anÁlise do discurso de linha francesa

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ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA: preliminares Professora Marcilene Rodrigues Pereira Bueno Concebe-se a Análise do Discurso de linha francesa (AD) como um modelo metodológico que, segundo Maingueneau (1989), surgiu na década de 60 associada a uma tradicional prática escolar francesa: a explicação de textos. Trata-se, portanto, de uma metodologia que, privilegiando a interdisciplinariedade, articula pressupostos teóricos da Lingüística, do Materialismo Histórico e da Psicanálise. Os fundamentos da psicanálise sustentam explicações para os processos de representação do referente textual, coletivamente construído por interações discursivas e por um sujeito fragmentado que tem a ilusão de ser uno. Contudo, ao falar e/ou enunciar seu discurso, ele sempre está se remetendo ao já-dito, a outros discursos. (cf. Orlandi, 1983) Os fundamentos do materialismo histórico sustentem explicações sobre situações das quais o sujeito participa como membro de uma sociedade estratificada por classes sociais, e onde ele assume diferentes papéis. Mas, enquanto membro dessa sociedade, esse sujeito não tem autorização para representá-la, razão pela qual o grau de participação social do sujeito é determinado pelo seu nível de qualificação. Nesse sentido, fragmentado-se em diferentes sujeitos, participa apenas de situações autorizadas, já que cada situação exige-lhe um comportamento, um estilo, um conhecimento sobre o contexto histórico-social, enfim, um discurso. (cf. Pêcheux, 1990) Os fundamentos lingüísticos da teoria da enunciação sustentam explicações sobre relações enunciativas nas quais os interlocutores, situados num aqui e num agora, não só se assumem reciprocamente mas também se atribuem identidades, por um jogo de imagens ideologicamente forjadas a partir de formações discursivas vigentes. Os fundamentos teóricos da disciplinas acima enunciadas possibilitaram a Pêcheux e Funchs (1975) elaborarem um quadro epistemológico da AD, no qual se articulam a concepção de

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ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA: preliminares

Professora Marcilene Rodrigues Pereira Bueno

Concebe-se a Análise do Discurso de linha francesa (AD) como um modelo metodológico que, segundo Maingueneau (1989), surgiu na década de 60 associada a uma tradicional prática escolar francesa: a explicação de textos. Trata-se, portanto, de uma metodologia que, privilegiando a interdisciplinariedade, articula pressupostos teóricos da Lingüística, do Materialismo Histórico e da Psicanálise.

Os fundamentos da psicanálise sustentam explicações para os processos de representação do referente textual, coletivamente construído por interações discursivas e por um sujeito fragmentado que tem a ilusão de ser uno. Contudo, ao falar e/ou enunciar seu discurso, ele sempre está se remetendo ao já-dito, a outros discursos. (cf. Orlandi, 1983)

Os fundamentos do materialismo histórico sustentem explicações sobre situações das quais o sujeito participa como membro de uma sociedade estratificada por classes sociais, e onde ele assume diferentes papéis. Mas, enquanto membro dessa sociedade, esse sujeito não tem autorização para representá-la, razão pela qual o grau de participação social do sujeito é determinado pelo seu nível de qualificação. Nesse sentido, fragmentado-se em diferentes sujeitos, participa apenas de situações autorizadas, já que cada situação exige-lhe um comportamento, um estilo, um conhecimento sobre o contexto histórico-social, enfim, um discurso. (cf. Pêcheux, 1990)

Os fundamentos lingüísticos da teoria da enunciação sustentam explicações sobre relações enunciativas nas quais os interlocutores, situados num aqui e num agora, não só se assumem reciprocamente mas também se atribuem identidades, por um jogo de imagens ideologicamente forjadas a partir de formações discursivas vigentes.

Os fundamentos teóricos da disciplinas acima enunciadas possibilitaram a Pêcheux e Funchs (1975) elaborarem um quadro epistemológico da AD, no qual se articulam a concepção de discurso focaultiniano e a teoria materialista do discurso, englobando três dimensões do conhecimento científico:

a) o materialismo histórico;b) os conhecimentos lingüísticos, compreendendo uma teoria de determinação

histórica dos processos de enunciação; ec) os conhecimentos sobre o discurso, compreendendo uma teoria de determinação

histórica dos processos semânticos. Tais dimensões abarcam conceitos fundamentais como o de formação social, o de

língua e o de discurso, estando todos eles atravessados por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica.

Ressalta, ainda, Brandão (1991) que a AD também atribui relevo a concepção de língua postulada por Bakhtin – para quem a língua é concebida como “algo concreto”, fruto da manifestação individual de cada falante – e, por esta razão, os analistas do discurso também valorizam a fala, de modo que, ao tratar da linguagem, eles a conceberão como um modo de ação social: um espaço de conflitos e de embates ideológicos. Entende-se, pois, que a linguagem não poderá ser estudada fora dos quadros sociais, visto que o seu (dela) processo constituidor e seus sentidos são histórico-sociais; razão pela qual os conceitos de condição de produção do discurso, de formação discursiva e de formação ideológica são postulados pelos estudiosos da AD como sendo fundamentais para o estudo da linguagem.

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Segundo Silveira (1994), a Análise do Discurso de linha francesa (AD) privilegia em seus estudos a noção de sujeito e de interdiscursividade, acrescentando a ambas as noções de história e de ideologia. Assim, o sujeito é concebido como essencialmente histórico; razão porque sua fala é sempre produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado tempo e, desse modo, à noção de sujeito histórico articula-se a de sujeito ideológico. Por conseguinte, “ o que” este sujeito fala sempre compreende um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social, tratando-se de um sujeito “descentrado” entre o “eu” e o “outro”: um ser projetado num espaço e num tempo. Tal projeção faz com que esse sujeito situe o seu discurso em relação aos discursos do outro. Para a autora, o “outro” compreende não só o destinatário – aquele para quem o sujeito planeja e ajusta a sua fala no plano intradiscursivo – mas também envolve outros discursos historicamente já costurados (interdiscurso) e que emergem em sua fala.

Essa concepção de sujeito abarca a noção de alteridade : um sujeito que luta para ser uno mas que – na materialidade discursiva - é polifônico. Nesse sentido, entende-se que a alteridade introduz tanto o conceito de história como o de ideologia. Tal deslocamente do sujeito do discurso é tratado por Orlandi (1988) como dispersão: a produção de um discurso heterogêneo por incorporar e assumir, pelo diálogo, diferentes vozes sociais, relacionando “o mesmo” com o seu “outro”, de modo a reconhecer no discurso a coexistência de várias linguagens em uma só linguagem.

ALGUNS IMPORTANTES CONCEITOS DE AD

1. A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA

Segundo Pêcheux a ideologia adquire materialidade no discurso, assim, ao se analisar a articulação da ideologia com o discurso, o analista tem de se reportar a dois conceitos tradicionais da AD, a saber, o conceito de formação ideológica e o de formação discursiva: “a região do materialismo histórico que interessa ao estudo do discurso é a da superestrutura ideológica ligada ao modo de sua produção dominante na formação social considerada.” Desse modo, para o referido autor, a região da ideologia deve ser caracterizada por uma materialidade específica articulada sobre a materialidade econômica.

Por conseguinte, a ideologia vai funcionar como reprodutora das relações de produção, isto é, o sujeito será assujeitado como sujeito ideológico, de forma que cada sujeito interpelado pela ideologia busque ocupar o seu lugar em um grupo ou classe social de uma determinada formação social, acreditando estar exercendo a sua livre vontade.

Por sua vez, as classes sociais mantêm e perpetuam a ideologia através do que Althusser (1974) denominou de AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado). Assim, os AIE(s) “colocam em jogo práticas associadas a lugares ou a relações de lugares que remetem à relação de classe.” Segundo Brandão (1991), por esse motivo, num determinado momento histórico e no interior dos aparelhos ideológicos, as relações de classe podem se caracterizar pelo afrontamento de posições políticas e ideológicas que se organizam de forma a entreter entre si relações de aliança, de antagonismos ou de dominação.

Brandão também afirma que os discursos são governados por formações ideológicas, entendendo formações ideológicas como um elemento capaz de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica de uma formação social, em um determinado momento. Entende a autora que, “cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘

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individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras.”.

Nesse sentido, a formação ideológica tem como um de seus componente uma ou várias formações discursivas interligadas. Desse modo, as formações discursivas inscritas em uma formação ideológica é que vão determinar “ o que pode ou deve ser dito” a partir de uma conjuntura dada.

Conclui-se, assim, que as formações discursivas representam, na ordem do discurso as formações ideológicas que lhe correspondem. Se é a formação discursiva que determina o que se pode e o que se deve dizer – a partir de uma posição dada, em uma dada conjuntura – as palavras, expressões e proposições em uso recebem o seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. Desse modo, tais palavras, expressões ou proposições mudam de sentido segundo as posições mantidas pelos que as empregam, o que significa que elas tomam seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem.

2. A FORMAÇÃO DISCURSIVA

Os estudiosos de AD postulam que, se por um lado não há discurso destituído de ideologia, por outro , não há discurso que não tenha e/ou apresente a inscrição de outros, visto que todos eles nascem e apontam na perspectiva de suas relações com outros discursos. Desse modo, a AD privilegia o conceito de interdisciplinariedade para os estudos que desenvolve no campo da investigação sobre a linguagem.

Segundo Pêcheux , o conceito de formação discursiva compreende o lugar de construção dos sentidos, determinando o que “pode” e “deve” ser dito, a partir de uma posição numa dada conjuntura. Assim sendo, a uma dada formação discursiva sempre corresponde uma dada formação ideológica.

Para Orlandi (1988), é na formação discursiva que se constitui o domínio do saber, o que funciona como um princípio de aceitabilidade para um conjunto de formulações e, ao mesmo tempo, como um conjunto de exclusão do “não-formulável”.

Entende-se, assim, que a formação discursiva não só se circunscreve na zona do dizível – do que pode e o que deve ser dito – definindo conjunto(s) de enunciado(s) possíveis, a partir de um lugar determinado, como também circunscreve o lugar do não dizível – o que não pode e o que não deve ser dito. Por esta razão, para tratar de formações discursivas, faz-se necessário tratar da interação entre formações discursivas, pois que a identidade do discurso se constrói na relação com o Outro, esteja esse Outro marcado ou não lingüisticamente.

Postula Maingueneau (1989) que quando se busca especificar a noção de interdiscurso, faz-se necessário recorrer a três conceitos complementares, a saber:

. universo do discurso – compreendendo o conjunto de formações discursivas de todos os tipos de discurso que interagem numa dada conjuntura. Em sendo este conjunto bastante amplo, afirma o autor que ele jamais poderá ser concebido na sua globalidade; por conseguinte, a utilização da noção de universo de discurso só se presta para definir campos discursivos;

. campos discursivos – compreendendo um conjunto de formações discursivas que se encontram em relação de concorrência em uma dada região do universo discursivo;

. espaço discursivo – compreendendo a delimitação de subconjuntos(s) do campo discursivo, estabelecendo relações cruciais entre pelo menos duas formações discursivas.

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É importante ressaltar que as formações discursivas, por pertencerem ao mesmo momento histórico instituem em campo discursivo, devido ao fato de possuírem a mesma formação sócio-histórica; razão por que é o princípio da contradição a marca de especificidade da formação discursiva. Essa contradição funciona como princípio de historicidade do discurso. Entende-se, pois, que a concepção de formação discursiva não se remete ao fechamento, à imobilidade – expressão cristalizada da visão de mundo de um grupo social – mas a um domínio aberto e inconsistente ( cf. Brandão,1991)

Segundo Courtine (1981), uma Formação Discursiva se dissocia de uma memória discursiva que pode ser compreendida a partir de três domínio diferentes:

. domínio da memória: aquele que se circunscreve à seqüências discursivas pré-existentes – formulações já enunciadas – que toda formação discursiva faz circular;

. domínio da atualidade: aquele que se circunscreve a seqüências discursivas em uma dada conjuntura histórica dada, inscrevendo-se na instância do acontecimento, de modo a fazer irromper um acontecimento passado, para reatualizá-lo;

. domínio da antecipação: aquele que se circunscreve a seqüências discursivas que mantém relações interpretáveis como efeitos de antecipação, revelando: ser impossível atribuir um fim a um processo discursivo; ser sempre possível relacionar uma seqüência discursiva com o seu exterior, possibilitando provar que sempre haverá outras relações; ser possível – a partir de resultados obtidos em análise – construir um domínio de antecipação.

Entende Brandão (1991) que “ (...) a existência de uma formação discursiva como memória discursiva e a caracterização de efeitos de memória em discurso, produzidos numa dada conjuntura histórica, devem ser articulados com os dois níveis de formação discursiva: o nível interdiscursivo e o nível intradiscursivo.”

O nível interdiscursivo é compreendido por Maingeneau como a relação de um discurso com outros discursos do mesmo campo, podendo divergir deles ou apresentar enunciados semanticamente vazios em relação àqueles que autorizam sua formação discursiva. O nível do intradiscurso é compreendido como a relação que o discurso defino com outros campos discursivos, dependendo de serem os enunciados do discurso citáveis ou não. Nesse sentido, pode-se propor a existência de uma intensa circulação de “saberes” de uma região para outra no universo discursivo.

Entende-se que, em se tratando do nível interdiscursivo, na formação dos enunciados está implicado o próprio saber sobre uma formação discursiva, de modo que os próprios enunciados existem no tempo de uma memória. Assim sendo, esse saber envolve toda uma transmissão cultural, não só transmitida de geração em geração, mas também regulada pelas instituições.

Assim, no nível interdiscursivo – designado intertextualidade interna por Maingueneau – a memória discursiva possibilita, por uma lado, a circulação de formulações anteriores e, por outro, o aparecimento, a rejeição e a transformação de enunciados pertencentes a formações discursivas historicamente contíguas , visto que enunciar é sempre se situar em relação ao “já dito”: o que se constitui no “outro” discurso.

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BIBLIOGRAFIA:

ALTHUSSER, L. (1974) Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. São Paulo: Martins Fontes.

BAKTHIN, M. (1992), Marxismo e Filosofia da Linguagem: 6ª ed., São Paulo: Hucitec

BRANDÃO, H. H. N. (1991). Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp.

MAINGUENEAU, D.(1989). Novas Tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes

ORLANDI, E. (1988). Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez.

PÊCHEUX, M. (1990). Análise Automática do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp.