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Marajó e Vaqueiros: Memórias de ofício, épica e ancestralidade.1
JOSEBEL AKEL FARES2
VENIZE NAZARÉ RAMOS RODRIGUES3
O vaqueiro marajoara é mais que a representação de um ofício da região dos campos
marajoaras, é ícone do Marajó, pois não é possível pensar neste território sem a presença das
fazendas e trabalhadores do gado e toda uma cultura decorrente deste espaço e desta relação.
Este ofício remete a práticas ancestrais, pois é herdado através das cadeias familiares, onde, avós,
pais, filhos, fazem da arte de ser vaqueiro, além de fonte de sobrevivência, marca indenitária de
uma região que historicamente se afirmou no cenário econômico regional pela pecuária e seus
derivados. Assim, pesquisar o mundo do vaqueiro marajoara, os saberes da experiência e as
marcas do ofício são aspectos fundamentais para caracterizar as permanências e mudanças na
região e em especial no município de Soure, herdeiro da vaqueirice tradicional, cultura ancestral
que aproxima e opõe práticas à vaqueirice moderna – aquela que finca raízes nas regiões hoje
referência na pecuária paraense – região Nordeste e Sul do Pará.
Poucos são os estudos sobre este trabalhador dos campos marajoara, apresentamos
alguns, baseado nos estudos de Fares (2003):
O arquipélago do Marajó, formado pelas ilhas do Marajó, Caviana, Mexiana entre
outras, corresponde a quase 20% do território paraense. É o maior arquipélago fluvio-
marítimo do mundo, tem uma área de 65.394 km². A ilha do Marajó detém 49.606km²
dessa área territorial, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Uma demonstração da grandeza geográfica marajoara é a comparação com as
dimensões da Bélgica (33.520km²), da Holanda (33.940km²), Dinamarca (43.075km²) e
1 - Pesquisa financiada pela FAPESPA- Fundação Amazônia Paraense de Amparo a Estudos e Pesquisas.
2 - Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP),mestra em Teoria Literária (UFPA). Professora titular do
Departamento de Arte e do Programa de Pós-Graduação em Educação, coordenadora do Núcleo de Pesquisa
Culturas e Memórias Amazônicas (Cnpq) da Universidade do Estado do Pará
3 - Historiadora, mestre em Educação: Docência Universitária, pelo Instituto Pedagógico Latino Americano e
Caribeno, Universidade Felix Varella-Cuba. Licenciada em História pela Universidade Federal do Pará. Professora
Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Pará. Membro do Núcleo
de Pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (Cnpq) da Universidade do Estado do Pará.
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Suíça (41.285km²). O espaço localiza-se no delta do rio Amazonas, no extremo norte do
Pará, próximo à linha do Equador. É banhada ao norte pelo oceano Atlântico, a leste e
ao sul pelo rio Pará e a oeste pelo rio Amazonas (foz).
Lúcio de Castro Soares (1966), em Tipos e aspectos do Brasil, apresenta traços físicos e
algumas formas de vestir do vaqueiro tradicional: o caboclo, mestiço de branco e índio, que
trabalha para o fazendeiro, recebendo salário, casa e alimentação. De “vestimenta sóbria, camisa
e calça de pano claro, chapéu de palha de trançado muito unido, com abas largas e planas, copa
achatada e forrada”. Esta representação rápida e superficial mostra o vaqueiro apenas na
exterioridade.
Giovanni Gallo, em Painel d’ O Museu do Marajó4, apresenta a personagem em dois
tempos. Sobre o vaqueiro à moda antiga, explica que o relacionamento do “dono” com vaqueiro e
do vaqueiro com a cidade eram substancialmente diferentes. A tradição era repassada: “filho de
vaqueiro era vaqueiro, eram poucos os que conseguiam libertar-se da cerca, que prendia bichos e
homens”. Ele vivia preso no serviço e “o conhecimento profundo da natureza enchia o vácuo das
informações externas, para voar mais alto recorria à ajuda dos duendes preferidos como a cabocla
Mariana, Custódio da Boa Vista e concluía satisfeito: melhor que Deus ninguém” Até alguns
anos atrás, a situação social do vaqueiro era ainda mais precária, porque a maioria não tinha
carteira assinada e recebia como pagamento o rancho do mês. Ele dependia inteiramente do
patrão, que podia tratá-lo como membro da família, ou como escravo.
Agora, continua Gallo, o vaqueiro moderno conhece seus direitos, apesar de que, às
vezes, ainda seja vítima de padrinhos, que os exploram em lugar de defendê-lo. O pesquisador
aponta mudanças ocasionadas pelo processo de globalização, como a substituição da baeta de
feltro e o chapéu de carnaúba pelas capas de plástico e bonés de pano e o sumiço do artesão de
couro, devido à troca do couro pelo náilon nos utensílios do vaqueiro. Por fim, o autor ainda
registra o enfraquecimento do repasse da tradição do ofício e o problema da educação escolar,
que, muitas vezes, compreende a própria desestrutura da família.
4 “O Museu do Marajó é uma criação de Giovanni Gallo, inaugurado em Santa Cruz do Arari (1972), local onde o
pesquisador inicia a coleta e a pesquisa dados, com a colaboração decisiva da comunidade daquele município. O
Museu constitui o maior acervo sobre o Marajó, existente no Brasil, quiçá no mundo. Tempos depois da instalação,
devido a problemas políticos, a instituição transfere-se para Cachoeira do Arari (1984), a convite da prefeitura da
cidade. Hoje, ocupa uma extensa área de bosque e pântanos da Prefeitura Municipal de Cachoeira, que também
contrata os funcionários do Museu.
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O escritor marajoara Dalcídio Jurandir (1942), ao comentar as diferenças entre os dois
lados da ilha, contrapõe tipos de habitantes, baseado nos processos de produção. Estuda o
vaqueiro e o seringueiro: na região dos campos, embarca-se o gado; na região dos furos,
embarca-se a madeira. A análise da figura do vaqueiro compõe-se de tipo físico, formas de
sobreviver, religião e devoções, além outras ocupações. O autor cria um ideal de vaqueiro aos
moldes tradicionais, e o apresenta como um caboclo de descendência aruan, reconhecido pela
bravura, enfrentamento dos perigos da fauna, das enchentes.
Ainda assim, citamos os recentes estudos, como a dissertação Entre a sela e o santo: um
estudo sobre a identidade do vaqueiro marajoara, de Marinete da Silva Bulhosa (2007), defendida
no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/ Antropologia (UFPA), a dissertação
Educação, memórias e saberes amazônicos: vozes de vaqueiros marajoaras, em fase de
finalização, de Délcia Pombo, do Programa de Pós Graduação em Educação (UEPA). A Épica
do Vaqueiro Marajoara: (Auto)Biografia de Juvêncio Amador e Cartografias de Saberes no
Marajó, de Josebel Akel Fares, artigo produzido no estágio pós-doutoral (PUCRS, 2012)
Este estudo junta-se e baseia-se nos estudos citados e em outros trabalhos produzidos
sobre o Marajó e pretende explorar o cotidiano do vaqueiro, pelas vozes de vaqueiros
aposentados, cujas memórias se remetem a seus duros ofícios, saberes, rotinas de trabalho,
aspirações, relações com seus pares, com seus patrões e com a natureza. Narrativas de pessoas
que pelejaram nos extensos campos marajoaras em busca de sua sobrevivência e do prazer em
vaqueirar, verbo que congrega os saberes e fazeres da arte de ser vaqueiro.
A História Oral como metodologia de pesquisa aproxima e possibilita conhecer e explorar
este universo visto pelas lentes dos protagonistas do processo estudado, o que amplia o foco de
análise e traz cores, vida e sentimento à história, cujos testemunhos carregam memórias
impregnadas de emoção.
Por ser uma história construída em torno de pessoas, lança a vida para dentro da própria
história, como quer Thompson (1992: 44), pois na escuta das diversas experiências de vida as
memórias individuais articulam-se às memórias coletivas, onde cada intérprete fornece
informações e versões sobre si próprias e sobre o mundo no qual vive ou viveu, possibilitando
gerar novas histórias, novos temas e objetos, histórias parciais e plurais no lugar da interpretação
única e abrangente (POLLAK, 1992). Com muita propriedade, Portelli (1991:16) pondera ser a
História Oral, um entre muitos procedimentos metodológicos de construção do conhecimento
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histórico, que “tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os
quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são
diferentes, porém formam um todo depois de reunidos”.
Depoimentos e memórias de testemunhas permitem identificar tempos, espaços e
memórias daquilo que se viveu, possibilitam novas leituras da realidade investigada. Assim
chegamos aos intérpretes deste trabalho, os vaqueiros marajoaras aposentados Vitor Silva Seabra,
Irandir Maciel Vasconcelos e suas esposas Raimunda Maria dos Santos Seabra e Ana Maria
Vasconcelos, Laercio Martins Amador, filho do vaqueiro Juvêncio, já falecido, referência da
vaqueirice na região, e sua irmã Luci que por viver em fazenda grande parte de sua vida, muito
tem que contar. Todos esses intérpretes residem atualmente no município de Soure, no arquipélago
de Marajó, cujas vozes contribuem para perceber tempos e experiências recônditas não
registradas pela história, ampliando o conhecimento sobre a tríade vaqueiro-fazenda-Marajó.
As entrevistas narrativas foram realizadas em suas residências, com duração aproximada
de duas horas cada, devidamente orientadas por um roteiro que sinalizava questões da pesquisa,
mas sem aprisionar a expressão dos depoentes. Nestas ocasiões tivemos acesso a outras fontes
como revistas, jornais antigos, fotografias, emprestados pelos entrevistados, que guardam estas
fontes como relíquias, pois registram seus feitos, suas memórias e de familiares.
Nas entrevistas de Irandir e Vitor, as esposas estiveram presentes e acompanharam toda a
sessão, intervindo em momentos necessários, quando a memória de seus companheiros hesitava e
a fala silenciava. Daí, passaram a ser consideradas também testemunhas relevantes para fins deste
trabalho, dado percebermos que vivenciaram percursos e experiências da vida em fazenda com a
mesma intensidade que seus companheiros, com funções diferenciadas, mas complementares e
igualmente importantes para o funcionamento daquela unidade de produção. Elas impuseram
suas presenças e seus saberes às pesquisadoras, surpresas agradáveis que metodologias deste
porte permitem acolher; revelaram o quanto o sentimento de casal, ou de família, é marcante na
vida destas pessoas, pois não estavam no script da entrevista, mas assumiram este lugar desde o
momento inicial, sabedoras de que seus esposos seriam entrevistados. Ou quem sabe
consideraram-se igualmente importantes para falar sobre assuntos que dominavam com maestria,
lição importante que logo as pesquisadoras aprenderam.
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Vitor Silva Seabra, conhecido como Vitinho, tem 81 anos, dos 48 foram trabalhados na
fazenda Tapera. As grandes fazendas, como citado por Miranda Neto (2005:80-81), estudioso do
Marajó, compreendem o corpo da fazenda ou a sede onde mora o proprietário ou administrador e
onde pasta a maior parte do melhor gado. Mais além, circundando o corpo da fazenda, estão as
fazendas secundárias que lhe são adjacentes. E finalmente os retiros, afastados da casa grande
como verdadeiros postos avançados, às vezes, limítrofes entre as propriedades.
Vitinho fez carreira na profissão, foi diarista na Fazenda Degredado, mensalista na
Flecheira e gerente na Filhos de Eva, todos estabelecimentos da grande fazenda Santa Cruz da
Tapera.
Olha, vou lhe explicar: eu nasci no retiro Degredado, que era retiro lá da
fazendo Filhos de Eva, lá perto um do outro, era como daqui quase em
Salvaterra5 ou mais longe um pouquinho. Aí, de lá eu fui trabalhar, trabalhar
por dia, diarista, depois passei a vaqueiro na fazenda Flecheira, depois
passaram eu pra fazenda Filhos de Eva. Eu trabalhava com meu sogro, o pai
dela [referindo-se a esposa ao seu lado]; como deu um passamento, derrame
nele e ele num pôde mais trabalhar. Eu era novo, finado Juvêncio, finado Pedro
Martins, finado Mimi, tudo é finado e eram meus vaqueiros lá. E aí eu comecei
a funcionar lá, e aí quando o velho pai dela vinha, aí eu entregava o serviço, ele
ficava tomando conta (Vitinho 2012)6.
De substituto de seu sogro, Vitor foi elevado à condição de gerente efetivo, seguindo as
ordens do dono da fazenda, S. Domingos Acatauassu. O vaqueiro-gerente conta a história e
lembra o diálogo entre ele, o empregado, e o patrão:
Daí o dono, doutor Domingos Acatauassu me chamou
- “Seu Vitor, olha, tá nas tuas mãos, o lugar que cê vai ficar, toma conta lá
agora que seu sogro num pode mais, você vai ficar tomando conta lá da
fazenda”.
Aí eu disse:
- “Não, mas tem gente mais velha, doutor, e eu sou novo”...
- “Num tem nada a ver com isso! Eu tô te dando a oportunidade, se tu perder é
por ti. Tu pode até fazer errado o serviço, mas diga quem me deu a ordem foi
doutor Domingos, deixa falarem”
Foi, aí pronto, peguei, peguei e fiquei trabalhando.
Vitinho narra a história do pai que trabalhou quarenta anos no Retiro Degredado,
pertencente à fazenda Santa Cruz da Tapera, local onde ele, o filho, nasceu e trabalhou quarenta e
oito anos. Várias gerações de vaqueiros estão presentes no cotidiano da fazenda, a arte da
5 Salvaterra é uma cidade vizinha de Soure, local da pesquisa. Elas são separadas pelo rio Paracauari. 6 Todos os depoimentos orais serão grafados em itálico.
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vaqueirice se aprende no dia a dia, no repasse da tradição transmitida pelos pais e ou parentes
próximos. Filho de vaqueiro vai ser vaqueiro, profissão ancestral.
Ganhava um salário como vaqueiro, como gerente um pouco mais. Quando eu
comecei trabalhar foi com meu cunhado, esse que veio com dois meses, três
meses morreu. Eu saía de casa com um saquinho de farinha, uma água, saía
nove e meia da manhã, chegava nove e meia da noite (...). Trabalhei muito. Aí
eu comecei a trabalhar com ele, foi, lá ele me deu uns cavalos mais ou menos
mansos pra eu começar a treinar, aí fui treinando muito cavalo pra amansar, aí
recebi sete potros.
Casou-se com Raimunda Maria dos Santos Seabra, 79 anos, em 1952, e tiveram treze
filhos, “todos na parteira, lá na fazenda, onze mulheres e dois homens.” S. Vitinho fica feliz em
ter 11 filhas, pois “são mais adomadas”.
Irandir Vasconcelos, 73 anos, conhecido como Iranda, nasceu na fazenda Tapera, casado
com Ana Maria Vasconcelos, neto de Andrônico, filho de Roque e pai de Ernani. Os dois filhos,
também vaqueiros, completam quatro gerações na fazenda Tapera.
Eu iniciei na Tapera, aí eu fui fundar Flecheiras que era pertinho. Passei na
Flecheiras dezoito anos, aí voltei pra Tapera, conclusão que quando eu me
aposentei...retornei mais catorze anos lá, quando eu vim da firma eu tava com
cinquenta e quatro anos, seis meses e quinze dias, a minha vida foi só lá. O vovô
era vaqueiro, o papai seguiu, eu segui, meus filhos seguiram, a família. Já é a
quarta geração (Iranda, 2012).
Em uma sociedade que ainda conservava resquícios de patriarcado, o dono da fazenda é
espécie de patrão e pai onisciente, como afirma Miranda Neto (2005), que enfatiza o respeito dos
empregados em relação aos patrões como elemento neutralizador do antagonismo nas relações
de trabalho, em nome dos laços de compadrio e apadrinhamento existente.
A Fazenda Tapera, onde atuaram os dois vaqueiros entrevistados e suas esposas
Raimunda e Ana, era fazenda antiga que se constituía em verdadeiro latifúndio, tal era sua
extensão. Pertencia a Domingos Acatauassu que a recebeu de herança do pai que a comprou em
1910, parte da sesmaria S. Luiz. Dita Acatauassu, esposa de Domingos, falecida em 2006, com
97 anos, mudou-se para a fazenda Santa Cruz da Tapera após uma semana do casamento. Esta
mudança representa uma guinada em sua vida, uma vez que era acostumada às comodidades da
urbana em Belém.
Dita assumiu a direção da fazenda junto ao marido, a lida com os peões no dia a dia, as
responsabilidades de grande dama, as obras sociais, a abertura para as coisas do Marajó desde as
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articulações econômicas, políticas, os encontros, os fóruns de fazendeiros, nos quais sempre se
destacava. Sua fazenda foi alvo da visita de pessoas influentes e autoridades, como governadores
e lideranças políticas e do mundo empresarial, como o rei Gustavo, da Suécia, o herdeiro do trono
inglês Príncipe Charles, os generais Garrastazu Medici, João Baptista Figueiredo e Ernesto
Geisel, presidentes do Brasil. Além desses, recebeu numerosas personalidades do mundo das
artes e nomes famosos do cinema, da televisão e da dramaturgia nacional, como Tarcísio Meira,
Glória Menezes e Beth Farias. Um grande aparato de segurança e conforto era assegurado para
garantir tão ilustres visitas.
Gerações (de vaqueiros nasceram e trabalharam na Fazenda Tapera, revela Dita ao jornal
Sagrinforma, 1982, nº 27) sobre a família de Iranda:
O velho Andrônico esteve nos livros do primário durante muito tempo
como o autêntico vaqueiro marajoara, com aquele chapéu timbó. Era avô
do Irandir e tinha os olhos claros. E esses olhos azuis se repetem com
muita nuance. Os destes são amarelados, mas ele tem filhos de olhos
azuis. Vim para o Marajó com uma semana de casada. O Roque já era
nascido. O Roque nunca saiu da Tapera, já está aposentado, mas ainda
monta.
Irandir confirma a informação: “não saía gente, como hoje tem gente que passa um mês,
dois meses e sai. Não. Lá morriam. Só saiam por morte, ninguém saía. Nascia, crescia, se
casava... lá. Observa-se que a possibilidade de mobilidade social nesta categoria de
trabalhadores, era praticamente inexistente posto que o mundo pecuarista se caracteriza pela
concentração fundiária e pela hegemonia dos senhores na estrutura do poder local. O sonho do
vaqueiro é um dia se aposentar sem tensão com o patrão e garantir o mínimo para viver,
conforme asseguram Iranda e Vitinho.
Eu consegui casa em Soure trabalhando lá, porque a gente quer fazer o
seguinte, a gente pra conseguir uma casa, vaqueiro tem que aproveitar
enquanto tá lá, e quando vim, já vim direto...(Iranda).
Depois que eu vim embora da fazenda, eu pedi pra vim embora, aí o meu patrão
me aposentou bem, graças a Deus, sem briga, sem nada. Aí, eu vim embora pra
cá. Vou-me embora, que eu quero ainda tá com uma força, porque se eu me
acabar aqui na fazenda, quero ainda ir pra Soure, chegar lá (...) Tem muitos
que vieram de lá...meu cunhado veio da fazenda só pra morrer (Vitinho).
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A relação amistosa entre patrão e empregado e o clima harmonioso das relações na
fazenda são reforçadas por todos os narradores, no entanto alguns escorregões deixam perceber
que as transgressões, se não eram recorrentes, faziam parte daquele cenário. Laercio conta que
seu pai Juvêncio trabalhou em oito fazendas e não levava desaforo pra casa. Chegou a ser
despedido da fazenda Filhos de Eva, por ter dado uma surra no dono da Recranja, primo do S.
Domingos, fato que o forçou a despedi-lo. Depois foi readmitido e completou tempo para se
aposentar.
As memórias de Irandir guardam vitórias. Ele conta quando ele e seu filho Ernani
venceram a Prova Rústica do Cavalo Marajoara, corrida tradicional, realizada no dia de S.
Sebastião. Juntos, em dois dias, percorreram os 180 km que separam Cachoeira do Arari de
Soure, atravessando igarapés, aterros e alagados e chegando bem à frente dos demais
concorrentes: Eu fui o primeiro campeão dessa corrida de Cachoeira do Arari pra cá, corrida
que fizeram aí de Cachoeira, são cento e oitenta quilômetros. A Prova Rústica do Cavalo
Marajoara. (Jornal Sagrinforma, 1982).
Os proprietários da fazenda Tapera, onde os dois trabalhavam, também se sentem
premiados, pois a premiação significa projeção entre seus pares e os grupos aos quais pertencem,
conquistando-lhes respeito e apreço, o que vale como trunfo nas relações entre as elites da
pecuária e o poder local. D. Dita declara em entrevista ao referido jornal da Secretaria da
Agricultura do Estado do Pará:
O meu maior orgulho não foi somente a chegada em primeiro e segundo lugares,
foi o conceito que os organizadores do certame têm nos dois. Disseram que
lideraram, que ajudaram e que são bem educados. Isso me encheu de orgulho
porque vi eles nascerem, estes, como o irmão deles, este garotinho.
O poder público e os proprietários da Tapera sempre estiveram juntos, avalia Araújo
(2010: 1016). As afinidades de S. Domingos e D. Dita com o Estado e o Município são grandes, a
maneira desses proprietários lidarem com o poder os indicam como representantes da elite local.
Alguns deles, aliás, estiveram à frente da administração pública ao assumir a
prefeitura do município de Soure, como Rodolfo Fernando Engelhard (1953-
1957, 1958-1961), Alberto David Fadul (1971-1972), Carlos Nunes Gouvêa
(1977-1982, 1989-1992) e Raimundo Carlos Vitelli Cassiano (1983-1988); o
mandato de deputado estadual, como Francisco Lobato, já falecido, cujos filhos
são os atuais proprietários da fazenda Matinadas; e os de governador e vice-
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governador do estado, como Alacid Nunes e seu filho, proprietários da fazenda
Alacilândia. (ARAÚJO (2010: 1016)
O vaqueiro como administrador, gerente e homem de confiança dos patrões tem seu lugar
de destaque na escala social no mundo da pecuária, representa a primeira instância da estrutura
em que os proprietários rurais tinham hegemonia consolidada. O feitor e o capataz, seus
substitutos, atuam como elemento mantenedor da ordem estabelecida. Tem o poder delegado pelo
fazendeiro, mas legitimado pelos demais segmentos sociais. O administrador, também tratado
como feitor, exerce cargo que na sociedade escravista representava aquele que tinha férreo
controle sobre a mão de obra escrava, lida diretamente com os vaqueiros e tem o poder de mando
sobre os serviços da fazenda, é respeitado e até temido pelos subalternos.
Irandir, ex gerente da fazenda Tapera, se emociona a falar dos áureos tempos da fazenda e
da sua condição de abandono atual, depois da morte dos antigos proprietários, ficou abandonada,
aí quando eu vou lá eu num quero chorar, mas as lágrimas ainda escorrem, contrariando a
afirmação de Oliveira (MIRANDA NETO, 1993:75), que diz ser o vaqueiro indiferente ao
progresso da fazenda onde trabalha. Iranda assevera que o bom feitor deve ter a confiança, saber
dirigir, saber mexer com os companheiros, para dominar.
Essas atitudes explicam a responsabilidade do gerente, seja com o gado, seja com os
moradores da fazenda, no sentido de assegurar a ordem e o controle da mão de obra, sobre a qual
fala Vitinho (2012):
Alguns têm responsabilidade, dá ajuda e trabalha direito. Pra não escangalhar,
pra dar força pro feitor por que a responsabilidade é do feitor, do encarregado.
Se ele não ajudar o encarregado, trabalhar pra escangalhar, pronto, o
encarregado caí. (...) O patrão tem a maior confiança nele. Precisa saber
dirigir. Mexer com os companheiros, pra dominar, pra fazer o serviço
direito...porque tem outros que não ligam. Porque eu peguei isso aí novo, eu tinha...uns 25 anos quando comecei, ainda era novo eu porque em geral são os
mais antigos pra dominar os companheiros.
O fazendeiro é dono de tudo - das terras, do gado, da casa sede, da vila dos peões, da
escola, do alimento (rancho), dos remédios, de todos os meios de transportes disponíveis. Diz
Vitor Seabra que “o rancho necessário para alimentar a família era dado pelo patrão, nada se
comprava, tudo era por conta da fazenda”. Explica Iranda que eram abatidas duas vacas por mês
destinadas à alimentação dos vaqueiros, das quais o gerente era contemplado com 1/4 da rês
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dianteira. A matalotagem, abate de rês para consumo próprio, se realizava de quinze em quinze
dia nas fazendas, afora as extras, por ocasião da ferra e outros serviços.
Realmente eu sentia saudade do Marajó era a fartura, criei meus filhos todos na
fartura. Não é agora que tudo se compra. Nesse tempo, que eu criei meus filhos,
os patrões davam rancho, davam carne, davam tudo pro vaqueiro. Davam do
palito ao sal (Raimunda).
No entanto, a festa da carne não era para todos, não contemplava o conjunto dos
vaqueiros, ou não era a prática em todas as fazendas. O vaqueiro Laercio, ao relembrar sua
iniciação nos pastos, narra as dificuldades enfrentadas aos 12 anos de idade, quando começou a
pastorear búfalos para ajudar a sustentar a extensa família, que tinha como chefe o vaqueiro
Juvêncio.
Eu pastoreava no Filho de Eva, que o feitor se deu muito comigo. Arrumou essa
vaga, pra aumentar nosso rancho, do papai. Nós era muito filho, né? E ele não
tinha filho, o feitor. Era pra pastorear, porque nós era nove filho, com eles dois
[o pai e a mãe] eram onze. Então, ganhava um alqueire de farinha. Foi o jeito
eu me empregar pra ganhar mais um, senão, nós almoçava, mas jantar não
dava. Era muita farinha. Ela fazia um beijuzinho, mamãe, pra gente. A gente
ficava satisfeito, né? Aí no outro dia já tinha o café. Ela fabricava também
queijo, ela era virada. Ela sabia também fazer tudo isso, aí ajudava, né?
Neste mundo das fazendas, a autoridade do patrão é inquestionável, a sobrevivência do
vaqueiro girava em torno da casa grande. Afirma Araújo (2010, p 1019) que naquela estrutura
social, “as necessidades coletivas transformam-se, como tudo (ou quase tudo), em necessidades
privadas; as reivindicações, em pedidos; e os direitos, em doações”. D. Dita era a mãe de todo
mundo, diz Raimunda. Decidia até sobre modo de vida e relações pessoais dos moradores da
fazenda, conforme apreende-se na fala de Luci, filha do vaqueiro Juvêncio, que nasceu na
fazenda Tapera e lá viveu até vinte e poucos anos:
D. Dita era muito boa. Agora só era enjoada, ninguém andava sem camisa
quando ela tava lá, não andavam sem camisa, até criança não andava sem
camisa. Ela gritava lá da casa grande “Ei, esse urubu aí!” ainda chamava de
urubu, era, não andavam sem camisa. E a dona de lá... ainda era assim, por
exemplo, você já estava conversando com um rapaz de noite, se alguém via a
senhora conversando com aquele cara lá de noite, de manhã diziam pra ela:
“Olhe, dona Dita, a fulana tava conversando com o fulano”. Na hora ela
mandava lhe chamar:“a senhora tava com fulano essa noite conversando, ”, se
dizia tava, “ a senhora não quer casar com ele? “a senhora quer casar com ele,
a gente ajeita a senhora casa com ele, ele é um bom rapaz” Era! (Luci, 2012)
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A mulher (mãe, esposa e filha) no jogo dialético de construção identitária do vaqueiro,
muitas vezes, se aproxima do ofício do marido, por afinidade ou pelas condições objetivas que a
vida na fazenda ensejava. Enquanto os homens cuidam do trabalho nos campos, as mulheres,
além dos trabalhos domésticos, tinham que atender aos chamados da branca, dona da fazenda.
Ana acompanhava o marido na hora de acordar, uma hora da manhã, para tirar o leite e para a
faina do campo: “eu levantava pra fazer o café pra ele, e já ficava trabalhando,
esperando...esperando amanhecer o dia pra cuidar dos bichos, galinha, pato, porco, tudo eu
cuidava”. Sua jornada de trabalho era igualmente extensiva, mas não recebia salário pelas
atividades desenvolvidas.
Raimunda, mulher do vaqueiro Vitinho, reafirma as lembranças de Ana: “levantava, fazia
o café, eu pegava a vassoura, varria todo o lado da casa, se tivesse - bem dizer - uma agulha
você achava, quando fosse de manhã, tava tudo limpinho ia cuidar das minhas galinhas, que eu
tinha muita galinha, muito pato e muita planta”.
O lado paternalista dos patrões, doadores de alimento e responsáveis pela educação dos
filhos dos vaqueiros, estes semianalfabetos, faz parte das recordações de Ana Maria (2012), que
reafirma o endeusamento deles:
Eles eram uns patrões muito bons. Deram escola, nossos filhos estudavam lá até
a quarta série, aí da quarta série que vinha já pra cá, mas depois as professoras
se formaram na universidade. Inclusive, eu tenho três filhas formadas na
universidade, passaram a dar aula lá mesmo.(...) tinha pra mais de cento e
poucos alunos, ia de toda a redondeza da fazenda estudar lá.
Araújo (2010, p. 1019), em Uma fotografia, múltiplas imagens: a educação rural no norte
do Brasil discorre sobre as escolas de fazendas no Marajó, critica as precárias condições de
funcionamento destas unidades de ensino, que em nada se aproximam do que se convencionou
chamar de escola, no sentido que Paulo Freire preconizou, servia muito mais como curral
eleitoral do que como espaço de conhecimento e autonomia.
A escola é, como foi no passado, concessão com a finalidade clara de manter os
vaqueiros naquele lugar, sob condições precárias de trabalho e subsistência; é o
último recurso do adventício para a manutenção do subjugo. Não é um bem
público, pois se encontra situada em espaço privado e sob a tutela do fazendeiro.
A situação de Marajó revela uma ampla violação dos direitos humanos.
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A rotina diária do vaqueiro varia conforme o regime das águas. As instabilidades e
dificuldades advindas da seca e da cheia é um problema que se arrasta cerca de 400 anos e os
recursos tecnológicos, neste sentido, não avançam. Miranda Neto (1993, p. 129) elenca a
necessidade de canais de drenagem, a retificação de cursos fluviais, o controle do regime de
alguns rios, a construção de lagos e bebedouros artificiais para o gado, a fim de diminuir os
efeitos do ciclo seca-cheia, que tantos prejuízos causam à pecuária e tantos sacrifícios impõem à
mão de obra.
A escuta dos vaqueiros permite considerar aspectos pouco conhecidos sobre as relações
de trabalho nas fazendas do Marajó. O dia a dia destas unidades de produção mostra um regime
de exploração da força de trabalho, pois a jornada do vaqueiro inicia nas madrugadas e termina
na hora do jantar. Eles têm um reduzido período de sono e recebem como pagamento um salário
mínimo. Apenas os gerentes ganhavam mais um pouco, mas não precisaram o valor.
Vitor exemplifica a situação e explica que no verão acordava 4h da manhã, saia com
água, saquinho de comida, ia ver o gado no bebedouro e voltava apenas às 17h. Fala sobre as
dificuldades cotidianas na lida com o gado.
Os lagos atolavam, o gado tava fraco no verão aí tinha que olhar, aí nós já
tinha uma barraca dentro dum anhangal. Dentro do anhangal fazia a barraca,
lá passava o dia. Levava água, comida, só vinha à tarde. Quando a gente vinha
de lá pra cá do anhangal, já vinha reparando os lagos todinhos pra vim embora
pra casa, se tinha alguma rês atolada a gente puxava, fazia levantar, quando
num dava pra levantar ficava lá até mais tarde...às vezes ela levantava.
No inverno, a rotina se modifica, o trabalho é nos encharcados, na lama. O vaqueiro saía
às 6h para botar o gado do malhador e só voltava às 9:30h. da noite. As dificuldades desse
período climático se diferenciam, mas continuam sendo grandes.
Às vezes, alagava muito, maltratava o gado. Eu saía seis horas, que eu vinha
chegar nove e meia em casa, botar o gado do malhador...fazia aquele poço.
Aquela lama, sabe? Aí dormia lá a vaca, bezerro novo, bezerro fraco, bezerro
magro amanhecia morto, ficava. Uma praga de maruim. Tirar o gado de lá e
deixar pra ele dormir fora, espalhado. Aí, pronto, tinha esse trabalho. E, às
vezes, eu mandava o vaqueiro e o vaqueiro ia como daqui ali pro outro lado,
vinha embora cedo, é aí eu não confiava. É. Poxa, quando de manhã eu ia o
gado tá no malhador. (Vitinho, 2012)
A contagem do gado era realizada no inverno e constituía-se de processos como escoação
e apartação, trabalho coletivo dos vaqueiros de todas as fazendas, a fim de separar o gado
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pertencente a uma determinada fazenda que se encontra em outra e que no verão acaba se
misturando. Este trabalho mobilizava grande parte da população de vaqueiros. Abaixo,
depoimentos de vaqueiros, memórias guardadas nos campos...
Por exemplo, uma época, janeiro, você já estava esperando aviso da fazenda
Maguari, vinha um vaqueiro, trazia a carta. Tal dia de fevereiro começa a
apartação lá na fazenda Maguari, a gente ia tirar o gado do patrão da gente
que tá na fazenda do outro. Também como escoação, uma escoação, é outro
trabalho, é tirar o gado, eu peço uma escoação lá. No Maguary eu ia tirar o
gado do meu patrão, uma escoação, e depois vinha a apartação, a mesma coisa,
você tirar o gado do seu patrão (Irandir, 2012).
Vinha vaqueiro de tudo quanto era fazenda pra ver gado do seu patrão, daquela
fazenda. Se tivesse um, dois, três, eles levavam. De cada fazenda, se tivesse
animal, os vaqueiros levavam pro seu patrão. Lá na Tapera levava quase uns 15
dias, quase um mês, essa apartação. Tirando o gado, todo dia. Eles se
misturam muito, No verão eles entram atrás de água, atrás de pasto, aí vão
embora. Aí ficam pra lá quando chega o inverno aí dá apartação e vão tirando
(Vitor, 2012).
O trabalho de apartação se realiza no princípio das chuvas, quando as reses eram
reconhecidas pela marca ou sinal, contadas e conduzidas para as fazendas de origem, onde
permaneciam durante a cheia. Quando as águas baixavam o gado retorna à pastagem comum,
misturando-se de novo. Tarefa pesada, mas que propiciava o convívio social com os vizinhos,
pois agregava trabalhadores de todas as fazendas que se reuniam por semanas, construíam
relações, estabeleciam laços de camaradagem e sociabilidade.
Na apartação, os cavaleiros mostram toda sua habilidade e destreza no ato de laçar a rês,
gritos e chistes acompanhavam o processo. “Um caçoava do outro, contava piada, botava
apelido... Era tudo brincadeira”, lembra Laércio. “Então a, gente tinha aquele grupo junto, né?
Isso que é apartação e escoação. Era assim. Mas era bonito!” Ao fim do trabalho, lamentavam a
separação “a gente já vai sentindo falta um do outro. Nós tamos trabalhando semanas juntos,
né? Égua, é triste, porque a gente é tudo unido, a vaqueirada, né?” Ao saírem para a apartação,
os vaqueiros se enfeitavam, cuidavam de seus chapéus, ali estavam se representando e
representando a fazenda onde labutavam.
Os chapéus eram enfeitados, a beira todo do chapéu a gente enfeitava... quando
a gente ia saindo pra uma apartação, tal lugar é ajuntamento domingo [bate o
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dedo em uma superfície para afirmar], vamos dizer, amanhã... a gente mandava
fazer aquele chapéu decorava tudo bonito, novo, como tá esses aí [mostra
exemplo do chapéu do pai] Aí a gente saia “agora umbora” pegava uma turma,
se era de outro lugar, a gente ia todo junto, cavalaria na frente, vinte cavalos,
tirava uma semana trabalhando lá, a gente ia todo equipado, tá? Era tudo novo
(Laercio, 2012).
Além destes trabalhos sazonais, o vaqueiro tinha aqueles que se realizavam em momentos
apropriados: 1. Ferra (marcação), época em que se ferram as reses marcando-as no dorso e na
altura das ancas (marca e divisão) com o metal em brasa. 2. Assinalação dos bezerros, estes são
derrubados e nas orelhas fazem-se cortes à faca com o sinal adotado pelo fazendeiro, trabalhos
bárbaros, que desvalorizam o couro. 3. Castração visava aumentar a capacidade de engorda das
reses e a seleção, impedindo que os mais desfavorecidos se reproduzam. 4. Embarque do gado
para o matadouro.
Eu acordava sempre de madrugada uma hora, duas horas, e tirava meu leite, aí
saia pro campo de madrugada, se era pra fazer serviço de ferra, a gente ia
pegava o gado, trazia pro curral, chegava no curral ferrava, botava o sinal.
Essa que era a nossa rotina do dia a dia. E tinha outras vezes/ tinha vários
serviços, vamos dizer... época de ferra era um trabalho, época de assinalação
era outro trabalho, época de castração outro trabalho, época dos embarque de
gado pra matadouro pra Belém outro trabalho, então era assim (Irandir).
O vaqueiro preza seus instrumentos de trabalho e cuida deles com zelo: arreio, sela,
chicote, corda pra dar laço, facas, serrote. E o tradicional surrão, feito da sola do couro do gado
curtido, tipo um saco, mas com a tampa, bem costuradinho, com uma chavezinha que chamam
suvela, com duas tirazinhas de sola pra amarrar, lembra Raimunda. O surrão guarda o frito,
alimento básico do vaqueiro quando se desloca para sua lida, que é amarrado na garupa da cela
em cima e embaixo, para facilitar seu manuseio.
O meu pai foi um homem que ele não bebia água e nem comia em campo, e eu
puxei um pouco pra ele também, era...era difícil eu levar meu comer pro
campo, mas os meus companheiros levavam. Já levavam o frito. Aquela carne,
o tempero dela é só o sal e a gordura, a gente apura ela no fogo (Irandir, 2012)
Os animais de sela preferidos na cheia são os bois e os búfalos, estes para os serviços mais
pesados, pois puxa montaria e cargas nos alagados. O cavalo marajoara, resistente e ágil, com
acentuada presença de sangue andaluz, é indispensável para campear. Ao contrário do que afirma
Oliveira (1967), citado por Miranda Neto (1993, p. 75), segundo o qual o vaqueiro “não se
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interessa pelo apuro do areiamento e não tem nenhum amor ao cavalo, que troca pelo boi de sela
ou pela canoa sem muita cerimônia”, os vaqueiros escutados dedicavam especial cuidado aos
seus cavalos e desenvolviam uma relação de afeto pelos animais e tinham os preferidos. Na
maioria das vezes, eram eles que lhes davam os nomes aos animais. Laécio recorda que seu
patrão recomendava: eu sou o dono, mas é vocês que trabalham neles. Sonho Lindo, cavalo bege
muito brincalhão. Moderno, Mimoso, Paraiso, Só pra Olhar, de passeio, não ia ao campo nele. O
cavalo que garantiu a vitória do Iranda na Corrida Rústica Marajoara tinha o nome de Deixa
Comigo. Juvêncio tinha um cavalo, De Repente, que fez até promessa para S. Sebastião, segundo
Ana Maria, que se seu cavalo não morresse, acompanharia a procissão montado, com o santo nos
braços.
Mas não só de campear vivia o vaqueiro marajoara, ele também se divertia em festanças
que ocorriam nas fazendas, nos retiros. Iranda lembra as festas de santo, N. Sra. Das Conceição
e S. Sebastião, onde se dançava ao som de pau e corda e violino, violão, banjo e cavaquinho.
Lundu, carimbó, mazurca, xote, entre outros, eram os ritmos mais apreciados. A bebida era
cachaça pura. Luci, que trabalhava na roça, recorda das grandes distâncias que as mulheres
percorriam montadas nos cavalos, para se divertirem nas festas de fazenda, que eram bem
distantes. Revela que se embelezavam para a ocasião, se aprontavam, botavam batom. E nem a
presença de filhos pequenos impediam esses grandes momentos:
A fazenda fazia de conta que era daqui pra Salvaterra, a senhora tinha que ir
daqui montada, e ainda levava um filho no cabeçote, e outro na garupa
amarrado, eu queria que a senhora visse. Botava pra dormir e ia dançar. Tinha
o lugar de botar as redes tudo lá, né? Dançava até... Voltava de novo, no outro
dia. Moleque no cabeçote, outro na garupa amarrado. E vinha embora. (Luci,
2012)
Ana e Raimunda faziam parte do grupo folclórico criado por D. Dita, que se exibia nas
fazendas, nos municípios próximos e que dançou até mesmo em Belém, na Assembleia Paraense,
clube de elite. Ana era par de Juvêncio, que morreu com mais de um século de idade e era
exímio dançador de carimbó e lundu. Raimunda, nossa narradora, relembra os pares:
Dançava lundu com meu afilhado Assis Dias, a mãe da minha nora Maria de
Belém dançava lundu com um empregado que chamava Benedito e a comadre
Francisca Raimunda: ... chamam pra ela Diquinha, dançava lundu com um
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senhor que hoje em dia está doente, nunca mais andou. João Chico! Mas,
chamavam Chico Buate.
As representações tradicionais do vaqueiro marajoara diferem bastante daquelas forjadas
em torno do vaqueiro moderno, mais afeito a carros e tratores do que aos cavalos. O desenho
clássico da figura do vaqueiro marajoara associa-o a homem forte, bravo, de inquestionável
coragem e força para vencer as adversidades de uma vida hostil; homem que tem por costume
campear montado em cavalos, laçar bois e lidar com búfalos.
Maria Ana Azevedo de Oliveira (2011:9, 10), no artigo Seguindo a Trilha Dos Vaqueiros:
Uma dança sempre presente observa que a imagem heroica do vaqueiro marajoara está
relacionada à labuta no campo, por desenvolver uma postura guerreira sobre o cavalo,
representando a luta diária, em atividades com os animais do pasto (gados, cavalos, búfalos e
outros). Porém, é através do desafio de laçar o animal e do movimento do galope, que se
completa a representação do papel masculino, acrescida à indumentária, referência no folclore
brasileiro, conforme Lima e Andrade (1979: 88-9), citado pela autora.
Usa calça de mescla azul-marinho e uma blusa branca de cambraia ou
algodão grosso, com pala dupla bem larga na frente e nas costas,
contornada de galão colorido. Os punhos e as golas são enfeitados com o
mesmo galão. A frente da blusa é dupla e decorada com o galão em
motivos marajoaras arqueológicos. A blusa possui dois bolsos chapas,
também ornamentados com galão. Na cabeça o vaqueiro marajoara leva
um chapéu de palha de arumã ou carnaúba, com borda forrada de fita de
algodão; não usa sapatos, apresenta os pés descalços. Outrora para se
abrigar dos ventos e das chuvas, usava a baeta, espécie de manta
vermelha, de feltro ou flanela, costurada num pano só, retangular.
Os vaqueiros tem de si e do seu trabalho uma imagem positiva. Para saírem tinham
sempre que estar muito bem arrumado, diz Laercio, com seu arreio bonitinho, cabeçada bem do
cavalo, tudo arrumado o freio, cabresto. E Vitinho arremata: Eu botava aquelas capas no
inverno, saia com capa na cabeça, chapelão branco. A corda com argola, que se chama, pra
laçar quando a rês saí, corre atrás pra laçar.
Para ser um bom vaqueiro, segundo Iranda, hoje precisa ter estudo, mas que o vaqueiro
tradicional necessitava se apossar de muitos saberes que não era a escola, mas a experiência que
ensinava. Saber laçar, saber montar, saber fazer a corda, fazer o arreio, conhecer os sinais do
gado, saber amansar o animal. Isto significa dominar a vaqueirice.
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Esse que é o nosso serviço de vaqueiro. Por exemplo, cê chega numa malhada
você vai ver se tem algum gado do seu patrão carimbado, carimbado, por
exemplo, é o seguinte: assinava uma rês de outra fazenda enganado, vamos
dizer é da Tapera, aí a gente punha o carimbo pra matar o sinal e punha a
marca do patrão (Iranda).
As fazendas hoje são cercadas, reflete Raimunda, o que exige um esforço bem menor dos
vaqueiros:
Hoje o gado tá pouco, tá manso, tem uma parte que está toda dividida nos
pastos, cercado. E no meu tempo, não, era aberto tudo. Só tinha a cerca da
divisória. Mais difícil era ter que conhecer todo esse lote aqui (...) se não
pegava tudo misturado. Tinha tudo isso, tinha que conhecer. O vaqueiro
ajudava, sabia. Disse, olhe o lote de gado tá aqui, vou separar aquele ali não é
daqui. Vou pegar só o que é dessa malhada aqui, pronto. A questão hoje as
fazendas tão cercadas, boi que é pra embarque pra abater no matadouro tá tudo
separado, é só chegar lá. .Não tem que correr (Raimunda).
As diferenças são pontuadas por todos os narradores:
Então, hoje, tá diferente essa juventude não querem nada, né? Moderno não
entende a arte do vaqueiro, tem gente que não sabe fazer uma corda, uma
esteira, nada. Eu aqui na exposição montava em animal pra eles. Por aí você
vai encontrar a revista minha, eu fui contratado para mim laçar (Iranda).
O vaqueiro moderno, aquele que desenvolve suas atividades nas novas áreas da pecuária
ao sul e nordeste do Pará - atual polo das fazendas de gado no Pará, gosta de carros mais que boi
e administra a fazenda na estrada de acordo com a modernidade, com computador, carro,
afirma Raimunda, que tem dois filhos vaqueiros: Tito José é feitor, administrador de uma fazenda
situada na região da estrada (Pará), mas não se identifica com a vaqueirice tradicional.
O Tito José não gosta dessa profissão de vaqueiro de fazenda. A paixão dele é
trator, carro, essas coisas. É, ele saiu daí da fazenda... foi embora aí pra
estrada, encarregado de uma fazenda. Mas, ele pouco monta, ele repara as
fazendas. Agora ele já tem um carro, comprou um carro, né, que era o sonho
dele era carro. Tá lá tomando conta da fazenda, mas tem o carro dele mesmo e
tem os carros da fazenda... o trabalho da fazenda, o trator, caçamba, máquina.
Vamos dizer, ele é o feitor, o administrador, toma conta de lá. Mas pouco
monta. Ele está só administrando ali. (Vitinho)
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A diferença do vaqueiro tradicional para o vaqueiro moderno, é que este último investe
tecnologia ao seu trabalho, não monta descalço, já usa bota, tem berrante, trator, caçamba,
máquina.
Eu só tenho dois filhos. Um, trabalhava contra a vontade. O outro tinha mais
vontade pra negócio de campo, essas coisas. Então, até hoje ele está lá no Filho
de Eva. É o feitor da fazenda do Aloísio Chaves (Vitinho)
Só tenho dois filhos homem, um gerente aí da fazenda São Lorenço, Ernani, é o
mais velho, o outro tem um apelido Quinta-feira, mas eu que chamei, pegou.
Irandi Filho o nome dele, trabalha em Castanhal há quinze anos.na fazenda
Xingú, é gerente (Iranda)
Assim, os saberes dos vaqueiros marajoaras modificam-se acompanham a moda, as
tecnologias, todavia a vaqueirice da tradição, aquela rememorada nas lembranças dos antigos e
aposentados vaqueiros, estas histórias fragmentárias representam, como quer Certeau (1994:189)
“tempos empilhados(...) que estão à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas,
enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo”.
REFERÊNCIAS
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Brasil. História, Ciências, Saúde. n.4, out.-dez. Manguinhos, Rio de Janeiro, 2010, p.1009-1022.
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FARES, Josebel Akel. A épica do vaqueiro marajoara: (auto)biografia de Juvencio Amador e
cartografia de saberes no Marajó. In Diversidade: Culturas, ruralidades, migração, formação e
integração social. ANTUNES, Helenise e OLIVEIRA, Valeska (org). Natal: EdUFRN, Porto
Alegre: EdiPUCRS, Salvador:EdUENEB, 2012
_____ Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação. Tese. São Paulo: COS-PUCSP,
2003.
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JURANDIR, Dalcídio Alguns aspectos da Ilha de Marajó. Cultura Política. Rio de Janeiro, ano 2,
n. 14, 16, 1942. (1942)
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19
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(DAC/PROEX), http://revistaeletronica.ufpa.br/index.php/tucunduba, 2011.
POLLAK Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, Rio de
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PORTELLI, A. Tentando aprender um Pouquinho. Algumas Reflexões sobre Ética na História
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Piauí. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011
THOMPSON, Paul. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
Entrevistados:
Vitor Silva Seabra, 81 anos, vaqueiro aposentado, residente no município de Soure, Marajó, Pará,
entrevista realizada por Josebel Akel Fares e Venize Nazaré Ramos Rodrigues, transcrita por
Angélica Maués, em 2012.
Erandi Maciel Vasconcelos, 74 anos, vaqueiro aposentado, residente no município de Soure,
Marajó, Pará, entrevista realizada por Josebel Akel Fares e Venize Nazaré Ramos Rodrigues,
transcrita por Angélica Maués, em 2012.
Ana Maria de Vasconcelos e Vasconcelos, 73 anos, esposa do vaqueiro Erandi Maciel
Vasconcelos, residente no município de Soure, Marajó, Pará, entrevista realizada por Josebel
Akel Fares e Venize Nazaré Ramos Rodrigues, transcrita por Angélica Maués, em 2012.
Laercio Martins Amador, 70 anos, vaqueiro aposentado, residente no município de Soure,
Marajó, Pará, entrevista realizada por Josebel Akel Fares e Venize Nazaré Ramos Rodrigues,
transcrita por Angélica Maués, em 2012
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