual, não sejam necessárias mudanças relativas ao ensino da
disciplina e acredita que basta cada professor gostar da atividade que
desempenha. No olhar da professora, o importante é que cada docente que leciona
Filosofia comprometa-se com sua função, esforce-se para aprimorar sua prática e
seja capaz de tornar os conteúdos da Filosofia mais atraentes para os alunos.
Enfim, é dentro dessas variações e contextos que o Ensino de Filosofia
acontece, até o ano de 2008. Entretanto, de 2008 para 2012, passaram-se quatro
anos e o Ensino de Filosofia nas escolas segue e se mantém até hoje. Embora não
seja o meu objetivo nesta pesquisa apresentar o ensino até os dias atuais, não
posso deixar de mencionar algumas coisas que percebi nos últimos tempos.
30 Todas as citações da Profª Flávia Schaun foram extraídas de depoimento escrito pela educadora para a contribuição desta pesquisa. O depoimento está disponível no Apêndice deste trabalho.
131
Algumas das questões que me acompanham para olhar para a disciplina de
Filosofia são: “A Filosofia está aí, mas como, de que forma?”, “O Ensino de Filosofia
realmente encontrou uma posição consolidada na educação brasileira?”, “Qual é a
identidade da disciplina de Filosofia nos dias de hoje?”. Tentarei expor algumas das
minhas observações.
Acredito que de 1960 para cá muito se avançou, certamente. Um avanço
extremamente significativo, que eu gostaria de mencionar, é o fato que o Prof. Luís
Felipe Claus relatou-me em sua entrevista: que, em 2012, cada aluno de Ensino
Médio receberá do Governo Federal o seu livro didático da disciplina de Filosofia.
Um ganho de suprema importância, sem dúvida alguma. No caso do Pelotense, os
professores escolheram a obra “Filosofando”, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e
Maria Helena Pires Martins.
No mais, acredito que ainda há muito trabalho a ser feito por nós,
professores de Filosofia. A disciplina ainda precisa se consolidar efetivamente, dizer
a que veio, mostrar a sua “cara”, a sua verdadeira identidade. E esta não é uma
tarefa fácil. É um trabalho longo, mas que deve ser feito de forma permanente. E
por qual motivo digo isto? Mencionarei dois exemplos.
Walter Omar Kohan retoma o histórico do Ensino de Filosofia nas escolas
brasileiras e fala de uma deliberação aprovada no estado de São Paulo e que, ao
meu ver, é um indício de alerta para o restante dos Estados brasileiros:A Filosofia e a Sociologia fizeram parte do currículo escolar no Brasil até a década de 1970, quando a ditadura militar as excluiu da grade e colocou em seus lugares as disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Em 2001, um projeto de lei complementar, proposto pelo deputado federal Padre Roque (PT-PR), tentou incluir novamente Filosofia e Sociologia no currículo escolar do ensino médio, mas foi vetado por Fernando Henrique Cardoso, na ápoca presidente do Brasil. Em 2008, o deputado federal Ribamar Alves (PSB-MA) retomou a tentativa e teve sucesso. Ele é o autor da Lei nº11.684 de 2 de junho de 2008, que incluiu Filosofia e Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. Entretanto, essa obrigatoriedade passa por alguns revezes. A deliberação nº77/08 do conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEESP) permitiu que as aulas fossem diluídas no currículo, não precisando se configurar como matérias específicas. Entidades representativas articulam forças para revogar o parecer (2011, p. 40).
Penso que, embora este seja um fato isolado que diz respeito ao Estado
de São Paulo, não pode ser menosprezado. Se lembrarmos dos acontecimentos de
1961, que tornou a Filosofia disciplina optativa nos estabelecimentos de ensino,
podemos ver como os fatos se articulam de maneira sutil até culminarem em
deliberações a nível nacional.
132
O outro exemplo que considero importante trazer é o de um infeliz
comentário publicado por uma revista de circulação nacional, formadora de opinião
e de ideologias e lida por grande parte da população. Refiro-me à Revista Veja. Na
edição de 28/09/11, a revista publicou uma reportagem sobre as leis mais “inúteis” e
“ridículas” implantadas no Brasil. Entre elas estava a Lei nº11.684/08, para minha
total indignação e de tantos professores de Filosofia que leram a reportagem, que se
manifesta da seguinte forma:
(…) os brasileiros figuram nas piores colocações em disciplinas como ciência, matemática e leitura, no rancking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos. Em vez de empreender um esforço para melhorar o quadro lastimável da educação brasileira, o governo se empenha em tornar obrigatórias disciplinas que, na prática, só vão servir de vetor para aumentar a pregação ideológica de esquerda, que já beira a calamidade nas escolas (CARELLI; SALVADOR, 2011, p. 93).
Assim, torna-se explícito que nós, enquanto educadores e professores de
filosofia, temos ainda muito trabalho pela frente. A aprovação da Lei nº11684/08
representa somente o início de muito trabalho que ainda temos pela frente para
consolidação dessas disciplinas que já têm um espaço garantido por lei, mas que
ainda precisam fortalecer-se e mostrar suas verdadeiras identidades e suas
relevâncias, para que a história não venha a repetir-se e a exclusão aconteça uma
vez mais.
Em relação ao CMP, acredito que na escola há iniciativas individuais de
certos professores que contribuem positivamente na formação de alunos críticos e
questionadores da sociedade em que vivem. Assim, a instituição segue de acordo
com seu ideal, disponível no site do colégio:
As ações desenvolver-se-ão, no sentido de construir uma cidadania participativa, através de um ensino crítico, que signifique o conhecimento, valorize o lúdico e estimule a cooperação, reconhecendo o aluno como um sujeito concreto e capaz de (re)fazer sua história (COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE, 2011).
Assim, é com o prenúncio deste lema que a escola segue seu curso e
ainda educará muitos Gatos Pelados; que percorrerão seus verdes espaços para,
dali em diante, irem rumo aos coloridos cenários de suas vidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho visou apresentar a história da disciplina Filosofia, no Colégio
Municipal Pelotense, de 1960 a 2008. Nele, procurei apresentar o ensino
desenvolvido no CMP, com os objetivos de mapear o trabalho realizado na
instituição e de perceber a presença da criticidade nas aulas de Filosofia do
educandário.
Em relação ao meu percurso na pesquisa, tenho a nítida impressão de
que muito ainda teria a ser dito sobre a temática proposta. No projeto de qualificação
do projeto da pesquisa, tinha a intenção de perceber o Ensino de Filosofia no CMP
em sua ampla totalidade: através do testemunho de alunos, diretores, funcionários e
demais envolvidos com a disciplina no período proposto. No entanto, por razões de
delimitação e da necessidade de rigor quanto ao cumprimento do prazo estabelecido
para a execução da pesquisa, optei por perceber o ensino através da visão dos
docentes que a lecionavam. Assim, resta a possibilidade de que novos trabalhos
possam surgir a partir do início que foi dado através da dissertação.
De minha parte, penso que seja importante ressaltar que este trabalho
exigiu de mim um grande esforço e dedicação, em função de ser uma pesquisa
inovadora e inédita quanto ao seu objeto de estudo, pois não havia estudos sobre o
Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas, tampouco no Colégio Municipal Pelotense.
Devido a esta razão, a dissertação mostra-se de maneira a suscitar outras e novas
questões. Contudo, acredito que o objetivo de apresentar o trabalho desenvolvido no
Colégio Pelotense tenha sido cumprido.
Na primeira parte do trabalho, apresentei os delineamentos da pesquisa.
Tive a necessidade de me apresentar enquanto pessoa e de tornar explícitas as
minhas motivações enquanto pesquisadora. Dentre elas, minha ligação com o
Pelotense contribuiu para que eu conhecesse melhor o colégio e pudesse relatar
com maior embasamento o trabalho desenvolvido dentro da escola. E pertencer à
geração que foi privada do ensino da Filosofia me instigou para que eu pudesse, de
134
alguma forma, através do estudo, preencher esta lacuna da minha vida estudantil,
acadêmica e profissional.
Posteriormente, julguei que seria relevante apresentar ao leitor um
panorama geral de obras e autores que possam ampliar as visões desta pesquisa.
Preocupei-me ainda em tornar claro os procedimentos metodológicos e
teóricos do estudo apresentado. Com a finalidade de elucidar os conceitos utilizados
na pesquisa, escrevi um subcapítulo sobre a categoria “crítica”, visando situar o
leitor sobre o que eu pretendia dizer quando me referia a um ensino crítico. Percebo
a crítica como um ingrediente fundamental a um Ensino de Filosofia que pretenda
formar alunos questionadores, pensantes e aptos a “filtrarem” as ideologias que o
senso comum dita como verdades incontestáveis; diferenciando os pensamentos
ideológicos daqueles construídos com o auxílio da razão e do pensamento reflexivo.
Sobre a possibilidade de instrumentalizar a Filosofia, mesmo que possa parecer um
tanto pragmatista, não vejo problema algum ao afirmar que a Filosofia pode, sim,
representar um conhecimento de grande utilidade na formação dos jovens. O fato
dela servir como um “filtro” não quer dizer que se queira formar um cidadão
resistente em relação às ditas “certezas”, mas que este possa ser capaz de
encontrar as suas próprias verdades, ou seja, pensar e discernir por conta própria e
cultivar a faculdade de realizar julgamentos.
Sobre o referencial teórico escolhido para dar sustentabilidade à
pesquisa, julguei importante explicar o que seria uma perspectiva histórico-crítica;
como esta perspectiva pode fornecer embasamento para o Ensino de Filosofia; e
quais autores seriam os principais representantes de tal panorama teórico. Percebi
que a Filosofia, no contexto brasileiro, sofreu diretamente um processo dialético em
relação à sua presença nos currículos escolares.
Na segunda parte da dissertação, desenvolvi a pesquisa de fato. Em
todos os capítulos, procurei, primeiramente, descrever uma contextualização
histórica do período apresentado e, posteriormente, relatar o Ensino de Filosofia no
Colégio Municipal Pelotense.
O primeiro capítulo seguiu a delimitação cronológica da situação da
Filosofia partindo de 1960 até 1964, ano que ocorreu o Golpe Militar. Em 1961, de
disciplina obrigatória a Filosofia passou a ser oferecida em caráter optativo, através
do Decerto de Lei nº4024/61. No Colégio Pelotense, a disciplina foi ministrada pelo
135
Prof. Dr. Silvino Lopes Neto, que contribuiu para um ensino crítico e de excelência
na instituição.
No capítulo seguinte, tratei do Ensino de Filosofia de 1964 a 1972.
Através do Decreto-Lei 869/69, as disciplinas Educação Moral e Cívica e
Organização Social e Política Brasileira foram incluídas na grade curricular das
escolas. Concluo que a Filosofia não foi extinta das escolas de maneira precipitada
ou devido à conjuntura dos fatos da época. Defendo o pensamento relativo a que
sua extinção tenha sido algo planejado estrategicamente, que se deu, em uma
primeira instância através da retirada de seu caráter obrigatório em 1961 e, num
segundo momento, através da inserção das disciplinas EMC e OSPB; com a
finalidade de substituição dos pressupostos filosóficos pelos pensamentos cívicos,
dogmáticos e alienantes que serviriam de acordo com as proposições do exército
brasileiro. No Pelotense, a Filosofia foi ensinada pelos professores doutores Arabela
Rotta e José Luiz Marasco Cavalheiro Leite, que a lecionaram de maneira
extremamente competente e que nos levam a deduzir que suas práticas docentes
eram de acordo com os ideais da perspectiva histórico-crítica. Outro ponto a ser
enfatizado é o fato da disciplina de Filosofia ter permanecido no CMP até o ano de
1972, momento que ocorreu a segunda Lei de Diretrizes e Bases Brasileira.
O capítulo seguinte tratou da situação da Filosofia no período de 1972 até
1985, ano da redemocratização do Brasil. A Filosofia, nesse tempo, foi proibida e,
contraditoriamente, permitida. Digo que a melhor definição para o estado da
disciplina nessa época é que a possibilidade de seu ensino nas escolas brasileiras
foi “sufocada” pelas circunstâncias e pelas direções de um tempo ditatorial que não
proporcionava nenhuma condição para que seu ensino fosse desenvolvido. Houve,
nessa época, uma tentativa de reinserção da Filosofia nas escolas, através do
Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983, redigido pelo deputado José Fogaça. Todavia, o
projeto acabou sendo arquivado, o que comprova o “sufocamento” do qual eu falava
anteriormente. No Pelotense, nesses anos, a Filosofia, infelizmente, não pôde ser
ensinada. Assim, confesso que senti dificuldades de falar de algo que não ocorreu,
de falar da ausência, do que não foi. Me detive, então, às visões dos docentes da
instituição: os de antes da extinção e os que vieram depois dela; com a finalidade de
demonstrar o sentimento e as consequências percebidas pelos docentes de Filosofia
do Colégio Municipal Pelotense.
136
No penúltimo capítulo, parti do ano de 1985 até a chegada do ano 2000.
Relatei o processo de redemocratização no Brasil e de reinserção da Filosofia no
Colégio Pelotense, que aconteceu em 1989. Destaco que a reinserção da Filosofia
no Pelotense nessa época é um fato extremamente significativo e que comprova a
visão da equipe diretiva da época comprometendo-se com a formação de alunos
críticos. Nesse espaço de tempo, a Filosofia foi ensinada no CMP pelos professores
Manoel Vasconcelos, Osvaldo Zolet, Luís Felipe Claus e Ubirajara Velasco. Nesse
período aconteceu também a promulgação da Lei nº 9394/96, nossa atual Lei de
Diretrizes e Bases da educação brasileira.
Enfim, no capítulo final desta pesquisa, retratei o período de 2000 a 2008,
ano que foi aprovada a Lei nº 11684, que torna obrigatório o Ensino de Filosofia e
Sociologia nos cursos de Ensino Médio. Caracterizo esses tempos, próximos do
nosso contexto atual, de acordo com a Pós-Modernidade e com a Modernidade
Líquida. São tempos em que parece haver uma ausência de fortes paradigmas
filosóficos e que, em função disso, um momento de instabilidade acontece. Não há
mais um fundamento último, uma metanarrativa para explicarmos a sociedade,
tampouco grandes discursos. Há um rompimento com a ideia de fundamento, não
havendo mais os critérios ou a razão e sim, uma pluralidade de critérios e razões, ou
seja, um certo relativismo. Penso que, embora a delimitação desta pesquisa tenha
se dado até o ano de 2008, ainda estamos dentro deste modelo de sociedade, ou
seja, não avançamos e nem modificamos este arquétipo social. A era que estamos
inseridos é aquela que valoriza o quanto um indivíduo possui, ao invés do quão ele
possa ser. As pessoas são vistas nesse modelo como mercadorias, descartáveis e
coisificadas. A imediatez é uma ordem social e tudo que necessitar de um certo grau
de tempo para amadurecer e enriquecer é visto como obsoleto e ultrapassado.
Nesse ínterim, a Filosofia no ano de 2001 foi vetada pelo ex- Presidente da
República e Sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, em 2008, em uma
outra tentativa, finalmente foi obtida a aprovação do projeto e a Filosofia retornou em
caráter obrigatório nas escolas. Deixo então as seguintes questões, longe de serem
respondidas nesta dissertação: “Qual o papel da Filosofia em tempos de
Modernidade Líquida?” e “Que contribuições de fato a Filosofia pode dar para uma
superação deste modelo social?”. No Colégio Pelotense, nos últimos anos a que a
pesquisa refere-se, a Filosofia foi ensinada por vários professores. Destes, cito os
nomes daqueles que concordaram em participar da pesquisa. São eles: Prof.
137
Ubirajara Velasco, Profª Me. Ana Lúcia Almeida, Prof. Maurício Cunha e Profª Flávia
Schaun. Ressalto o fato de a Filosofia, no CMP, em 2002, passar a ser também
oferecida aos alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. Por fim, menciono
alguns exemplos de como está a situação da Filosofia no contexto nacional,
alertando para possíveis desvalorizações e tentativas de dissolução da disciplina em
outras localidades brasileiras.
Com a escrita deste texto, pretendo apontar para que a continuidade do
Ensino de Filosofia aconteça da melhor forma possível. Não pretendo traçar
nenhuma fórmula mágica, tampouco nenhuma receita de como será possível o
continuar dessa caminhada. Mais do que trazer alguma orientação propositiva em
relação ao método, tenho a intenção de que esta pesquisa possa contribuir para um
melhor entendimento do que aconteceu com a disciplina de Filosofia no contexto
brasileiro, exemplificado pelo histórico de uma escola local, o Colégio Municipal
Pelotense. Em função da pesquisa ser do tipo “Estudo de Caso”, meus resultados
são parciais, específicos do contexto investigado. Todavia, mesmo tratando de um
caso particular, mantive a pretensão de que o exemplo da escola investigada
pudesse contribuir para um campo maior, ou seja, para a situação nacional da
disciplina Filosofia nas escolas do Brasil.
Assim, os direcionamentos que escolho indicar como tendências para os
novos tempos da Filosofia, remetem diretamente aqueles que encontram-se de
acordo com um ensino crítico. Proponho um ensino que vá além de simplesmente
“desmontar” conceitos, que se faça preocupado com a historicidade e com o
contexto social. Penso em processos educacionais que ultrapassem a doxa e
remetam aos limites da razão. Aponto, ainda, para uma educação que saiba lidar
com as subjetividades trazidas por cada aluno para o campo da sala de aula e que
possa transformar esta bagagem em conteúdos a serem trabalhados, entrecruzados
com os conteúdos propostos pela disciplina. Saliento a importância de aulas que
façam sentido aos alunos, portadores de tantas impressões subjetivas distintas.
Sugiro que os conteúdos programáticos das aulas de Filosofia possam contribuir
para a formação destes mesmos alunos, que possam levar a Filosofia para a vida
deles, adquirindo tanto a habilidade que Kant nos fala, de aprender a filosofar,
quanto àquela proposta por Hegel, de aprender a Filosofia, a apreciar seus sistemas
filosóficos, a lógica, etc.
138
Penso que uma das discussões mais enfatizadas nesta dissertação girou
em torno de como ensinar a Filosofia. Ensinar a Filosofia ou ensinar a filosofar? Dito
de outra forma: o que queremos (devemos ou pretendemos) ensinar aos nossos
alunos? Ensinar conteúdos ou ensinar uma habilidade? É inegável que esta é uma
questão paradoxal que se apresenta a todos os docentes desta disciplina. Não irei,
contudo, propor ou partir em defesa de uma ou outra abordagem. Creio que ambas
possuem seu valor e que, em momentos distintos, o professor pode e deve utilizá-
las em sua prática enquanto professor de Filosofia. Parafrasendo Kant31, eu diria que
“Filosofar sem o suporte histórico é vazio e que estudar somente a História da
Filosofia sem filosofar, é cego”.
Para isto, ressalto algo que me parece redundante, mas que considero
primordial. No caso do Colégio Pelotense, todos os professores entrevistados
possuem graduação em Filosofia. Entretanto, sabemos que em outras tantas
escolas o mesmo não acontece. Não quero, com este comentário, desvalorizar o
trabalho de docentes que não são graduados em Filosofia e que lecionam a
disciplina. Alerto, apenas, para o fato de que isto não é o ideal; que para a execução
de um ensino crítico de Filosofia, torna-se mister o preparo quanto à formação dos
professores da área. É fato que avançamos em relação à situação atual da Filosofia
no momento atual brasileiro. De excluída à obrigatória, a Filosofia faz-se presente
novamente nas escolas. Contudo, para garantir que sua identidade atual seja
construída da melhor maneira possível, é fundamental o preparo dos profissionais
que a lecionam.
No cenário geral do Brasil no ramo educacional, é evidente que, se
avançamos em alguns segmentos, regredimos em tantos outros. A educação pública
brasileira, sob muitos aspectos é decadente. Tanto na valorização dos professores,
que recebem uma remuneração demasiadamente baixa para o exercício da função,
quanto no fato de as condições de trabalho apresentarem-se de forma
extremamente precária. Chamo atenção ainda para a superlotação das salas de
aula e para a necessidade dos nossos docentes precisarem lecionar em várias
instituições para garantir um salário que lhes garanta a remuneração mínima para
manter suas necessidades pessoais. No caso do Colégio Municipal Pelotense,
saliento que, em nível de ensino público, o colégio é uma referência muito positiva
31 A frase original kantiana é “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”. (KANT, 1999, p. 92)
139
no cenário pelotense. Sua estrutura física é excelente, com laboratórios de várias
áreas, ginásio, amplos pátios, pracinha, duas bibliotecas (uma delas específica para
o público infantil), salas de informática, anfiteatro, etc. Seu ensino também apresenta
bons resultados em sua ampla totalidade. A procura por matrículas na instituição é
muito grande, fazendo com que o ingresso na escola se dê através de sorteio
público pois o colégio não suporta a enorme procura de pessoas interessadas em
estudarem lá. Entretanto, por ser uma escola pública municipal, o Pelotense
apresenta também os problemas comuns às demais escolas públicas no que se
refere à baixa remuneração dos professores e funcionários que trabalham na
instituição, fato que certamente influencia negativamente as relações educacionais
que lá acontecem.
Sobre a carga horária da disciplina de Filosofia, no contexto atual, que
oferece uma ou duas aulas semanais dependendo da organização curricular de
cada instituição, penso ser esta também uma grande dificuldade em relação ao
ensino da disciplina. Partindo do princípio defendido por mim nesta dissertação, que
indica que a Filosofia tem o compromisso de formar alunos mais críticos e
conscientes das suas realidades, podemos ser levados a perguntar-nos se este
objetivo realmente é possível diante das inúmeras dificuldades que temos ao ensinar
a disciplina. Entretanto, mesmo concordando que as limitações são inúmeras, penso
que, enquanto professores de Filosofia, não podemos nos esquecermos do nosso
papel e da função social que exercemos. Se simplesmente culparmos o sistema
educacional brasileiro por todas as falhas, se nos eximirmos da nossa
responsabilidade enquanto docentes e se concordarmos que está tudo perdido e
que não há o que fazer, não temos porque ensinarmos conhecimento algum. Mas
se, dentro do que é possível fazer, assumirmos o compromisso de modificar a
educação existente e de ensinar aos alunos os conhecimentos filosóficos e a
habilidade de filosofar e pensar criticamente, estaremos avançando em direção à
formação de uma sociedade mais consciente e crítica de seu papel social, humano e
transformador.
Enfim, o que ocorre é que a história do Ensino de Filosofia do Colégio
Municipal Pelotense não acaba em 2008. Desta época para cá, já se passaram
quatro anos e a história da disciplina no educandário segue seu curso. E espero que
prossiga numa linha contínua: sem cortes ou extinções. Que a disciplina se
consolide no cenário nacional e que o CMP possa ensiná-la da melhor forma
140
possível, contribuindo para a formação de cidadãos críticos e filosofantes. Desta
forma, confesso que sinto dificuldade em concluir algo que não está concluído, que
não acaba no ano de 2008, com a delimitação de minha pesquisa. Então, opto pela
não conclusão. Escolho dizer que a história segue seu curso e que este trabalho
encontra-se em aberto para quem se disponibilizar a atualizá-lo, pois novos tempos
virão e, com eles, a necessidade de olhares atentos aos acontecimentos presentes e
futuros. Por ora, penso que um primeiro registro do percurso da Filosofia no colégio
foi realizado e com ele, o propósito da pesquisa foi atingido. Assim, encerro este
trabalho com a certeza de que muito com ele aprendi e com a esperança de que
este estudo possa contribuir e instigar para que outros tantos possam acontecer.
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APÊNDICES
APÊNDICE A - Roteiro para entrevistas com professores e alunos da disciplina de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense, no período de 1960 a 2008
1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?
2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de
Filosofia?
3. Quais são suas recordações dessas aulas?
4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?
5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?
7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?
8. O professor usava algum livro didático? Qual?
9. Se professor, você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava
o cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o
contexto, através de discussões, diálogos, etc?
10.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?
11. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?
12. Como era vista a Filosofia nesta época?
13. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?
14. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua
formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?
15. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da
ausência desse ensino para a sua formação?
150
16. Se você não teve contatos com a disciplina de Filosofia, o que pensa
sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política
Brasileira?
17. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?
18. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje?
APÊNDICE B - Entrevistas
Entrevista com o Prof. Dr. Silvino Lopes Neto
(Ex-Professor de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense em 196032)
(Inicio nossa conversa, mostrando ao Prof. Silvino os planos de aula feitos
por ele, em 1960, arquivados no Colégio Municipal Pelotense, disponíveis nos
anexos deste trabalho)
- O material que fez com que eu chegasse até o senhor são os planos de
lá do Colégio Municipal Pelotense, assinados pelo senhor, em 1960. (Letícia Corrêa)
- Risos (Prof. Silvino)
- Esse material ainda existe, arquivado no colégio, no arquivo da
instituição, e foi através daí que eu consegui localizar que o senhor foi o professor
que ensinava Filosofia no início da década de 1960.
- Então foi assim que a senhora me achou?
- Exatamente.
- Isso eram pontos organizados, não era o plano de ensino, era uma lista
de pontos.
- Eu achei muito interessante, temos uns três planos, se o senhor quiser
olhar melhor. Eu achei realmente muito interessantes esse planos e até gostaria que
o senhor começasse falando sobre eles. Claro, que a gente identifica pontos que
são comuns na História da Filosofia, como Lógica, Epistemologia, mas eu achei
interessante que tinham pontos que eram característicos da época, discussões do
contexto que se aplicava àquela época, onde o senhor fala sobre divórcio,
parlamentarismo...
- Isso tudo era exatamente por causa da discussão que havia no contexto
político, porque nós estávamos saindo de um contexto de ditadura, se imaginava e
se falava muito em se colocar, e aliás se colocou o parlamentarismo, pois não sei se
você se lembra que o João Goulart é que foi um presidente parlamentarista, porque
32 Realizada em 14/07/2011, no escritório do Professor, em Porto Alegre.
152
o João Goulart assumiu o governo e a oposição não permitiu que ele exercesse a
presidência no regime presidencialista, porque ele teria muito poder. Então, eles
montaram um sistema, inspirado no Santiago Dantas, que foi um grande jurista em
que haveria um primeiro ministro e um conselho de milícia. O presidente perdia a
sua força executiva, ficava como chefe de Estado, apenas. O primeiro foi esse
próprio Santiago Dantas que era um grande jurista, um homem famoso, tinha sido
Ministro da Fazenda e ele conseguiu habilidosamente criar o sistema
parlamentarista e como ele era um deputado de alta expressão intelectual, ele
ascendeu à chefia de governo. Mas foi um parlamentarismo esdrúxulo, porque nós
vínhamos de um regime presidencialista desde a Proclamação da República. E mais
do que isso, com presidentes muito fortes; por exemplo, o Floriano Peixoto, que
sucedeu o Deodoro, era um marechal de ferro, muito forte.
E depois tivemos um governo fortíssimo que foi o do Getúlio Vargas,
que era presidencialista, mas que na realidade era uma ditadura. Começou como
um governo revolucionário, em 30, com o título de provisório, mas que de provisório
não teve nada, porque o Getúlio ficou quinze anos no poder. Mas o Getúlio
governou como o chefe de governo revolucionário, houve a Revolução
Constitucionalista de São Paulo em 32, que o Getúlio esmagou, mas o germe ficou.
Em 34, o Getúlio convocou uma Constituinte. Então, a Revolução Constituinte de
São Paulo, a de 32, foi vitoriosa afinal, derrotada nas armas, mas alcançou seu
objetivo, de criar uma constituição para o país. Getúlio fez a constituição, quer dizer,
a constituinte fez a constituição, e uma constituição muito curiosa porque ela estava
com a moda europeia, transplantada para cá, como sempre era. Mas foi curiosa
porque ela foi muito inovadora para a época, porque copiou as constituições mais
recentes da Europa. E aí, Getúlio não se sentiu muito bem com essa constituição e
deu um Golpe de Estado e impôs uma constituição em 37, chamada “Polaca”,
porque ela se assemelhava um pouco à Constituição Polonesa. Mas aí não era um
regime nem presidencialista, nem parlamentarista, era uma Ditadura, porque
dissolveu o Congresso. Tendo dissolvido o Congresso, ele governou até 45, mas
havia muita pressão por eleições.
Por que havia essa pressão? Porque a Guerra tinha terminado e as
democracias tinham vencido os regimes totalitários da Alemanha e da Itália. Então,
153
com a vitória dos aliados, que eram democracias, os líderes eram os Estados
Unidos, a França,a Inglaterra e o Reino Unido, a Grã-Bretanha, ou o Império
Britânico, que também era democracia, embora império, também era democracia, a
democracia nessa gangorra entre regimes ditatoriais fortes e regimes democráticos,
a democracia estava em alta com a vitória sobre a Alemanha, sobre a Itália e sobre
o Japão, que formavam o eixo. E o resto, eram os aliados. Com isto, os ventos
mudaram e assim como os regimes totalitários tinham na sua ascendência
possibilitado o Golpe do Getúlio, porque a Alemanha tinha um regime forte, que
estava muito bem sucedido, a Itália também tinha um regime forte que estava muito
bem sucedido, então estavam sendo exemplos para o mundo e o Getúlio que tinha
uma vocação autoritária aproveitou essa onda de sucesso antes da guerra e criou o
governo provisório, pela Revolução de 30 e que foi a instauração de uma ditadura. A
princípio, um pouco disfarçada porque era provisório, depois porque convocou uma
Constituinte, então tudo indicava que iríamos para uma democracia constitucional e
depois ele golpeou em 37. Aí de 37 a 45 ele ficou no governo, mas a derrota do eixo
já era previsível em 44, porque os americanos só entraram na Guerra em 42, por
causa daquele ataque do Japão, lá no Havaí. E aí, claro que já havia uma pressão
enorme pela redemocratização do país. E o Getúlio foi golpeado. Mas já estava com
eleições fixadas já, pelo próprio Getúlio.
Getúlio era uma figura carismática e incrível de poder de sedução, por
vários motivos. Primeiro porque ele realmente criou, sendo conservador, um
fazendeiro, criou as condições para um arremedo de socialização do país
favorecendo as classes mais populares, com a CLT, com a consolidação das leis do
trabalho. E com isto, ele tinha uma popularidade extraordinária. Ele era um ícone,
não se usava essa expressão para isto, mas ele era um ícone para a época, com
um carisma fantástico. E muito discreto, porque o carisma do Getúlio não era como
o do Lula. O Lula falava a todo instante, estava sempre em toda parte. Claro, que
ele era uma figura midiática e na época do Getúlio não havia assim. Mas Getúlio era
muito discreto e muito conservador, até na forma de se vestir e tudo mais. Mas era
demagogo, demagogo naquele sentido grego de quem conduz o povo. E era um
condutor do povo. E os militares sempre o prestigiaram muito, porque ele
prestigiava muito as Forças Armadas. Mas a pressão foi tão grande, em face da
154
redemocratização que ele, a contragosto, naturalmente, convocou eleições e tinha
um candidato. E o candidato dele era o Ministro da Guerra dele, desde 1936. Mas o
Getúlio inspirou um novo Golpe, com um movimento chamado Queremismo
(Queremos o Getúlio). E as pessoas usavam na lapela um “quezinho”, de
“queremos o Getúlio”. E ele não dizia que não. Ele sempre jogou muito com isso, ele
se reservava muito, mas fazia só o que ele queria. E aí começaram a achar que ele
iria golpear de novo, porque em 37 ele golpeou nomeando o irmão dele, Benjamin,
chefe de polícia do Rio de Janeiro, que era a capital e com isso ele controlaria a
situação. Como ele não tinha a oposição do exército, deu o golpe, ele era
presidente, não houve problema nenhum. Em 45, ele iria golpear de novo, tudo
indicava. E nomeou o irmão outra vez. Quando ele nomeou o irmão, não suportaram
e o exército se rebelou e eu me lembro claramente de tudo o que aconteceu, eu
tinha uns 13 anos, porque a gente via no Jornal, chamava-se Jornal essa parte
documentária que aparece no cinema, havia jornais do Brasil e jornais americanos;
e no jornal o que se viu? O Getúlio no Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro,
cercado por tanques do Exército, tropas e ele decidindo o que faria. De charuto, na
janela, assim... Que coisa incrível, uma revolução, com essa tranquilidade! Ele era
intangível, praticamente. E ele achou que não era o caso de resistir. Aliás, até acho
que foi muito sensato para evitar mortandades, etc e tal. E ele foi embora. Desistiu
do governo, renunciou ao governo. Agora veja a coisa espetacular do Brasil: Getúlio
foi para a fazenda dele. Em vez de ser banido do país, ele foi para a fazenda dele. E
na fazenda dele, aqui no Rio Grande do Sul, lá, em São Borja, de lá ele comandava
a política do país, continuou comandando. Tanto que, em 50 ele voltou para o poder,
eleitoralmente, democraticamente. E conseguiu ser presidente do PTB, que era o
Partido dos Trabalhadores e do PSD que era o Partido de Centro,
concomitantemente. Presidente dos dois! Só no Brasil e com Getúlio! E ele ficou lá,
ele não saiu de lá , nem o prenderam lá, ele ficou lá, em casa. E uma romaria de
políticos iam lá tomar benção dele. De lá ele arquitetou tudo, mas o candidato dele
ganhou a eleição, o Presidente Dutra.
- Então o parlamentarismo era uma discussão que estava efervescente
nesta época...
- Sim, porque a Itália era parlamentarista.
155
- Era uma tendência, então, que as aulas de Filosofia, por ter esse caráter
interdisciplinar falasse sobre este assunto.
- Só os Estados Unidos é que eram presidencialistas. Os outros todos
eram parlamentaristas. E o Brasil tinha sido parlamentarista no Império. De 22 a 89
era parlamentarista. Com a República é que ficou presidencialista, modelo
americano, montado pelo Rui Barbosa, que foi o mentor da constituição da
República. Aí o Getúlio voltou em 50 e depois se matou em 54. Mas agora, depois
nós vínhamos discutindo de novo se viria ou não o parlamentarismo, daí o interesse
dos alunos. E como a gente vive procurando o interesse dos alunos, nós chegamos
também a isso.
- Eu achei um aspecto muito curioso, muito interessante, que dá para
visualizar bem. Tem algum outro ponto que o senhor coloca também sobre o
divórcio, desquite...
- Pois é, sobre a dissolução da família, que era uma outra grande
discussão. Outro ponto também era sobre a discussão sobre a pena de morte.
- E como o senhor fazia isso? Ao mesmo tempo em que o senhor falava
sobre Leibniz, sobre Bergson e outros tantos filósofos, o senhor entrava nessas
discussões...
- As aulas, modéstia à parte, eram muito ricas.
- Sim, porque relacionar um filósofo com o contexto atual...
- E eles se interessavam muito. A emoção estética, o belo,
Existencialismo, Heidegger, Jaspers, Sartre, Budismo... Eu estudei muito Budismo.
O Presidencialismo, o Rousseau com o Contrato Social... Eu estou com uma
lembrança muito interessante disso porque eu não tenho este material aqui comigo.
O regime capitalista, onde nós discutíamos o marxismo na aula...
- E como era isso? Vocês conseguiam ainda nesta época falar em Marx
sem ser subversivo?
- Nada, nada! Ainda era possível. Nem se pensava em golpe.
- Bem, como o senhor leu no meu trabalho, me interessa muito é saber o
histórico do Ensino de Filosofia, que sofreu esta extinção, esta lacuna e como agora
ela está retornando...
156
- Quando eu estava no exercício da docência, o que acontecia era o
seguinte: os alunos eram muito interessados. Depois, uma outra característica, que
você chama atenção no seu trabalho e eu vou enfatizar, é que o aluno do Colégio
Pelotense era um libertário. Era extremamente politizado. O Gato Pelado, são as
iniciais do Ginásio Pelotense, daí vem o Gato Pelado. O GG, que era o Ginásio
Gonzaga, eram os Galinhas Gordas. Bom, então, o que acontecia era o seguinte, os
alunos do Pelotense, como eles eram os herdeiros da maçonaria, o colégio no seu
corpo docente em grande parte era anticlerical, porque a criação do colégio foi
maçônica. E os maçons eram anticlericais. Pois há um sintoma interessante de
Pelotas e do Colégio Municipal Pelotense, que eu vou lhe chamar atenção, é que
você conhece a Catedral de Pelotas, evidentemente. E sabe em que praça fica a
Catedral de Pelotas?
- Na Praça José Bonifácio.
- José Bonifácio era o líder da Maçonaria do Brasil. Então foi um desaforo
colocar o nome e um monumento, houve uma discussão muito grande. Ninguém era
contra colocar o José Bonifácio, mas não defronte à Catedral. O fato de colocarem
defronte à Catedral, no largo da Catedral foi um acinte à Igreja Católica. É preciso
entender que Pelotas não era uma cidade com uma religiosidade muito alta, muito
diferente das comunidades de imigração italiana, onde a religiosidade era muito
grande. Como é que eu posso aferir isso? É porque as vocações sacerdotais de
Pelotas eram nulas. Tanto de sacerdotes quanto de freiras. Muito baixa.
Comparando com a colonização italiana e com a colonização alemã. Tanto que os
padres eram importados para Pelotas. Por exemplo, os padres mais conhecidos de
Pelotas eram o Monsenhor Queiroz, o José Antônio de Queiroz, que foi diretor da
Faculdade de Filosofia quando ela ainda se chamava faculdade, não era
universidade, a Faculdade Católica de Filosofia, e também era muito prestigioso na
cidade o Monsenhor Silvano de Souza, ambos do Ceará. E havia outros padres
também nordestinos, depois veio o Otávio Gurgel, Monsenhor Otávio Gurgel, que foi
diretor da Católica, acho que já na época da universidade e isso demonstrava o
pouco interesse do pelotense, não pela crença religiosa, mas pelo exercício da
religião. Os homens de Pelotas eram meio arredios à Igreja. As mulheres sempre
foram mais chegadas à Igreja, mas os homens eram mais arredios à Igreja. Então,
157
não haviam vocações sacerdotais. Um dos que veio para Pelotas e que tinha um
nome de família pelotense, que foi muito conhecido, foi o Padre Balomar Lundt, da
família Lundt, de Pelotas, que ainda existe. O Padre Balomar foi diretor da Filosofia,
um homem muito inteligente com uma grande formação psicológica, em Viena, era
uma figura dissonante do clero, não só porque era muito intelectualizado, mas
porque era um Doutor em Psicologia. E uma Psicologia muito próxima da Psicologia
Freudiana, que nunca foi uma coisa muito do agrado da Igreja por causa da questão
da importância do sexo na formação da mente das pessoas. Então esse era um
outro dado interessante. E por que isso refletia no Pelotense? Porque o Pelotense
acolhia as pessoas não religiosas de Pelotas, as famílias não religiosas. Outro dado
interessante é que como era um colégio barato, mesmo quando era pago, as
pessoas religiosas e que tinham poder aquisitivo colocavam os homens, filhos
masculinos, no Gonzaga, meu caso. E as meninas, no Colégio São José, que era,
acho, que de franciscanos, de freiras. E o Pelotense era misto. E a minha tia, Maria
Luiza Lopes, foi a primeira aluna do sexo feminino a ingressar no Pelotense, e se
tornou uma conhecida professora de francês lá, passou a vida ligada ao Pelotense.
Então, mas o que acontecia? Outro dado: os filhos de judeus, de ascendência
judaica, iam todos para o Pelotense. Não importava para os judeus, os judeus ricos
de Pelotas que os filhos fossem para outras escolas. Havia também outras famílias
de alto nível social que colocavam os filhos no Pelotense, mas porque o Pelotense
tinham muito prestígio pelo corpo docente. Eram professores extraordinários. Não
todos, evidentemente, mas haviam aqueles que eram fundamentais, como o
Professor Joaquim Alves, que era um grande professor de Matemática, e assim
havia uma série de outros professores renomados na cidade e a classe docente era
muito respeitada. Era muito diferente do que é hoje. O professor era uma figura
socialmente valorizado. A família prestigiava muito quando tinha um professor. E é
interessante que eles nem eram formados. Por exemplo, o professor Joaquim, era
chamado “Seu Joaquim”. Mas eles eram exímios nas suas disciplinas. Exímios! Não
estou exagerando, eram exímios. Tanto que o Professor Joaquim é um dos
melhores didatas que eu conheci. E olhe, estou com 62 anos de magistério. Era
extraordinário. O filho dele, o Platão, foi diretor lá também.
158
- E como foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período? O
senhor era contratado, que turmas o senhor lecionava e como era a sua ligação com
a instituição?
- A minha carreira de professor começou porque eu era um bom aluno no
Gonzaga. Eu não era um aluno excepcional, mas era um bom aluno. E era
conhecido, porque eu desde pequeno escrevia bem, fazia boas redações e fui uma
vez escolhido para ser orador numa solenidade. E me deram um texto para eu fazer.
E eu reescrevi o texto e fiz como se fosse de improviso. E tinha onze anos e aquilo
chamou muito atenção, porque era um auditório cheio e tal. E o colégio começou a
me dar encargos.
- O Colégio Gonzaga?
- Sim, sempre o Gonzaga. Minha mãe era extremamente católica e meu
pai, maçom. O meu avô foi líder da maçonaria. E o meu pai, antes de se casar,
pertenceu à maçonaria também. Mas a minha mãe era muito religiosa. E o meu pai
se afastou da maçonaria. Se afastou porque não era o feitio dele sociedade secreta,
ele não gostava muito disso, ele era muito democrata também. E ele não se
interessou em continuar na maçonaria. Minha mãe era Congregada Mariana, depois
ficou prefeita das congregações, minha mãe era muito religiosa. Não era assim do
tipo beata, não, mas era religiosa, militante. E depois meu pai foi se aproximando da
religião, porque levava minha mãe à igreja e se aproximou da igreja. Nunca chegou
a ficar um homem religioso, um devoto, e meu pai se formou no Pelotense, era
irmão desta senhora que ficou aluna lá, e era muito bom aluno no Pelotense,
adorava o Pelotense. Mas minha mãe, pela influência em casa, me colocou no
Gonzaga, que até era mais longe da minha casa do que o Pelotense. Mas a gente
era criança e andava com oito anos pela cidade a hora que quisesse, não tinha
nenhum problema. Eu ia sempre sozinho para o colégio, umas vinte e tantas
quadras, a cidade era completamente pacata, não havia nenhum risco, não. As
portas ficavam abertas, era completamente diferente. Então, fiz o colégio todo no
Gonzaga e quando eu estava no Científico um dia o diretor me chamou e disse
“Silvino, nós estamos abrindo um curso aqui, comercial, noturno e nós vamos fazer
um exame de admissão. Temos uma turma que vai este exame de admissão” (que
era um preparativo para o Ginásio e para o correspondente, o homólogo do
159
Comercial). Tinha um curso comercial, que dava acesso ao Contador, ao curso de
Contabilidade. Então era assim: quatro anos de Comercial, que era o básico, quatro
anos de Ginásio, três anos de Contabilidade, três anos de Científico ou Clássico,
mas o Gonzaga não tinha Clássico, só tinha Científico. O Pelotense tinha. Ele me
chamou no gabinete, me explicou isso, que ia iniciar um exame de admissão e que
ele queria me convidar para professor de Português no curso. Eu tinha dezesseis
anos. Porque eu falava em publico, desde os onze anos, até os dezesseis, no
mesmo colégio e em solenidades de Semana da Pátria, que o Getúlio criou a
Semana da Pátria, aquilo era muito importante no colégio e então ele me botou lá e
todos os meus alunos eram mais velhos do que eu. Todos. E eu conservei amizade
com alguns deles a vida toda. Alguns foram muito bem sucedidos, fizeram cursos, e
dois ficaram tabeliães, sem serem formados em Direito, que na época não tinha
essa necessidade. E outros, me lembro de um rapaz que trabalhava numa obra, e
vinha da obra com as mãos queimadas pela cal. Ele lavava as mãos, mas não
usavam luvas, não usavam nada, então suas mãos ficavam queimadas. Ele era
negro, então ficava bem claro, assim. E anos depois, encontrava alguns em postos
de serviços e nunca tive nenhum desrespeito na aula, nada.
- E em relação à disciplina de Filosofia...
- Isso ainda muito longe, eu ensinava português. E no Gonzaga eu nunca
ensinei Filosofia. Depois eu fiz o Exame de Suficiência. Na época não haviam
professores formados. A Secretaria de Educação montava cursos e as pessoas
faziam exames de suficiência, para ver se tinham competência. Eu fiz, fui aprovado
e fui então contratado primeiro no Gonzaga, dei aulas de português no Gonzaga e aí
já formado no científico e aluno no Direito e na Filosofia, porque naquela época,
bem na oportunidade em que eu estava fazendo Direito criaram a Faculdade de
Filosofia. Eu fiz as duas simultaneamente. E o curioso é que a Faculdade de Direito
não exigia frequência. A frequência era livre. Qual era a regra? É que quem
passasse por média não precisava a frequência. Como eu sempre passei por média,
não ia a exame oral, então a frequência não era contabilizada, não interessava
porque a pessoa mostrou que apesar de não ir a aula ou ir pouco a aula estava em
condições. Então eu dava aulas e me mantinha dando as aulas no Gonzaga e fazia
a Filosofia de tarde, o Direito de manhã e dava aulas de noite.
160
- De Filosofia, o senhor começou a lecionar só depois de formado?
- Só depois de formado. Aí eu me formei em Filosofia e fui para o
Pelotense para dar Filosofia e Literatura no Clássico. Era Português, mas o Clássico
preparava para o vestibular do Direito e no vestibular do Direito caía Literatura. E eu
dei também Literatura no Clássico. Aí começou a minha história no Pelotense. Uma
coisa que chamou um pouco a atenção, porque eu era Gonzagueano e acabei
sendo professor. E um colega meu, que faleceu recentemente, o Pascoal Müller,
que foi professor de História, extraordinário professor, da Católica e do Pelotense,
ele dizia “agora basta se formar no Gonzaga para ser professor no Pelotense”. E o
Pascoal, um pouquinho mais velho do que eu, entrou no Pelotense junto comigo.
Era a rivalidade que havia lá, havia um certo ciúme que se formasse no Gonzaga e
fosse professor no Pelotense, e alguns do Pelotense não eram escolhidos. Mas é
que o Pascoal e eu já tínhamos carreira no magistério, já tínhamos a licenciatura. E
aí começou a minha história no Pelotense que eu só deixei quando me formei em
Direito, comecei a advogar e aí o tempo ficou muito curto. Depois eu me demiti do
Pelotense. Eu me formei em 57 em Direito, já estava formado em Filosofia, porque
eu me formei dois anos antes em Filosofia e depois em Direito. Em 52 eu entrei pra
Filosofia e pro Direito, em 57 eu me formei e depois eu fiz concurso pro Estado e fui
aproveitado no Colégio Monsenhor Queiroz, que funcionava lá onde é o Assis Brasil,
de dia era o curso de formação do Magistério, o Curso Normal, que chamavam e de
noite funcionava outro colégio, que era o Colégio Monsenhor Queiroz. Nesse colégio
eu dava aulas à noite. E eu então preferi dar aulas à noite por causa da advocacia.
- E o senhor era contratado no Colégio Municipal Pelotense?
- Eu era contratado. E aí, eu não me lembro quanto tempo eu fiquei no
Pelotense, mas eu fiquei uma porção de anos no Pelotense, dando Filosofia no
Clássico e no Científico e dando Literatura e Português no Clássico. Em 67, já fazia
muito tempo que eu tinha saído do Pelotense porque eu já era Livre Docente. Eu
fiquei Livre Docente em 63. Eu fiz concurso em 62 e eu me lembro que para estudar
para o concurso eu até diminuí muito o trabalho no escritório de advocacia, porque
eu estudava muito para fazer a tese. Fiz a tese e defendi a tese, fui aprovado na
Livre Docência e comecei em agosto de 63 a dar aulas de Filosofia do Direito no
quinto ano da Faculdade de Direito. Aí já é outro estágio, outra etapa e depois eu
161
disputei uma bolsa para a Espanha e ganhei uma bolsa em que tinham três vagas
nacionais, eu disputei e ganhei, muito por intervenção do Cônsul Espanhol que era
muito influente aqui em Porto Alegre e fui para a Espanha estudar Filosofia do
Direito e acabei professor na Universidade de Madrid.
- Uma carreira linda!
- Eu sou uma pessoa de muita sorte.
- Competente e modesto...
- É preciso juntar as duas coisas. Você tem que estar preparado, mas a
oportunidade tem que aparecer. Às vezes a pessoa tem muita preparação mas não
tem oportunidade, faltam relacionamentos e tudo mais. Quando eu voltei de Madrid,
eu já não lecionava mais no Pelotense, logo depois da Revolução eu fui para
Madrid. Em 65, eu fui para Madrid. E voltei em 66, aí a Arabela já estava no
Pelotense lá em 67. Estou me lembrando da Arabela minha aluna e eu fui paraninfo
da turma dela na Filosofia e eu dava História da Filosofia. Estou rememorando isto,
eu voltei, já não estava mais no Pelotense, já não estava mais no Gonzaga, estava
no Monsenhor Queiroz, porque era estadual, me interessava mais, estava na
Faculdade de Filosofia, que me interessava na faculdade, na minha titulação e
estava no Direito, porque quando eu fui para a Europa eu já era professor do Direito,
já era Livre Docente e Doutor em Direito. Por isso, eu tive vantagem no concurso de
títulos para a Espanha, para o Instituto de Cultura Hispânica. E depois tive sucesso
na advocacia, então já não tinha tanto tempo, tive que deixar o Monsenhor Queiroz,
que era um colégio estadual e fiquei ainda um tempo na Faculdade de Filosofia
embora economicamente não fosse interessante, mas eu gostava muito e no Direito,
claro, fazia questão de permanecer. A Universidade Federal pertencia à
Universidade do Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Pelotas não existia,
ela era um órgão ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e eu
continuei. Então, não voltei mais a dar Filosofia no secundário, que no Monsenhor
Queiroz eu só dava português. Agora podemos falar da minha vida lá no Colégio
Pelotense.
- Quais são suas recordações dessas aulas? O ambiente, a participação
dos alunos...
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- As minhas recordações das aulas são as melhores possíveis. Eu tenho
relações afetuosas e íntimas até com muitos alunos, que acabaram até sendo meus
alunos no Direito também. Os alunos do Clássico, o Cavalheiro Leite foi meu aluno
no Direito.
- Foi outro professor que fez Filosofia e Direito paralelamente, uma
carreira semelhante à sua...
- Era corrente isso. Como um curso era de manhã e o outro era de tarde,
e começava às quatro da tarde o Curso de Filosofia, ia até às oito da noite. Então,
eu gostava imensamente do Pelotense, embora eu não fosse Gato Pelado. Eu
gostava imensamente do Gonzaga também. Mas no Pelotense, havia um clima
muito interessante. Primeiro, no Científico, os alunos que eram mais numerosos,
tinham de se preparar muito bem para os vestibulares, porque as vagas eram muito
escassas. Os cursos eram fora de Pelotas, não havia Curso de Medicina em
Pelotas, não havia Curso de Engenharia, então eles vinham disputar aqui em Porto
Alegre. O acesso era muito difícil. Nós tínhamos em Pelotas um curso muito bom de
Direito, muito bom de Agronomia, muito bom de Odontologia e Veterinária, porque
era subsidiado pela Agronomia Eliseu Maciel. Então, esses vestibulares eram muito
disputados porque também vinha gente de fora para disputar em Pelotas. E
sobretudo de Medicina, era muito concorrido, muito difícil no Rio Grande do Sul,
porque havia só a faculdade aqui de Porto Alegre. Para Santa Maria conseguir, foi
uma luta porque o grupo daqui queria o monopólio, o corporativismo funcionava a
todo vapor. Dificultaram muito a criação do Curso de Medicina lá em Santa Maria,
que foi anterior ao de Pelotas, aos dois de Pelotas. Então, no Científico eles sabiam
que precisavam estudar muito para terem êxito. E eu tive alunos de elite lá no
Pelotense. Quando o aluno é bom, mesmo que ele se interessasse muito por
aquelas matérias que iriam integrar o programa do vestibular, o aluno quando é bom
estuda tudo. O bom aluno é responsável, assiste às aulas e vai ser exigido nas
provas, ele se prepara. E como as aulas eu tinha uma idade muito próxima deles,
tinha 23 anos e eles tinham 17, 18. Naquela época entravam um pouquinho mais
tarde no colégio, então era comum eu ter alunos de 19 anos no terceiro ano. Nós
tínhamos uma diferença de quatro, cinco anos. Claro que era uma diferença porque
havia sobre isso a hierarquia do professor e o aluno, que era muito mais respeitada
163
do que hoje. O professor era muito acatado. E depois, como você sabe, a disciplina
na aula depende muito do professor, do apreço que o aluno tem pelo professor, e
pela autoridade que o professor tem, pelo pulso que o professor tem na aula. E o
interesse que a disciplina desperta, então eu nunca tive problemas de disciplina na
aula, nunca, em lugar nenhum. E as aulas eram muito produtivas porque eu
trabalhava com, a técnica na realidade era essa de exposição participativa.
Trabalhava com exposição, mas provocando com perguntas, com questionamentos.
E focando temas que eles tinham interesse. E, como eram bons alunos, não é que
todos fossem bons alunos, mas você não precisa ter todos bons alunos. Se você
tem seis, sete bons alunos na aula, levanta o nível porque as perguntas são muito
bem feitas. As indagações, as dúvidas, as perplexidades que eles externam aos
professores são de muito bom nível. Então o professor pode trabalhar com isto. E
outros aproveitam também, todos aproveitam esse nivelamento. Embora alguns,
você sabe, ficam alheios, não que houvesse assim um alheamento físico, assim,
mas não estavam muito interessados, sobretudo em Filosofia , mas sempre é assim.
Mas o nível era muito bom, os alunos muito interessantes, gostava muito de dar
aulas lá. E eles tinham muito apreço por mim também.
- Como o senhor avalia o Ensino de Filosofia experienciado? O senhor
avalia então de uma forma muito positiva essa sua experiência?
- Muito, muito. Para mim foi extremamente benéfica e eu percebo que
com eles também era muito bem-vinda porque eles eram muito cordiais comigo,
muito queridos comigo e onde nos encontrávamos sempre muito gentis e tal. As
coisas eram um pouco mais formais do que são hoje. Estamos falando de cinquenta
anos passados, isso pesa muito, sobretudo na velocidade que nós temos de
desenvolvimento social hoje. Então, era muito interessante. E como você vê u usava
a Filosofia com muitos aspectos diferentes. As coisas não eram aprofundadas, mas
era uma cultura geral que eles tinham.
- E qual a carga horária que o senhor tinha, o senhor lembra?
- Eu tinha três aulas por semana.
- Ah, uma grande diferença de hoje em que o professor tem uma aula de
45 minutos por semana... É uma grande diferença, né?!
164
- Ah não, eu tinha três aulas por semana, aulas de 45 minutos,
compreende? E às vezes a gente avançava um pouquinho na aula e tal. Você
imagina que eu dava aulas sábado de tarde, com a aula repleta de alunos? Sábado
de tarde! Olha, eu me lembro dos moços com as chuteiras para jogar depois da
aula, você já imaginou? Vê se isso acontece hoje?! Eles levavam um pacotinho
assim, botavam ali na classe e tal, depois eles iam jogar futebol. Mas assistiam a
aula até às quatro horas, quatro e meia da tarde. Quatro e meia da tarde eles saíam.
E a aula cheia de gente. Era muito interessante. E depois o seguinte: como o
Pelotense era um colégio de alunos muito politizados, e outro aspecto muito
importante: o Grêmio Estudantil era muito forte, então a politização interna era
grande também entre os alunos, eles eram muito debatedores, muito polemistas. E
estas ideias que eu levava lá eram muito polêmicas.
- Cabiam para o que eles queriam e esperavam...
- Claro. Era o aspecto político, os aspectos jurídicos do momento, que
era o desquite, etc, aspectos políticos em relação a presidencialismo,
parlamentarismo, formas de estado, a democracia, e tudo isso interessava muito a
eles. E depois o seguinte, as partes históricas da Filosofia, eles se interessavam
também, porque aquela História da Filosofia Grega é lindíssima. Eles ficavam
realmente interessados e eles debatiam muito, entre eles também. O Pelotense
tinha essa situação de que é como se eles fossem livres pensadores, aquele
sistema francês dos livres pensadores. Então, eles eram assim, libertários e tudo
mais e eu insistia em não serem dogmáticos. Não serem dogmáticos, eu exaltava
muito o senso crítico. Então, nós fazíamos aquele trabalho de História da Filosofia e,
de vez em quando, íamos intercalando coisas. E jogando, como você vê aqui,
coisas bem diferentes. O desquite, o Regime Capitalista, porque alguns eram
marxistas na aula. Depois o livre-arbítrio e o determinismo, que os deixavam assim
empolgados, porque uns eram deterministas. Eles não sabiam que eram
deterministas, mas quando aprenderam que eram deterministas se filiavam àquela
linha. E outros eram livre-arbitristas. Então, havia toda essa questão. Olhe lá, o
capitalismo, o socialismo, a formação da sociedade, a liberdade, os graus da
consciência, a pena de morte, Kant, o Imperativo Categórico, a noção do fatalismo
dentro do determinismo...
165
- E como era a sua didática? Que didáticas e práticas de ensino eram
desenvolvidas em aula? O senhor já disse que a sua aula “expositivo-participativa”,
como era isso?
- Eu trabalhava com exposição participativa. Provocação mediante
questionamentos embaraçantes, para criar problemas para eles. As coisas que eles
faziam, se era bem, se era mal... Ênfase na necessidade de desenvolver um senso
crítico sobre si próprio e suas atitudes. Exercício sobre a postura correta na
convivência. Cosmovisão racional, reflexão sobre o projeto existencial. Aquela
história que deixava os adolescentes enlouquecidos: “Da onde eu vim? Para onde
vou?” E viam textos selecionados também que eram interpretados por eles e
discutidos. Eu fazia sempre uma introdução à filosofia para o conceito, mostrava
para eles o que é um saber sem pressupostos, sem preconceitos, sem pré-
conceitos. E eu dizia que isto era característico da Filosofia. Tudo pode ser
investigado, nada está absolutamente certo, não há nada intocável e a crítica pode
ser exercida sobre qualquer aspecto do conhecimento. Sempre vale a crítica. Então
essa era a ideia. Depois eu trabalhava muito com as relações entre a Ciência e a
Filosofia. Saber sem pressupostos e a crítica universal com antidogmatismo. Eu me
encaixava numa postura crítica, que eles não fossem dogmáticos, questionando
tudo. Mas o Pelotense não era dogmático. O Gonzaga era dogmático. Por quê?
Porque o Gonzaga era um colégio católico. E um colégio católico-tomista. Eles nem
sabiam que eram tomistas, mas o fato é que eles eram tomistas, porque era a tônica
da religião, da Filosofia Católica. Depois eu insistia muito para eles na utilidade da
Filosofia. Dois aspectos: a formação cultural, em si, e o sentido humanístico da
Filosofia. Humanístico no sentido não apenas de ter um lustre cultural, era de
humanidade, de reconhecimento. Isso que se fala hoje de inclusão e de não-
segregação, nós trabalhávamos muito isso. Aplicação no dia a dia do constante
discernimento das melhores opções de vida. Então, fazia isso com eles. Isso era o
princípio do curso que eu me lembro. Que é para seduzir com a Filosofia, eu estava
vendendo a ideia de estudar Filosofia. Então, isso servia para eles. Por exemplo,
que eu uso ainda hoje quando dou Filosofia, uso muito essa de trabalhar muito com
a Axiologia. Eu sou muito ligado à Teoria da Justiça. E a Teoria da Justiça ela está
centrada na Axiologia. Porque a Justiça é o valor presidencial do Direito.
166
Então, aí já para Mestrado em Direito, eu dou Filosofia do Direito, eu
chamo atenção para eles do seguinte, que há bipolaridade no valor. Um valor
sempre corresponde a um desvalor. Só porque há possibilidade de desvalor é que
há valor, só por isso, por isso que é bipolar. Então, eu ensinava lá no Pelotense e
discuto aqui que o valor está a cada momento da vida da gente. Por exemplo, você
está me dando valor, está dando valor ao seu tempo, e eu estou dando valor a você.
Porque se eu não lhe desse valor, eu não lhe receberia. E se você não estivesse
achando que fosse útil, você tinha dado uma desculpa para a chuva e não viria, ou
então viria, ficava pouco e iria embora e pronto. Então, eu digo a eles que o valor
está na nossa vida minuto a minuto. Eu não estou pensando nunca no valor, mas se
eu estou gastando o meu tempo com uma atividade é porque ela está sendo
valiosa. E eu digo a eles o seguinte: se eu não estou gostando de fazer e estou
fazendo, estou dando mais valor a ela. Porque se eu não gosto e faço, por que
acontece isso? Porque eu estou valorizando muito. Porque é muito diferente de eu
gostar imensamente de uma coisa e fazer essa coisa. O sujeito que gosta de futebol
e esporte, claro que dá valor, porque gosta e faz. Agora se você consegue fazer até
sistematicamente coisas de que não gosta, é porque acha que é muito importante
fazer aquilo. Então você está dando o valor a uma coisa que lhe parece desvaliosa.
Mas ela não é desvaliosa na tomada do seu tempo, ela é desvaliosa no seu
interesse, mas você faz contrariado. Então, eu jogo com esses elementos de
Axiologia, claro que com eles eu não jogava nesse nível, mas eu jogava com eles e
eles ficavam impressionados com aquilo. Toca! Como você bota minhocas na
cabeça deles...
- Aquela foi a fala de uma outra professora entrevistada, a Professora Ana
Lúcia Almeida, não é minha aquela fala...
- Realmente aquilo é interessante. Porque a gente areja a cabeça deles.
E eles ficam perturbados. Agora eu me furtava um pouco de discutir religião com
eles na aula. Me furto muito de discutir religião. Eu tenho uma posição kantiana a
respeito disso. Existe ou não existe? Provar que existe? Provar que não existe?
Kant dizia que é conveniente que se acredite, porque você sempre tem uma
esperança. As suas desventuras atuais podem ser compensadas. Então, você
sempre é movido pela esperança. Você está sofrendo injustiça, mas há uma justiça
167
sobrenatural, na pessoa que pensa isso. Então ela tem essa segunda instância, em
que as coisas podem ser reformadas. Aliás, o que é interessante observar é o
seguinte: o Direito Natural, em Filosofia do Direito agora, o Direito Natural ele tem
duas ramificações, dois campos. O Direito Natural de base teológica, e há o Direito
Natural de base racional.
O Direito natural de Base Teológica, ele é muito antigo e já aparece na
Antígona de Sófocles. Quando Creonte, que era tio da Antígona, irmã do Édipo, um
trecho da tragédia é o seguinte: o Édipo teve quatro filhos com a Jocasta, com quem
ele esteve em incesto não sabido. Tinha a Antígona, tinha a Ismênia, Etéocles e
Polinice. Dois homens, duas mulheres. E tinha o Creonte que era irmão da Jocasta
e tio do Édipo e tio-avô destes meninos. Creonte era cunhado do Édipo. E tio
desses meninos. Então, o Creonte era irmão do Laio, Laio era o pai do Édipo.
Quando aconteceu aquela desgraça toda, que o Édipo ficou sabendo pelo Tirésias,
o adivinho, que ele era casado com a própria mãe dele, a Jocasta se suicidou e ele
vazou os olhos. E como era uma maldição, ele foi expulso de Tebas. E os filhos não
o acompanharam. Inclusive, o enxotaram também, porque queriam se livrar da
maldição. Mas Antígona ficou com ele. Foi embora com ele, para Colono, uma outra
cidade, onde ele acabou sendo recebido. Ele morreu em Colono e Antígona, voltou
para Tebas. Em Tebas, quem tomou conta do poder que era do Édipo, foi o Creonte.
Mas o Polinice e o Etéocles, os dois, um aderiu ao Creonte e o outro, não. Então, o
que aconteceu? Eles entraram em guerra. E eles se mataram um ao outro, sob as
muralhas de Tebas. O Creonte era amigo do Etéocles. E inimigo político do Polinice.
Os dois morreram em campo de batalha. Ele mandou dar honras militares ao
Etéocles. E deixou Polinice insepulto. Na religião grega significava uma desgraça
eterna. Se não tinha honras funerárias, ele não iria para o Hades, que era o inferno
e tal. Só que Antígona, fez um édito proibindo de darem sepulturas aos inimigos. E
incluía o Polinice. A Antígona falou com a Ismênia, isso tudo é a tragédia do
Sófocles, chamada Antígona, e a Ismênia se sentiu traída. E ela foi ao campo de
batalha à noite, secretamente, e ela deu honras funerárias ao Polinice, para que a
alma dele pudesse ter descanso. E como é que se descobriu isso? Porque ela teve
que fazer, mesmo precariamente, a cobertura com galhos e flores e tudo mais,
porque era como se homenageava o cadáver, o morto. Claro que perceberam isto
168
de manhã e avisaram ao Creonte. E o Creonte, discutiu com a Antígona e iria
condená-la à morte. E ela, então, disse a ele, “Nem tu, nem ninguém, nem os
Deuses, podem derrogar as leis que foram criadas para toda a eternidade e que
estão escritas no céu”. Essa é uma tradução livre “escrita no céu”, porque eles não
usavam isso, mas e por isso ela não podia obedecer a ordem, porque ele estava
derrogando uma lei natural. E ela foi executada por causa disso. Bom, esta é a
primeira manifestação literária do Ocidente sobre o Direito Natural, Direito Natural
Teológico. Vinha dos deuses. Mas havia um Direito Natural racional que aí já era
criação por volta de 1300, 1400, por aí. Então, é um Direito Racional, que não era
dos deuses, ainda que Deus não existisse. É a expressão que se usa depois, o
Dostoiéviski utiliza essa expressão também, em “Crime e Castigo”: “Se Deus não
existisse tudo seria permitido”.
E esse Direito Racional, como a gente encontra esse Direito? Nas forças
da razão. Aí, há muitas explicações, é o espírito da comunidade, o espírito do povo,
mas não tem nada a ver com Deus. Bom, isso gera discussões na aula,
evidentemente. Porque que eu não insisto nas discussões religiosas? Não fujo
delas, mas não insisto. Não insisto pelo seguinte: eles têm, todos têm uma formação
que vem de casa, contra a qual eles podem rebelar-se ou não. Em geral, não se
rebelam. Se rebelam politicamente, mas não religiosamente. Porque a política e a
religião não estão mais ligadas como já foram. Então, eles têm aquelas ideias. E
aquilo lhes dá uma certa tranquilidade. Se chega um professor treinado como eu,
que não é religioso, embora tenha muito boa formação religiosa pelo colégio e pela
minha mãe, mas que realmente hoje, cheguei a uma situação que eu não tenho
nenhuma vinculação com divindades, porque, a meu ver, tudo é mitológico. Assim
como nós chamamos mitologia as histórias gregas, mitologia também pode ser a
Bíblia. Como é que você vai aceitar que no fim de uma batalha o líder hebreu
levante os braços pro céu, invoque a Deus e peça a Jeová que pare o sol, porque
eles não podem lutar numa sexta-feira de noite? E o sol parou. Até que os hebreus
bateram nos filhos teus em Jericó. O que é isso? E a inércia? E o universo todo
parou por causa dessa batalha? A Bíblia... a começar colocou todos os tipos de
animais na Arca... Que tamanho teria que ter esta arca? E como é que iriam recolher
todos esses animais? Isso é fábula, foram criadas. Como os evangelhos de Lucas,
169
Lucas viveu 300 anos depois de Cristo... Que testemunho ele tem sobre isso? Agora
se você começa a discutir com meninos e meninas nestas condições, sem nenhum
contra-argumento, eles estão serenos achando que a sua crença é real. Mas isso é
proveitoso, ter isso, porque se eles estão sossegados, é proveitoso. Agora, se você
não substitui por nada... Porque se pudesse fazer assim: tira esta pilha que está
descarregada e bota outra e tudo funciona... Agora deixar no vácuo completo?
Schopenhauer fez isso, o que levou àquela onda de suicídios e Nietzsche depois.
Mas então você entra num niilismo, que se você não tem a formação para ser
niilista, você sofre muito e não encontra mais sentido em nada. Agora se você
consegue ter essa formação calcada num conhecimento filosófico, se você se
convence que as coisas são assim e não há outra coisa... A questão da
meritocracia, que não tem nada a ver com Deus, mas com seu trabalho... Agora não
significa se você não tem Deus não significa que você seja indecente, como faziam
na Idade Média, “não pensa como nós, mata, bota na fogueira, bota na Inquisição,
etc”... Quando é que Cristo aceitaria isto? Nunca! Ele que era o criador do amor ao
próximo na Filosofia... Como é que ele aceitaria a Inquisição, aquela maldade
incontrolável da Inquisição? A Noite de São Bartolomeu, etc, contra os Protestantes,
já muito depois... Eu tenho muito escrúpulo em entrar nesses assuntos.
- O senhor tem muita sabedoria... Mas só o Budismo que o senhor trazia
um pouquinho, não é?
- Com o Buda aconteceu uma coisa curiosíssima. O Buda nunca
pronunciou a palavra “Deus”. Ele tinha aquelas quatro verdades: viver é sofrer, a
origem da dor é o desejo, só se encontra felicidade desligando-se dos desejos e aí
se alcança o Nirvana que é uma tranquilidade, que é uma felicidade negativa. No
Nirvana eu não me interesso por nada. Meu ponto de vista é o seguinte: o Buda
traiu a sua doutrina. Porque se ele realmente estivesse desinteressado, ele não teria
ensinado a ninguém. Ele tinha um interesse extraordinário pela humanidade. Ele é
uma versão do São Francisco de Assis, lá no Nepal. Porque ele estava interessado
que as pessoas conhecessem a verdade para deixarem de sofrer. Se ele não se
interessasse por ninguém, ninguém saberia. Ele foi iluminado, ele recebeu a
iluminação, que veio a dar o nome de Buda para ele, ele ficaria só como Sidarta
Gautama Shakyamuni e nada mais. Então por que ele foi apóstolo? Porque ele
170
queria que as pessoas conhecessem a verdade, porque ele estava interessado na
felicidade dos outros. Então, é essa contrariedade que existe nele. Agora, você
imagina, agarra um menino ou uma menina de dezesseis anos, ou dezoito,
dezenove, sem nenhuma fundamentação e que está consciente de que professa
uma religião que pode levar à felicidade, que o tranquiliza, desenvolve um sistema
de solidariedade e de justiça, etc e tal , como todas as religiões fazem, aí você
chega lá, tira isso da cabeça deles e não coloca nada de volta. Como é que fica?
Então, eu nunca assumi esta responsabilidade e acho que isso é antiético.
- Algum filósofo ou escola filosófica em especial era enfocado? Qual?
- Depois, eu comecei a dar Lógica Formal. Quando eu falava em Lógica
Formal, eu falava em Aristóteles. Em Gnosiologia, eu falava em Descartes, por
causa do método, da busca pela verdade. E Kant nos limites do conhecimento.
Depois eu dava Axiologia. Na hierarquia dos valores, a bipolaridade, a presença
inevitável das valorações existenciais, e aí começava a trabalhar com esses
filósofos dos valores e tudo mais. Aqui na definição de Direito, Johannes Hessen. Na
Teoria do Conhecimento, também Johannes Hessen, na Gnosiologia, que tem uma
obra muito boa e que é uma obra acessível, que se chama “Teoria do
Conhecimento”. Quando entrava em Ontologia, aí também falava de Aristóteles. Ser
e não ser, falava também em Tomás de Aquino por causa da linha aristotélica. Mas
aí era indispensável falar também sobre Platão. Vinha o Livre-arbítrio, a pressão
determinista, todos esses elementos. E Platão sobretudo na Ética. Além de
Aristóteles com a “Ética a Nicômano”, também os diálogos de Platão, sobretudo por
causa do bem. Como o bem era a essência do pensamento de Platão, a ideia era a
de agir com correção à decência imprescindível. Eu batia muito com eles na
decência. Os desvios de conduta moral e suas nefastas consequências sociais e
individuais (no caso de individuais, trazia para a família). Ao longo das
apresentações e discussões dos conteúdos, remissão aos sistemas historicamente
destacados e seus protagonistas. Então, eu não dava História da Filosofia.
- O senhor trabalhava através de temas?
- Claro. E fazia as inserções. Discussão sobre situações sociais e
políticas geradoras de crises e discriminações intoleráveis. Na parte da Ética,
necessidade de controle do egoísmo natural e ênfase das vantagens da
171
solidariedade. Virtudes cívicas a desenvolver em favor do bem comum, que nada
tinha que ver com a Moral e Cívica.
- Tinha alguma influência positivista neste ponto?
- Tinha. Agora já vou lhe mostrar porque. Então, a metodologia está aqui,
como eu já lhe disse. 33 Aqui está a bibliografia. Na Introdução à Filosofia, Ortega y
Gasset (Que es filosofía e Rebelião das Massas), que também entrava no
Socialismo, na rebelião das massas, em Marx e no marxismo. Garcia Morente que
tem uma introdução muito boa à filosofia e Julian Marias, isso na área de introdução.
Usava-se na época também o Charles Lahr, que é um padre francês, que tinha uma
obra muito boa. E era atualíssimo para a Filosofia Cristã, Jacques Maritain, Filosofia
Romana. O Hessen, por causa da Teoria do Conhecimento. Os Existencialistas e
Marxistas naquelas implicações da vida mesmo e do ser. Na História da Filosofia, eu
usava o Abbagnano. Usava muitos outros, mas estou só citando estes porque estes
dois eles eram muito acessíveis pra eles. O Leonel Franca era um jesuíta tinha uma
“História da Filosofia” muito conhecida no Brasil. É uma síntese, mas ele é
francamente escolástico, como jesuíta, mas é um homem intelectualmente com uma
pesquisa muito boa. E tinha um outro menos profundo que era o Theobaldo Miranda
Santos. Se usava também. Mas esse era livro didático mesmo, as normalistas
usavam e tudo mais. O Leonel Franca se usava muito na faculdade de filosofia por
causa do tomismo. Jacques Maritain era um tomista intransigente. E esses dois
eram em português, então era muito fácil para eles consultarem. Na pedagogia elas
usavam largamente o Theobaldo Miranda Santos porque ele também tratava de
outros dados, de outros aspectos da Filosofia vinculados à Pedagogia e não só
História da Filosofia. Mas esses eram livros de divulgação acessíveis pra eles. Mas
eles não compravam livros porque não tinham dinheiro para isso.
Vou lhe dizer a ideia que eu tenho em relação ao Pelotense. O
Pelotense e Pelotas. O ambiente era de religiosidade menos atuante que nas áreas
de forte imigração italiana e alemã. Muita indiferença por parte dos homens em
Pelotas em relação à religião. Influência decisiva da Maçonaria, criadora do Colégio
Municipal Pelotense. Foco de Positivismo era Pelotas, sobretudo a Faculdade de
Direito. O professor de Introdução ao Direito foi um homem que inclusive ficou cego,
33 Refere-se a material escrito de próprio punho, preparado especialmente para a ocasião desta entrevista, disponível nos anexos deste trabalho.
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o professor José Francisco Dias da Costa, que foi quem deu, já aposentado, a aula
inaugural quando eu ingressei na faculdade, já cego também, ele dizia “a luz da
biblioteca tirou a luz dos meus olhos”. Ele era francamente positivista, porque o Rio
Grande do Sul era fortemente positivista por causa do Júlio de Castilhos e depois do
Borges de Medeiros.
Aqui tem um templo positivista, conhece? Tem um guardião. É um
templo. Porque o Conte no final ele criou uma religião desnorteado. E o imóvel
nunca está abandonado, o imóvel está sempre bem cuidado, bem pintado e é
grande. Fica na Avenida João Pessoa, quase esquina Venâncio Aires. Então, havia
um foco de Positivismo lá e havia exemplos de anticlericalismo em Pelotas, porque
os positivistas eram contrários ao catolicismo, radicalmente contrários ao
catolicismo. Elenquei o seguinte: episódio do monumento e praça José Bonifácio
(desafio à Igreja). Raríssimas vocações sacerdotais – idem com relação a freiras.
Outro dado: padres nordestinos (Monsenhor Silvano de Souza, Monsenhor
Queiroz). Nenhum dos bispos de Pelota nasceu em Pelotas, nenhum deles.
- E todos esses elementos históricos e culturais, isto tudo influenciava e
refletia nas aulas?
- Claro, diretamente! Isso é que é interessante. Então, nenhum dos bispos
nasceu lá. Um era de São Paulo, o outro era do Nordeste e da Colônia Alemã e
Italiana. O Dom Chemello, o Dom Antônio Zattera, todos italianos. Agora o que
aconteceu com Pelotas? A Indústria Saladeril, da carne salgada, ela perdeu muita
riqueza. E a riqueza velha se transforma em refinamento cultural. Trabalha muito
para enriquecer. Depois que ele enriquece, na segunda ou terceira geração, aí já
viveram na opulência, e vivendo na opulência eles têm lazeres, têm bagagens e se
refinam educacionalmente, se aculturam e a classe alta bem educada tem
ambições. E fica intelectualizada. E foi o que aconteceu com Pelotas.
Você imagina o seguinte: há cem anos, mais de cem anos, Pelotas tinha
quatro faculdades. E quatro faculdades era o número mínimo para criar uma
universidade. Já podiam ter criado, porque o Direito tem mais de cem anos, a
Odonto também e a Agronomia também. A Odonto tinha Farmácia e a Agronomia
tinha a Veterinária. Nenhuma cidade do interior, mas nenhuma, nem se pensava!
Por quê? Por causa desta riqueza que envelheceu e que se aculturou e as pessoas
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criaram ambições intelectuais. Então, um ambiente com uma faculdade cheia de
positivistas, estudiosos, não faziam mais nada do que isso, só estudavam, liam, liam
muito. Liam muito bem o Francês. Se falava muito bem francês em Pelotas. A minha
tia, por exemplo, acabou sendo professora de francês porque na minha família se
falava francês fluentemente. E liam em francês também.
Depois, o bairrismo de Pelotas. Criou um bom ensino. Criou um ensino
superior precoce. Na Eliseu Maciel, a Agronomia, tinha também o curso de Odonto,
que tinha a Farmácia e tinha o Direito. Mas particulares todos! Conhece a história do
leilão da Agronomia? Isso era uma das coisas mais incríveis de Pelotas. A
Agronomia era particular. E foi doação do Eliseu Maciel, um homem muito rico, que
fez aquele prédio, conhece o prédio da Eliseu Maciel? Na cidade, defronte ao
Mercado, atrás da Prefeitura, um Palacete.
- Eu achava que era o prédio que fazem atualmente as formaturas, lá na
Agronomia...
- Não. Aquele foi mais tarde, foi muito mais tarde. Aí já com a
Universidade Rural do Sul, foi o Governo Federal que fez, porque lá tinha o Instituto
Agronômico do Sul, que era um instituto fortíssimo, que criou as variantes de trigo
que permitiram que o Brasil produzisse trigo, porque não produzia. Lá é que criaram,
porque o clima era muito desfavorável e dava peste sempre. Lá fizeram pesquisa,
pesquisa, pesquisa até conseguir variantes que sobrevivessem ao nosso clima
úmido. O Eliseu Maciel fez aquele prédio naquela forma grega assim, que os gregos
não conheciam o arco, o arco é romano, aquela forma assim que é do Partenon,
aquilo é grego. Eliseu Maciel fez e deu para a cidade, para a Escola de Agronomia,
por isso é que ela se chama Eliseu Maciel. Não se chamou no tempo dele, só
depois que ele morreu. Mas ela teve muitas dificuldades. E um dia ela foi a leilão. E
estava cheio de gente lá. E era um prédio importantíssimo na cidade. E o leiloeiro
botou em leilão e ninguém fez lance. Havia uma convenção comunitária que
ninguém podia lançar. Porque se alguém lançasse ficava dono e não tinha mais
escola. Ninguém lançou e ele quebrou o martelo. E esse martelo existe na
Agronomia dentro de um quadro com uma moldura com vidro, é um martelinho
quebrado, os dois pedaços do martelo. Para ver o que era o bairrismo de Pelotas!
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Para tu teres uma ideia, a Companhia Telefônica era local. A CTMR,
Companhia Telefônica de Melhoramento e Resistência. Não havia. Os outros no
Estado era a Ganz, estrangeira, essa era local.
O Theatro Sete de Abril, pioneirismo no Estado. O mais antigo do
estado.
Gás encanado. Nós tínhamos em casa, já desde o meu avô, gás
encanado. Em vez de ter os botijões, não havia, tinha o Gasômetro em Pelotas,
encanado por toda a cidade e você chegava, ligava o gás, sem ter fogão. Era um
fogareirinho assim, então, por exemplo, a gente não fazia comida nesse fogareiro,
era de duas bocas, a gente fazia café, doces, etc e tal. E o fogão era aquele à lenha
grande que tinha que passar o sapólio todos os dias, fazia almoço e jantar. Não
havia lanche. Lanche é uma criação posterior. O jantar faziam todo de novo. Não era
o chamado “almoço ajantarado”. Uma comida era do almoço, a outra era do jantar.
Não tinha nada requentado. E de noite, tinha o café da noite. Na minha casa, por
exemplo, o meu avô, tinha a sala de jantar e a copa. A copa era pro café, da manhã
e da noite. Almoço e jantar era naquela outra sala. A sala grande e a outra era uma
sala menor. Na sala menor, tinha um fogareiro a gás, igual a um fogãozinho a gás. E
na cozinha tinha um fogão enorme e outro fogão a gás. Gás encanado, você já
imaginou?! Nós não temos até hoje, nós temos no edifício encanado mas é lá
embaixo que tem. Eles chegam lá e trocam.
Então, esse era o clima de Pelotas. Viagens contumazes das Classes A
e B ao exterior. Pegavam o navio em Rio Grande. Passavam verões no Rio de
Janeiro, os ricos de Pelotas. E havia, na família Xavier, ele alugava um vagão, ia a
Santa Maria, de Santa Maria ia pro Rio de Janeiro, no vagão especial, passava o
inverno e depois voltava. Era completamente diferente. Nos 150 anos de Pelotas,
sesquicentenário, o Clube Comercial, que era uma beleza e está uma ruína, eu me
lembro dele em pleno fastígio, vem uma verba especial agora para ele, porque estão
recuperando muitas daquelas casas, a cidade está muito melhor agora de novo.
Teve muito caída, por causa do Banco Pelotense também, o Getúlio
deixou quebrar o Banco Pelotense, porque a Dona Darcy Vargas, a mulher do
Getúlio, tinha ódio de Pelotas porque o Banco Pelotense demitiu o pai dela. Quando
o banco esteve em dificuldades não havia Banco Central para segurar os bancos,
175
houve uma corrida ao banco e o Getúlio não socorreu porque a Dona Darcy queria
se vingar do banco. E além disso, o que aconteceu foi que o patrimônio do Banco
Pelotense passou para o Rio Grande do Sul. E o Banco do Estado ganhou muito
com isso. O Banco Pelotense tinha em Copacabana chácaras quando Copacabana
não era nada. Vê que patrimônio colossal! Então isso assim era um retrato de
Pelotas.
E uma politização centrada no Estado. Até bem pouco tempo, a situação
não ganhava, ganhava sempre a oposição. Sempre a oposição, sempre a oposição.
Quer dizer, o povo politizado, não está satisfeito, bota outro, tenta outro.
Agora sobre o Pelotense: então era o Ginásio Pelotense, colégio da
maçonaria, único misto, também essa é uma diferença importante. Mensalidades
mais baratas. Classe Média Baixa o buscava. Pela qualidade do ensino, classe A o
elegia para a educação de seus filhos. Então, aí criava no Pelotense uma coisa
diferente dos colégios particulares, porque lá estavam muitos alunos ricos e muitos
alunos pobres. E havia uma visão social diversa, porque não eram só “filhos do
papai”. E depois tinha um outro ingrediente, que eram os judeus. Muitos alunos
judeus, muito exigentes e muito interessados. Então, famílias não-católicas
preferiam aos colégios religiosos. Os comunistas, por exemplo, da cidade
colocavam os filhos no Pelotense. Os comunistas da época eram ateus e contra a
Igreja. Depois, os judeus que eram a opção natural, porque os judeus eram
anticatólicos e os católicos antijudeus. Os filhos deles para onde iam? E os judeus
tinham uma elite intelectual porque estudavam muito e são muito inteligentes, todo
mundo sabe. E precisavam fazer carreira porque eram muito discriminados. A
ascensão deles se faria ou pelo dinheiro ou pela intelectualidade, como foi sempre
em toda parte com os judeus. Não havia formação ou doutrinação religiosa no
Pelotense, diferente do São José. Alunos eram mais liberais e críticos. Grêmio
estudantil muito independente. Organizavam uma passeata e um festival que
escandalizava os setores conservadores da comunidade, era incrível. Quadros
incríveis. Críticas à Igreja, ao Bispo... Uma vereadora era especializada em atirar
ovos podres na passeata do Pelotense (risos)... Que era a vereadora Rose Maria
Campos, que era beata. E eles passavam pelo Gonzaga com a passeata. Para
provocar. E ela ia lá e atirava ovos neles, então era uma loucura! Alunos críticos,
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politização interessante, Clássico e Científico diurno e noturno. Científico
interessados em carreiras como Medicina, Odonto, Agronomia e Engenharia. Muitos
alunos realmente interessados já em Filosofia. Clássico era Direito, História e
Geografia e Magistério. As turmas do Clássico eram muito pequenas e
predominantemente femininas.
- E o que o senhor me diria sobre a extinção que ocorreu depois? O
senhor concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial? Eu sei que é
uma pergunta quase óbvia, já que o senhor é um professor de Filosofia, mas como o
senhor vê este processo de ruptura, de extinção?
- Em primeiro lugar, o seguinte: eu não gostava da sindicalização, da
“Cubanização” do Brasil que estava sendo feita pelo João Goulart. Houve até um
famoso comício da central que determinou a revolução. A revolução não foi
revolução. Foi um golpe de Estado. Uma vez eu fui convidado para falar no Quartel
para oficialidade. E falar sobre revolução, etc. E eu disse que a revolução era fonte
de Direito. Que a revolução era antijurídica, era uma fratura da ordem jurídica. E um
moço lá disse “o senhor não pode dizer isto”. Mas como não posso? Eu já disse
isso! Claro, qualquer revolução. Mesmo que seja um Golpe de Estado, é uma fratura
da ordem jurídica. Porque há uma constituição, houve a quebra da constituição,
para o bem ou para o mal, é uma fratura jurídica. E a revolução ela se torna fonte de
Direito porque ela cria o Direito. O Ato Institucional é Direito. Então, ela é Fonte do
Direito. Agora, aquele Direito é injusto? Pode ser. Não importa. A dificuldade com o
Direito é que o Direito pode ser injusto. E o que o Direito precisa é estar perfilado,
submisso à justiça. O Direito só vale enquanto ele está orientado pela justiça. Se o
Direito deixa de se orientar pela justiça, ele é nefasto, porque ele só é bom enquanto
ele é justo. Quando ele passa a ser injusto, ele passa a ser péssimo. Isso é Filosofia
do Direito. O Direito que a gente chama Direito que é a lei, é chamado de Direito
Positivo. O Direito Positivo pode ser bom ou pode ser mal. Por exemplo, quem é que
acha que o Direito Positivo de Imposto de Renda, com essa quantidade de impostos
que nós temos é bom? Não é bom. Acha isso justo? Não é justo. Entretanto,
prevalece. Porque ele tem a força cogente do Direito. O Direito vive em função da
coação. O Direito sem coação não funciona.
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- Então o senhor considera a extinção do Ensino de Filosofia uma coação
que serviu aos interesses do Estado?
- Claro, foi uma arbitrariedade. Não era interessante. Tudo que te tira a
liberdade é antijurídico. Todo valor gera um desvalor. Nós temos como valores
jurídicos a segurança e a insegurança. Essa insegurança é um desvalor e precisa
ser contido. Então surge a ordem para devolver a segurança. A ordem é um valor e
cria dois valores: um por falta e um por excesso. Essa falta de ordem, é desordem,
outro desvalor. E esse excesso de ordem se chama ritualismo. Quer dizer, a pessoa
só faz o rito, mas não progride, não faz nada. É só rito. Regra e regra. Outro valor é
a paz. Mas a paz cria um desvalor que é a discórdia. A discórdia é um desvalor.
Então você precisa obstar este desvalor com outro valor. O excesso de poder é a
prepotência e a impotência é a falta de poder. Para a cooperação, você não precisa
estar ligado intimamente. Você pode cooperar sem estar vinculado à causa. O
programa da Globo, as pessoas fazem doações , naquele da infância, é
cooperação. Mas você não está ligando para a infância. No horário nobre da
televisão, a minha firma vai aparecer de uma forma muito simpática, é uma
cooperação. Mas não é aquela cooperação desinteressada, que está me faltando a
expressão agora. A gente está interessado no êxito do outro, mesmo que você não
possa ajudar. Alienação é quando você não liga para o outro, não está dando a
mínima. Agora a cooperação às vezes ela é massificação, por excesso. Há um
incêndio. Vai um monte de gente ajudar os bombeiros. Morre gente lá. Ou então, é a
minimização. Porque é uma cooperação tão pequena que não significa nada, só
atrapalha. Por exemplo, criaram aqui uma coisa para pagar a dívida do Brasil. As
pessoas iam no banco, davam um dinheirinho, mas para fazer um sleep ou outra
coisa, era mais caro, não valia a pena. Esses aqui são os valores jurídicos. Mas
onde é que está a liberdade? A liberdade está aqui...
- Em tudo isso...
- É um valor pré-jurídico. Você só pode usar essas coisas, se se tem
liberdade. Se lhe tiram a liberdade, não adianta lhe darem segurança.
- E num processo ditatorial...
- Não tem. Depois e essa conjugação de liberdade mais segurança, mais
paz, mais ordem, mais poder, mais cooperação é a justiça, que é o valor
178
presidencial do Direito. E para você ter Justiça, essas coisas têm que estar
asseguradas. E no momento que tiram, prejudicam todas. O poder, em vez de ser
um valor, para botar ordem na sociedade, passa a ser prepotência. O poder como
nós temos agora, que os bandidos estão soltos aí, prende e solta, prende e solta, o
poder se torna impotente. E o onipotente impotente é um desastre socialmente,
porque você confia no poder. A sua segurança está nas mãos do poder, que é o
Estado. E se o estado não cumpre, então essa é a situação. Então o que aconteceu
em 64? O Jango estava criando uma republica sindicalista, que o empresariado
odiava e realmente ia transformar o país numa Cuba; Cuba é um desastre, eu estive
lá.
Fazem toda uma encenação com Cuba, Cuba é um fiasco. É uma coisa
horrorosa, você não imagina o que é aquilo. Estive lá há dez dias, é uma coisa
horrorosa... sabe quanto ganha um professor lá? Vinte dólares. Você imagina que
nós chegamos lá, éramos reitores e tudo mais, chegamos lá, fomos recebidos e
designaram um professor para acompanhar cada um de nós, porque não se pode
andar sozinho, era uma gentileza ter sempre alguém conosco. Então, nós ficamos
num hotel de cinco estrelas lá, espanhol, o Brasil é que pagava, nós fomos ver as
experiências cubanas lá. Aí, nós fomos pro hotel. E chegamos lá, estávamos
conversando e tudo mais e nós começamos a perceber que quando a gente
terminava as visitas, íamos pro hotel, algumas pessoas iam conosco, ficavam
conversando, a gente mandava buscar sanduíches e coisas, aperitivos e coisas
assim, e eles separavam sanduíches, a senhora que estava comigo colocava na
bolsa. Eu não, não faço muito o gênero, não, mas um outro confrontou: “o que está
acontecendo”? Aí, foi um negócio assim desagradável e responderam “é que a
gente fica com culpa de estar aqui usufruindo e em casa nós não temos nada, nós
recebemos um ovo a cada quinze dias e eu estou comendo estes sanduíches aqui
maravilhosos e na minha casa nunca se tem uma coisa dessas”. Então, o que nós
fizemos? Mandávamos buscar, como se nós fossemos, guardávamos e eles
levavam. Os convidamos para almoçar conosco. Eles não podiam subir no primeiro
andar. “O restaurante é no primeiro andar e nós não podemos subir”.
Esse é o regime que o Chico Buarque acha ótimo. Sabe o que acontece?
O Chico Buarque é cercado de carinho lá e não mostram nada para ele. Foi um
179
governo violentíssimo, que matou gente sumariamente, paredão, paredão,
paredão... Eles não enxergam isso, falta isenção.
O problema do político é que eles não têm isenção. Você vê agora, por
exemplo: roubalheira desgraçada no Ministério dos Transportes, a Dilma botou uma
porção de gente na rua, mas continua com indicação do partido. Por quê? Porque
ela tem 47 deputados nesse partido que não podem sair da aliança. Os Estados
Unidos fazem coisas horrorosas? Fazem coisas horrorosas. Mas a União Soviética
também fazia. Então, todos fazem coisas horrorosas. Você tem que ter isenção para
saber quando fazem bem e quando fazem mal, não pode ser maniqueísta, só o bem
de um lado e o mal de outro... Não... Não existe isso. Agora o que aconteceu com a
revolução? A chamada “revolução” deu um Golpe de Estado, evitou a socialização
sindicalista do país que não estaria de acordo com a maioria, certamente e depois,
não seguiu os seus padrões, tornou-se violenta, criou o problema da liberdade, com
isto, todo o Direito foi arraso, a justiça desapareceu... essa foi a ditadura no Brasil.
Mais suave que outras, a do Franco foi muito pior, a do Fidel foi muito pior, a da
Argentina foi muito pior, porque pegavam os filhos e isto aqui não aconteceu, mas
todas elas são maléficas. No momento em que você sacrificou a liberdade, afastou a
justiça. O poderoso pode estar bem intencionado, mas daí a pouco, desanda tudo. É
que eu acho a Dilma cheia de boas intenções e firmes. E por que ela está vacilando
agora? Isto é um vacilo, ela tinha que ter demitido. Então, demite toda a cúpula do
ministério e Ideli não sabia de nada? Então, ela obrigou a ele a se demitir. Mas
ainda está sofrendo a pressão do partido porque ela manteve o PR no governo. Não
podia botar ninguém do PR. Sim, pois a quantidade de corrupção é imensa. E o que
está prejudicando muito o país é a corrupção. A corrupção e a violência estão
terríveis.
- E como o senhor enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
- Eu acho altamente salutar. É o que se fazia antigamente. Com toda a
liberdade, se ensinava. Eu não fazia pregação religiosa, nem ideológica, mas queria
que eles tivessem do ponto de vista ético uma noção clara da necessidade de ser
decente. Isso eu batia insistentemente. E bato toda a vida nisso. Dessa ética com
Deus, sem Deus, ética, fazer o bem, nos moldes do Imperativo Categórico. Eu sou
compelido a fazer o bem. Universal. Agora, por que motivação eu faço o bem? Aí é
180
subjetivo. Qual é o bem? O que a comunidade acha que é o bem? O que eu acho
que é o bem? O que é correto? Então, eu me submeto à minha consciência e faço o
bem. Agora, o problema são os desvios egoísticos que todos têm.
Você vê o seguinte: eu fui desembargador, sou desembargador
aposentado e eu, com relação a valores num julgamento, eu posso ser imparcial,
quer dizer, não favorecer nenhuma parte. Mas não posso ser isento. Porque eu não
posso ser isento aos valores. Eu não posso ter isenção em relação a um crime, por
exemplo, a um estupro. Eu posso ser isento em relação a um estupro? Não posso.
Posso ser imparcial. Quer dizer, deixar que a pessoa se defenda, apresente as
provas, o Estado quer condenar, a pessoa quer se defender, dou oportunidade a
que ele se defenda, mas eu não estou compactuando com a ação do criminoso. Eu
não sou isento em relação a valores, nunca sou. Sempre estou de um lado. Sempre
estou comprometido com algo, com aquilo que me parece justo. Ou então, com
nenhum dos dois, porque cansei de julgar de modo a desagradar as duas partes. É
muito comum acontecer isto. Porque cada uma das partes quer tudo para si. E o juiz
às vezes entende que em parte procede a queixa e em parte não procede. Também
não vai ser sempre salomônico. Como é que você vai estabelecer mesótes em uma
situação em que uma pessoa é completamente inocente e a outra é completamente
delinquente? Aí, tem que ser rigorosamente a favor daquele que é inocente. E
rigorosamente contra o que é delinquente. Agora, em jogo patrimonial, por exemplo,
quem sabe, os dois tenham parte da razão. E outros também estão abusando das
suas próprias razões. Isso é curioso.
- E que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje?
- Eu estou há muitos anos focado na Filosofia do Direito. E o meu foco é
justamente a Teoria da Justiça.
- Mas assim, numa situação hipotética, se o senhor fosse lecionar
Filosofia novamente...
- Eu trabalharia, com trabalhei, para a juventude esclarecer os objetivos
da Filosofia, nesses objetivos mostrar a utilidade da Filosofia, que não é uma coisa
para sábios, não é uma coisa para pessoas fora de série, ou por sua sapiência ou
por serem desligados do bom senso. Muitas vezes apresentam o filósofo desligado
181
dos bens materiais completamente, essa visão do filósofo necessariamente
desleixado, nada disso. Eu iria dizer que ela é uma coisa que pode ser pragmática
no sentido da gente aplicá-la no dia a dia. Depois desse conceito, ingressaria numa
axiologia, eu não me preocuparia tanto com a metafísica, porque a metafísica vai
levar necessariamente à alma, vida futura, é evidente que haverá a religiosidade.
Por isso é que eu não dava Metafísica mas dava Ontologia, que é uma forma da
Metafísica , pois trabalha com o ser, o não-ser, etc. Mas que eu evitava certamente
esse foco na religião, que é um outro setor da vida. Coloco fora do âmbito da
Filosofia estrita.
Eu trabalharia imensamente com Ética, pois estamos todos muito
necessitados, muito carentes. Agora você vê o seguinte: hoje colocaram os
containers na cidade, que já tem em Pelotas. Vandalizaram os containers,
incendiaram os containers, fizeram tudo. Agora, a troco de quê? Completamente
sem sentido. Uma coisa que é feita para o bem comum, quem é que pode ser
prejudicado por isto? Os telefones públicos, na vila, um único telefone público,
quebram todo. Não tem sentido. O único sentido está na revolta. Na inadaptação da
pessoa ao meio social.
Então, no colégio tem que se mostrar isto. E a Filosofia não precisa ser lá
em cima, a Filosofia tem que começar embaixo, como estão fazendo agora. O que
seria importante é que a pessoa desenvolvesse o altruísmo, um freio ao egoísmo.
Se você deixar o egoísmo desenfreado, nunca vai haver paz. Porque se você
entrega a Justiça à vontade de cada um, entrega o bem comum à regras de cada
um, o teor de justiça vai cair extraordinariamente, porque o egoísmo vai prevalecer
sobre o altruísmo. E o egoísmo não se interessa em ser justo.
A Irmã Dulce nunca seria um exemplo do egoísmo, São Francisco de
Assis, etc. As pessoas que são realmente maravilhosas independentemente ou não
de serem religiosas. As pessoas que se doam, que dão de si, isso é que é
fundamental. Porque se vê muitas pessoas religiosas, que são imensamente
egoístas. Não significa nada. O sujeito é malvado e acha que é religioso. Se diz
cristão quando ele age exatamente contrário à doutrina cristã. Exatamente contrário.
Imagina que São Francisco de Assis teve grande problemas com a Santa Sé, que
182
não era tão santa assim. Se ele não tivesse “seduzido” o Papa ele teria um destino
terrível.
Então, isso é uma coisa que eu acho: se a gente pudesse incutir nas
crianças que é bom fazer o bem, seria fundamental. E esse é o papel da Filosofia.
Ela é que pode fazer isto. Os professores de Filosofia, só que eles têm que serem
exemplares. E todos nós, para sermos exemplares, é muito difícil. A maturidade nos
deixa melhores, eu acho. Nos deixa melhores porque a gente já superou muitos
problemas, muitas dificuldades. Mas depende, porque você pode ter uma
maturidade amarga e você fica pior. É uma questão de como vou usar a minha
liberdade.
- Uma última questão: é o seguinte, na LDB de 1961 a Filosofia passou de
disciplina obrigatória para uma disciplina optativa nos estabelecimentos de ensino. O
Colégio Municipal Pelotense, por isso também é o objeto da minha pesquisa, porque
valorizou durante todo esse período o Ensino de Filosofia e só deixou de ministrar o
Ensino de Filosofia quando realmente foi proibido, tanto que em 89, quando
nenhuma escola tinha Filosofia, o Pelotense já tinha retornado. E, no passado, só
deixou de ministrar em 71, foi até as “últimas”. Em 61, já era optativa e algumas já
estavam retirando a Filosofia.
- Agora, se você bota como optativa a Filosofia, nas escolas particulares
ela não vai funcionar nunca. Tem que pagar mais um professor, mais material
didático, conflita com o horário, é muito problemático. Eu acho que ela deve fazer
parte de um currículo obrigatório. Os fundamentos filosóficos têm que transitarem
entre os alunos desde pequenos. Que é para ver se a gente fica melhor do que é.
Porque as pessoas com conhecimentos filosóficos, sobretudo de Axiologia e de
Ética, ficam melhores, têm a consciência disso.
- E assim, lá em 1961, quando ela passou de disciplina obrigatória ao
posto de disciplina complementar, ou seja, optativa, mais especificamente, no
contexto do Colégio Pelotense, como o colégio reagiu a esta modificação? Houve
alguma discussão em se retirar? Ela se manteve até 71, mas eu queria saber se
houve alguma discussão, do tipo “vamos tirar, não vamos”... Ela tinha valorização
por parte da Direção, esse apoio em querer que ela ficasse, permanecesse?
183
- Enquanto eu estive no Pelotense, muito, muito. Eu, enquanto professor
de Filosofia, no caso, eu era exigente, reprovava, frequência obrigatória e tinha o
mesmo status das mesmas disciplinas. Era uma congregação, eu era uma voz
autorizada, como qualquer outra, ouvido...
- Quem era a Direção no seu período, o senhor lembra?
- Era o Raul Iruzun. O pai dele, Gregório Iruzun, foi diretor do Pelotense
por muitos anos. E o Raul era professor de Geografia, chegou à Direção e ficou
alguns anos na Direção. E era uma pessoa muito razoável e inteligente, que
considerava muito os professores. Era uma pessoa apreciada pelos alunos e pelos
professores. O pai dele fazia parte daqueles professores que eu te disse, Palla
Alves, o Prof. Joaquim, dava francês. Mas eles substituía qualquer professor de
qualquer disciplina. Faltava professor, ele ia lá e dava História, Geografia, aquele
tipo de professor que conhecia razoavelmente, pela cultura humanística, o
conteúdos das disciplinas. Como hoje uma pessoa bem informada em vários setores
pode fazer. Só que hoje há muito mais especialização do que havia. Depois, tiraram
o Latim também, tiraram o Francês...
O professor Felisberto Machado é que era o nosso latinista. Depois, o
Victorino Piccinini e o Professor “Machadinha”, era um grande latinista e um
professor muito bom. O Victorino Piccinini, que tinha sido seminarista, que em geral
dos professores de latim eram ex-seminaristas. Eles iam pro Seminário, saíam do
seminário e vinham trabalhar na manutenção e trabalhar como professores. Os
alunos gostavam do latim do Piccinini. Você imagina: um professor de latim e os
alunos gostavam das aulas dele? Ele também foi meu aluno, porque se formou em
Direito. Acho que ele ainda está em Pelotas ainda. Extraordinário professor, notável
professor. Era um homem muito culto, jovem. A cultura a gente tem que medir um
pouco em relação à idade. Se a pessoa é muito jovem tem pouco tempo para
amealhar tanto conhecimento. E ele já era muito bem informado e muito bom
professor. Depois, com a base que ele tinha do Latim, ele também era muito bom
professor de português. Então, no Pelotense, havia um clima muito sério de
trabalho, muito bom. Professores muito bons, claro que tínhamos alguns negativos.
E tínhamos pessoas de muita representatividade social, até nas profissões liberais,
advogados... mas a grande maioria dos professores era muito séria, muito exigente
184
e muito exigida também. Mas também, alguns não precisava exigir. Por exemplo,
tinha um professor de português, de física e matemática, o professor Rafael
Caldellas. Um homem extraordinário e de uma responsabilidade funcional notável.
Foi Diretor também, depois do Iruzun. Outro que trabalhou muito lá e muito bem foi
o Paulo Marcant Gonçalves. Chamavam de Marcant. Imagina que ele era formado
em Direito e chamavam ele de “Seu Paulo”...
185
Entrevista com o Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite
(Ex-Professor de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense em 1968)
1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?
Terminei o segundo grau em 63. Fui aluno de Arabela Chiarelli no CMP,
professora de Filosofia no início da década de 1960, que atualmente está residindo
em Brasília. Ingressei no curso de Direito na UFPel e Filosofia na UCPel em 64,
paralelamente.
Me formei em Filosofia em 68 e comecei a trabalhar no Pelotense em
1966, na disciplina de Educação Artística. Assumi a disciplina de Educação Artística
porque, quando aluno, eu era muito ligado ao teatro dos Gatos Pelados; fui o
fundador do teatro dos Gatos Pelados. Tinha uma certa experiência na área teatral,
a disciplina de Educação Artística era uma disciplina nova e não havia pessoas
tecnicamente habilitadas a lecioná-la ou formalmente habilitadas; fui convidado a
trabalhar lá, na matéria de Teatro, a partir de 1966.
Mas eu queria mesmo era lecionar Filosofia. Em 68, me graduei em
Bacharelado e Licenciatura em Filosofia e comecei a dar aulas de Filosofia ainda
antes de estar graduado.
Depois, o novo diretor, Platão, me chamou para o cargo de Orientador
Educacional. Nessa época, essas profissões de Orientador Educacional não
estavam ainda regulamentadas, então, de um modo geral eram ocupadas por
pessoas que tinham um bom relacionamento com os alunos. E eu era bem jovem,
tinha sido aluno do colégio, trabalhava em grupos extra-classe, me identificava
186
muito com o Colégio Pelotense, então fui trabalhar no Serviço de Orientação
Educacional (SOE) e larguei a disciplina de Filosofia.
Tive pouco tempo trabalhando com a disciplina de Filosofia, não me
lembro bem exatamente os anos, foram dois ou três anos, depois de 1968, que foi o
ano do AI-5 (Ato Institucional Nº 5), quando já havia muitas restrições à liberdade.
Então, essa é a maneira como eu entrei nessa disciplina.
Essa disciplina era ministrada no curso clássico. Antes era dividido em
“Ginásio” e “Colégio”, o “Ciclo Ginasial” e o “Ciclo Colegial”. O “Ciclo Ginasial”
terminava na quarta série e depois começava o “Ciclo Colegial”. O “Ciclo Colegial”
tinha diversos encaminhamentos, um se chamava “Científico” para aqueles que
queriam cursar disciplinas exatas, Engenharia, Medicina, coisas desse tipo, era
direcionado ao estudo das ciências biológicas, químicas, físicas. E o “curso
Clássico” que era aquele que direcionava às humanidades. A disciplina de Filosofia
existia nos três anos do “Colegial Clássico” e no último ano do “ Colegial Científico”.
Eu achava interessante perceber que os alunos do “Científico”, – talvez por uma
seleção a que eles já se impunham porque os vestibulares para as faculdades de
ciências chamadas exatas eram mais exigentes –, eram os melhores.
As minhas aulas de Filosofia, eu tenho bem essa recordação, eram mais
interessantes nos cursos “Científicos”, que, teoricamente, seriam os menos
interessados, meio contraditório. Os alunos das humanidades não eram tão
interessados pelas questões filosóficas como os alunos do “Científico”. Era um
pouquinho paradoxal, mas é assim que era. Acho que os alunos do “Científico”
eram mais estudiosos, a competição nos vestibulares era muito forte. Os das
humanidade eram alunos, em uma visão geral, com exceções, que tinham menos
187
pretensões, uma espécie de auto-exclusão. Percebia que os alunos do “Científico”
eram mais dispostos a aprender e mais capazes de aprender, embora para eles era
uma espécie de um “lustro” intelectual, não era tão operacionalizável.
2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de
Filosofia?
Já respondida pelo entrevistado.
3. Quais são suas recordações dessas aulas?
Já respondida pelo entrevistado.
4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?
Dentro dos cursos da Católica,(...) não havia o curso de Psicologia em
Pelotas. O curso de Filosofia da UCPel, não era muito voltado pros seminaristas,
naquele tempo. Era um curso aberto, a maior parte das pessoas eram moças, havia
um pouco essa questão de gênero, havia só dois colegas homens. Não havia o
curso de Psicologia e uma boa parte do curso eram cadeiras de Psicologia e
Sociologia. Até porque a Filosofia estava um pouco “embrulhada” com a Psicologia
e com a Sociologia, eram coisas que participavam, digamos assim, do mesmo
universo científico e cultural. Eram matérias das Ciências Humanas, tidas como
não-experimentais, já eram vistas como ciências, mas no Brasil a coisa foi mais
devagar. Assim como uma boa parte dos sociólogos do Brasil eram juristas ou
professores de Direito. Não eram áreas bem delimitadas. Essas ciências sociais e
psicológicas custaram um pouco mais a se desenvolver e a se fixarem dentro das
universidades. Estudei muito a Psicanálise naquele tempo. Os alunos que pendiam
188
para Medicina, eram os que mais queriam conhecimentos de Psicanálise, me
lembro bem.
Estudei também muita Sociologia, as Ciências Sociais, em geral. Aprendi
muito sobre o Marxismo, porque era uma curiosidade grande dos alunos nesse
tempo. E isso era um pouquinho perigoso.
Eu fui demitido em 1974, por razões políticas. Saí por uma conjunção de
dois motivos: ia fazer uma pós no Canadá em Sociologia e porque tinha assumido,
no Governo da Prefeitura de Pelotas, um novo prefeito e um Secretário de
Educação muito “de direita”, que tinha contas a acertar com alguns professores do
Colégio Pelotense. Então, ele fez uma “limpa” no Colégio Pelotense e eu fui um dos
que saí nessa ocasião. Mas o período coincidiu com meu interesse de estudar fora
do Brasil, o que foi muito bom.
Eu não tinha muito a preocupação de ensinar a História da Filosofia, as
grandes linhas do pensamento filosófico, mas eu gostava muito de falar sobre
Teoria do Conhecimento, Epistemologia. A Psicanálise era muito querida pelos
alunos e a Sociologia, com um viés marxista era um pouco de meu interesse. Eles
também tinham bastante interesse na Filosofia Oriental. Na época tinha um autor
chamado Herman Hesse, que escrevia livros de grande sucesso, o “Sidarta” é um
exemplo. Os alunos gostavam, era moda. Os Beatles encontram gurus orientais, o
Movimento Hippie era também orientado por essas filosofias, por essas maneiras
de pensar e eu me lembro de ter estudado um pouco isso e de ter passado para os
meus alunos algumas dessas coisas.
Nesse meu tempo, havia duas formas de protesto em que a juventude se
engajava: uma era a política, através da militância política e que fazia uma
189
contestação do regime e de todo o sistema político ocidental e econômico. E outra
era o movimento de contra-cultura. O pessoal da esquerda achava que isso era
alienação. Eu estava mais no primeiro, mas olhava de longe e simpatizava com
essa outra visão, em um tempo em que eu contestava tudo e todos.
5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
Fazia com que lessem algumas coisas, alguns textos que eu
selecionava, alguns alunos – eles mesmos – preparavam exposições deles em
aula. No geral, eram aulas expositivas, os alunos apresentavam aulas, às vezes
com a minha condução. Provas com perguntas discursivas em que o aluno tinha
que apresentar uma resposta dissertativa.
6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?
Teoria do Conhecimento, Gnosiologia, Filosofia Oriental, Marxismo, eu
gostava que eles entendessem o que eram Classes Sociais, como se formavam as
Ideologias, os fundamentos da Psicanálise, Realismo Aristotélico, Idealismo
Platônico.
Por uma questão pessoal, me vinculei muito ao Existencialismo, li muito
sobre Sartre, sou um sartriano, fiquei muito impregnado de Sartre, porque o Sartre
fez uma “ponte” entre a Filosofia e o Marxismo e eu gostava muito disso.
Não lembro bem de todos os conteúdos, mas acho que era isso.
7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?
Eu gostava muito de problematizar o conhecimento. Na UCPel, meus
professores alguns eram despreparados, outros eram humildes e estudavam junto
com os alunos e outros eram excepcionais, conhecedores da Escolástica. O Padre
Egídio conhecia o Tomismo profundamente. Líamos livros de modo geral de
jesuítas. Um outro professor excelente que eu tive foi o Padre Guilherme, cujo
sobrenome não me lembro. Esse falava com um sotaque alemão e penetrou
190
profundamente na Filosofia Medieval, Guilherme de Ockham e outros tantos e eu
acho que ele me elegeu como a pessoa que queria que aprendesse ali. Então
ficamos muito amigos, ele foi embora do Brasil e depois disso eu sinto muitas
saudade dele. (O entrevistado se emocionou). Emprestei livros do Sartre a ele. Ele
achava o Sartre um horror, é claro. Emprestei Sartre e Marcuse para ele. Ele queria
aprender esses autores e nunca me devolveu os livros. (Risos)
Fui orador de turma da formatura do curso de Filosofia e falei sobre
liberdade dias depois do AI 5, quase saí preso. E Marcuse estava presente no meu
discurso. Marcuse foi nessa época que apareceu, eu fiquei muito fascinado e o
interessante é que o Padre Guilherme, um jesuíta, escolástico, tomista, quis
aprender Marcuse, eu achei isso uma coisa fantástica. Hoje, olhando as habilidades
que tenho, que eu acho que tenho, entre as quais um bom raciocínio jurídico (o
entrevistado é também Advogado), eu acho que devo a esses professores da
Escolástica, porque não há nada melhor para organizar um pensamento do que a
Escolástica, é incrível, impressionante. Tudo está dentro de categorias pré-
determinadas e eu acho que como um instrumento para o pensamento, eles foram
muito importantes para mim esses dois professores, o Padre Egídio e o Padre
Guilherme.
8. O professor usava algum livro didático? Qual?
Havia um livro que eu mandava lerem, de Gnosiologia, que era o
Bochenski. Esse livro era muito bom porque era acessível a pessoas que não eram
do campo da Filosofia.
191
Também tinha um livro muito bom, que eu tirava os textos para os alunos,
que era o Manuel Garcia Morente, de Introdução a Filosofia, era de uma certa
tendência na Espanha a Julian Marias, Ortega y Gasset e havia também um
existencialismo católico, havia alguns existencialistas acolhidos pela igreja.
9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?
Tenho muitas dúvidas sobre o que é uma aula crítica; às vezes, eu penso
que as pessoas que querem fazer uma aula crítica querem fazer uma crítica de
acordo com o que eles acham que é certo. Acho que uma formação crítica é aquela
que dá ao aluno a capacidade de fazer julgamentos. Quem fala em Educação
Crítica de modo geral quer se dirigir à esquerda, quer impregnar a educação de
acordo com uma perspectiva ideológica que é a sua. Fico pensando, se um aluno
se inclina pra um pensamento conservador, que ele tem todo o direito de pensar,
dizem que ele não é crítico. Essa categoria, tal como ela é colocada hoje, a partir de
uma ideia que eu vejo de quem fala isso quer orientar para um determinado
direcionamento ideológico.
Na época, considerando quem eu era e o tempo em que eu vivia, eu não
tenho dúvida que eu orientava meus alunos a contestarem o “status quo” e para que
fossem revolucionários. Queria perpassar um pouco uma mentalidade
revolucionária. Hoje, eu não faço mais isso.
Naquele tempo, havia uma bipolarização: a juventude ou estava engajada
nessas coisas ou estava no movimento de contra cultura e claro, havia também
aqueles outros que passavam sem se preocupar, os mais alienados. Eu, na época,
gostava de tudo que era de protesto. Eram músicas de protesto, era educação de
192
protesto, era protestar contra os professores, essa coisa toda. Hoje não existe mais
isso. Não sei se foi bom ter terminado com isso, mas hoje certamente não existe
mais isso. Isso também, por outro lado, cria novas prisões porque é verdade que a
gente sofria tolhimento por parte das autoridades no que a gente quisesse dizer e
cantar, mas nós também tolhíamos os outros. Éramos tão anti-liberdade quanto os
outros. Na época, tinha a expressão “patrulhamento ideológico”, mais ou menos
equivalente ao “politicamente correto” de hoje. Minha simpatia mesmo pelo
movimento hippie sofria patrulhamento ideológico, era tida como alienação. Gostar
de música americana também era tido como alienação. Estávamos sempre nos
policiando: não pode! As pessoas tinham que ser feias, no mundo da cultura
sempre é assim, as pessoas têm que se encaixarem, quem não se encaixa, sofre
um patrulhamento ideológico. Assim como tinha a patrulha do exército, havia
também a patrulha ideológica.
10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de
consciências críticas? Por quê?
Lembro de alguns desses alunos que se tornaram psicanalistas. Tenho
impressão, no clássico, de que as alunas, eram quase só gurias, muitas foram ser
professoras e levaram a capacidade de julgamento. Acho que sim, algumas
pessoas, que eu sei, conheço elas, me encontro com elas, não posso atribuir que
tenham sido as minhas poucas aulas de Filosofia, mas eu acho que são pessoas
representativas de uma certa época, de uma certa educação que naquela época se
dava. É difícil dizer qual o percentual de alunos que passam pela gente que
reproduzem ou que não reproduzem a maneira como a gente gostaria que eles se
193
caminhassem, esse percentual é relativamente pouco, um percentual pequeno,
mas, se numa turma de trinta alunos, houver dez que tenham um
comprometimento, já está muito bom. Sempre têm aqueles que não estão
interessados. Mas algumas pessoas que passaram por mim do tempo do
Pelotense, que eu me lembro, algumas que eu conheço e preservo amizade com
elas até hoje são pessoas de boa qualidade moral e intelectual.
11.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?
Já respondida pelo entrevistado.
12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?
Eu fui professor na Ditadura, peguei bem o momento dos “anos de
chumbo” e fui vítima dessa perseguição que começou no governo Ary Alcântara (ex-
prefeito de Pelotas). Quando veio a Revolução em Pelotas, o prefeito era o Edmar
Fetter, tio do atual prefeito, que depois veio a integrar a ARENA e foi bem pacífico,
até atribuem a ele a salvação de muitos perseguidos pelo Regime Militar. Ele era
um cara bem democrático mesmo, não se aproveitou do Regime pra acertar contar
com seus adversários. Mas depois dele, veio o Ary Alcântara, um prefeito que na
área da Educação fez um ajuste de contas com as pessoas que eram dissidentes
dele. Nessa época, é a minha saída.
13. Como a Filosofia era vista nesta época?
Havia muito mais espaço para a reflexão filosófica. Havia mais aletheia,
esse espanto.
194
Não sou mais um professor de Filosofia e acabei indo pra Sociologia no
Canadá (Pós-Graduação), a Filosofia eu realmente deixei de lado, depois trabalhei
como professor de Sociologia e Política na UCPel e na UFPel.
No campo da ciência, da tecnologia, tantas coisas novas acontecem e em
parte diminuíram a predileção filosófica, o interesse por essas coisas. A
possibilidade de conhecimento instantâneo que a internet tornou, no campo das
Ciências Biológicas, o controle cada vez maior da vida, sendo quase que
inteiramente devassada a mesma, a reprodução em laboratório e o domínio dessas
técnicas, falando na década de 70. Já se passaram 40 anos e 40 anos é uma coisa
impressionante, incrível a aceleração da mudança. Tenho 64 anos e, nos dez
últimos anos, a aceleração é impressionante. Essas coisas todas, pelo menos a
Filosofia que eu estudava no tempo que era estudante ficou muito prejudicada.
Deve haver hoje uma nova Filosofia, novos autores devem estar refletindo sobre
isso, mas aquela linha daquele tempo ficou muito prejudicada. Hoje tudo é muito
fugaz, muito acelerado. A Filosofia que chamavam de Filosofia Pura, a Escolástica,
em que se estabeleciam as premissas e o resto era tudo dedução racional, por isso
chamava Filosofia Pura considerava que a realidade estava fora daquilo, o erro era
da realidade, o pensamento estava correto. (Risos) Na minha opinião, aquela
Filosofia hoje não teria a mínima chance, aquela Filosofia que eu aprendi
certamente está completamente superada hoje.
14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?
Havia um certo estereótipo do professor de Filosofia, mas o professor de
Filosofia era bastante respeitado.
195
15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua
formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade? -
16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da
ausência desse ensino para a sua formação?
Tenho três filhos, dois bacharéis em Direito e outro Agrônomo, meus filhos
também não tiveram Filosofia e não têm gosto pela Filosofia. Então, de perguntas
do tipo “o que é o conhecimento?”, eles foram privados .
17. Se você não teve contatos com a disciplina de Filosofia, o que pensa
sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política
Brasileira?
Sempre tive pavor dessas coisas, sempre achei isso disciplinas da
Ditadura,que realizavam lavagem cerebral. E no tempo em que elas conviveram
com a Filosofia, havia uma grande animosidade entre os professores e essas
disciplinas, eram disciplinas completamente acríticas. Nem conservadorismo, nem
revolucionarismo, eram do tipo “é assim e fim de papo”. Havia uma dificuldade de
convívio entre os professores de Filosofia, os que gostavam de Filosofia e os que
davam essas disciplinas.
18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?
A Filosofia do meu tempo foi a Filosofia da Metafísica. Hoje a Metafísica
está jogada fora. Filosofia sem Metafísica não é Filosofia, é outra coisa. Por outro
lado, a Metafísica ficou muito atingida pelo desenvolvimento das ciências. As
perguntas que se faziam na Cosmologia hoje parecem que ficam meio sem sentido
quando a gente coloca naves aí, observatórios espaciais dando informações que a
gente ficava especulando sobre elas. Sei que existem grandes reflexões sobre a
comunicação, sobre a linguagem, grandes pensadores que eu não conheço, ouço
falar, acho que tem muita gente que fala a Filosofia de uma maneira que todo
mundo sabe, mas que ninguém entenda, é um problema dos professores de
Filosofia de tornar difícil aquilo.
196
Seja lá o que for, tu chegares numa sala de aula e, até para refletir sobre
o caráter ético, isto é correto, isto não é correto, o que é o correto. Nesse campo da
moral, os estudantes de Direito mesmo, que não tenham a capacidade de julgar
para lá do Direito, para lá da lei, ficam muito presos.
Eu acho fundamental a Filosofia. Em todos os campos, a Medicina, um
professor de Matemática, a Filosofia abre a perspectiva de discussão. Filosofia é
fundamental.
19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
Vejo com bons olhos, acho que é bom. Às vezes, essas matérias
curriculares são enxertadas sem muito comprometimento. Têm que ser colocadas
com comprometimento; se não houver um verdadeiro comprometimento, não sei.
20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao
Ensino de Filosofia nos dias de hoje?
O questionamento filosófico, a indagação, a visão crítica das coisas eu
tenho, achar que por detrás daquilo que parece há alguma coisa que não se mostra
e que a gente tem que ir buscar, eu gostaria, se fosse professor de Filosofia hoje, de
questionar certas coisas, essas coisas todas que são questionáveis, se isso é bom,
mal, correto, incorreto, isso é decente, indecente, hoje até mesmo se vendo o
debate político que aconteceu recentemente nas eleições, está tudo muito
estandartizado, isso é bom, isso é mal e as pessoas não discutem nada, a Filosofia
poderia dar essa boa mexida. Não só a Filosofia, todos os professores, todas as
disciplinas, desde as mais técnicas até as mais humanísticas deveriam desenvolver
aquilo que está na aparência e buscar as coisas que estão lá, mais escondidas, são
as mais interessantes. Mas a Filosofia é a que tem o papel mais importante nesse
sentido. Mas isso, eu não estou habilitado a falar, deixo bem claramente isso, sou
um professor de Filosofia “arquivado”.
197
Entrevista com a Profª Gracia Passos
(Ex-aluna do Colégio Municipal Pelotense em 1970)
1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?
Minha ligação foi por um curto espaço de tempo, no 1º ano do antigo
Curso Científico. Em 1970.
2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de
Filosofia no CMP?
Em 1970.
3. Quais são as suas recordações dessas aulas?
O Ensino de Filosofia para mim, foi muito importante, pois até então eu
não sabia bem o que era Filosofia. A partir desse contato que eu tive, desenvolvi um
gosto todo especial pelas Ciências Humanas, comecei a questionar mais as coisas
e a ver de um outro modo a vida e comecei a pesquisar por mim mesma livros
sobre Filosofia, porque gostei de Filosofia e fiquei com “sede” de aprender mais.
4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?
Pra mim foi um começo para eu saber o que eu queria escolher como
futura profissão. Como a Filosofia trata de assuntos muito humanos e questiona
sobre tudo, sobre a vida, sobre nós mesmos, para mim foi a primeira porta para eu
descobrir quem eu queria ser futuramente.
5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
198
A professora dava uma aula expositiva e pedia leituras. Lembro de ter
lido “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, a pedido da professora de
Filosofia.
6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?
Lembro de alguma coisa relacionada ao belo, a conceitos relacionados à
estética.
7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?
Lembro de a professora ter mencionado Sócrates nas aulas.
8. O professor usava algum livro didático? Qual?
Não lembro de nenhum em especial.
9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?
Aula tradicional.
10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de
consciências críticas? Por quê?
Para a minha formação pessoal, contribuiu, não como pessoa crítica, mas
como pessoa, em geral.
11.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?
Nessa parte política, lembro que existiam determinados temas que a
gente não podia falar. Não se podia ter um diálogo aberto sobre tudo, em função do
regime ditatorial.
199
12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?
Fui aluna no Período Ditatorial.
13. Como a Filosofia era vista nesta época?
Davam muito pouco valor para a Filosofia, a maioria das pessoas achava
que ela era desnecessária.
14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar? -
15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua
formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?
Comecei a me questionar sobre quem eu era, como eu queria ser e a
partir daí se deu a contribuição da Filosofia na minha formação humana.
16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da
ausência deste ensino para a sua formação? -
17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas
de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira
As aulas de Educação Moral e Cívica e OSPB eram muito boas em
relação ao ensinar o respeito e a valorização à pátria, contudo, tinha o outro lado
que era o de quererem fazer os alunos acreditarem em coisas que eram bem
questionáveis.
18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Não, de maneira nenhuma. Não concordo porque era de interesse do
governo da Ditadura que, quanto menos os alunos aprendessem a pensar, seria
melhor e quanto mais pudessem ser usados como objetos em vez de pessoas e
200
mais manipulados fossem, melhor. O Ensino da Filosofia era visto como perigoso
para os governos da época.
19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
Acho que é um grande avanço para o bem do aluno e para o bem de
todas as ciências, já que todas elas têm suas origens nas indagações filosóficas.
20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao
Ensino de Filosofia nos dias de hoje?
A mudança fundamental é fazer o aluno pensar criticamente e tirar a
Filosofia somente do mundo das ideias e trazê-la para o mundo concreto do nosso
dia-a-dia.
201
Entrevista com o Prof. Dr. Manoel Vasconcelos
(Ex-professor de Filosofia no CMP em 1989 e o primeiro professor de Filosofia após a volta da Democracia)
1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?
Nasci em 1964. Formei-me em Filosofia em 1983 e, nessa época, a
Filosofia era totalmente ausente do Ensino Médio. Algumas poucas escolas tinham
Filosofia. Comecei a trabalhar com Filosofia em 1986 na UCPel nos cursos de
Estudos Sociais, História e Geografia.
2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de
Filosofia no CMP?
O CMP foi a primeira escola em Pelotas que retornou o Ensino de
Filosofia, em 1989, depois da Ditadura. Oportunizaram duas aulas por semana na
carga horária para os terceiros anos do Ensino Médio, por acreditarem que os
alunos já estavam em uma fase de amadurecimento maior. Não tinham professores
de Filosofia. Fui convidado e o convite se deu a partir do diretor Bonini. Eu era
professor da UCPel e fui cedido através de um empréstimo de professores. O Prof.
Isvani, que era do CMP, foi cedido para a UCPel e eu fui cedido para o CMP; foi
uma troca. Trabalhei até 1991, até passar no concurso da UFPel. Era professor da
Católica cedido no Colégio Pelotense, sem vínculo com a Secretaria de Educação.
Na época, eu tinha 25 anos e estava com toda vontade de trabalhar. Foi das minhas
melhores experiências educacionais e tenho muito orgulho de ter participado desse
processo, de ter sido o primeiro professor de Filosofia depois da Ditadura e de ter
trabalhado no CMP.
3. Quais são as suas recordações dessas aulas?
Os Alunos eram muito receptivos. Estavam um pouco angustiados pelo
vestibular e alguns questionavam um pouco as aulas de Filosofia no currículo, por
não cair Filosofia no vestibular. Mas a grande maioria era muito receptiva e aberta.
202
Os alunos estavam sedentos por crítica e participavam bastante. As lembranças são
muito boas.
4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?
Muito bom e mais ainda por ter sido algo novo. Não existia programa, eu
mesmo fazia meus planos de ensino e escolhia os conteúdos. Tive ainda todo apoio
possível da direção da escola.
5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
As aulas eram expositivas, eu trabalhava com textos e os alunos
apresentavam seminários; tudo a partir de temas filosóficos.
6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?
Introdução à Filosofia, Ética, Antropologia Filosófica e História da
Filosofia.
7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?
Não, foi trabalhado mais a partir de temas mesmo. Os conteúdos que
tiveram mais destaques foram os de Ética e Antropologia Filosófica.
8. O professor usava algum livro didático? Qual?
Não, nenhum em especial. Mas lembro de já trabalhar com a obra
“Filosofando”, de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Os demais, nunca gostei de
trabalhar e a Chauí ainda não tinha escrito “Convite a Filosofia” nessa época.
9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?
Crítica. Especialmente pelo contexto da época. Era a época do Governo
Sarney e depois do Governo Collor.
203
10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de
consciências críticas? Por quê?
Sim, mas não a Filosofia isoladamente e sim em conjunto com as outras
disciplinas. A escola era muito democrática, o que contribuía para um ambiente
favorável para isso. Tudo na escola era votado, escolhido por todos. O conjunto
disso tudo é que favoreceu a criticidade.
11.Qual foi a influência do contexto histórico nestas aulas?
Era a época de abertura política e o fim da Ditadura. Influenciou
diretamente. O pessoal queria questionar. Era também o período do Governo
Sarney e teve ainda o processo de eleições do Collor, primeiro presidente eleito
pelo povo a assumir o cargo, já que com as Diretas Já, não foi possível pela morte
de Tancredo Neves.
12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?
Fui professor no período da Democracia. O primeiro professor depois da
volta Democracia.
13. Como a Filosofia era vista nesta época?
Já respondida pelo entrevistado.
14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?
Era, tanto era valorizado que davam duas horas por semana para o
professor trabalhar. No terceiro ano, ainda, que é um ano difícil por causa do
204
vestibular. A Direção argumentava a escolha pelo 3º ano em virtude do
amadurecimento do aluno.
15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua
formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?
16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da
ausência deste ensino para a sua formação?
Não tive Filosofia na minha formação inicial.
17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas
de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira?
A Filosofia faltou e prejudicou toda uma geração. OSPB e Moral e Cívica,
no final, já eram dadas de uma forma mais crítica pelos professores. Estudei no São
Vicente de Paula e no Colégio Gonzaga e o ensino no Gonzaga era bem crítico.
18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Não, óbvio que não.
19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
Enxergo como um processo que tende cada vez mais a melhorar.
Professores de Filosofia estão trabalhando, o que já é um grande avanço, pois
muitos não eram habilitados pra exercer a função. Por mais que muitos professores
fossem muito bons, não é a mesma coisa que professores habilitados pra função,
por terem mais preparo. Inclusive muitos professores formados aqui na nossa
instituição (UFPel) estão atuando lá no CMP hoje.
20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao
Ensino de Filosofia nos dias de hoje?
O desafio é manter um meio termo entro o rigor filosófico e os anseios
dos estudantes. Esse é o grande desafio. Tem que despertar os alunos, mas não se
pode perder a essência da Filosofia.
205
Entrevista com o Prof. Luis Felipe Claus
(O primeiro professor concursado a assumir a disciplina de Filosofia após o retorno da democracia, em 1992.)
Iniciamos, então, a entrevista com o Prof. Luis Felipe Claus, em 10/11/2011.
Professor, qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período
de 1960 a 2008? Eu queria que o senhor me contasse um breve relato... (Letícia
Corrêa)
É eu fui regente, fui titular, vamos dizer assim, da disciplina de Filosofia
no Colégio Municipal Pelotense de 92 a 1995. Fui o único professor de Filosofia
concursado e primeiro professor concursado no município de Pelotas, era uma coisa
inédita um concurso para a Filosofia, no Colégio Municipal Pelotense em 1992. Fiz o
concurso em 1991 e assumi em maio de 1992 a disciplina de Filosofia, em especial
para os terceiros anos e o Magistério, recém que o Magistério estava começando no
Pelotense.(Luis Felipe Claus)
E quais são as suas recordações dessas aulas?
Eram aulas muito incipientes, nós não tínhamos ainda uma ideia precisa
ou mais rebuscada de conteúdos, os conteúdos eram muito abrangentes, eu ajudei
a fazer os conteúdos... Eu me lembro que era assim, por exemplo, “Filosofia e
Ciência”, “Filosofia e Poder”, “Filosofia e Política”, “Filosofia e Amor”, este tema até
fui eu que introduzi. Temas muito abrangentes, então tínhamos que estar “catando”,
buscando conteúdos, não tinham muitos livros, não havia livro didático de Filosofia
como existem hoje, os livros eram mais teóricos e direcionados ao Ensino Superior,
nós tínhamos que estar adaptando a uma linguagem de Ensino Médio e “pescando”,
“pinçando” os conteúdos que achávamos importantes pra época.
E como o senhor avalia o Ensino de Filosofia experienciado, a sua própria
experiência?
Naquele tempo?
Isto.
206
Foi uma coisa válida, extremamente válida porque era uma coisa nova no
Colégio Municipal Pelotense até então, tinha desde 89, e [era] uma disciplina
diferente para os alunos. Eles queriam conteúdo, conteúdo, conteúdo. Se dava
alguma coisa de conteúdo, claro, mas se levava o aluno a procurar refletir sobre
este conteúdo. Eu sempre digo que nós não podemos fazer “tábula rasa” dos
conhecimentos da humanidade, a gente não pode ver o que o aluno acha, Filosofia
não é isso. Não é o que o aluno acha, ele tem que ter um conhecimento prévio ,
conhecimento da História da Filosofia ou da Filosofia do Aristóteles para, a partir daí,
refletir então. Não dá pra fazer “tábula rasa”, tem que ter um conhecimento basal,
um conhecimento prévio pra poder refletir, pra poder desenvolver o seu
pensamento.
E que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
Aulas expositivas, dialogadas, conteúdos no quadro, alguns textos, um
pouco de leitura dos clássicos, eu gosto muito dos clássicos, a gente não pode fugir
deles, não podemos menosprezar Aristóteles, Sócrates, os próprios Pré-
Socráticos... Da literatura clássica eu lia alguns textos, então, se eu falava sobre
política eu lia ali um pedacinho do “Contrato Social”, alguma coisa sobre Thomas
Hobbes, John Locke, pequenos textos assim, não todo, mas uma parte principal que
elucidava, corroborava com o conteúdo que eu estava dando, para que o aluno
criasse o amor, ou criasse ao menos a intenção de saber que existe um clássico,
que foi tirado aquele conteúdo daquele clássico. Até hoje eu procuro ler pedaços de
clássicos e trazer o livro e mostrar o livro pro aluno. Manusear, ver o livro ali e tal,
criar amor ao livro. Gostava muito disso.
Que conteúdos o senhor lembra terem sido trabalhados na disciplina com
mais ênfase?
Como eu dava aulas para os terceiros anos e até hoje eu dou para os
terceiros anos do Ensino Médio, naquela época, Segundo Grau, eu sempre procurei
encaminhar os conteúdos de maneira que eles usassem aqueles conteúdos na
universidade. Na época eu fazia Direito, sou Bacharel em Direito também, eu sabia
o que os professores cobravam nos primeiros anos na universidade, então a Política
a gente tratava bastante da questão da Política, como Trabalho, Karl Marx, muitos
iriam ingressar na universidade em cursos de tendência marxista, então deveriam
207
saber ou deveriam ter ouvido falar em Karl Marx, nos neomarxistas, então a gente
trabalhava por aí, essa parte de Política, tentando usar a Filosofia como utilidade
dentro da universidade. Para que eles não chegassem na universidade e ouvissem
termos e vissem filósofos que eles nunca tinham visto. Tem que ter um
conhecimento prévio. E funcionou. Anos posteriores eu encontrei alguns alunos que
me falaram: “Ah, professor, o senhor tinha razão, era aquilo mesmo, nós tratamos
sobre John Locke, nós vimos o Liberalismo, vimos Política, Karl Marx”... Muitos
voltavam depois e diziam: “Não, era isso aí mesmo, foi legal, foram boas as suas
aulas”.
Algum filósofo ou escola filosófica em especial era enfocado? Seria Marx?
Marx também. Mas em especial, eu particularmente gosto muito do
Existencialismo. Gosto de Jean-Paul Sartre, em especial, gosto de Heidegger, gosto
do Kierkegaard, Soren Kierkegaard, que ele coloca a essência como possibilidade.
Então, eu sempre trabalhei o Existencialismo, a ideia de “O que vou fazer da minha
vida?”, a vida como sentido, “Para quê eu vivo?”, a existência, a essência como
possibilidade, como um gancho no sentido de que eles no terceiro ano ou no
primeiro ano médio poderiam escolher ser o que eles quisessem na medida que eles
trabalhassem para isto, estudassem, se esforçassem, realizassem seus projetos de
vida. Então, eu trabalhava em especial o Sartre, sempre trabalhei porque é uma
coisa que eu gosto muito, e o Kierkegaard. Até este ano, nós fizemos um trabalho
com os terceiros anos de “Cápsula do Tempo”, está enterrada no pátio da escola
uma “Cápsula do Tempo” que será aberta daqui há cinco anos. E aí, o que
acontece? Dentro tem o projeto de vida de 150 alunos, todos os meus terceiros
anos. O que eles pretendem ser, fazer, realizar, dentro de cinco anos. Dia
18/05/2016 eles retornarão à escola, serão convidados para abrir a “Cápsula” e ver
se seus projetos se realizaram. E isto a partir de um estudo do Kierkegaard, a
existência como possibilidade. Possibilidade de sim ou de não. De realização ou
não. Depende do que nós fizermos hoje. Isso sempre trabalhei.
Bem, o senhor já falou que na época tinha uma dificuldade quanto aos
livros didáticos, mas assim, tinha algum livro em especial que o senhor usava,
mesmo que fosse de forma mais teórica?
208
Um livro bem básico, bem “pão, pão, queijo, queijo”, que não é muito
aconselhável a nível de Ensino Superior, mas para Ensino Médio funcionava, é o
Montin, “História da Filosofia”. E na escola nós temos o Michele Frederico Sciacca,
“Volume 1 e Volume 2”, ele é bastante denso assim, mas dava pra pegar algumas
coisas, pra fazer alguma pesquisa, é um livro raro, Michele Frederico Sciacca, muito
bom, “História da Filosofia”, na perspectiva existencialista, ele é um italiano,
Sciacca, eu tenho dois volumes dele, mas aqui na escola também tem mais dois, eu
tenho o 1 e 2, aqui tem o 1 e o 3. Bem interessante pra dar uma pesquisada.
Naquela época nós não tínhamos internet, não tínhamos a facilidade do Google, da
Wikipédia, não tínhamos nada disso, então era na base da pesquisa mesmo. Ou
eles iam na Biblioteca Pública ou pesquisavam na escola, e dificilmente teriam em
casa algum livro de Filosofia, a escola também não fornecia, então era por aí a
pesquisa, na Biblioteca ou Biblioteca Publica.
O senhor, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava o
cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o contexto,
através de discussões, diálogos, etc?
Eu sempre procurei desenvolver todo o conteúdo, até porque demora
muito tempo, como eu disse, “Filosofia e Política”, “Filosofia e Existência”, “Filosofia
e Ciência”, eu procurava trazer todos os elementos possíveis que conseguia juntar
daquele ponto, eu procurava sempre [abordar] o trabalho no final dos terceiros
anos, porque eles estão naquela encruzilhada: “Que vestibular fazer?”, porque tinha
vestibular ainda e vestibular escrito, não tinha ENEM, mostrar pra eles o mundo do
trabalho. Esse é o conteúdo primordial que eu fechava o ano. E um pouco antes
trabalhava um pouquinho da felicidade, do amor, que o mundo não é só trabalho, é
felicidade, é amor também. Mas em geral eu conseguia terminar os conteúdos. Não
eram muitos, cinco ou seis, mas conseguia terminar.
Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas? Estamos tratando
de anos 90, período Itamar, pós-Collor... Qual foi a influência mais específica, o
senhor sentia alguma influência?
Eles não tinham muito embasamento político, até os terceiros anos não
estão engajados politicamente. Eu costumo dizer que os alunos querem transformar
o mundo depois que entram na universidade, porque aí eles vão manter contato
209
com várias áreas do conhecimento e aí eles vão se dar conta do mundo e de seu
papel no mundo. Naquele período de Itamar era uma coisa mais tranquila de certa
forma, então não era como na época do Collor, os caras -pintadas e tal, eu não
estava aqui neste período. Mas eles não tinham muito engajamento [político]. Tinha
o grêmio da escola que era bem ativo, de certa forma movimentava os alunos...Que
até, acima de seu trabalho, os terceiros anos estão muito preocupados com
formatura, em passar de ano, em aprender e ir para a universidade. E na
universidade que eles ficam bem mais críticos e querem transformar o mundo.
Depois, com o sentido de que não vão conseguir, se voltam para os estudos para se
formar e garantir o “pão nosso de cada dia”.
Como era vista a Filosofia nesta época, como era vista pela comunidade
escolar, pelos alunos?
Com uma certa estranheza, porque é mais fácil o aluno receber o
conteúdo. Aonde ele tem que questionar, aonde ele tem que refletir, flexionar o
pensamento daquele conteúdo, como eu digo assim: “do sabão, fazer bolinha de
sabão”, é mais complicado. O aluno é muito preguiçoso, daquela ideia das coisas
dadas, vão ter que argumentar sobre isso, até hoje eu dou um tempo: “Gente,
vamos refletir sobre o texto, vamos fazer um contratexto, um texto em cima deste,
argumentando prós e contras, colocando posições pós e contras”, e aí o aluno fica
um pouco indolente. É mais fácil uma pessoa saber que 2+2=4. É quatro e pronto,
não precisa questionar isto. Saber que pode haver um outro sistema lógico aonde
2+2 não seja quatro, seja uma coisa diferente. Então o aluno sente uma certa
estranheza, um pouco de preguiça, de certa forma. Mas iam bem, depois com o
tempo se acostumavam a refletir, a escrever. Eu sempre procurei auxiliar outras
disciplinas, auxiliar História, auxiliar o Português, a produção de textos. Eu sou
professor de História também, então eu trago muitos conhecimentos históricos
[junto] com a Filosofia e aí fica uma aula bastante abrangente.
Bom, mas o senhor sentia que era valorizado?
Com certeza, gostavam. Eles gostavam. Era um período por semana,
pouco, muito pouco, só que o período era um pouco maior, era de 50 minutos. Mas
eles gostavam, em geral eles gostavam. Era um “refresco” para eles, uma coisa
210
diferente assim das agruras da Matemática e da Física, a Filosofia era um
“refresco”.
Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a
formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma
sociedade?
No sentido de refletir mais um pouco e ter uma ideia mais abrangente das
coisas. De estar os preparando para o mundo da universidade, para o discurso
universitário, para o discurso da universidade; muitos fizeram cursos na área das
Ciências Humanas e mesmo que não façam, que façam Medicina, se alguém quer
ouvir falar em Movimento Estudantil, em Marx, em protestos contra a reitoria e
protestos contra o custo de vida e tal e aí vai entrando questões da Filosofia. Então,
acho que ajudou e até hoje ajuda de prepará-los para o mundo da universidade. Um
pouco mais críticos, mais conscientes, refletindo sobre a sua própria vida, da vida
dos outros e da sociedade, acho que é importante. Importante neste sentido.
O que você pensa sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e
Organização Social e Política Brasileira no período em que não teve o Ensino de
Filosofia?
Eu vivi esse período, eu tive TGE (Teoria Geral do Estado) na
universidade, como eu fiz dois cursos superiores concomitantes, eu fiz Pedagogia e
Filosofia, sou Pedagogo também, concomitante, um de manhã, um à tarde e um à
noite e depois fiz Direito também, aparecia algumas dessas coisas ainda. Eu fiz
Direito em 97, estava saindo. Era uma tremenda “encheção de linguiça”. Era só pra
realmente suprir o papel do professor mais questionador, do conteúdo mais
questionador, mais elucidativo, era uma “encheção de linguiça”, sobre a pátria,
sobre o “não sei o quê”, sobre o Estado, o poder... Temos que saber que eles
existem e que estão aí, temos que criticá-los e saber até onde vão a sua influência e
esse é o papel da Filosofia.
O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Quais são os reflexos da ausência desse ensino para a formação dos alunos que
vieram depois? O senhor teve Filosofia na sua formação básica?
Tive porque eu fui seminarista, tive Filosofia desde o Ensino Médio. Mas
era um curso especial, era um curso seminarístico, bem específico. Eu vejo que
211
uma geração ficou “aleijada”, uma geração toda nesse período ficou “aleijada” de
um conhecimento mais crítico. Além do conhecimento universal que a Filosofia
propicia, ficou “aleijada” no conhecimento crítico. “Aleijada” da perspectiva de
refletir, tiraram isso da geração, a perspectiva de refletir, de ser mais crítico. Mas
como toda, como diz o Hegel, toda a antítese tem a “antítese”, toda a tese tem a
“antitese”, a geração dos caras pintadas foi uma explosão, uma revolta contra a
situação toda, que se manifestou pela política e ela veio se espraiando pelos
conteúdos do Ensino Médio, na universidade, com disciplinas mais críticas, como
Filosofia, Sociologia, agora temos “Relações Humanas”, aqui na escola, é uma
coisa bem interessante trabalhar valores. A gente não pode deixar isto só para a
Filosofia. A gente trabalha valores de certa forma, mas tem que ter uma disciplina
que trabalhe os valores, honestidade, sinceridade, amizade, vontade, tem que ter
uma disciplina que trabalhe isso. Então eu vejo que esta geração que ficou
“aleijada” deste conhecimento crítico explodiu lá nos caras pintadas de certa forma
pra revolta toda. Como aconteceu em outra vezes, em maio de 68 na França, a
revolta de estudantes, no início da década de 60 lá com o movimento hippie, rock’ n
roll e tal, sempre se acha uma válvula de escape para explodir as revoltas e aí há a
mudança social. Agora estamos vendo a primavera árabe e tal, a revolta política.
Então não há período de ditadura, não há período ruim que dure pra sempre, tem
um momento que explode a coisa e aí se canaliza para um outro setor.
Como o senhor enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
Eu vejo pelo Pelotense. Nós hoje temos quase que um departamento,
temos o departamento da área de Ciências Humanas e tal, mas temos tantos
professores de Filosofia aqui que daria pra fazer um departamento. Porque ela
perpassa desde o Fundamental até o final do Médio, tem o Magistério também. Nós
temos muitos professores de Filosofia aqui e isso é uma coisa muito boa. Está se
criando uma geração de pessoas críticas. De pessoas que têm um maior
conhecimento. Maiores possibilidades de conhecimento. Porque a gente oferece
pros alunos a possibilidade de conhecimento, se eles querem ou não aí é outra
história.
O senhor prefere ensinar a Filosofia através de temas filosóficos ou
através da História da Filosofia?
212
Eu prefiro através da História da Filosofia. Eu sou bem conteudista. Eu
pego uma linha de pensamento e eu venho por ali. Como eu tenho dois segmentos,
tenho primeiros e terceiros anos, não dá pra fazer muito isso, mas dentro daquele
segmento, se eu vou falar sobre Política, vou pagar lá o Aristóteles, até chegar na
Idade Moderna, na Idade Contemporânea, aí é tranquilo.
Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje?
Mudanças de nós termos um livro didático. No ano que vem, 2012, nós
teremos um livro didático, nós escolhemos o livro da Maria Lúcia de Arruda Aranha e
a Maria Helena Pires Martins, bem completo, “Introdução à Filosofia – Filosofando”.
Na minha época este livro era pequeninho, uma brochura, hoje é um livro aí de 500
páginas.
E os alunos vão receber cada um, um exemplar?
Os alunos do Pelotense vão receber cada um o seu exemplar que nós
escolhemos.
Que interessante, que legal! Um avanço!
Nós tínhamos entre este, o Cotrim, a Marilena Chauí, escolhemos
“Filosofando”. É o mais abrangente. Então, claro, vai ser dividido os conteúdos
conforme os três segmentos que nós temos, primeiros, segundos e terceiros anos.
Cada segmento vai pegar uma parte do livro, temas específicos, mas no final,
começando no primeiro ano e sai no terceiro vai ser visto todo o livro. Então o
Governo Federal está disponibilizando e é um tremendo de um avanço, porque aí
você não precisa ficar “catando” conteúdo aqui, “catando” conteúdo ali,
pesquisando... Claro que tu vais fazer uma pesquisa extra-livro, tu nunca vais te ater
ao livro, mas neste sentido é um avanço. Porque o aluno vai ter mais conhecimento
à sua disposição, digamos, à mão. Não que ele não tenha hoje, claro que tem. Mas
ele é um pouco preguiçoso, pede pra pesquisar um tema: “Ah, pois é”... Então ele
copia do Google. Complicado, né?! Com o livro não, ele vai abrir e vai ter o
conteúdo ali, vai ter a gravura, vai ter o texto, vai ficar mais fácil. Acho que é um
avanço nesse sentido.
O que mudou depois da implantação da LDB de 96, dos PCN's, o senhor
acha que teve alguma modificação?
213
Eu falo mais da minha área de Ciências Humanas e os professores estão
trabalhando mais interdisciplinariamente. Interdisciplinariedade, eles estão mais
ligados, há mais intersecção de conteúdos. Então, de repente, o professor está
falando lá de 64 e puxa alguma coisa de Filosofia nesse sentido, de História, de
Literatura, então... A gente conversa muito aqui no recreio e é preferível trocar
ideias, tocar figurinhas neste sentido.
E quais foram as maiores dificuldades ao ensinar a disciplina? E quais os
avanços mais significativos?
A dificuldade está em termos de conteúdo. Praticamente tinha que se
buscar o conteúdo e dar pro aluno, sói escrever no quadro, dar folhas, xerox, ele
tinha que ter aquele acesso. A dificuldade foi a reflexão o pessoal não estava muito
acostumado a refletir. Eu também trabalhei à noite num ano e o aluno à noite é um
pouco mais cansado, tem mais dificuldade e tal. Uma coisa que pra mim era
pacífica, tranquila, texto, mais texto, refletia, pensava, analisava, escrevia, pro aluno
era mais complicado. Sempre é mais complicado pro aluno, porque somos
professores e eles são alunos. Mas consegui uns bons avanços. Inclusive consegui
influenciar , uma coisa inédita, influenciei dois alunos a fazerem Filosofia no Ensino
Superior. Dois se formaram, um ficou vice-diretor de uma escola depois e o outro é
meu chefe hoje: o Professor Maurício, foi meu aluno de Filosofia no terceiro ano,
trabalha Filosofia no Pelotense e hoje é meu coordenador. (Risos). O aluno hoje é
meu coordenador, o discípulo supera o mestre.
Não sei se o senhor teria mais algum comentário, mais alguma
consideração a fazer que não foi contemplada pelas perguntas anteriores?
Acho que tá tranquilo, é bem por aí. Só pra dizer que de 92 pra cá, dos
anos 90 pra cá, nós avançamos bastante, avançamos muito. A própria
regulamentação da lei de 2008 foi um tremendo avanço, porque agora se tem a
possibilidade de se ter uma disciplina mais crítica, que faz pensar, mas repito,
Filosofia não é achismo, onde me perguntam assim: “Professor, é o que eu acho?”,
eu digo: “Não! Não é o que tu acha. Eu te dei um texto, temos um texto, temos um
autor aqui, reflete, pensa sobre a proposta dele, vê se concorda, vê se está certa.
Está certa? É isso? É isso. Acha que está errada? Então me argumenta, me
escreve o porquê que está errada”. Ele tem que refletir, flexionar o pensamento,
214
reflexão é isso, e aí pro aluno é mais difícil. Eu digo: “Escrevam, escrevam muito!”.
Como tempo eles aprendem. Têm alguns alunos que fazem trabalhos maravilhosos
de reflexão, outros nem tanto.
Então, está. Eu lhe agradeço pela sua participação. O senhor foi
professor, só recapitulando...
De 92 a 95. Eu saí para assumir a direção de uma escola e estou
retornando agora.
215
Entrevista com o Prof. Ubirajara Velasco
(Professor de Filosofia do CMP desde 1996.)
Iniciamos então a nossa entrevista com o Prof. Ubirajara Velasco, em oito
de outubro de 2011.
Bem, professor, qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no
período da pesquisa, entre 1960 e 2008, no Colégio Municipal Pelotense? (Letícia
Corrêa)
- Eu ingressei na Universidade Católica de Pelotas para fazer o curso de
Filosofia em 1982, mas como eu estudei no Pelotense, eu tive o prazer de ser aluno
de um grande professor de inglês chamado Walney Hammes, que nos incentivava
no caminho da Filosofia. Também fui aluno do professor, antes de 82, é claro, do
Professor João Manoel Cunha. E o João Manoel Cunha admirava as minhas
redações e, por vezes, usava como exemplo nas outras turmas. E eu achava que
seria professor de Literatura, mas com a influência do Professor Walney e com as
minhas leituras iniciais no campo da Filosofia, eu acabei optando mesmo por esse
caminho e não pela Literatura, embora eu tivesse já no Ensino Médio lido “Dona Flor
e seus dois maridos”, de Jorge Amado, tivesse tido contato com todos os romances
de José de Alencar e uma influência muito grande nesse sentido. Eu adorava os
romances indigenistas. Bom, mas eu ingresso na Católica mesmo é para a Filosofia.
Eu tinha já um irmão estudando Letras, o Miguel, Miguel Arcanjo Velasco, e eu
entendia que tinha que fazer uma outra coisa também, não seguir o caminho dele
porque eu já não tinha seguido o caminho da família que é a Música, todos os meus
irmãos são músicos e inclusive tiveram um conjunto que se chamava “Velascos”,
que é o nosso sobrenome de família, os irmãos Velascos. Então eu, tendo saído de
certa forma, tendo fugido da Música e auxiliado por eles em alguns momentos,
também fugi da Literatura que era o caminho do Miguel. Miguel era apaixonado pela
Literatura. E aí, com essa influência da Filosofia, eu disse “olha, eu sei que isso não
é fácil, mas eu vou fazer vestibular pra Filosofia”. Não tinha na Federal, eu tinha que
passar na Católica, comecei a trabalhar pra tentar me sustentar na faculdade, mas
216
não era suficiente e minha mãe me pagava a faculdade, apesar das dificuldades. Na
faculdade eu ingresso no Diretório Acadêmico, convidado por alguns colegas como
o Amilton, eu não me lembro do sobrenome dele, mas Amilton. Ingresso no Diretório
Acadêmico, me envolvi com esporte e cultura e depois acabei sendo Presidente do
Diretório Acadêmico e já existia uma luta pela Filosofia no Ensino Médio quando eu
cheguei lá. Pessoas como o Avelino,a própria Neiva, eu inclusive presenciei o
casamento deles, na época eu estava dentro da Universidade, o Gomercindo Ghiggi
era um dos grandes incentivadores, o Professor Jandir, nem se fala, era o professor
de todos eles e nosso. Então, havia um pessoal que a Vera chamava de “Velha
Guarda”, apenas uma referência. “Velha Guarda” que trazia essa luta pela volta da
Filosofia no Ensino Médio. Então, a luta já existia. Eu, uma vez Presidente do
Diretório Acadêmico, disse “é por esse caminho que eu vou”. Daí eu comecei a ler
tudo o que podia sobre os impedimentos da Filosofia e sobre as razões pelas quais
ela teria saído do Ensino Médio como disciplina participante, partícipe do currículo
das escolas do Segundo Grau, que era assim que se chamava na época. E aí eu
percebi que o Regime Militar retirou a Filosofia do Ensino Médio e incluiu OSPB,
Organização Social e Política do Brasil e Educação Moral e Cívica com os objetivos
de provocar a obediência a Deus, ao Estado e à ordem estabelecida, entenda-se, ao
Governo. Isso, evidentemente, despersonalizava. Afinal de contas, eu tenho que
obedecer a Deus, eu tenho que cumprir todas as normas, tenho muitos deveres e eu
não devo saber dos meus direitos. Então, 1982, eu cheguei à Universidade. Em
1992, eu estava no Colégio Gonzaga. E cheguei no Colégio Gonzaga para trabalhar
com essas disciplinas, no caso, Moral e Cívica e OSPB. Então, isso
despersonalizava e fazia com que a gente obedecesse sempre e cada vez mais.
Bem, existindo essa luta com o Osório, Avelino, Neiva, o Professor Jandir
incentivando, o Gomercindo, Oscar, uma figura importante, a própria Vera Espíndola
e tantas outras pessoas que participaram dessa luta e não cabia outra coisa senão
dar continuidade àquilo que os outros haviam começado. É importante dizer isso: já
havia um trem andando e nós, na primeira estação, entramos, embarcamos.
Partindo daí, planejamos uma Semana Acadêmica onde nós pudéssemos
falar justamente de todas essas coisas porque as informações eram
desencontradas. Um dizia uma coisa, outro dizia outra... Nós sabíamos por exemplo
217
que, durante a Ditadura Militar, havia encontros de Filosofia aqui em Pelotas, um
deles, pelo menos, eu sei que foi no Colégio Gonzaga, no Auditório do Colégio
Gonzaga, e os professores palestravam pela manhã e discutiam com os alunos e à
tarde eram levados para Rio Grande para prestar esclarecimentos na Polícia
Federal, que na época tinha sede apenas naquele município, por razões que os
militares entendiam, chamavam de Instância Hidromineral, por questões de
segurança, assim eles chamavam. Então, fizemos essa Semana Acadêmica,
organizamos a Semana Acadêmica e pensamos na relação de temas com a
Filosofia, a alienação, o poder, a adolescência, que nós iríamos lidar com
adolescentes e não entendíamos nem a nós mesmos, como é que iríamos trabalhar
com adolescentes outros com a carga de problemas que a gente tinha, ainda não
resolvidos, inclusive, nem se sabia se nós teríamos por exemplo mercado para
trabalhar como professores de Filosofia. O objetivo da Universidade Católica era
esse, haviam dois: o curso foi criado para formar pessoas dedicadas ao clero, mas
havia uma abertura para formar professores. Então, queríamos também relacionar a
Filosofia com o Direito. Por que tantos deveres? Vamos trazer alguém que pense no
Direito. E depois também essa relação da Filosofia com a ideologia e o poder e
como estava a perspectiva do retorno da Filosofia ao Ensino Médio em termos de
Brasil. Então, foi pensando nisso, com esse tema central “A volta da Filosofia ao
Ensino Médio”, nós convidamos para abordar os temas “Filosofia, Alienação e
Poder”, o deputado estadual Ruy Carlos Ostermann, que é formado em Filosofia,
trabalhou muitos anos com a Filosofia e inclusive teve seus problemas lá cm a
Ditadura, teve as suas dificuldades e cerceamentos vários. Depois, convidamos
também para falar dessa relação Filosofia e Adolescência, o Professor Osmar
Schaefer que também nos ajudou a entender o que é a adolescência e um pouco
daquilo que nós éramos ou estávamos deixando de ser e que iríamos encontrar logo
ali adiante. Depois convidamos Renato Varoto para nos falar sobre Filosofia,
Sociologia e Direito. O quarto encontro foi com o Prefeito Bernardo de Souza que
palestrou sobre o tema “Filosofia, Ideologia e Poder”. E, finalmente, no nosso quinto
encontro, nós encerramos com “Filosofia e Educação no Brasil”, com o Deputado
Federal José Fogaça, esse que tinha um projeto de reinclusão da Filosofia no
218
Ensino Médio. O Projeto 356A que obrigava o retorno da Filosofia no Ensino Médio.
(Ubirajara Velasco)
-No Rio Grande do Sul?
- Brasil. Ele era Deputado Federal e a abrangência do projeto era
nacional. A importância de ter-se presente uma pessoa como o Bernardo Olavo de
Souza e sendo ele Prefeito de Pelotas é que nós entregamos, eu tive a grata
satisfação e a oportunidade de apresentar o documento, nós protocolamos à tarde e
à noite entregamos em mãos pra que não houvesse nenhum tipo de dúvida [do tipo]
“eu não li, não sei como é que chegou”, tamanha era a nossa angústia pela falta de
perspectiva já que estávamos caminhando para o final do curso. Era o terceiro ano,
mas estávamos caminhando para o final do curso, era final do terceiro ano.
O Bernardo de Souza, mais o Jandir Zanotelli, Bernardo e Jandir,
concordaram que iriam reincluir a Filosofia no único colégio de Ensino Médio do
município, o Colégio Municipal Pelotense. Quem muito nos ajudou nesse processo
da organização foi o professor Gomercindo Ghiggi, que inclusive foi quem recebeu o
Bernardo e junto comigo pôde fazer a abertura do encontro.
Nessa presença do Fogaça nós tivemos a oportunidade de ouvir pessoas,
foi na sala 331 da Católica, dos mais diversos seguimentos e de diversos cursos,
inclusive pais de alunos que estavam chegando na universidade que foram saber o
que ia se falar sobre a Filosofia e, afinal de contas, o que isso representaria como
retorno ao Ensino Médio. Muito interessante, sala cheia, muito bom o evento,
distribuímos os materiais que o Deputado Fogaça trouxe de Brasília e com a
confiança de que nós estávamos no caminho certo. Eu e o Professor José Mattei,
depois de uma reunião com o Departamento de Filosofia da Universidade Católica
da cidade, passamos a visitar uma escola por semana, por causa dos horários dele,
principalmente, nem tanto pelos meus, para conversar com os diretores e
coordenações das escolas sobre a possibilidade de reingresso da Filosofia nesses
educandários. Foi muito interessante, fomos muito [bem] recebidos, todos os
diretores e diretoras, eu me lembro do Dom João Braga, eu me lembro do Cassiano
do Nascimento, eu me lembro do Assis Brasil, do João XXIII, do Pedro Osório,
enfim... Todos nos receberam muito bem, com sorrisos e abraços, cada um deles
tinha algo a dizer sobre a importância da Filosofia, mas nenhum deles teve a
219
coragem de fazer a disciplina retornar mesmo que em caráter experimental como
nos falou uma das diretoras que visitamos. Aí nós vimos, deu pra perceber, que a
luta seria mais difícil do que se pensava em termos de ganharmos espaços outros
que não fosse o Colégio Municipal Pelotense. Aí nós conseguimos com que o
Pelotense fizesse, eu não sei exatamente como é que foi...
Eu tenho relatado através da entrevista do Prof. Manoel que ele começou
em 1989, ele era professor da Católica e ele foi convidado, foi cedido da Católica
para ir para o Pelotense. A convite dos diretores da época, do Prof. Bonini e da Profª
Maria Laura. No caso, a sua participação, como professor de Filosofia no
Pelotense...
É depois do concurso.
Se dá a partir de que ano?
1996.
O concurso se deu em 1992?
1992.
Foram três anos, então, até ser empossado?
É verdade.
Até assumir?
Isso. Na verdade houve um outro professor intermediário que é o Prof.
Felipe Claus.
Depois do Prof. Manoel e antes do senhor?
Isso. Antes houve uma série de dificuldades no concurso. Inclusive, havia
rumores, rumores a gente não dá muita importância, até o momento em que sente
no corpo a dor. Mas haviam rumores de que o concurso não estava sendo levado à
sério pela Prefeitura no primeiro governo de Anselmo Rodrigues e tinham que até
documentos feitos em garagens foram aceitos. Eu para assumir, fiz quase nada. Eu
dei uma entrevista num importante jornal da cidade falando sobre a boataria que se
espalhava pela cidade, e não era só boato porque houve um empate técnico e o
desempate foi publicado no jornal da terça-feira, então, as pessoas supostamente
receberiam talvez no café da manhã mas o sorteio, para o desempate, foi por volta
de 9hs da manhã. Ou seja, não houve tempo hábil para que as pessoas tomassem
consciência e presenciassem o evento do sorteio que é o que daria a legitimidade
220
ao desempate. Mas tudo bem, passado um tempo, eu, claro, estudei muito para
esse concurso, investi nisso, lutei pra isso e imaginava que iriam abrir vagas e abriu
uma vaga. Eu fui classificado extraoficialmente em terceiro lugar, muito embora,
extraoficialmente, eu fosse o primeiro. Uma pessoa que trabalhava na secretaria me
disse: “Olha, tu vais ser chamado. Mas eu não te conheço, nunca te vi e se tu
mencionares qualquer coisa a meu respeito, tu és louco, porque eu não te conheço”.
E depois, para surpresa minha, não fui eu o primeiro colocado. Então,uma outra
pessoa, esse meu colega assume, por sinal, hoje, um amigo e um excelente
professor, mas enfim, para eu assumir no Pelotense, além de denunciar no jornal,
eu conversei com a Jacema Prestes, acho que isso já é no governo do Irajá, [para]
então convencê-la de que: “Olha, a vaga existe, eu estou aqui”. Porque tinha uma
professora que ocupava o lugar do professor de Filosofia quando o Felipe saiu e
esta professora não tinha habilitação. Então, tentei convencê-la. Depois falei com o
Bachini também, que era o Secretário de Administração e ele, apelando para uma
boa relação de família que ele tinha com meu pai e meus irmãos, ele [disse]: “Me dá
mais um tempo, e tal” e eu vi que faltavam pouco mais de 24hs e aí eu entrei com
um Mandado de Segurança. E é por isso que eu te digo, o meu nome quando saiu
pela décima sexta vez, inclusive lá no Opinião Pública, um jornal extinto que
tínhamos no Fragata, aí eu parei de recolher papeizinhos dos jornais. E, como te
mostrei antes, eu já trabalhava desde 86 e fui nomeado de novo no governo do
Otelmo Demari Alves. Temos um documento que mostra exatamente isso, o
documento ele tem data de sete de dezembro de 98. E o secretário era José Artur
D'Ávila Dias, Secretário Municipal de Administração e o Diretor de Recursos
Humanos interino era o Jorge Augusto Dias Alves. Então, isso graças ao barulho
que eu fiz. Mas, fiz todo esse barulho e fui nomeado 12hs depois do Mandado de
Segurança porque eu me esforcei, trabalhei muito, li muito, estudei bastante, me
preparei e achava que valia a pena e depois, precisava trabalhar também. Então
essa é a minha luta.
E com relação ao Deputado Fogaça e o Projeto 356, nós continuamos
visitando as escolas e solicitando aos diretores, embora não tivéssemos nada de
confirmação, nada de positivo, porque ou as pessoas tinham medo da Ditadura ou
tinham medo de quem pensa.
221
Mas isso já depois de 85, já em tempos de Democracia ou antes?
Não, antes. A Ditadura estava terminando mas o Figueiredo continuava
armando os cavalos e isso é um problema, pro povo isso realmente não é coisa
muito interessante.
E já no Pelotense, quando o senhor assumiu a disciplina, quais são as
suas recordações dessas aulas, depois?
Eu quando cheguei lá, no primeiro momento me disseram que eu iria dar
aula para o Magistério. Mas não tínhamos tantas aulas para o Magistério que
pudesse absorver a minha carga horária, então [ficou], Magistério e Ensino Médio.
Então, comecei a dar aulas no Magistério e usava como programa a origem da
Filosofia, o que é Filosofia, o estudo da Filosofia, a Filosofia – uma atitude natural do
homem, o homem e a utopia, depois como análise ético-antropológica do homem da
sociedade o liberalismo , o socialismo, a perspectiva existencialista, a Filosofia e a
realidade latinoamericana. Como temas de Antropologia Filosófica, a Filosofia e
Ciência, questão da liberdade, Filosofia e o amor, o homem e a morte, e a dimensão
política do homem. Também Filosofia e trabalho, as principais concepções sobre
trabalho, a civilização primitiva, as civilizações gregas, capitalismo, socialismo, o
homem e o trabalho, trabalho e dignidade humana e a dimensão ético-antropológica
do problema do trabalho.
Então o senhor prefere trabalhar a partir de temas de Filosofia do que
usando a História da Filosofia?
Como eu comecei, eu trabalhava com primeiros e segundos anos, então,
eu trabalhava com História da Filosofia no primeiro ano e trabalhava temáticas,
temas de Filosofia no segundo ano. Sempre dei muita importância pra História da
Filosofia. Mas a gente esbarra em muitas dificuldades e inclusive na reação de pais,
na resistência dos alunos, que não entendiam porque a Filosofia tinha voltado,
alguns, felizmente poucos, mas não aceitavam a Filosofia, achavam que era muito
complicado e que até perdia-se tempo com aquilo. E outros entendiam que a
Filosofia ou não reprovava e tinham professores que diziam isso e outros achavam
que a Filosofia não devia reprovar. Que deveria ser, quando muito, mais um
ornamento, mais uma disciplina a compor a grade curricular, não muito mais do que
isso. Bom, incomodado com isso, e, evidentemente, procurando agir sobre essa
222
resistência eu inclusive cheguei a organizar um polígrafo de Filosofia. Eu tive um
janeiro e um fevereiro no Cassino e lá, embora eu fizesse as minhas caminhadas
pela manhã na beira da praia e jogasse bola, etc e tal, eu também tirei boa parte do
tempo para elaborar. Aqui eu tenho uma parte do polígrafo, isso foi em 1999, então
nós trabalhávamos com a Filosofia, os instrumentos do conhecimento, o
conhecimento filosófico e o científico, as ciências humanas de modo geral,
introdução à política, à política como categoria autônoma, o liberalismo, teoria do
Estado, concepções éticas e a liberdade.
E, no caso, os alunos faziam cópias xerocadas desse polígrafo ou a
escola dava um auxílio?
A ideia era essa. Mas as dificuldades eram tantas que todo mundo tirava
cópia de matemática, física, química, etc, e uns dois ou três tinham o polígrafo.
Esses dois ou três, talvez eu esteja sendo otimista somando todas as turmas.
E não consultavam na biblioteca ou coisa assim?
Isso sim. Mas o polígrafo custava uma única vez R$4,30 e eles gastavam
R$1,50 no bar e não tinham dinheiro para o polígrafo de Filosofia numa única vez.
E nesse período ainda era só pras alunas do Magistério?
Não, esse aqui era para o Ensino Médio.
Primeiro e segundo ano?
Isso. A gente aprende, eu cheguei lá falando em Paulo Freire, citando
Luckesi e tal, e uma vez uma professora me disse assim: “Professor, eles não são
professores ainda”. E eu disse: “Pois é, mas tu não achas que está na hora deles
começarem a ouvir e a falar nesses que são os nossos referenciais na
universidade?”.E ela repetiu: “Eles não são professores ainda!”. Então, está bem.
Mas, além disso, quero te mostrar aqui, para tu entenderes que eu
também fui suspenso do magistério. A Filosofia vive sendo suspensa, vive tomando
cicuta, nosso caminho não é dos mais fáceis. Porque a gente começa a falar em
coisas que associam ética e poder e acaba desagradando.
Eu, por exemplo, uma aluna me disse assim:Ӄ, grande coisa, o
Magistério”. Eu até fiquei contente, contente não é o termo, mas um pouco aliviado
quando me tiraram do Magistério e me arranjaram mais turmas de Ensino Médio.
Porque eu perguntei para uma aluna “O que é ser feliz?”. Isso está relatado num
223
texto aqui que foi publicado por uma das minhas estagiárias de Filosofia. E ela me
disse assim: “Eu não sei o que é ser feliz, mas sei que o meu pai não é professor, eu
vou ser professora porque é a maneira que eu encontrei para conseguir a vaga aqui
no Pelotense”. Isso acontece bastante. Ela foi dizendo e aí, não sei porque cargas
d'água as reações surgiam, ela disse: “O meu pai é caminhoneiro e ganham muito
mais do que o senhor”. Mas que bom pra ele, que sejam muito felizes. Eu não quero
ser caminhoneiro e vou continuar sendo professor. E vou lutar por dias melhores,
por melhores condições de trabalho e por um salário cada vez mais digno.
Eu perguntava coisas assim, ingênuas, como por exemplo: “o que é ser
feliz?”. É não conhecer? Não pensar? Não ter consciência? É simplesmente cantar
como a pobre “sem feira” de Fernando Pessoa? E aí eu dizia pra eles, falei de
Sartre, a consciência e a infelicidade e disse: “Olha, eu não quero seduzi-los, nem
convencê-los, de modo algum para que vocês sigam, cegos, o canto das sereias.
Quero convencê-los, mas não de forma autoritária, quero que vocês aprendam a
entender que nós estamos num mundo dado, mas é um mundo dando-se também.
Um mundo que está aí, que foi transformado por outros e que cabe a nós
continuarmos esse processo de transformação.”
Então, nós temos que ter projetos, projetos políticos e eu tenho um
projeto político para a educação. E eu tenho uma visão sobre o que o que é o
Colégio Municipal Pelotense e o que ele pode fazer na educação em Pelotas tendo
a história extraordinária, fantástica, maravilhosa, que tem. E aí, eu já começo a falar,
eu, por exemplo, quero fazer e dizer aquilo em que acredito. Queremos, todos, que
vocês sejam grandes, inteiros e autônomos. Só vamos ser inteiros e autônomos, se
conseguirmos pensar. E pensar é pensar pensamentos. Pensar é refletir sobre
aquilo que os outros já disseram, fizeram; sobre o que nós estamos fazendo e sobre
o que nós estamos pensando.
Ainda sobre a minha visão política do colégio e que me trouxe problemas
de relacionamento aí dentro, eu escrevi no quadro: “A ética não deve ser
determinada pelo grupo dirigente”. Eu escrevi no quadro e chamaram pessoas para
olhar. Acharam bonita a frase. E isso me trouxe problemas. Fizeram uma reunião
para saber quem era o grupo dirigente que eu me referia. Fui chamado para explicar
224
quem era o grupo dirigente. Então, são as nossas experiências, são as coisas que a
gente vê por aí.
Eu continuei dizendo a eles num outro dia, para essa mesma menina,
inclusive que me afrontou porque o pais dela é caminhoneiro, ganha muito bem, são
muito ricos, ganham muito bem, acham tudo isso maravilhoso, que bom que alguém
possa enriquecer trabalhando. Eu não conheço ninguém que enriqueceu
trabalhando, mas tudo bem. Então, eu disse a ela: “Quero acreditar que sim. Que os
sonhos que estamos compartilhando aqui possam iluminar um caminho para fazer,
um caminho por fazer, por construir”. E aí, eu disse: “Eu quero convencê-los de uma
tomada de consciência do que é possível construirmos juntos a escola que
queremos e a sociedade que merecemos.” Esse é o link do Projeto Filosofando, que
nós chamamos depois, eu chamei, e não há demérito nenhum em dizer que fui eu
que chamei, a escola que temos, a escola que queremos, a cidade que temos e a
cidade que queremos. E hoje é, assim, um slogan de muitas prefeituras por aí a
fora. Coisas da vida. Fui colocado a disposição no Colégio Municipal Pelotense com
a carga horária do magistério, então, eu sentava na sala dos professores e cumpria
horário fazendo leitura. Vez por outra chegava um professor e fazia brincadeiras,
dizia que eu estava em “HB”, não sei se é publicável isso, mas eu vou ter que dizer
o que é, “Horário Bunda”. Dizia que eu não fazia nada. Isso num primeiro momento
eu achei engraçado. Eu dizia: “Pois é, eu estou aqui”. Sem graça, mas está bem, foi
uma brincadeira. Aí na segunda, terceira, quarta, quinta, eu comecei a ficar
incomodado com isso. Porque estar ali, recebendo para trabalhar e não trabalhar
era profundamente desagradável pra mim. Porque eu tinha que estar dando
explicações e eu não queria isso, eu queria a sala de aula. Mas em sala de aula eu
ia falar de ética, eu ia falar, por exemplo, que eu penso que numa democracia
verdadeira é preciso que haja alternância de poder, não pode alguém se eleger e
ficar quinze, dezesseis anos dirigindo um colégio. Aliás, a atual direção do colégio,
com todos os méritos que têm e os têm, está a dezesseis anos. Professora Marita
se elegeu vice do Adinho e ainda é diretora até hoje. Eu acho isso complicado,
porque com a ocupação de tanto tempo no poder qualquer coisa que aquele ou
aquela que ocupa o cargo diz passa a ser absolutamente ético. Tem a legitimidade
do tempo. Do tempo de uso de uma cadeira, que pelo jeito deve estar se
225
desmanchando. Mas eu falo dessas coisas. E isso me dá um link pro Projeto
Filosofando. Eu sempre notei, eu sempre fui muito, lá, quando eu comecei minha
carreira no Salis Goulart, lá em frente ao Correio...
Como professor de Filosofia?
Não, lá como professor de Moral e Cívica e OSPB no primeiro ano,
depois passei pra História, que eu sou professor de História também. Lá, no ano da
Assembleia Nacional Constituinte, eu acredito que 1987 porque a Constituição é de
88, não, mas a eleição foi em 1986, é ano par, claro, 86; nesse período eu já
organizei um trabalho para saber o que pensavam os nossos candidatos, os nossos
candidatos a Deputado Estadual, Deputado Federal, sobre os mais diversos temas
que sob os quais se falava, por exemplo, o destino das verbas que seriam aplicadas
em educação, em saúde pública, em habitação e assim por diante. Então,
organizamos grupos de estudo, fizemos alguns debates preliminares, organizamos
um elenco de indagações, de questões e procuramos, eu lembro do Eurico
Pegoraro, que há muito tempo não se houve falar dele, ele é de Canguçu, era
candidato a Deputado Estadual, entrevistamos Jandir Zanotelli, candidato a
Deputado Federal pelo PDT, era o PFL o Pegoraro, o Irajá Rodrigues era candidato
a Deputado Federal pelo PMDB, Flávio Coswig, era candidato a Deputado Estadual
pelo PCB, Partido Comunista Brasileiro, e está faltando mais alguém que eu não me
lembro agora, mas enfim, os candidatos mais próximos que tínhamos a
possibilidade de conversar com eles, de entrevistar, enfim, essas entrevistas
aconteceram. Então, alguns alunos fizeram, eu me lembro que com o Flávio Coswig
foi uma entrevista gravada, muito bem conduzida pelos alunos e apresentada e na
aula em que se apresentou, enquanto ouvia-se a entrevista, nós íamos, nós, eu digo
“nós”, eu também, além dos alunos, anotando afirmações ou questões que surgiram
durante a entrevista pra um debate logo em seguida. Depois, fizemos uma avaliação
geral do trabalho. Com o Jandir Zanotelli, também foi uma entrevista gravada, eu
não me lembro com quem foi, mas teve um outro que fizeram imagens, acho que foi
com Eurico Pegoraro, que fizeram imagens, com Pegoraro, foi uma entrevista que
usamos recurso de áudio e vídeo. Enfim, isso já deu o que falar dentro do colégio: “o
que esse cara está pensando, está mandando meus filhos ou meu filho saírem às
ruas e procurarem pessoas e estarem gastando telefonemas em vários horários e
226
procurando agendar com os candidatos e, enfim, se envolvendo com problemas
políticos?!”. Mas conseguimos, já foi um princípio.
Antes do “Filosofando” no Pelotense eu tenho uma passagem pelo
Colégio Gonzaga, de quase dez anos, lá pelos anos 90, em que os professores de
Química, Biologia e Física, que eram o Peninha, Eduardo Nogueira, o Luís Paulo,
não sei o sobrenome, e o professor Ferrante. Então, eles tinham um projeto
“Biofisqui”, eles chamavam assim, de avaliação das águas, das águas do laranjal,
enfim. E eles colheram água, então, não há coisa inusitada aqui, no Filosofando,
não inventamos grande coisa. Mas fizemos um bom trabalho, isso acho que é
importante. Colheram água aqui no Porto, colheram água no Barro Duro, no Pontal
da Barra, enfim, em diversos pontos porque, uma coisa que eu não consigo muito
entender é que, por exemplo, a cem metros de um determinado local a água está
poluída e aí, a cem metros dali, onde supostamente teria uma linha, um “Tratado de
Tordesilhas”, aquelas águas ali do lado, que é a continuação, então a água é a
mesma, é a mesma água, ali já está bom pra banho, já é água suficientemente
“pura” para banho, água em condições de balneabilidade, essa é a expressão. E
daí, eles conversaram entre eles, e a gente conversava muito, eu era muito amigo
do Peninha e tal, e fui aluno do colégio também, daí eles lá: “Quem sabe a gente
convida o Bira pra fazer uma parte histórica do nosso trabalho? Que ele comece a
perguntar sobre as questões sociais, que não são diretamente do nosso
conhecimento e que são importantes mas nós talvez nem saibamos como fazê-las”.
Daí, fui convidado e eu fui com eles, me lembro de uma, tivemos no Laranjal, assisti
uma coleta de água e tudo mais, mas eu me lembro de uma visita que fizemos ali no
pessoal das Doquinhas, no chamado Quadrado, eu me lembro de uma pessoa que
morava numa casa muito humilde, muito humilde, e eu perguntei pra ela se ela se
sentia uma cidadã. E ela disse: “Olha, apesar de ser muito pobre, eu voto e pago
impostos. Pago as minhas contas em dia.”, ela disse. Os que são da competência
dela, da competência não é o termo, mas que são cobrados. Imposto de renda não
chega até ela, claro que não. Mas ela compra um pãozinho na padaria, está
pagando imposto. Compra, sei lá, um litro de leite, a mesma coisa. Bem, ela
simplesmente, nós já tínhamos falado outras coisas sobre como morar ali, sobre as
dificuldades, sobre uma tentativa que eles fizeram de criar uma associação para
227
reforçar as suas necessidades e levarem essa demanda ao poder público, daí eu
perguntei se ela sabia que tinha condições, que tinha o direito de morar numa
habitação mais ampla, para usar um eufemismo, ela morava em duas peças de
madeira, muito velhas, muito mal cuidadas, era o que ela tinha, e um banheiro. E ela
me deu as costas e entrou para dentro chorando. Mas isso não sei como e nem por
que, acabou sendo comentado dentro do colégio e talvez na sala dos professores e
isso de manhã, numa manhã de terça-feira que eu tinha aula, depois eu tinha aula
na quarta, na quarta eu fui chamado e fui desligado do projeto. Então, foi uma
participação minúscula. Se me perguntares assim: “Mas em termos percentuais, o
que foi que tu apresentou no projeto dos professores de 'Biofisqui'?”: 0,001%, quase
nada. Mas enfim, o fato deles terem pensado que eu poderia ajudar em alguma
coisa e e eu tê-los acompanhado, pelo menos duas vezes foi bem interessante,
valeu como experiência.
E como o senhor avalia o Ensino de Filosofia, no geral, de 1996 para cá,
o senhor avalia de uma forma positiva, de uma forma difícil?
Eu acho que é interessante. Evidentemente que tive alguns tropeços
naturais da caminhada, mas aprendi muito e continuo aprendendo e avalio como
uma coisa muito positiva. Eu jamais vou dizer que alguma coisa não valeu a pena
na minha caminhada. É evidente que a gente ouve coisas desagradáveis, mas isso
faz parte, é um choque necessário para o aprendizado, faz parte do processo todo e
essa resistência, inclusive dentro dos ciclos de poder que se formam dentro das
escolas, verdadeiros castelos com propriedade e certificado de propriedade, isso
dificulta mas eu te diria que até isso também é positivo porque, por exemplo, se nós
formos pensar na Ditadura Militar, a Ditadura Militar ela foi bastante favorável ao
pensar. Aí tu vais dizer: “Mas como, a Filosofia foi retirada do Ensino Médio”. É que
ela, por ser absoluta e absurda, ela gera a sua antítese. Não é? Ela facilita o pensar
sobre ela. Então, é a dialética, né?! A tese e a antítese. Evidentemente que a
Ditadura ela própria gerou o seu contrário. Todos os movimentos, inclusive e
principalmente o das Diretas Já que foi um movimento muito forte que acabou
levando o povo às ruas e associando o Congresso Nacional lá com toda a
importância de Ulisses Guimarães e de outros grandes políticos da época, Leonel
Brizola, o próprio, que nós falávamos a pouco, o Teotônio Vilela, se falava muito da
228
necessidade de se suprir a dívida social para com o povo sendo esta prioridade e
não exatamente o desenvolvimento econômico como era preconizado pelo Delfim
Neto. Se dizia: “Nós vamos fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”. Nós
sabemos que o bolo cresceu e eles repartiram: entre eles. Todo esse processo é
muito interessante e, enfim, a Ditadura ela é bastante profícua no sentido de
favorecer o pensar sobre ela. E todos esses, quem sabe, micropoderes, como diria
Foucault, instituídos aí, legitimados por um grupo que prefere trabalhar, ou melhor,
receber sem muito trabalhar, eles desmoronam um dia e nós estamos aí para resistir
e para procurar valorizar os espaços democráticos que se têm e falar sobre isso
com os alunos.
E que didáticas e práticas de ensino eram e são desenvolvidas nas suas
aulas?
Pois é, eu tive uma aluna que, inclusive ela está aqui, Maria Quitéria
Corrêa Vinholes, essa menina foi diagnosticada com paralisia cerebral e às vezes a
gente tinha que pensar numa estratégia numa turma, como é o caso desta aqui, que
fosse, não sei se diferente, mas que pudesse contemplar alguém com essas
dificuldades, com essas necessidades especiais. Dificuldade porque é cadeirante,
né? Mas eu, além das aulas expositivas que eu ainda considero necessárias,
embora tenha gente que fale o contrário, não goste de aula expositiva, eu também
trabalho com seminários de Filosofia. Os seminários eles são um trabalho de grupo,
mas não é um trabalho de grupo qualquer. Ele exige que no grupo nós tenhamos um
coordenador, que no grupo nós tenhamos alguém que vai se comprometer de trazer
o trabalho no dia, que vai ser o relator do processo todo e nós temos o seguinte:
uma organização para o processo de avaliação que separa a avaliação no grupo
apresentador e aqui nós vamos ter uma avaliação do trabalho oral e do trabalho
escrito, então dá muito trabalho. Pra mim o que mais interessa é a apresentação
oral, então tem uma apresentação oral porque tem uma relação com o coletivo, com
o grande grupo. E eu, como professor, pergunto eles não respondendo, desconto
alguma coisa da nota e evidentemente eu tenho o dever de responder. Então, é o
momento de interação entre a turma, que precisa ficar quieta o suficiente para
prestar atenção no que está sendo dito e dirigir perguntas ao grupo apresentador.
Então essa avaliação, dentro do grupo, como é essa avaliação? Essa avaliação tem
229
um peso individual, tem um peso para o grupo. E o que mais interessa,
evidentemente porque é um seminário, é a apresentação oral. Depois eu vejo como
é que está o trabalho escrito, mas o que realmente importa é essa relação. E eu
avalio a turma processualmente, o tempo todo. Então, por exemplo, a gente chega a
um certo grau de maturidade no exercício da profissão ou, quem sabe, como diz
alguns, estamos ficando velhos, que pela participação do aluno na sala de aula já
mais ou menos se sabe qual é a notas dele. A gente faz a prova porque é uma
questão legal , ela é obrigatória, faz um segundo trabalho, faz a prova de
recuperação, os estudos de recuperação porque também é uma exigência legal.
Mas o que realmente demonstra quem é quem numa aula de Filosofia é a
participação oral, é pra isso que nós estamos lá: para o diálogo, para o
enfrentamento das ideias, para o debate.
E assim: algum filósofo ou escola filosófica em especial é enfocado nas
suas aulas?
Agora nós estamos trabalhando o Existencialismo. Falando em
Kierkegaard, em Sartre, e o pessoal está muito interessado porque uma coisa que
eles são muito ligados e aí tem toda uma conjuntura, uma situação anterior, é que
os professores gostam de lidar muito com temas que eu não sou muito de abordar
na Filosofia como, por exemplo, Mensagens Subliminares, por exemplo, 2012 e o
fim do mundo,o calendário maia... Eu não me furto de tocar em assunto nenhum
mas tem coisas que realmente não me agradam muito. Por exemplo, um colega
defendeu que o aborto é um bom tema para a Filosofia, o aborto e a eutanásia,
questões antropológicas, não sei o quê... Tá bem, tá, mas realmente a mim não me
agrada. Os alunos gostaram muito até quando se fez um debate lá sobre esses
temas, eles colheram material, trouxeram, modificaram os textos, trocaram
informações entre eles e fomos pro debate e tal, mas eu particularmente não gosto
de lidar com isso. Eu gosto do Existencialismo, eu gosto do Essencialismo e esses
dois temas são trabalhados agora no final do segundo ano do Ensino Médio
justamente juntos para que possamos fazer o contraponto. O Existencialismo vai
dizer que Deus não existe, que o homem é liberdade, que cada um é aquilo que
constrói de si mesmo, que não há alma, que tudo o que existe é o aqui e o agora,
que o homem antes do nascimento é nada, ele nasce, tem todo um processo de
230
evolução, de amadurecimento, morre e depois é nada, se houver alguma essência é
o que ele deixar por aqui, por exemplo, um livro escrito, algo que ele construiu, que
as pessoas podem ver, tocar, sentir e conhecer através dos sentidos, quem sabe.
Bom, sobre os livros didáticos...
Os livros eu gosto muito deste: “Temas de Filosofia”, de Maria Lúcia de
Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins. Eu uso este livro porque,além dele ter
uma boa abordagem de fácil compreensão do aluno e, ao mesmo tempo, profunda,
é claro, é respeitável o trabalho das professoras, ainda, ao final de cada capítulo,
temos, por exemplo, aqui tem Gramsci – Filosofia e Bom Senso, Concepção
Dialética da História, temos fragmentos de obras de escritores clássicos da Filosofia,
de grandes filósofos como Sartre, como Heidegger, como Hegel, como Jaspers,
Nietzsche, Kant, Marx, enfim...Então eu gosto muito desse tema mas uso também
“Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí, é uma edição da Editora Ática, também
“Fundamentos da Filosofia”, de Gilberto Cotrim, da Saraiva, “Para Filosofar”, da
Editora Scipione, com diversos autores. Esse livro eu uso ele no primeiro ano da
Angélica Sátiro e da Ana Míriam Wuensch, “Pensando Melhor – Iniciação ao
Filosofar”. Esse aqui é uma referência para mim no Magistério, “Filosofia da
Educação”, de Cipriano Luckesi, da Cortez Editora. E eu uso, eventualmente, do
Battista Mondin, “Curso de Filosofia”, em três volumes, da Paulinas. Esses são,
assim, os referenciais maiores que eu utilizo.
Ao elaborar seus planejamentos de aula, o senhor prioriza o cumprimento
dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o contexto, através de
discussões, temas atuais, debates, como o senhor já falou?
Eu penso que um professor não deve sair de casa pela manhã sem um
esquema de trabalho, sem uma proposta. Agora eu penso que tudo é discutível, eu
chego lá, no dia da prova e, às vezes, o pessoal não se sente preparado, está com
medo de fazer a prova e se discute as dúvidas e se faz a prova num outro dia.
Desculpe, como é mesmo a questão?
Se o conteúdo é seguido à risca, nos moldes assim mais tradicionais de
ensino ou se há lugar para priorizar o contexto, através de temas pertinentes, que
surjam em sala de aula, de críticas dos alunos, de outros temas que não estavam
previstos?
231
Eu já vi situações de professores que, vamos falar de Geografia, por
exemplo, “Tu estás me perguntando sobre a América Latina e nós estamos falando
da África, vamos esperar quando chegar na América Latina tu me traz a pergunta”.
Eu penso que isso não é, eu não faço isso, eu acho que não é legal isso. Eu penso
que o aluno tem as suas motivações , tem aquele momento, aquele momento é
importante pra ele, talvez ele não volte, talvez ele não lembre a pergunta e não volte
a perguntar, eu penso que tem que se responder, dentro do possível, se não no
momento exato, porque ele pode estar perguntando no meio de uma explicação, no
quadro ou não, [mas deve ser respondido] naquela aula, naquele dia, “Já, já te
respondo. Espera um instantinho, por gentileza, já te respondo”. O conteúdo ele é
importante, mas não é tudo. Eu tenho o plano de trabalho como uma proposta, não
como algo que amordace e amarre. Uma proposta de trabalho, é respeitável, é um
plano, é um roteiro a seguir, mas... Eu vou chegar numa aula, por exemplo, como
aconteceu no Sylvia Mello, dois alunos foram até a sala dos professores, estavam
assistindo o televisor e estava passando ao vivo a queda das Torres Gêmeas. Aí
vou e digo “Olha, hoje nós vamos falar do Essencialismo”. Não! Nós vamos falar
sobre o que está acontecendo com o mundo e é as Torres Gêmeas, hoje o tema é o
que está acontecendo nos Estados Unidos, é o Terrorismo, o Terrorismo do Oriente
Médio e o Terrorismo Norte-americano. Hoje nós vamos ver o que é Terrorismo.
Vamos pensar em que, quais seriam as motivações de pessoas que moram no
Oriente Médio para, por exemplo, tentarem atentarem contra os Estados Unidos,
inclusive tentando jogar avião contra a Casa Branca, que não atingiu, o Pentágono,
que atingiu e mais os dois aviões que derrubaram as torres. Então é como eu te
disse. Eu usei um exemplo dramático porque é isso, mas de repente é o Deputado
Federal que atropelou um casal ou eu não vou deixar de comentar o fulano lá que
passou por cima de ciclistas que faziam um passeio. Enfim, aquilo que surge, que é
do momento, que tem relevância e tem importância pode ser tocado e não precisa
ser a aula inteira, ao menos comenta alguma coisa. Ouve o que os alunos tem a
dizer. Procura tirá-los do senso comum, daquelas avaliações que estão prontas, que
o Datena falou ontem, não importa. O que o Datena disse [que] ajuda? Ajuda. Mas
não é tudo. O que nós pensamos sobre o que o Datena disse? O tal lá, fulano,
economista da Rede Globo, tá bem. Mas e nós o que pensamos? E quais são os
232
interesses? É porque o cara da segurança, ele está vendo que o “Tropa de Elite”
roubaram o filme e aí tem um analista que “é o próprio Capitão Nascimento”, um
analista de segurança da Globo e aí falou determinadas coisas e aí eu pergunto a
eles: “O que que esse cara tem a ver com o processo político? Qual é o grau de
liberdade que ele tem pra falar o que ele pensa numa televisão como a Rede
Globo? Será que é isso mesmo que ele pensa? Será que é só isso? Ou será que
isso é o que interessa?”. E por aí vai, mas enfim, o conteúdo é importante, mas não
é tudo.
E o contexto histórico, o senhor também como historiador, qual é a
influência do contexto histórico nestas aulas?
Sempre que possível a gente procura relacionar o tema que está sendo
abordado com as questões do nosso cotidiano. Sempre que possível. Outro dia eu
estava falando sobre, eu tenho um texto aí do Tarso Genro na aula de Sociologia
“Adolescentes na Cadeia”. E o Tarso usa um exemplo que é “marginalizados”
falando de jovens, que segundo ele, não deveriam ter a antecipação da maioridade
penal de dezoito para dezesseis anos. Então, “marginalizados”. Ele reconhece, o
atual governador, que estes jovens não tiveram muitas oportunidades e talvez por
causa disso tenham sido facilmente cooptados para o mundo da droga ou do crime.
E também ele reconhece que isso passa pela educação, que as saídas passam pela
educação. Mas isso ele dizia quando advogado. Ele até disse isso como Ministro da
Justiça; como Ministro da Educação assinou, por exemplo, o Piso Nacional dos
Professores. Mas hoje como Governador ele não paga. Onde é que está a relação
entre o discurso e a prática? Será que o discurso é só o discurso do desejo? Será
que o discurso pode ser usado de uma forma descomprometida para acessar o
poder de qualquer maneira e depois dizer: “Esqueçam”. Como disse o FHC:
“Esqueçam os meus livros”. Ele [Tarso Genro] aponta como saída a escola mas não
existe um bom trabalho com alguém descontente com a sua própria vida.
Descontente com decisões que se prolongam, que vão passando de ano para ano,
de um órgão para o outro, e que, quando se elege um governo teoricamente mais
democrático percebe-se que a teoria, na prática, até agora, é outra. Eu faço esses
links com a realidade sempre que posso.
233
E como a Filosofia era vista, na época do retorno da disciplina, quando o
senhor começou, perante a comunidade escolar, perante os alunos?
Era uma coisa a mais no currículo. Nem os próprios professores das
disciplinas chamadas “humanas” (História, Geografia e tal), nem eles viam com
bons olhos. A Filosofia custou. O professor de Filosofia era algo estranho dentro do
colégio.
E em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a formação de
alunos enquanto pessoas, profissionais, cidadãos pertencentes a uma sociedade?
Eu penso que a Filosofia ela realmente contribui para a formação da
cidadania. Para o exercício da liberdade. Para a indignação. Para a compreensão
das amarras sociais que a gente vê por aí, as estruturas sociais, a maneira como se
comportam, por exemplo, o judiciário, por exemplo, as igrejas ou religiões, os
partidos políticos, os sindicatos, hoje, o que fazem os sindicatos no Brasil hoje?
Onde é que estão os sindicatos, o próprio MST que durante muitos anos foi maior
entidade de resistência a opressão no Brasil, também, o que tem feito? Muito pouco.
O que o senhor teria a dizer sobre a extinção da Filosofia no período
ditatorial? Quais são os reflexos desta ausência, que o senhor nota hoje, dessa
geração que foi privada pela Ditadura?
O que se vê é uma dificuldade imensa de pensar criticamente,
desenvolver um texto com uma certa lógica, de desenvolver um texto minimante
exigido pela Língua Portuguesa, com uma introdução, um desenvolvimento e uma
conclusão; as pessoas têm dificuldade de fazer uma redação, por mais simples que
seja. Penso que em grande parte, o Regime Militar, além de todas as outras coisas
que a gente poderia dizer sobre ele, mas em termos de Educação, prestou um
desserviço imenso ao desenvolvimento social do país. Evidentemente, pessoas que
não pensam são muito mais facilmente dominadas. E isso ainda vigora e ainda há
gente que pensa que o mundo está aí, interpretado e pronto e vamos deixar assim.
Está bom do jeito que está. Eu tenho plena convicção que atrapalhou bastante essa
geração que não pôde ler, que não teve acesso à Filosofia, aos grandes
pensadores, a pelo menos, algumas leituras, mínimas que fossem, que pudessem
jogá-los numa busca maior, numa tentativa de descoberta do mundo a partir de
leituras diversas pra formar a sua própria convicção sobre as coisas. Formar um
234
pensar que seja próprio, que seja livre, que seja autônomo, que seja consciente e
que seja comprometido com esse mundo. Com a possibilidade de transformá-lo, de
fazê-lo mais justo, de torná-lo habitável, torná-lo humano.
E como o senhor enxerga o Ensino de Filosofia nos dias atuais, depois da
obrigatoriedade de 2008?
Eu penso que nós estamos numa caminhada, muito lenta. Eu sei de
professores que estão fazendo coisas interessantes por aí, fazendo trabalhos,
propondo saídas a campo, enfim, relacionando, sempre que podem a Filosofia com
a História, contextualizando a vida, enfim... A gente sabe assim muito vagamente
mas eu penso que nós estamos caminhando sim, que a Filosofia vai aos poucos
ganhando espaço, readquirindo a sua dignidade. Readquirindo porque ela existiu
um dia e nós sabemos que todo conhecimento humano nasceu da Filosofia. A
própria Sociologia. A Sociologia, a Psicologia, a História, a Matemática, o
conhecimento, a Medicina nasce da Filosofia.
E que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje? O que o senhor acha que poderia mudar?
Duas coisas importantes que eu li num texto do Deleuze: precisamos
aprender o conhecimento e produzir sobre este conhecimento. Ou seja, trabalhar o
conceito, formar conceito. Uma aluna me escreveu um pensamento bem
interessante, ela disse assim, escreveu: “Por uma escola que nos ensine a pensar e
não apenas a obedecer”. O nome dela é Bruna, do 1º ano noturno do Assis Brasil,
deste ano, 2011.Ou seja, queremos uma escola, isso ela escreveu na minha aula,
eu imagino que ela esteja pensando, que ela reconheça que o meu propósito como
professor, não pode ser diferente, é este, de produzirmos o conceito, pois não basta
“O Fulano disse isso, o Beltrano disse aquilo”, o Jaspers, o Heidegger, o Sartre e tal,
mas e nós, o que pensamos? Como é que, com nossas palavras podemos formar
esse conceito?
E o que mudou depois da implantação da LDB de 96, dos PCN's e depois
até chegar a lei de obrigatoriedade do Ensino de Filosofia, em 2008? O que a
legislação afetou no ensino desenvolvido ali nas salas de aula do Pelotense? Teve
algum reflexo, assim, direto ou o senhor acha que não?
235
Eu não sei, acho que sim. O Pelotense é uma escola com suas
peculiaridades. Eu ali entendia, nós começamos a Filosofia nós tínhamos ela
apenas no segundo ano. E eu defendia que nós tínhamos que ter, isso já há bons
anos atrás, há mais de dez anos, Filosofia no Ensino Médio. Eu ainda não
enxergava uma Filosofia para o Ensino Fundamental. Até porque os livros que se
tem acesso e esses autores da importância de uma Marilena Chauí não escrevem
pra crianças ou pré-adolescentes. Os textos exigem uma certa maturidade que, até
então, eu não conseguia ver em alunos de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries.
E hoje o senhor leciona pra crianças ou só Ensino Médio?
Não, só [no] Ensino Médio. Mas eu defendi a Filosofia no 1º, no 2º e no 3º
ano. Defendia isso, sempre defendi. E, felizmente, a conjuntura era favorável e não
só temos a Filosofia em todos estes anos como temos na 5ª, na 6ª, 7ª e 8ª. E um
detalhe importante: não é uma aula, no Pelotense cada vez que se entra em aula
nós temos um módulo de duas aulas, dá um total de setenta minutos. São dois
encontros de trinta e cinco minutos, é sempre uma aula “dobradinha”, como a gente
chama, então trabalha-se setenta minutos e não quarenta como é no Estado. Dá
uma diferença grande e dá pra planejar melhor e desenvolver melhor o trabalho.
Porque a minha aula, e me parece que a tua pergunta é nesse sentido,ela é,
basicamente, uma aula dialogada. Eu preciso que as pessoas falem, preciso que as
pessoas perguntem para que eu não fale sozinho. Por mais que a gente use
recursos, às vezes o aluno diz: “Bah, mas que aula chata”. Por exemplo, eu estava
falando sobre Existencialismo na última quinta-feira e um aluno disse: “Bah, acho
que eu vou dormir”. Mas é um tema instigante, não estou falando apenas sobre o
conhecimento ou sobre Lógica que pra mim é uma coisa extremamente importante
mas é difícil para o Ensino Médio a Lógica e o Existencialismo a gente fala sobre as
coisas que ocorre em casa, Deus existe, Deus não existe, a liberdade é plena ou
então há destino ou eu sou um ser predestinado, vim ao mundo pra cumprir, para
passar por determinadas situações, sofrer, amar sorrir e chorar, enfim, e o
fundamento disso, “para onde vamos?”, “quem somos?”, “qual é o resultado disso
tudo?”, então, “não há essência?”, “não há um objetivo maior para o nosso existir?”,
“ será que nós não vamos voltar, reencarnar e continuar aprendendo, evoluindo?”.
236
E quais foram as maiores dificuldades ao ensinar Filosofia? E quais foram
os avanços mais significativos na sua prática no Pelotense?
As dificuldades eu acho que elas estão relacionadas à resistência mesmo
ao trabalho filosófico, ao desconhecimento, até de colegas, da Direção, que não
sabia dar valor a isso e não é culpa deles, eles também não estudaram
Filosofia,acho que não, e de uma ignorância geral sobre o que pode a Filosofia,
sobre porque é que devemos ter consciência, o que significa ter consciência?
Conhecer o mundo, pra quê? Qual é a relação da Filosofia com a cidadania? Por
que que quando a gente conhece mais sente-se mais preparado para reclamar os
direitos? E, ao mesmo tempo, sente-se mais sujeito da sua própria vida, da sua
própria história e começa-se a pensar, quando a gente estuda Filosofia, começa a
perceber que nós estamos dentro de um grande círculo que é o planeta e que se
nós reduzirmos esse círculo para a compreensão, vamos chegar à nossa
comunidade. Nós temos uma capacidade de intervenção na comunidade. E é um
direito nosso, e mais do que isso, é um dever, porque é humano. Eu tenho que viver
bem e, dentro do possível, fazer deste mundo algo melhor para aqueles que virão
depois.
Para finalizar, eu gostaria que o senhor falasse da sua prática, do seu
projeto “Filosofando”, do projeto “Utópolis”, contasse um pouco mais da sua
trajetória e de algumas questões que não foram contempladas nas perguntas
anteriores.
Eu sempre procurei pensar alternativas para os problemas que iam
surgindo. Nós tínhamos aqui, à noite, um aluno que era muito amigo de uma moça
muito bonita, super educada e amiga de todo mundo, e ele “brincava” e chamava a
atenção dela e dos colegas, chamava atenção pra si sentando atrás dela e,
frequentemente, queimando as pontas dos cabelos dela. Ela sempre “reagia” com
um sorriso, sempre docemente, respeitosamente, até o dia em que ela disse: “Bom,
vou sair daqui, vou me sentar lá na janela, mas eu quero ficar longe de ti, preciso
ficar longe de ti”. E o pessoal, a gente conversava sobre isso nas reuniões e tinha
gente que dizia que era um caso de polícia, queriam comunicar a polícia, que o cara
tinha que sofrer um reprimenda na forma da lei. Entenda-se: pancada, polícia em
cima dele. Eram alunos do noturno, eram alunos adultos, mas ele era um guri, um
237
gurizão, todos nós fomos adolescentes, todo cara com dezoito anos faz bobagem.
Nunca vi dessas, mas bobagem todo mundo faz. E um belo dia, eu vinha saindo do
colégio, parei ali e ele estava no bar da esquina ali tomando cerveja e me convidou
para eu sentar e conversar com ele. “Puxa eu estou com pressa”. E ele disse:
“Senta um pouquinho aí, professor”. Eu sentei, fiquei conversando com ele e ele
começou a me falar sobre a história dele: os pais se separaram, a namorada brigou
com ele, ele estava usando drogas, enfim...Ou seja, eu entendi aquele queimar nos
cabelos da colega como um pedido de socorro. Acima de tudo, um pedido de
socorro. Era alguém que precisava de auxílio. E daí eu conversei com ele um tempo
e tal e me ofereci pra ajudá-lo em alguma coisa, convidei-o para vir aqui em casa. E
ele me disse: “Professor, eu lhe chamei porque eu acreditei que o senhor poderia
parar pra conversar comigo, porque a maioria das pessoas foge de mim. Eu quero
lhe agradecer e quero lhe dizer que eu vou mudar o meu comportamento em aula.
Não vou mais fazer o que eu fazia. Considere aquilo uma grande idiotice”. Na
verdade eu não fiz nada de mais, eu parei para ouvi-lo. E isso acabou ajudando-o.
Realmente ele mudou, se formou, foi embora, enfim...Mas as pessoas defendiam
que isso era caso de polícia e tal. Eu estava um belo dia numa sala, lá no segundo
andar, e nós saímos, e tinha algumas mesas ali no saguão próximo da escada de
cima. E ali tinham maquetes expostas sobre as mesas. Eram pedacinhos de
papelão colados e tal e tem um sujeito que fez uma vaquinha lá, tinham fios, carro,
um trenzinho, poste de luz, tudo muito bonito. E nós paramos. Que coisa bacana,
quando entramos não tinha, quando saímos já estava ali e era recreio. Eu disse:
“Mas que coisa bonita isso”. Mas o meu comentário foi que: “É uma pena que não
tem vida aí dentro”. E a menina disse assim: “Professor, então vamos colocar vida aí
dentro. Vamos escrever a respeito?”. Eu disse: “Vamos”. Então, o projeto
Filosofando ele nasce ali. Ali nós começamos a escrever não sobre uma casa ou
uma maquete...
Em que ano?
2000. Não escrever sobre a maquete ou sobre uma área mas sobre a
cidade. Então é aquilo que eu te digo que foi publicado aqui: “É possível
construirmos juntos a cidade que queremos e a sociedade que merecemos”.
E o primeiro passo seria idealizá-la.
238
Não. Não exatamente. O primeiro passo, claro que ali sai um trabalho,
mas o primeiro passo seria reconhecer. É reconhecer que nós conhecemos a nossa
cidade. Aí nós nos perguntamos: “Que temas nós gostaríamos de abordar para
escrever um texto sobre a nossa cidade?”. Daí surgiram e evidentemente que eu
não abriria mão da Educação, é claro. Então, Educação, Saúde, Meio Ambiente,
Habitação, Transporte, surgiu também, Segurança, e aí que vem aquele viés que
era pro ano seguinte, a Segurança Pública, esse tema porque ele falava sobre a
vida dos policiais, sobre que o policial saía de manhã e não sabia se ia voltar à
tarde, que quando ele era pequeno sempre beijava o pai antes do pai sair,
preocupado e com medo de que talvez o pai voltasse ferido ou não voltasse. E,
casualmente, esse mesmo aluno tem um pai que tem uma bala alojada na espinha
dorsal e que não tem como retirar. Então ele propôs segurança pública, mas isso já
era pro ano seguinte. Não durou meses como está dito nos jornais, nem naqueles
documentos que a Direção produziu no colégio. O trabalho é anual, ele começa no
início do ano e ele termina no final.
Bom, interessante esse projeto e tu me perguntavas a pouco sobre a
aprendizagem, como os alunos aprenderam. E eu tive que aprender com eles. Nós
organizamos um texto básico e, claro, cada grupo estava fazendo o seu texto, e
caberia a mim como professor organizar o trabalho, dar um corpo final ao trabalho.
Organizá-lo de maneira que ele pudesse ser apresentado à Direção do colégio e
tivesse a importância que nós desejávamos dentro do contexto escolar. E inclusive
para a comunidade, porque, afinal de contas, era esse o nosso objetivo. E daí, um
belo dia eu vou para a sala de aula e digo: “Olha, eu já escrevi”, porque nós
reuníamos à tarde, então fazíamos assim, por exemplo, digamos que eu tinha
segundos A, B, C, D e E. Todos do A, o grupo do A que trabalhava com Educação
se reunia de tarde com a Educação do B, por sua vez, A e B, na mesma sala com
C,C com D, D com E. Isso pra quê? Pra que pudéssemos misturar experiências, que
pudéssemos trocar com grupos heterogêneos e, portanto, experiências diversas, o
mesmo conteúdo. Então, o Luiz, vamos colocar um nome fictício aqui, o Luiz do E
sabia por exemplo, o que, sobre Educação pensava a Mariana do B e assim por
diante. A Mariana disse tal [coisa], o Luiz, não sei o quê, já o Joaquim disse que não
pode ser desse jeito. Então eu achei isso interessantíssimo, eu aprendi muito com
239
isso. Mas quando eu fui para a sala de aula no 2ºD, onde tem uma aluna que eu
faço questão que o nome dela seja citado, é Aline Pereira, esse é o nome dela, essa
menina ela deu uma contribuição muito grande ao processo como um todo.
Empenhadíssima, fez muitas entrevistas, e no dia que nós tivemos a chance de falar
isso publicamente, por alguma razão que eu desconheço, ela não estava presente
e, enfim, fiquei devendo isso pra ela, mas por questões que nos fugiam ao controle.
Mas quando eu cheguei no 2ºD que era a turma da Aline, o pessoal me disse: “Ah,
mas nós citamos expressões como, por exemplo, “prata da casa”, que não está
contemplada no seu texto”. Usaram a expressão “santuário ecológico”, era sobre o
meio ambiente. “E tem mais, professor”, não foi ela quem levantou a mão, mas uma
outra menina, “nós queremos lhe dizer que nós não queremos mais escrever sobre
a cidade só trabalhando com Educação, só trabalhando com a Saúde ou só
trabalhando com o [Meio Ambiente], nós queremos falar sobre a cidade em seu todo
e com todos os grupos”.
A Aline Pereira é uma das [alunas] que pode ser citada que encampou
essa ideia. E ela gostava muito de mim, me admirava muito e adorava Filosofia. E
uma aluna com essa visão... Então, o Projeto “Filosofando” ele foi realmente utópico
porque o que é mais utópico do que demover o professor de uma decisão que não é
dele é dele, mas é legítima, porque é também coletiva, e porque havia sido discutida
em todas as turmas? Isso é utopia, é destituir o poder. Naquele momento, se eu
fosse um sujeito mais autoritário, mais concentrador, eu diria: “Olha, não tem mais
choro, vocês votaram para que fosse assim e assim vai ser até o fim”. Só que com
isso, além de tudo, eu sou obrigado a pensar também, além de receber esse
“tranco”, eu tinha que saber lidar com ele a ponto de ter as condições necessárias
para levar adiante o projeto. Porque o projeto não era meu, era nosso. Então, o que
eles reivindicavam tinha um peso coletivo. Nós éramos quase trezentas pessoas.
Até podia, com um ranço de autoritarismo bárbaro dizer: “Não, é assim e pronto, já
votamos”. Mas aí isso, além de ser antidemocrático, então, o projeto ele é utópico,
ele é democrático, ele é acessível na medida em que todos podem dar a sua
opinião, então sempre houve liberdade suficiente para que disséssemos: “Olha,
vamos desconstituir isso aqui e começar tudo de novo”. Agora, não sei como é que
consegui, mas eu não tive nenhuma reação, eu disse: “Se for o que vocês pensam,
240
nós vamos pensar com calma e vamos começar tudo de novo”. “Mas é isso o que
nós queremos”. “Então, vamos começar agora”. Então aqui houve liberdade,
democracia, utopia, enfim, e houve aquilo que a Filosofia é chamada, houve uma
subversão do processo, porque, afinal de contas, nós tínhamos decidido
democrática, pública, abertamente, quais seriam os rumos do projeto. E eu chego
um dia em aula, começo a ler um fragmento do trabalho e a menina levanta o braço
e disse: “Professor, nós não queremos mais que seja assim”. Bah! “Por quê? O que
houve?” “Não dá, nós estamos discutindo lá e surgem outros problemas... E outra
coisa: eu não quero ser autora do projeto “Utópolis” em Educação. Eu não quero
ser autora do projeto “Utópolis” falando de Habitação. Eu quero o projeto, eu quero
participar dele na sua globalidade, na sua inteireza, na sua totalidade”. “Pô, legal.
Vocês estão me dando aula!”. Tá bom, e aí recomeçamos. Essa experiência aqui foi
interessantíssima. Aqui houve subversão, houve liberdade, democracia, utopia. Por
que utopia? Porque o que está determinado e definido, a princípio não se muda. Já
passou por votação e então entenda-se que, daqui pra diante, as coisas vão
caminhar normalmente.
Então o Projeto Filosofando tem início também porque nós resolvemos,
tem esse nome, aliás, porque nós resolvemos trabalhar com a obra “Utopia”, de
Thomas More. Aí eu fiz diversas cópias, para que nós pudéssemos trabalhar em
grupo, fazer uma leitura e pensar um outro modelo de sociedade e, a princípio, eu
não sabia o que poderia surgir a partir dali mas, por exemplo, separei uma primeira
parte que vai desde o prefácio, evidentemente, até a página 35 e da 36 em diante,
pegamos depois a descrição no terceiro fragmento, uma descrição da utopia, de
Rafael Hitlodeu,baseado nos utopianos, e assim por diante. Então, as pessoas
perguntam: “De onde surgiu o termo Utopia, Utópolis?”. Vem dessa leitura, de nós
pensarmos uma cidade grande, uma cidade maior, não grande apenas no espaço
físico, inclusive usaram, nem sei quem, “Pelotas Metrópole”. E no jornal, seu tu fores
olhar, está ali, eu uso a referência metrópole. Então é um projeto que visa estimular
a criatividade e a inteligência do aluno. A inventividade. Então na primeira fase nós
pensamos, fizemos uma avaliação da cidade, isso em 2003, procurando relacionar
educação e cidadania. Então fizemos isso. Numa segunda parte nós avaliamos a
cidade, então fizemos um “Raio X” da cidade procurando ver quais eram os serviços
241
prestados pela cidade, os serviços prestados pela Administração Pública, e num
terceiro momento, nós trabalhamos com a Segurança Pública, também por sugestão
dos alunos. Na primeira fase, diversos temas, e depois, com a cidade minimamente
constituída como nós imaginávamos, temas outros agora cada vez um tema por
ano, a ideia era essa. Assim, inclusive, proposto por eles que a cidade, o esboço de
cidade já estava pronto.
Uma coisa interessante que fala a Larissa Caldeira, que tinha dezesseis
anos na época, ela dizia assim: “Imaginávamos um outro desfecho. Mas as
respostas à nossa pesquisa mostram claramente que existe uma enorme barreira
entre a população e o Governo”. E aqui tem uns dados sobre a cidadania, sobre o
Orçamento Participativo, para avaliação do Governo do PT nós partimos do princípio
de que eles estavam fazendo um bom trabalho e mudando a cidade para melhor e
para espanto nosso a reação da população não condizia com aquilo que nós
esperávamos como resposta. Então, esse é um pouco do trabalho, por exemplo,
nós para começar os textos e até para justificar o nome “Utópolis” uma aluna propôs
do Herbert de Souza, o Betinho, uma ideia de introdução que é a seguinte: “Eu sei
que é sonho. Mas sem sonho não se constrói a realidade”.
No texto 2, uma outra menina diz: “precisamos falar da imaginação”. E aí
ela foi encontrar em Einstein a seguinte ideia: “a imaginação é mais importante que
o conhecimento”. E de uma leitura nossa sobre um fragmento da República, de
Platão, disse a Larissa: “A utopia é uma forma de sociedade ideal, talvez seja
impossível de realizar na Terra, mas é nela que um sábio deve depositar todas as
suas esperanças”. Então, nós pensamos numa cidade, pensamos um perfil de um
prefeito, um prefeito que tem sua sala, o seu gabinete, que toma café pela manhã,
que caminha pela feira livre, que conversa com as pessoas humildes e o seu partido
é o “Partido da Criatividade Social”. E esse prefeito tem uma relação de amor e ódio
com determinados vereadores, também ouve críticas fortes da comunidade, alguns
chegam a chamá-lo de demagogo, e esse prefeito faz coisas boas mas ele também,
enfim, enfrenta problemas sérios por aí, ele chama-se Heráclito Fontes e ele
aumentou em 20% o número de vagas nas escolas, ele diz que quem trabalha,
trabalha silenciosamente, não é necessário grandes propagandas, o trabalho é
divulgado na medida em que as pessoas vêm “Aqui há uma obra pública”. E ele diz,
242
o prefeito, que os bilhetinhos acabaram e com eles também as indicações para
cargos e empregos. O clientelismo, o conchavo e a corrupção foram banidos da
cidade. Hoje em “Utópolis” o prefeito atende reivindicações por meio da Associação
de Moradores, além disso, as contratações emergenciais obedecem critérios que no
primeiro momento são liberados pela comunidade, sem entretanto, ignorar o serviço
público. Ele tem um desafeto na Câmara de Vereadores com o vereador Ulisses, o
vereador Ulisses ele diz que: “Tudo é uma questão de discurso”. Pois o filósofo
Górgias já ensinava que o bom orador é capaz de convencer qualquer um sobre
qualquer coisa. Então, em que pese todas as suas ideias colocadas em prática,
sempre há uma crítica também severa a respeito do que ele faz. Um projeto
habitacional e uma tentativa de auxílio para com os mais idosos também. Há quem
fale em impeachment e ele lembra que Sócrates ensinou: “Conhece-te a ti mesmo e
conhecerás o universo e os deuses da cidade”.
Bem, na fase ambiental, eu não tenho aqui em mãos as fotos para te
mostrar, mas nós fotografamos no Laranjal e fizemos a coleta da água e chegamos
a conclusões que realmente são bast6ante preocupantes.
Com relação ao policiamento, as entrevistas de rua foram bem
interessantes e curiosas. Dois alunos nossos, nós estávamos na Avenida Duque de
Caxias, então, dois guris e uma guria correram para atravessar a rua. Correram uma
vez, passaram pelo canteiro da avenida e continuaram correndo para encontrar um
senhor com quem eles queriam falar. E esse senhor, com dificuldade, já velhinho,
com dificuldade para caminhar, olhou assustado a primeira corrida deles ao
atravessarem a avenida. Eles continuaram correndo, pararam um pouquinho que
passou um carro e correram de novo. Sempre olhando para ele. E ele deu uma
corridinha também com a dificuldade dele, bateu o portão e ficou assim: parado,
olhando. E eu estou junto, do outro lado da rua, mas estou junto. “Nós queríamos
conversar com o senhor, nós somos alunos do Colégio Municipal Pelotense,
estamos fazendo uma pesquisa”. Ele disse: “Pesquisa! Ah, graças a Deus, eu
pensei que era assalto”. Então, são coisas assim.
Teve uma menina que nós entrevistamos que eu acompanhei a
entrevista, ali perto da Khautz, fizemos isso em diversos lugares da cidade, e
inclusive na Praça Coronel Pedro Osório, durante o dia que é mais [seguro] para se
243
manter vivo. Daí, já na fase da Segurança Pública, a gente perguntou se ela já tinha
sofrido algum tipo de violência. Eu não sei como é que eles fizeram a introdução
exatamente. Mas eu vi que ela olhou para eles, ela já tinha respondido a algumas
coisas, assim, piscou os olhos e logo em seguida deu as costas chorando. Daí as
duas gurias que entrevistaram ela entenderam que ela teria sido vítima de estupro.
Porque eles, enfim, sugeriram assaltos e enfim, e aí ela não respondeu. São coisas
da pesquisa.
E um médico importante aqui em Pelotas, ali próximo ao Café Aquário,
ele disse assim: “Pesquisa do Pelotense? Ah, pára, sai daqui! Vou responder nada”.
São coisas que a gente enfim...
Essa pesquisa ela seria não só para os alunos do Pelotense, mas
também como um tipo de pesquisa de extensão para a comunidade também?
Para a comunidade. O projeto é voltado para a comunidade. É a relação
escola e comunidade. Como é que nós vamos transformar um aluno num sujeito
autônomo, livre, crítico se ele não se envolve com a sua comunidade? Não adianta
ser crítico em relação ao problema financeiro da Grécia. Nós temos que olhar para a
nossa cidade. O mundo em que vivemos e sobre o qual nós podemos agir de
maneira a transformar alguma coisa, a melhorá-lo. Melhorando a nós mesmos,
evidentemente. Uma Filosofia que não pensa a si mesma pode ser qualquer coisa,
menos Filosofia. Então, por essas e outras é que nós ficávamos revendo coisas.
Tem gente que dizia assim: “Mas professor, isso já está decidido”. Só que enquanto
alguém não estava convencido de que assim deveria ser eu estava disposto a ouvir
e a avaliar junto com eles. Até que chegamos. Mas que fique claro o seguinte: nós
não arrancamos a 100km/h. Nós tivemos uma tentativa em 2000 frustrada. Porque
isso aqui depende muito do material humano que se tem. Tu olhas aquelas meninas
lá, tua vais ver. Ali todas elas, uma delas se formou em Arquitetura já e foi embora
de Pelotas. [Acho que ela está] em Cascavel no Paraná. E tem uma outra que é a
Daniele, que está fazendo doutorado em Biologia, parece que é a área dela, eu não
sei te dizer exatamente isso. Mas só pra te dizer o seguinte: que não é uma ideia
luminosa de um professor inteligentíssimo, uma figura altamente criativa. Não! Eu
sou uma pessoa, um pensador sim, fui formado para isso. Mas acontece que o
material humano é fundamental. Então, em 2000 foi difícil, 2001 já deu uma
244
melhorada, 2002 eu digo: “Olha, o negócio está começando a crescer, realmente”.
Porque ao poucos, esse grupo foi se ampliando.
Mas tem os sabores, por exemplo, essa menina Daniele, ela quase que
não falava em aula, na aula de manhã. À tarde, nós éramos um grupo menor, se de
manhã eu tinha 35 alunos, à tarde nós éramos às vezes um grupo com 8, com 10,
com 15. E ia aumentando, ia engrossando, uma coisa interessante. Porque eles se
comunicavam, falavam: “Bah, tu nem sabe que interessante o debate...” . E aquele
já trazia um outro. E mais outro. E assim ia. Mas começou devagar, quase parando,
como tudo. E o interessante é o seguinte: ela à tarde se soltava, como a Maiara,
como uma colega da Lisiane, a Rebeca, o menino Pedro, ótimo aluno, excelente
aluno, que está em Manaus, o pai dele é coronel do Exército, uma coisa assim.
Então, de vez em quando, transferem ele de um lado para outro e vai um pouco
aqui, outro pouco noutro colégio... Ele está na faculdade agora.
Mas o que eu quero te dizer é o seguinte: que este projeto aqui ele não só
fez com que alguns deixassem de usar uma droga à tarde para ir ao projeto, para se
ocupar com alguma coisa válida, alguma coisa significativa, importante para ele,
para a família, para a comunidade, não só trouxe um certo despertar um certo
amadurecimento, como fez com que o aluno da tarde fosse para a aula da manhã
no outro dia mais esperto, mais livre, mais solto, pronunciando-se melhor, dizendo o
que pensa sobre as coisas. Então, o que eu fazia? Pega um aluno desses e ele tem
9,5. Nós usávamos uma nota sobre 10,0. Agora não é mais assim, agora é 30,0.
Grande coisa que fizeram! Mas o aluno tirava 9,5 mas ele era o Pedro e o Pedro era
um cara que ele tem um irmão sociólogo, então ele tem leitura, ele levava livros pra
aula: “Professor, eu li sobre Nietzsche, eu li, por exemplo, “Para além do Bem e do
Mal”” e ele trazia um caderninho com as anotações dele. E eu me peguei, algumas
vezes, dando aula para ele. E aí eu conversava com ele, convidei ele para vir aqui
em casa também e a gente se comunicava por e-mail e tal. Mas o bom disso tudo é
a gente poder lidar com um pessoal que tem acesso à informação de boa qualidade,
porque informação tem muita, agora tem muita coisa que não serve pra nada
também, a verdade é essa. Então ele tinha bons livros em casa e tal, o pai é um
cara que lê, não sei qual é a formação do pai dele, mas acho que é Médico, enfim...
E aí claro, na medida que o cara tirava 9,5, pô, e o cara vem com tudo isso e na
245
prova ele tirou 9,5, eu penso no Pedro, o Pedro não é 9,5, com licença, 10,0. Pedro
é 10,0. Aí eu comentei com umas figuras da Coordenação e: “Ah, mas não pode!”.
Aliás essa é uma das razões porque cortaram o projeto. Porque o aluno que ia à
tarde, melhorava o rendimento pela manhã e eu valorizava, eu valorizo tudo o que o
aluno diz. “Ah, mas não pode porque não é justo com o aluno que não quer vir”. O
problema é dele. “Ele não quer ir à tarde, e agora?”. Ué, ele não perde. “Ah, mas
não é justo”. E aí eu perguntei, porque eu pergunto: “Tá, mas onde é que está
escrito isso? Onde é que está escrito que o aluno de manhã ele é um e à tarde ele é
outra coisa?!”. Como é que eu separo no meu cérebro o Pedro da manhã e o Pedro
da tarde? Como eu faço isso, qual é a mágica? O valor que eu dou a ele como
estudante e um estudante sério e dedicado é o mesmo. Aí o cara tirou 9,7, não mas
tem que dar 9,7. Eu já vi passarem alunos com dificuldades imensas. Esse aqui eu
não estou passando. Ele não tem dificuldade nenhuma. Eu estou reconhecendo a
sua capacidade porque eu vejo este aluno como um todo. Ele de manhã é o Pedro e
à tarde ele é o Pedro. De manhã ele se pronuncia, à tarde ele se pronuncia. E
porque ele ia à tarde e porque era um grupo menor e ele se sentiu mais à vontade e
encontrou um ambiente mais acolhedor, pessoas mais amigas, mais fraternas e ele
se pronunciou melhor ainda e isso fez com que ele também pela manhã me
ajudasse inclusive a dar boas aulas. Então, a minha burrice é essa: eu tento
justificar aquilo que penso. Comigo não tem rolo, não tem porque esconder o que foi
que eu fiz. E assim é a Rebeca, a Daniele, a Larissa, a Fernanda, a Aline Pereira,
ótima aluna, extraordinária aluna, a própria minha filha que foi milha aluna, colega
do Pedro, inclusive e da Rebeca, quer dizer é o material humano que a gente tem.
Agora nos últimos anos eu não estou encontrando esse pessoal. E para o bem ou
par o mal, com o projeto censurado e com o impedimento de ter um encontro com
os meus alunos à tarde...
O último ano foi em 2008?
2008. Foi o ano em que ele foi oficializado, eu tinha uma carga horária e
uma gratificação correspondente a essa carga horária...
Que antes não tinha?
Não. Durante sete anos eu trabalhei de graça. Um ano reconheceram e
usaram o projeto, ele acabou sendo instrumento para algumas pessoas que se
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deram bem, uma vez que chegaram aos objetivos que queriam, aí, “não precisamos
mais disso, não serve mais”. É bem isso: o uso político que fizeram e que algumas
pessoas ainda fazem. E às vezes a gente ouve um vereador dizendo: “Pois é, a
cidade que temos e a cidade que a gente quer criar”.
Taboão da Serra é um município que tem um cara lá também escrevendo
sobre isso. Taboão da Serra, São Paulo. Mas então, acho que um pouco era isso. A
gente faz o que pode, não tem milagre, não tem professor maravilhoso, fui
orientado, isso é uma coisa importante que se diga, pelo professor Francisco Pablo
Állemand Rodrigues. E eu apresentei esse trabalho na FURG no meu pós-
graduação em Educação Brasileira – Especialização. Ele veio aqui no colégio, daí
ele queria que eu continuasse e tal, mas eu não consegui. Não consegui tempo para
isso.
Mas é interessante. A disposição da sala de aula é assim: isso aqui é um
círculo. Essa menina ela tem um depoimento bem interessante também: a Juliana
Moreira. Ela diz: “O trabalho permitiu que a gente expusesse as nossas ideias e
explorasse mais a fundo os temas, usando problemas do passado para buscar
alternativas de melhoras para o futuro. Acredito que o maior problema de Pelotas
hoje na Educação são os baixos salários, os professores acabam tão preocupados
pensando se vão poder pagar as conta no fim do mês que o ensino acaba ficando
em segundo plano. No mundo ideal, não haveria problema de salário e eles
poderiam dedicar-se totalmente ao ensino”. Inteligente, né?!
Enfim, fiz o que pude. Hoje não tenho a mesma, digamos assim, o
mesmo entusiasmo. Não tenho o mesmo entusiasmo porque eu estou com um
projeto que está morto e dependendo de uma decisão da justiça. É como eu te
disse: fui convidado para um encontro em Buenos Aires e eu pretendia falar sobre o
projeto e eu me relaciono com esses autores com Deleuze e tal e fundamentaria por
aí, ampliando um pouco as coisas e não tem como falar de uma coisa que está Sub
Judice. Na verdade, liquidada até a segunda ordem. Impedida. É uma pena, não é
maravilhoso, mas interrompeu-se uma caminhada que tinha bons resultados.
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Entrevista com a Profª Ana Lúcia Pinto de Almeida
(Uma das atuais professoras de Filosofia do CMP)
1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?
Me formei em Filosofia em 1996 e comecei dando aulas de Filosofia no
mesmo ano na UFPel. Em 2002, comecei a dar aulas de Filosofia com um contrato
no município nos colégios Piratinino de Almeida e Bibiano de Almeida, somente para
o Ensino Fundamental. Em 2003, no Pelotense com uma turma de Ensino Médio e
no Bairro Sítio Floresta, de 5ª a 8ª séries. Em 2004, fui chamada no concurso,
ministrei aulas para as sextas séries no CMP e fui chamada no Estado. No ano
seguinte, o CMP me convidou para dar aula no curso de Educação Infantil, em que
estou até hoje. No Estado, dou aulas de Filosofia, Filosofia da Educação e também
de Relações Humanas.
2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de
Filosofia no CMP?
De 2003, até agora.
3. Quais são as suas recordações dessas aulas?
Me lembro bastante da dificuldade de dar aulas para os surdos, porque
eles não têm o vocabulário que a Filosofia exige, lembro de dar aulas pras oitavas
séries da manhã e lembro que quando eu comecei a dar aulas nas sextas séries,
comecei a dar livros de presente pros meus alunos, porque comecei a ter alunos
muito interessados. Dei o “Mundo de Sofia” (de Jostein Gaarder), o “Alienista” (de
Machado de Assis), entre outros. Fiz um gibi de Filosofia com as sextas séries e foi
muito bom. Lembro também de quando eu fui dar aulas para o magistério e fizemos
o projeto “Filosofinhos”, foi muito legal.
4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?
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Eu gosto de ser professora e gosto de ser professora de Filosofia, então
quase sempre, meu discurso é o mesmo para meus alunos, que fui ser professora
de Filosofia para “botar minhoca na cabeça dos outros”. Sempre explico pros meus
alunos qual é a função da “minhoca”, que a minhoca da terra serve para arejar, ela
mexe com aquela terra que está endurecida, fazendo com que ela respire, para que
assim possam brotar coisas novas. E essa é muito a função do professor de
Filosofia, pelo que me proponho, não me preocupo tanto com a questão da História
da Filosofia ou de conceitos muito prontos de Filosofia, me preocupo com que eles
construam, que eles se ponham a pensar as coisas e comecem a pensar por eles
mesmo. É cansativo, é difícil, mas eu gosto muito de fazer isso.
5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?
Trabalho com aula expositiva, com pesquisas, que acho que é importante,
acho que eles têm capacidade de pesquisar. Com as crianças, gosto de trabalhar
com histórias, acho que é mais produtivo, mas não qualquer história, mas histórias
que exijam mais deles. Por exemplo, trabalhar com o “Mundo de Sofia” na sexta
série, foi uma coisa muito legal. Gosto de trabalhar com projetos, eu tenho o projeto
de fazer uma gincana, talvez para o ano que vem. Não faço provas, mas quase
sempre meus trabalhos são como provas, exigem tanto quanto. A maioria deles é
feita em sala de aula, não coisas muito prontas. Uso muitos os verbos “analise” e
“relacione” nos meus trabalhos.
6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?
Cosmologia, que eu adoro, porque acho que prende o aluno iniciante,
questões do mundo, da natureza, que acho que não tem quem não se pergunte.
Trabalho também com Teoria do Conhecimento, Antropologia Filosófica, Política e
Mitologia Grega.
7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?
Eles (os alunos) gostam bastante dos primeiros dos primeiros filósofos, se
identificam bastante com os primeiros filósofos. Gostam muito de um conteúdo que
249
não é propriamente de Filosofia, que é a Mitologia Grega. Vejo que Aristóteles é um
sujeito que chama bastante a atenção.
8. O professor usava algum livro didático? Qual?
Gosto muito do “Filosofando” (de Maria Lúcia de Arruda Aranha) “casado”
com o “Pensando Melhor” (de Angelica Sátiro e Ana Miranda Wuensch).
9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?
Críticas.
10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de
consciências críticas? Por quê?
Faço a minha parte, porém a gente sabe que não depende só disso, tem
as questões culturais, é todo um contexto que não permite que o sujeito vá muito
adiante, mas não seguem porque muitos estão sujeitos ao grupo. Se o grupo não é
propício, é complicado. O grupo exerce uma pressão muito grande.
11.Qual foi a influência do contexto histórico nestas aulas?
Uso a ferramenta da história quando ela é necessária, mas minhas aulas
não seguem a História da Filosofia.
O momento atual brasileiro permite que as aulas de agora sejam mais
críticas.
12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?
Professora na Democracia.
13. Como a Filosofia era vista nesta época? -
14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?
São vários colegas, com vários olhares. Tem o olhar do colega que acha
a filosofia inútil, tem o olhar de alguns colegas que respeitam e pedem para
trabalhar junto.
250
De modo geral, acho que a Direção do Colégio valoriza a Filosofia.
De parte dos alunos, acho que eles ainda têm um pouco de preguiça,
mas têm muita curiosidade. Pego alunos muito bons. Se aprende melhor com o
professor que tu gostas, o vínculo afetivo é importante, tento trabalhar bem dessa
forma. A Filosofia é uma área humana e deve ter tolerância com a questão do
humano.
15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua
formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?
A Filosofia me deu acesso à cultura. Lembro de passar nas bancas de
jornais e ver a coleção “Os Pensadores”. Quando comecei a ter aulas de Filosofia,
comecei a ver quem eram essas pessoas, quem eram os filósofos e o que eles
faziam, fiquei fascinada, ao ver que havia pessoas que pensavam questões da vida.
Eu já gostava muito de ler, mas não tinha direcionamento, a Filosofia me deu essa
direção. Questões interiores, a Filosofia me direcionou pras questões sociais,
orientou a me preocupar com as questões ambientais, para me preocupar com as
questões sobre o fato de que existem pessoas que não têm coisa alguma para
comer, etc.
16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da
ausência deste ensino para a sua formação? -
17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas
de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira? -
18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Imagino que deva ter sido uma grande perda intelectual brasileira, esse
período rompe com a trajetória de crescimento intelectual, as pessoas que
pensavam aqui tiveram que ir pensar fora, foi uma lástima. Mas também, pelo que
meus pais, que tiveram aula de Filosofia dizem, do que eles estudaram, não foi uma
coisa viva, depende muito do professor.
251
19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?
Acho que é uma tarefa muito difícil, pois o mundo chama muita atenção
pra muitas coisas; antes o livro fazia muito mais sentido, hoje o mundo depende
muito do computador e a Filosofia ainda é muito presa aos livros. O mundo é muito
rápido e a Filosofia é muito lenta. Não acho que ela deva entrar na mesma rapidez
do mundo, mas pensar não é uma coisa rápida. O mundo hoje apresenta novas
questões para a Filosofia, como a Bioética, Inteligência Artificial, Eutanásia, as
questões de linguagem, Estética Contemporânea. Essas são novas questões da
Filosofia.
20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao
Ensino de Filosofia nos dias de hoje?
Primeiro, eu não penso que deva haver uma uniformidade nos conteúdos
a serem trabalhados, a Filosofia age de acordo com as necessidades do contexto
daquele sujeito, mas embora não tenha que haver uma uniformidade dos conteúdos,
tem que ter uma uniformidade do professor de Filosofia, um mínimo de suporte para
as questões com adolescentes, e as instituições de ensino deveriam pensar nessas
formações, pensar que estes sujeitos não são tão imaturos que não possam pensar
em certas questões, mas também não é tão maduro que possa pensar como na
academia.
Acho que tem que haver cursos de formação pra quem está na rede, a
carga horária de Filosofia deveria aumentar para os alunos, mas diminuir o número
de turmas que o professor de Filosofia tem. É muito estressante o cotidiano e as
questões da Filosofia são profundas, é um desafio.
APÊNDICE C - Depoimentos por escrito
Depoimento da Profª Drª Arabela Rota
(Ex-professora de Filosofia no CMP em 1963)
Minha experiência com o estudo e o ensino da Filosofia.
Alguns antecedentes...
Em 1960 iniciei meus Cursos de Filosofia e de Direito, na cidade de
Pelotas, após uma trajetória marcada por importantes decisões de vida.
Aos 14 anos saí de minha cidade natal, Santa Vitória do Palmar, cidade
fronteiriça, para concluir o Ginásio e cursar o 1º e 2º anos do Clássico, em Porto
Alegre.
As motivações eram várias: a pequena cidade onde nasci não oferecia
condições para uma boa preparação ao Vestibular, além de não possuir escolas de
2º grau, somadas a minha ansiedade por conhecer o mundo.
Vivíamos isolados do Brasil pela precariedade de estradas e meios de
transporte. Nossa “capital” era Montevidéu e, por esse motivo profundamente
marcados pelo caldo de cultura que se origina da mistura do espanhol com o
português.
Meu 3º ano do Curso Clássico (1959) foi no Colégio Municipal Pelotense,
último ano de funcionamento no antigo prédio, na Félix da Cunha, em frente ao
Correio. A mudança para Pelotas foi uma escolha livre e pessoal, com total apoio de
minha família. O Colégio Pelotense foi paixão à primeira vista. Vinha de internatos
em colégios de freiras e fui morar em uma pensão para moças, onde era dona de
meu tempo e de minhas decisões. Foi um verdadeiro “choque de liberdade”.
A disciplina de Filosofia não fazia parte ainda do currículo dos cursos
médios, mas ela fluía de todas as partes impregnando o clima do colégio,
professores de ciências exatas faziam pregação ideológica e tratavam de temas
políticos e sociais com toda a liberdade. Tínhamos professores “comunistas” e
253
outros, absolutamente “direitistas e conservadores”. Eu era uma autêntica “gato
pelado” assumida e feliz.
O Colégio estava “maduro” para receber em seu corpo docente e entre
seus alunos a Filosofia e o seu ensino, o que ocorreu no ano seguinte.
Quando cursava o 2º ano de Filosofia (1961), o professor Silvino Lopes,
meu professor, precisou afastar-se por um mês em licença médica e convidou duas
alunas para substituí-lo em suas turmas de Filosofia no Colégio Municipal
Pelotense! Foi o paraíso e o terror...
O pânico tomou conta de mim, aluna saída recentemente daquela escola,
tendo de enfrentar alunos mais velhos, do noturno e alguns já trabalhando.
Principalmente os alunos do Cientifico, porque o Curso Clássico tinha outro perfil.
Foi uma experiência fantástica e, pela avaliação de meu desempenho fui convidada
a permanecer no ano seguinte com turmas “minhas”, não mais em substituição.
Minha vida tinha um ritmo acelerado: cursava a Faculdade de Direito pela
manhã, tinhas aulas à tarde no Curso de Filosofia, como aluna e, era professora à
noite no Colégio Municipal Pelotense!
Em 1963, já Bacharel e Licenciada em Filosofia, a Prefeitura de Pelotas
abriu inscrições para um Concurso público para a disciplina de Filosofia no Colégio
Pelotense, fui aprovada e efetivada como professora.
Meu título dava habilitação para lecionar e ter registro profissional como
professora de Filosofia e História.
Logo em seguida a Secretaria de Educação do Estado abriu concurso
para História, fui aprovada e designada para o Colégio Nossa Senhora de Lourdes.
O cearense Padre Gurgel era o Diretor do Colégio e professor no Curso de Filosofia.
Contexto histórico e político
A década de 60 iniciava com fatos significativos na vida política e
institucional do país, com repercussão em minha trajetória pessoal.
Em 1961, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros (mais um agosto
trágico de nossa história) os militares tentam impedir a posse do Vice-Presidente
João Goulart. O Brasil está aquecido, o povo participando e consciente dos fatos de
seu entorno. Nesse contexto o Rio Grande do Sul demonstra mais uma vez sua
254
consciência política. O Governador Leonel Brizola, entrincheirado no Palácio Piratini,
ergue barricadas para defender a posse de Jango, com apoio de grande parte da
população. Era a “Campanha da Legalidade”, que este ano completa 50 anos.
O movimento foi vitorioso e João Goulart é empossado, mas os militares
nunca aceitaram esse fato. Para eles, todos aqueles que apoiavam ou simpatizavam
com a situação vigente eram de esquerda e comunistas. Criaram o Serviço Nacional
de Informações/SNI e tem início um período de “denuncismo” no país. O clima é de
medo e repressão disfarçada, propiciando o surgimento da figura do “informante”.
Tudo isso antes do Golpe de 64.
Na Faculdade de Direito, tradicional local de discussão e ideias
livremente debatidas, ferviam as manifestações e reuniões em nosso Centro
Acadêmico. Cuba havia feito a sua Revolução e vencido. Che Guevara era nosso
ídolo (atualmente sua imagem está poluída, uma lembrança confusa e excesso de
camisetas). Inauguramos fotos de Che e de Patrice Lumumba (herói africano do
momento) na sede do Centro Acadêmico, local que frequentávamos mais que
nossas próprias casas.
E aí veio o Golpe Militar...repressão explícita, perda de liberdade de
expressão, censura na música, no cinema, no teatro etc.
Concluí o Curso de Direito em dezembro de 1964, meu título é de
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Não fui à formatura. Eram momentos
polêmicos, o que fazer, o que dizer, quem seria o orador da turma, quem seria o
Paraninfo. As escolhas eram marcadas pela posição política dos grupos que
compunham cada turma.
Em janeiro de 1965 fui para a Itália estudar Sociologia na Universidade de
Roma. Ganhei uma Bolsa de Estudos patrocinada pelo Governo do Rio Grande do
Sul que premiava os primeiros colocados em cursos superiores, no meu caso, pelo
Curso de Filosofia.
Voltei de Roma onde estudei Pesquisa Social e Sociologia Jurídica, já
direcionando minha formação para a área da Sociologia.
Retornei ás minhas aulas de Filosofia, nessa época também recebi
turmas de Sociologia, nos Cursos Clássico e Científico do Pelotense e História para
alunos do Ginásio no Nossa Sra. de Lourdes. A Sociologia, naquela época, já me
255
havia contagiado para o resto de vida. Era uma decorrência lógica de minhas
tendências inquisitivas e de permanente questionamento diante das relações
políticas e sociais.
Em 1968, a Universidade Católica assinou um Convênio com o Colégio
Pelotense para a cessão de cinco professores. Eu fui um deles. A partir daí iniciei
minha carreira acadêmica como professora universitária de Sociologia, fui
Coordenadora do Departamento de Sociologia e Política por muitos anos e cheguei
a Decana da Área de Ciências Sociais. Em 1975, o MEC proporcionou por Lei, aos
professores com mais de 5 anos de exercício na Cátedra universitária, a inscrição
em um Concurso interno para a conquista do título de Doutor. Nessa ocasião fui
aprovada e recebi os títulos de Livre Docente em Sociologia e Doutora em Ciências
Sociais, dispensada do Mestrado.
As aulas no Colégio Pelotense
Vencido o pânico inicial, passei a adorar os meus encontros com a
Filosofia.
Minhas turmas eram de alunos do Clássico e do Científico, como já foram
caracterizadas pelos professores Silvino Lopes Neto e José Luis Cavalheiro Leite, o
primeiro me antecedeu e o segundo me seguiu.
Contrariamente ao que eles afirmam, minha identificação total era com os
alunos e alunas do Clássico. Era eu de um lado e eu do outro. Entende?
Esse grupo eu não precisava conquistar, enquanto que com os alunos do
Científico era necessário, antes de mais nada, situá-los no campo da Filosofia e o
porque daquela disciplina que, para eles, não tinha nada a ver com as matérias do
famoso Vestibular. Até fazê-los entender que os primeiros filósofos foram grandes
matemáticos, físicos, astrônomos etc. e que Pitágoras antes de ser um Teorema era
um importante filósofo, levava tempo.
Aprendi no último ano da Licenciatura em Filosofia, como preparar um
Plano de Aula, um Plano de Curso e a Didática adequada e necessária para dar
uma aula.
O conteúdo de minhas aulas era preparado cuidadosamente e, posso
confessar que aprendi realmente Filosofia e História nessa época. Observava o
256
Programa do Curso e cada aula tinha começo e fim, ou seja, nunca deixava o tema
abordado sem uma conclusão. Apresentava o tema e suscitava a discussão e o
debate. Como em todo o grupo, havia sempre alguém querendo monopolizar e eu
administrava os tempos. Havia um clima de bem estar e tranquilidade, costumava
sentar “na” (sobre a) mesa do professor, isto causava um certo espanto por ser
inovador. Caminhava ente eles e costumava dizer que minhas aulas eram
“peripatéticas” como as de Sócrates e Platão e me imaginava caminhando pelo
Parthenon.
A História da Filosofia era meu fio condutor. No Clássico tinha dois anos
para trabalhar esse material, com tempo para iniciar pelos Pré-Socráticos, chegar a
Filosofia Grega, passar pelos Tomistas e a Agostinianos, seguir pelos filósofos
alemães (Kant, Hegel, Engels, Kierkegaard), os existencialistas Nietzsche,
Schopenhauer e Sartre, chegar aos ingleses (Thomas Hobbes , “o homem é o lobo
do homem”), os franceses (Jean Jacques Rousseau, Augusto Comte e o surgimento
da Sociologia como Ciência e os espanhóis como Ortega y Gasset. Em algumas
turmas trabalhei a Filosofia Hindu e o Budismo.
No Cientifico o programa era uma Introdução à Filosofia, com conceitos
mais básicos e algumas noções de História da Filosofia.
A História da Filosofia não era uma simples narrativa cronológica e
engessada, isenta de análise crítica. Era o meu prumo para, dependendo da turma e
do interesse despertado, aprofundar e/ou destacar doutrinas e correlacionar com o
momento vivido. Tudo com muito cuidado, sem deixar de explicar a Dialética de
Hegel e a fundamentação filosófica do marxismo em Engels.
Os livros eram caros e um pouco inacessíveis para os alunos. Minha
bibliografia era mencionada, mas os alunos tomavam anotações das aulas. Meus
livros foram comprados durante o Curso de Filosofia (Leonel Franca) e depois
autores espanhóis e alemães (Klimke, Ortega y Gasset) comprados em bibliotecas
na Itália e Espanha. Levava para as aulas meus livrinhos da “República” de Platão e
da “Política” de Aristóteles e deixava que os manuseassem.
Creio que eram duas ou três aulas semanais para o Clássico e uma ou
duas para o Cientifico. As avaliações eram provas escritas, dissertativas e exigiam
257
uma boa análise crítica e capacidade de raciocínio, além da comprovação de
conhecimento dos conteúdos trabalhados em aula.
A Filosofia Grega e, mais adiante, a alemã, pontificada por Kant e o
Budismo, tinham a minha preferência.
Havia respeito pela disciplina de Filosofia e seus professores, mesmo
quando entendida por alguns como um acessório. Ousaria dizer que os teóricos do
período da ditadura (leia-se Golbery do Couto e Silva) custaram a perceber o quanto
o seu ensino levava a pensar o mundo e suas relações políticas e sociais. Talvez
por esse motivo só em 1972 foi retirada dos currículos escolares. É obvio o porquê
de sua eliminação. Mas a Sociologia assustava muito mais. Ser sociólogo era pressuposto de
esquerdista e comunista. Só após a abertura política conseguimos registrá-la como
profissão e eu fui uma das primeiras, já residindo em Brasília, a fazer meu registro
como Socióloga.
Quanto à nossa convivência com os professores de OSPB e EPB, posso
dizer que era civilizada e pacífica. Eram, na sua maioria, militares da reserva, com
perfil nacionalista e defensores da doutrina da defesa nacional.
258
Depoimento do Prof. Maurício Cunha (Professor de Filosofia no CMP desde 2004 e atual coordenador da área de
Filosofia)
1. Qual é a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período da
pesquisa (de 1960 a 2008)?
Eu sempre me interessei por Filosofia “saber mais o mundo que vivo”.
Saber o porquê das coisas, fiz universidade nessa época e me formei [em]
“Licenciatura em Filosofia”.
2. Desde que ano você leciona Filosofia no CMP? Você é efetivo ou
contratado? Qual é a sua carga horária?
2004 – Efetivo – 20 horas
3. Para que turmas e cursos você lecionou (leciona)?
Turmas 8ª séries 2011, já lecionei 2º anos e 7ª série no Pelotense. Em
outras escolas, 1º, 2º e 3º anos.
4. Quais são suas recordações das aulas no período de 2000 a 2008?
Referente à disciplina de Filosofia, nessa época ainda se encontra um
pouco mais de resistência por parte do aluno em saber o que era Filosofia e qual
era a sua proposta.
5. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado? -
6. Que didáticas e práticas de ensino eram (e são) desenvolvidas em
aula?
259
A didática que mostra o assunto tratado de maneira ampla e objetiva. E
que ofereça ao aluno um bom entendimento do assunto.
7.Quais conteúdos você lembra terem sido (são) trabalhados na
disciplina?
Ética, Percepção, Senso Comum, Senso Crítico, Nascimento Filosofia,
Política, Lógica, Estética, Verdade, Pensamento, Razão, Discriminação, Violência...
8. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi (ou é) enfocado?
Qual?
Dependendo do assunto é trabalhado várias visões para que o aluno
tenha uma percepção global do assunto.
9. Você usava(usa) algum livro didático? Qual?
Sim, Cotrim, Marilena Chauí, Maria Graça Aranha.
10. Você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava (prioriza) o
cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia (prefere) considerar o
contexto, através de discussões, diálogos, etc?
Tenta-se unir o útil ao agradável, isto é, o conteúdo através de
discussões, diálogos...
11.Qual foi (é) a influência do contexto histórico, social e político nessas
aulas?-
12. Como a Filosofia era (é) vista pela comunidade escolar? O Ensino de
Filosofia era (é) valorizado perante a comunidade escolar? -
13. Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a
formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma
sociedade?
260
Creio que o ensino de filosofia contribui muito com a formação do cidadão
crítico em nossa sociedade.
14. Se você não teve a disciplina de Filosofia na sua formação inicial no
período em que era estudante (Ensino Médio), quais são os reflexos da ausência
desse ensino para a sua formação?
Tive aulas de Filosofia no 2º grau.
15. O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Ora, um governo que “quer que uma sociedade não pense” isso era
natural e essencial. Mas, foi uma geração que foi bitolada por atos muito fortes na
parte da educação e política.
16. Você participou de algum movimento ou luta a favor da inclusão e/ou
obrigatoriedade da Filosofia nas escolas?
Sim.
17. Como se deu a inserção do Ensino de Filosofia no CMP para as
turmas de 5ª a 8ª séries? Como foi e está sendo trabalhado o Ensino de Filosofia
para crianças? Que referências teóricas e metodologias são utilizadas para estas
aulas? -
18. Como você enxerga a obrigatoriedade da Filosofia através da Lei
nº11.684/08 ? Houve alguma mudança depois da implantação dessa lei?
É um ato que tenta fazer o nosso cidadão ser mais consciente no mundo.
19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje?
261
Depoimento da Profª Flávia Schaun
(Professora de Filosofia no CMP desde 2007)
1. Qual é a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período da
pesquisa (de 1960 a 2008)? -
2. Desde que ano você leciona Filosofia no CMP? Você é efetivo ou
contratado? Qual é a sua carga horária?
Leciono filosofia no CMP desde 2007, sou efetiva e tenho carga horária
de 20 horas.
3. Para que turmas e cursos você lecionou (leciona)?
Atualmente leciono para turmas de 5ª e 6ª séries.
4. Quais são suas recordações das aulas no período de 2000 a 2008?
No período de 2000 a 2008 pouca experiência tive, visto que comecei a
dar aulas no ano de 2007, e como estava começando, as únicas recordações que
tenho são de um começo difícil, lidar com a falta de interesse dos alunos
desanimava um pouco.
5. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?
Avalio o meu trabalho como professora de filosofia a cada ano que passa,
pensando sempre que tenho muito a melhorar, buscar novas maneiras de trabalhar
os assuntos. Penso que devemos estar constantemente nos autoavaliando, para
realizar um trabalho cada vez melhor.
6. Que didáticas e práticas de ensino eram (e são) desenvolvidas em
aula?
262
Em aula utilizo textos para reflexão, debates, filmes...
7.Quais conteúdos você lembra terem sido (são) trabalhados na
disciplina?
Os conteúdos trabalhados são: origem da filosofia; períodos da filosofia,
Sócrates, Platão, Aristóteles; conhecimento...
8. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi (ou é) enfocado?
Qual?
Geralmente, como trabalho com 5ª e 6ª séries falamos bastante sobre os
filósofos gregos.
9. Você usava(usa) algum livro didático? Qual?
Vários: COTRIN, CHAUÍ...
10. Você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava (prioriza) o
cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia (prefere) considerar o
contexto, através de discussões, diálogos, etc?
No planejamento das aulas tento cumprir os conteúdos, mas de acordo
com a maneira que a turma reage, pois não adianta cumprir com o conteúdo
programático sem que o aluno tenha realmente aprendido, é preciso tornar os
assuntos interessantes a eles.
11.Qual foi (é) a influência do contexto histórico, social e político nessas
aulas?-
12. Como a Filosofia era (é) vista pela comunidade escolar? O Ensino de
Filosofia era (é) valorizado perante a comunidade escolar?
Na minha opinião o ensino de filosofia não é muito valorizado pela
comunidade escolar, e sim visto como algo desnecessário, que ali está somente por
ser obrigatório.
263
13. Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a
formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma
sociedade?
A filosofia contribui para desenvolver a capacidade dos alunos de criticar,
de pensar, de ter opiniões sobre os acontecimentos do mundo, e não apenas
assistirem e aceitarem tudo como está.
14. Se você não teve a disciplina de Filosofia na sua formação inicial no
período em que era estudante (Ensino Médio), quais são os reflexos da ausência
desse ensino para a sua formação?
Na minha formação não tive filosofia, e hoje em dia percebo que fez muita
falta, pois gostaria de ter tido uma disciplina em que pudéssemos debater assuntos
atuais, ou seja, tentar entender melhor o mundo em que vivo.
15. O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?
Penso que é mais fácil para quem tem o poder, proibir do que enfrentar,
do que ter argumentos a seu favor, e como a filosofia está sempre questionando, ela
representava uma ameaça.
16. Você participou de algum movimento ou luta a favor da inclusão e/ou
obrigatoriedade da Filosofia nas escolas?
Não.
17. Como se deu a inserção do Ensino de Filosofia no CMP para as
turmas de 5ª a 8ª séries? Como foi e está sendo trabalhado o Ensino de Filosofia
para crianças? Que referências teóricas e metodologias são utilizados para estas
aulas?
Quando a filosofia foi inserida no CMP no ensino de 5ª à 8ª séries, eu
ainda não estava lecionando, mas posso dizer que ainda busco maneiras de melhor
trabalhar os conteúdos para torná-los interessantes e não cansativos. Uma boa
alternativa é o uso de filmes, que atraem muito a atenção dos alunos, além de
facilitar no entendimento sobre o conteúdo.
264
18. Como você enxerga a obrigatoriedade da Filosofia através da Lei
nº11.684/08 ? Houve alguma mudança depois da implantação dessa lei?
Depois que a lei foi implantada, várias escolas que antes não trabalhavam
com a disciplina de filosofia, começaram a trabalhar, acredito que a lei só se fez
cumprir algo que já deveria existir. Muitas pessoas não conhecem filosofia, nem ao
menos sabem o que é filosofia, mas depois que as escolas se viram obrigadas a
incluir a filosofia entre suas disciplinas, aos poucos as pessoas estão conhecendo e
vendo o quanto ela é algo importante.
19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia
nos dias de hoje?
Não acho necessário “mudanças” no ensino de filosofia, mas sim que
cada professor se esforce para dar suas aulas da melhor maneira, torná-las
atraentes, enfim, que goste do que faz.
APÊNDICE D – Termos de autorização da pesquisa
Termo de Apresentação e Autorização – Colégio Municipal Pelotense
266
Termos de Consentimento livre e esclarecido
267
268
269
270
271
272
273
274
275
276
ANEXOS
ANEXO A – Lista de Pontos Organizados para a 2ª prova parcial – Prof. Dr. Silvino Lopes Neto – 1960
278
279
280
ANEXO B – Plano de Ensino – Prof. Dr. Silvino Lopes Neto
281
282
283
284
285
ANEXO C – Programa: Filosofia – Profª Drª Arabela Rota – 1967
286
ANEXO D – Programas Filosofia – 1971
287
288
289
290
291
292
293
ANEXO E – Programa de Filosofia – 1972
294
295
ANEXO F – Educação Moral e Cívica – 1972
296
297
298
299
ANEXO G – Plano de Curso – Organização Social e Política Brasileira – 1974
300
301
ANEXO H - Material de campanha pelo retorno da Filosofia no 2º grau – UCPel – década de 1980
302
ANEXO I – Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983
303
304
305
306
307
308
ANEXO J – Parecer vencedor do Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983
309
310
311
ANEXO K – Situação final do Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983
312
313
ANEXO L – Jornal do Diretório Acadêmico Leonel Franca – 1982
314
ANEXO M – Projeto Filosofando – Prof. Ubirajara Pereira Velasco – 2007
315
316
317
318
319
320
321
322
ANEXO N – Repercussão em jornais locais do Projeto Filosofando
323
324
325
326
327
328
329
ANEXO O – Portaria de Reconhecimento Nº 06.505 de 04/02/81 – 2005
330
331
332
ANEXO P – Programas de Filosofia – 2008
333
334
335
336
337
338
339
340
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