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Renda Básica de Cidadania contra a exploração capitalista: uma justificação ética a
partir do jovem Marx
Ricardo Rojas Fabres1
RESUMO: O presente artigo possui um objetivo central: defender a ideia de uma “Renda
Básica de Cidadania” (Van Parijs, 2000) a partir de uma determinada concepção de justiça
presente nos escritos do jovem Marx. Para isso, primeiramente apresentamos os postulados
básicos de legitimação da justiça das teorias tradicionais, especialmente de Rawls e, a partir
disso, justificamos a relação entre Marx e a Justiça (Geras, 1984; Vázquez, 1993), inserindo o
marxismo em um debate político sobre a realização de diferentes orientação normativas
(Cohen, 2001). Neste sentido, discute-se a forma pela qual Marx sustenta que a exploração
capitalista degrada a autonomia e a dignidade humana e, por fim, a proposta de “Renda Básica
de Cidadania” (Van Parijs, 2000; Raventós, 2012), dialogando com os pressupostos marxistas,
no sentido da realização de uma sociedade humanamente emancipada.
Introdução
É justo que no país onde 300 mil famílias vivem em situação de extrema pobreza2
alguém se cubra com uma roupa que custa R$ 3 milhões3? Ou que o patrimônio das 85
pessoas mais ricas do mundo seja equivalente ao patrimônio de metade da população
mundial4 e que, ao mesmo tempo, R$ 331,5 bilhões sejam gerados anualmente com
exploração de trabalho forçado enquanto um bilhão de pessoas estão completamente
desamparadas em todo o planeta? Ao lidar com estas questões, a percepção aparente é que os
fatos são evidentes o bastante para que não precisemos fundamentar o que é “justo” ou
“injusto”. Mas, por outro lado, não seria uma objeção legítima afirmar que, estando em
conformidade com as regras estabelecidas pelas instituições jurídicas e políticas, estas seriam
situações justas – independente de qualquer sentimento que possam gerar? A objeção da
objeção, neste caso, tampouco seria menos legítima se questionasse a justeza das instituições
jurídicas e políticas das quais estamos tratando.
Para isso, no entanto, precisamos investigar a origem da legitimação deste
ordenamento jurídico e estatal capaz de definir, entre outras coisas, os parâmetros do que é
1 Mestrando em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes);
ricardofabres_@hotmail.com
2 De acordo com o relatório "Cadernos de Resultados - 3 anos de Plano Brasil Sem Miséria", disponível em
http://www.brasilsemmiseria.gov.br/documentos/Caderno,P20de,P20Graficos,P20BSM,P20-,P203,P20anos,P20-
,P2004062014,P20-,P20Final.pdf.pagespeed.ce.FIC1dr_fAL.pdf
3 http://wp.clicrbs.com.br/redesocial/2014/06/12/claudia-leitte-cria-o-proprio-vestido-para-show-de-abertura-da-
copa/?topo=13,1,1,,,13
4 Relatório “Working for the Few - Political capture and economic inequality (Oxfam)” disponível em
http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/bp-working-for-few-political-capture-economic-inequality-
200114-en.pdf
justo ou injusto. Sem dúvidas, neste ponto Thomas Hobbes seria um ponto de partida
particularmente importante. Não apenas por ser “o único grande filósofo de que a burguesia
pode orgulhar-se”, como afirmou Hanna Arendt, mas por sua incontestavelmente influência
teórica para aquela tradição da filosofia política que Amartya Sen denominou de
“institucionalismo transcendental”. Ali estão os elementos comuns à boa parte das teorias
tradicionais de justiça, a começar pela herança contratualista que concebe experimentos
intelectuais, a-históricos e hipotéticos (um Estado de Natureza, em Hobbes; uma Posição
Original, em John Rawls) com fins legitimatórios5 e o interesse na justiça perfeita, “mais do
que em comparações relativas entre justiça e injustiça”6.
O problema é que este procedimento contratualista apresenta, no mínimo, um
problema considerável que divide-se em dois momentos: (a) origina-se hipoteticamente em
um estado (não um Estado, mas um “momento”) onde os indivíduos estão desprovidos de
estrutura jurídica; (b) estes indivíduos possuem todas as características do indivíduo burguês7.
Deste modo, poderíamos dizer que este experimento orienta-se, apenas, pelos desejos do
indivíduo burguês desprovido de estrutura jurídica. Ou, em outras palavras, apenas pode
responder as seguintes questões: (1) O que faria o indivíduo burguês se desprovido de
estrutura jurídica? e (2) O que desejaria o indivíduo burguês se desprovido de estrutura
jurídica? Assim, compartilhando a constatação de Van Parijs8, questionamos: é justa “uma
sociedade regida por princípios que indivíduos egoístas escolheriam se estivessem forçados à
imparcialidade” (p. 22)? Sobre este problema de tornar equivalente a noção de “ser humano”
e a noção de “indivíduo burguês” trataremos mais adiante, apresentando a concepção
marxiana de ser humano (um ser social, racional, potencialmente libre e criador) como
possível pressuposto da justiça que se postula, isto é, a justiça própria de uma sociedade
humanamente emancipada.
Neste sentido, outra questão se impõe: como conceber concepções de justiça,
ética, bem e moral a partir de pressupostos marxistas? Ou seja, é possível que os escritos de
Marx ofereçam elementos para determinar o conteúdo de certas prescrições morais como, por
exemplo, uma clara noção do que é “Justo” e “injusto” ou a resposta para a pergunta “porque
devemos obedecer certas regras”?. Para isso, nosso ponto de partida será o ponto de vista
antropológico-crítico de Marx, aquilo que Lukács denominou de “ontologia do ser social” - de
5 Höffe, Otfried. O que é justiça?. Vol. 155. Edipucrs, 2003.
6 Sen, Amartya. A ideia de Justiça. Edições Almedina. 2009.
7 Macpherson, Crawford Brough. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes até Locke. Paz e
Terra, 1979.
8 Parijs, Phillipe Van. "La doble originalidad de Rawls." REVISTA CUADERNOS DE ECONOMÍA (1994).
onde decorre a noção de “riqueza genérica” e alguns valores humanos considerados
universais: liberdade, comunidade e autorrealização, por exemplo.
Por fim, no último capítulo nos colocamos a tarefa explícita no título deste
trabalho: justificar a Renda Básica de Cidadania a partir do jovem Marx. O movimento
argumentativo, neste caso, dirige-se no sentido de aproximar as questões já apresentadas,
relacionando os postulados críticos da obra marxiana com a filosofia moral. Pretende-se,
assim, não adentrar o âmbito das correlações políticas ou dos fatores sociais que
desencadeariam (ou não) a implantação da Renda Básica de Cidadania, mas especificamente
advogar em defesa de uma justificação ética sobre a superioridade moral desta proposta em
relação ao fundamento das economias de mercado. Neste sentido, nosso objetivo é apresentar
os motivos pelos quais estes princípios seriam desejáveis para uma sociedade que se impõe a
tarefa categórica de ter a justiça como a primeira de suas virtudes.
2. Rawls e o contrato que “legitima” a justiça
Otfried Höffe explica que para a teoria contratualista, o contrato social consiste
em um contrato político, sem o qual seria impossível justificar um sistema jurídico e estatal9.
Dito isso, o autor sustenta que seria necessário avaliar o contrato sob três pontos de vista: a)
“considerando legítima somente a coação voluntariamente assumida, ou seja, a contratual” e
necessitando um rigoroso consenso “para que ninguém sofra nenhuma injustiça”10; b)
considerando que a teoria inicia “num estado de absoluta isenção de dominação, denominado
Estado de Natureza”, onde os indivíduos desistem do “alegado direito a tudo e recebe em
contrapartida liberdades correspondentes”11; c) considerando que os indivíduos vinculam-se
ao contrato “em conformidade com o princípio jurídico 'contratos devem ser cumpridos'”12.
Estas seriam as condições necessárias para que sejam respondidas perguntas
relativas ao fundamento do agir humano, isto é, perguntas do tipo “o que devemos fazer?” ou
“por que devemos fazer?” - cujas respostas, de uma forma ou de outra, derivam do fato destes
fundamentos apresentarem-se como resultados de um acordo com o qual, de forma livre e
espontânea (pontos “a” e “b”), “nos comprometemos em cumprir” (ponto “c”). Em outras
palavras, tratam-se de contratos hipotéticos dos quais derivam obrigações reais. Neste sentido,
ao discutir o Estado de Natureza para Hobbes, que configura-se como o pressuposto para a
9 Höffe, Otfried. O que é justiça?. Vol. 155. Edipucrs, 2003. p. 76
10 Idem. p. 75
11 Idem. P .76
12 Idem. P. 78
justificativa da necessidade do Estado, Macphseron13 problematiza a posição imposta pelo
autor como uma hipótese lógica e intrínseca à existência humana. De acordo com
Macphserson14, Hobbes não refere-se ao estado psicológico intrínseco à existência humana ou
as características naturais dos seres humanos, tampouco refere-se a organização social dos
homens primitivos.
Pelo contrário, mostra Macpherson, o Estado de Natureza hobbesiano
É uma afirmação quanto ao comportamento a que seriam levados os indivíduos
(como são agora, indivíduos que vivem em sociedades civilizadas e que têm desejos
de homens civilizados) se fosse suspensa a obrigação ao cumprimento de todas as
leis e contratos (…) Para conseguir o Estado de Natureza Hobbes deixou de lado a
lei, mas não o comportamento e os desejos humanos socialmente adquiridos (p. 33)
Já Amartya Sen15, refere-se à tradição contratualista afirmando que baseia-se em
um contrato que pressupõe-se como objeto de escolha, tornando-se uma alternativa ideal ao
caos que, de outra maneira, caracterizaria a sociedade. Embora neste ponto não haja grande
novidade, o autor apresenta como resultado prático desta opção contratualista a “elaboração
de teorias da justiça que se centram numa identificação ou caracterização transcendental de
instituições ideais”16. No caso de Rawls, o “objeto do consenso original”, isto é, deste
contrato específico, são “os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade”17, sendo
estes princípios aceitos por “pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus
próprios interesses” (idem) em uma posição original de igualdade. Tal posição original de
igualdade, que Rawls denomina “Posição Original”, refere-se, de uma forma geral, a um
processo heurístico cuja proposta de abstração representa, em última instância, um
procedimentalismo puro.
Isto é, o objetivo de Rawls é encontrar uma solução para determinado problema
partindo do princípio que os resultados obtidos em seu procedimento serão justos na medida
em que as regras forem corretamente seguidas. Neste procedimento, o fundamental é que os
indivíduos envolvidos estejam em uma posição igual para legislar, o que faz Rawls
desenvolver um artifício denominado “véu da ignorância”, responsável pela ignorância dos
13 Macpherson, Crawford Brough. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes até Locke. Paz e
Terra, 1979.
14 O autor afirma, ainda, que o comportamento dos seres humanos descrito por Hobbes como natural, “aquele
para o qual eles são inevitavelmente levados pelas suas paixões” pode ser visto no comportamento de seres
civilizados. Isto é, a dedução oriunda das paixões, em verdade refere-se às paixões dos seres civilizados. Assim,
quando Hobbes refere-se aos homens que “no caminho para seu fim esforçam-se por se destruir ou subjugar um
ao outro”, que estão prontos para desapossar e privar o outro “não apenas do fruto de seu trabalho, mas também
de sua vida e de sua liberdade”, os homens que “não tiram prazer algum da companhia uns dos outros”, o autor
não refere-se a outro homem senão o homem civilizado destituído de instituições políticas.
15 Sen, Amartya. A ideia de Justiça. Edições Almedina. 2009.
16 Idem. p. 43
17 Rawls, John. "Uma teoria da justiça. Martins Fontes. 2002. p. 12
indivíduos em relação ao seu “lugar no mundo”. Desta forma, explica Rawls, “fica excluído o
conhecimento dessas contingências que criam disparidade entre os homens e permitem que
eles se orientem pelos seus preconceitos”18. Sob estas condições, denominadas por Van Parijs
como “circunstâncias de justiça” e “restrições de moralidade”, estes indivíduos consentem
dois princípios:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de
liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo
que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos
limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos19
O importante aqui, mais do que problematizar a noção rawlsiana de justiça, é
utilizá-la como ilustração de um aspecto comum ao procedimento contratualista desde
Hobbes: a concepção do indivíduo que legitima determinado ordenamento jurídico e estatal.
Tanto para Hobbes quanto para Rawls, o indivíduo possui um conjunto de autointeresses
naturais que só podem ser aceitos a partir de uma concepção antropológica muito particular da
filosofia política liberal que entende o ser humano como um indivíduo que persegue
incessantemente seus próprios interesses e cuja preocupação com os demais parceiros de
interação social apenas se manifesta quando estes ameaçam seus interesses individuais.
Embora Rawls remeta à moralidade kantiana para estabelecer limites morais a este egoísmo
privado, como aponta Chantal Mouffe, isto não seria suficiente “para questionar
verdadeiramente a concepção individualista”20.
O que está em jogo, portanto, como já havíamos antecipado, é questionar se esta
noção de indivíduo não seria problemática para considerar a justeza dos termos acordados em
um contrato hipotético. Isto é, da mesma forma que teríamos boas razões para supor que um
contrato realizado por leões provavelmente não acordaria termos favoráveis à cordeiros (e
vice-versa), o acordo consentido na posição original de Rawls consolida uma concepção de
sociedade baseada, justamente, na reunião de individualismos privados. O próprios Rawls,
por outro lado, antecipa esta problemática ao caracterizar sua teoria:
Uma característica da justiça coma equidade é a de conceber as partes na situação
inicial como racionais e mutuamente desinteressadas. Isso não significa que as
partes sejam egoístas, isto é, indivíduos com apenas certos tipos de interesses, por
exemplo, riquezas, prestigio e poder. Mas são concebidas como pessoas que não têm
interesse nos interesses das outras21
18 Idem. p. 21
19 Idem. p. 64
20 Chantal, Mouffe. El retorno de lo político, Comunidad, ciudadanía, pluralismo, democracia radical. Editorial
Paidós, 1999.
21 Rawls, John. "Uma teoria da justiça. Martins Fontes. 2002. p. 15
Ou seja, o indivíduo proposto por Rawls possui uma concepção de justiça que
garanta as condições para a realização do seu próprio interesse, o que em certa medida
demonstra a concepção liberal de que o indivíduo é livre e autônomo quando a sociedade
oferece possibilidades para que ele realize seu próprio plano racional vida. No caso específico
da Posição Original, a escolha pelos princípios básicos se dá porque o indivíduo, sob o véu da
ignorância e sem saber sua verdadeira posição na sociedade, ambiciona uma posição social
elevada ao mesmo tempo em que possui receio de ser abandonado à sorte no caso de não
consegui-lo. Na interpretação de Sandel, é um caso em que “não sabemos nossa posição na
sociedade, mas sabemos que vamos buscar nossos objetivos e vamos querer ser tratados com
respeito”22.
É, portanto, uma situação em que o objetivo dos indivíduos legislantes consiste
basicamente na promoção de seus próprios interesses. Neste caso, a objeção de Kolm (2000) é
pertinente. Segundo o autor,
Um indivíduo não pode propor princípios gerais de justiça que sejam objetivos,
justos e imparciais – sobretudo de justiça distributiva – se suas palavras e escolhas
forem influenciadas pelo desejo de promover seus interesses pessoais” (Kolm, 2000,
p. 236)
Assim, a compreensão individualista do sujeito na Posição Original condiciona a
orientação normativa dos resultados, de modo que, ainda sob o véu da ignorância, o indivíduo
permanece preso à uma condição inicial essencialmente egoísta – procedimento do qual
deriva uma moralidade própria ao modo de produção capitalista. Sobre este aspecto, seria
interessante problematizar quatro questões: (1) o resultado do procedimento rawlsiano é
compatível com uma organização de indivíduos “humanos” ou de indivíduos “egoístas”?; (2).
Os indivíduos “humanos” são naturalmente “egoístas”?; (3) Seria possível conceber uma
noção de indivíduo com características distintas daquelas apresentadas pelas teorias
contratualistas?; (4) Quais seriam os princípios escolhidos pelo indivíduos com estas
características distintas?
3. O jovem Marx e a exploração capitalista
Do ponto de vista moral, a crítica de Marx ao modo de produção capitalista
alcançará seu ponto central na crítica às relações de produção e à exploração capitalista. Não
precisamos rejeitar as teses de Wood23 e Ryan24 para admitir que, no capitalismo, o
22 Sandel, Michael J. "Justiça: o que é fazer a coisa certa." Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
23 Wood, Allen. “Justice and class interests”. Philosophica nº 33, 1984, p. 9-32.
intercâmbio de equivalentes entre capital e força de trabalho não é imoral, ou injusto, visto
que está de acordo com a moral hegemônica. Entretanto, a crítica de Marx dirige-se
justamente ao processo pelo qual este intercâmbio torna-se desigual, isto é, uma troca entre
mais trabalho por menos trabalho que, por sua vez, gera a mais-valia (produto este gerado
pelo trabalho e apropriado pelo capital). Assim, podemos sugerir que a ideia moral dominante,
isto é, a moral burguesa, está em desacordo com o seu correspondente econômico: o modo de
produção capitalista. Ou, em outras palavras, que o capitalismo pode ser moralmente criticado
(e acreditamos que assim o foi por Marx) a partir de sua própria ideia moral.
Podemos supor, desta forma, que a crítica de Marx baseia-se em um conjunto de
princípios morais proclamados pelo próprio capitalismo quando de sua ascensão enquanto
modo de produção hegemônico. Dirá Marx25 que o homem não pode ser escravizado e esta
constatação está plenamente de acordo com o que afirma Kant - que atuar livremente é atuar
autonomamente, “conforme uma lei que me dou a mim mesmo” e não “conforme
determinações dadas fora de mim”. E se Kant diz que o homem deve ser tratado “sempre
como um fim e nunca apenas como um meio”, Marx, sem dúvida, não negaria. O que Marx
demonstra, por meio de uma rigorosa análise, é que o capitalismo não oferece as condições
concretas para que estes princípios (liberdade, igualdade e dignidade, por exemplo) se
manifestem de fato, dado que sua realização econômica se funda na negação da liberdade
plena, da dignidade humana e da igualdade de oportunidades - fazendo da exploração uma
forma de instrumentalização do indivíduo.
Desta forma, em sua explicação de como se dá o processo de apropriação da força
de trabalho no capitalismo, Marx oferece como chave do materialismo histórico a afirmativa
que a classe dominante de cada modo de produção possui seu método particular de extrair o
excedente econômico dos produtores. No caso do capitalismo, isto se dá a partir da escassez
de capital em relação à oferta disponível de força de trabalho. Ao falar sobre a existência da
oferta ser maior que a procura, Marx considera que uma parte dos trabalhadores “cai na
situação de miséria ou na morte pela fome” e disto conclui: “o trabalhador tornou-se uma
mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interesse por ele. E a
procura, da qual a vida do trabalhador depende, depende do capricho do rico e capitalista”26.
Esta consideração refere-se a uma situação particular do capitalismo: a
dependência do trabalhador em relação ao capital. Nos Manuscritos Econômico-filosóficos,
24 Ryan, Alan. Justicia, Explotacion y el fin de la Moral. Revista de Ciencia Politica vol. XII nº 1-2, 1990. 45-
65.
25 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. P. 152.
26 Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial, 2004.
Marx se debruça sobre esta questão. Segundo ele, pensando nas “três situações principais em
que a sociedade pode se encontrar”27 (1 - quando a riqueza da sociedade está em declínio, 2 -
quando a riqueza da sociedade está em crescimento, 3 - quando a riqueza da sociedade está
em situação plena), na melhor delas (a riqueza plena) o trabalhador está em uma situação de
“miséria estacionária”28. O trabalhador, portanto, ao mesmo tempo em que depende do capital
para manter sua existência física e sua efetiva participação material na sociedade, vê os
interesses da sociedade se contraporem aos seus.
Assim, dirá Marx, a economia nacional, termo que mais tarde será substituído por
“economia política”, estabelece a proposição que o trabalhador “tal como todo cavalo tem de
receber o suficiente para poder trabalhar”, isto é, a economia nacional “conhece o trabalhador
apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades
corporais” ao mesmo tempo em que “considera o trabalho abstratamente como uma coisa; o
trabalho é uma mercadoria”, de modo que “com a valorização do mundo das coisas aumenta
em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”29. A denúncia de Marx em
relação a um tipo de trabalho que considera o homem como uma mercadoria, “um animal de
trabalho”, assemelha-se ao princípio kantiano de que o homem deveria ser tratado como um
fim em si mesmo.
Esta é, em suma, uma das mais importantes contribuições de Marx em seus
escritos de juventude: a constatação de que a estrutura econômica do modo de produção
capitalista transformou o homem em uma engrenagem da produção e reprodução da atividade
capitalista, a ponto de concebê-lo como uma das mercadorias produzidas por ele. Pois bem, se
na produção material o homem é reduzido a um meio, é humilhado a ponto de ser concebido
como um cavalo, uma besta ou uma mercadoria, seria esta uma sociedade decente para Marx?
Neste sentido, poderíamos dizer que o filósofo Avishai Margalit oferece uma contribuição
importante ao diferenciar uma sociedade decente de uma sociedade civilizada, sendo a
primeira aquela em que as instituições não humilham os indivíduos e a segunda aquela em
que os indivíduos não se humilham entre si30.
Se pudéssemos estabelecer um diálogo entre os conceitos de Margalit e os escritos
de Marx, diríamos que para este a sociedade capitalista não é decente tampouco civilizada.
Assim como se dá com a escravidão, no capitalismo a exploração deriva da autoridade
27 idem
28 idem
29 idem
30 Rego, Walquiria G. Domingues Leão, and Alessandro Pinzani. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro
e cidadania. 2013.
superior sobre a força de trabalho do produtor. A diferença, como mostra Gerald Cohen em
Karl Marx´s Theory of History: a defense, se dá porque na escravidão e na servidão “não há
venda de força de trabalho do produtor ao explorador. A exploração se consegue mediante
uma coerção extraeconômica”. Entretanto, como no capitalismo o trabalhador assalariado é
proprietário de sua força de trabalho este não pode ser ameaçado por negar-se a utilizá-la,
embora, por não possuir os meios de produção, vê-se obrigado “a firmar um contrato sob pena
de morrer de fome”31
A questão que parece impor-se neste ponto é a seguinte: o trabalhador, para
assegurar sua existência material, isto é, seu bem mais precioso que é a vida, submete-se a um
contrato pelo qual oferece força de trabalho e em troca recebe meios de subsistência. A
objeção liberal neste caso diz respeito ao fato de que as condições estabelecidas neste contrato
são justas na medida em que ambas as partes estão de acordo com suas condições. Por outro
lado, podemos afirmar que esta justeza é aparente, dado que na relação efetiva o trabalhador
não a escolhe a partir de suas preferências, mas em busca da sobrevivência. Callinicos resume
esta relação da seguinte forma:
Um dos pressupostos básicos do capitalismo como sistema econômico é que a
maioria da população não possui nenhuma alternativa aceitável à opção de vender
sua força de trabalho em termos suficientemente desfavoráveis para conduzi-los a
sua exploração32
Em que pese tenhamos que admitir a complexidade das relações de produção
contemporâneas, o importante aqui, sem fugir do objetivo deste trabalho, é demonstrar se
existe ou não um princípio de justiça por trás da análise de Marx sobre a exploração
capitalista. Neste sentido, parece razoável supor que, para Marx, o homem perde sua
dignidade duplamente: 1) quando “a procura [por trabalho], da qual a vida do trabalhador
depende, depende do capricho do rico e capitalista”, isto é, quando sua própria existência,
antes de ser autônoma depende de uma vontade externa a ele e sobre a qual ele mesmo não
possui qualquer gerência e 2) quando o seu ser resume-se a “um animal de trabalho”, “uma
besta reduzida às mais estritas necessidades corporais”33, ou seja, quando é tratado com um
meio e não como um fim em si mesmo.
Esta nos parece, portanto, a motivação para que Marx conclua a necessidade de
superação do trabalho alienado, isto é, a necessidade do “comunismo na condição de supra-
31 Cohen, Gerald A. La teoría de la historia de Karl Marx: una defensa. Pablo Iglesias Editorial. 1986.
32 Callinicos, A. Igualdade e capitalismo. In: BORÓN, A; AMADEO, J; GONZÁLEZ, S. (orgs.). A teoria
marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, 2006, p. 253-269.
33 Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial, 2004, p. 32.
sunção positiva da propriedade privada”34. Ou, em outras palavras, o que ele chama de “o
imperativo categórico de subverter todas as relações em que o homem é um ser humilhado,
escravizado, abandonado, desprezível”35. Ora, então para Marx não apenas o capitalismo deve
ser abominado por degradar a dignidade e a autonomia dos homens mas também é necessário
instaurar como categórica a tarefa de organizar uma sociedade onde sejam realizados, de fato,
estes princípios. Princípios, diríamos, não de classe, mas universais e normativos.
4. Renda Básica: uma alternativa justa à exploração capitalista?
Ao admitir o “imperativo categórico” de transformar o capitalismo não
precisamos confrontarmo-nos com a ideia liberal de uma sociedade cujas instituições tenham
como virtude fundamental a justiça. Pelo contrário, parece-nos pertinente a realização de uma
sociedade onde o homem não seja um ser “humilhado, escravizado, abandonado, desprezível”
(Marx, 2004). Para isso, no entanto, existem diferentes caminhos. Um particularmente nos
parece interessante e pode ser descrito, de forma bastante resumida, como “uma renda paga
por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independentemente
de sua situação financeira ou exigência de trabalho”36. Este é o conceito de “Renda Básica”,
também conhecida como “Ingreso Ciudadano”, “Renda Mínima” ou “Renda Básica
Universal”.
Nos últimos anos, a ideia de uma renda básica distribuída incondicionalmente aos
membros de uma comunidade foi impulsionada por filósofos como Phillipe Van Parijs e
Robert J. Van der Veen que, em 1987, escreveram A capitalist road to communism, onde a
caracterizavam como “uma forma elegante de combinar os imperativos de igualdade e
eficiência”. Em linhas gerais, como vemos em Raventós, a existência de uma Renda Básica
supõe “uma independência socioeconômica e uma base autônoma de existência muito maior
que a atual para parte dos cidadãos, sobretudo para aqueles setores mais vulneráveis e
dominados”37. Para outros autores, como Iglesias, uma renda deste tipo torna-se um
mecanismo de distribuição de renda, “limitando o papel do mercado de trabalho, fonte
principal da exploração capitalista na distribuição primária da renda”38.
Realmente, um dos pontos centrais desta proposta reside, justamente, no fato de
34 idem
35 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
36 VAN PARIJS, Philippe. Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?. Estud. av. [online]. 2000,
vol.14, n.40, pp. 179-210.
37 Raventós, Daniel. "¿ La renta básica es (o no) justa? Sobre liberalismos y republicanismos. Temas nº 70, 39-
45. 2012
38 IGLESIAS, José, and M. SÁEZ. "Todo sobre la Renta Básica. Introducción a los principios, conceptos,
teorías y argumentos." Virus (2001), p. 45.
que uma renda básica garantida para todos os cidadãos se impõe como alternativa à chamada
“mercantilização da força de trabalho”, isto é, a situação em que os trabalhadores que não
possuem os meios de produção se veem obrigados a vender sua força de trabalho em troca de
sua subsistência. “O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir
chegar ao homem que se interesse por ele”, dirá Marx39. A implantação de uma Renda Básica,
desta forma, garantiria que estas necessidades das quais depende a vida do trabalhador sejam
asseguradas fora do mercado de trabalho, ou, em outras palavras, asseguradas pela própria
comunidade.
Assim, reconstruindo a nossa exposição inicial, se admitirmos a injustiça da
exploração da força de trabalho (de modo que ela seja responsável pela perda da autonomia e
da dignidade dos explorados a ponto destes serem tratados como instrumentos de outros) e
que, no modo de produção capitalista, os trabalhadores não possuem outra alternativa senão
submeterem-se a esta situação degradante, resta-nos buscar uma alternativa justa à
exploração. Neste caso, a Renda Básica possui algumas possibilidades. Dirá Van Parijs, em
uma definição bastante simples que este é um projeto que “pretende tornar possível que todos
trabalhem, mas que não obrigue ninguém a aceitar qualquer tipo de trabalho” (Ramirez,
2003). Ou, nas palavras de Marx, que o ser humano não precise ser tratado “como qualquer
cavalo”.
5. Considerações Finais
Em síntese, nosso argumento em defesa da Renda Básica de Cidadania baseia-se,
efetivamente, em três pontos: 1) A oferta de uma renda mínima incondicional para todos os
membros de uma comunidade afeta positivamente a relação entre capital e trabalho, de modo
que o indivíduo passa a possuir autonomia e liberdade para escolher racionalmente entre
vender sua força de trabalho ou não; 2) Ao passo em que uma Renda Básica garante a
sobrevivência dos indivíduos fora do mercado de trabalho, estes não veem mais sua dignidade
constrangida pela exploração de sua força de trabalho; 3) No momento em que não se veem
obrigados a vender sua força de trabalho, os indivíduos podem eleger racionalmente um
trabalho que os satisfaça, isto é, que a experiência do trabalho propicie a autorrealização.
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