ano 1 | nº 1 ediÇÃo de lanÇamento edição gratuita · preconceitos e de forma plural, demos...

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REVISTA PARA CIDADÃO CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA EM RAIZ.ORG.BR EDIÇÃO DE LANÇAMENTO Ditadura do capital “Isso é uma solene hipocrisia” com DOM ANGÉLICO Eu não sou você amanhã Para que servem as cotas? por DJAMILA RIBEIRO Por uma frente de pessoas Unidos não morreremos por CYNARA MENEZES Uma boa ideia Quer votar em Prévias? por CÉLIO TURINO A esperança vem do caos “Vai surgir algo novo no país” com GUILHERME BOULOS Por mais orgânicos “Você come veneno. E sabe” com MATTHIAS BORNER Itaquera virou centro Altar dos esquecidos com PE. PAULO BEZERRA Lição da Islândia Os Piratas aportaram no gelo por LUIZ MILLER Pela legalização e pela paz Filha, papai é maconheiro com FERNANDO DA SILVA ANO 1 | Nº 1 edição gratuita

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R E V I S T A P A R A C I D A D Ã O

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA

EM RAIZ.ORG.BR

EDIÇÃO DE LANÇAMENTO

Ditadura do capital “Isso é uma solene hipocrisia”com DOM ANGÉLICO

Eu não sou você amanhãPara que servem as cotas? por DJAMILA RIBEIRO

Por uma frente de pessoasUnidos não morreremospor CYNARA MENEZES

Uma boa ideiaQuer votar em Prévias?por CÉLIO TURINO

A esperança vem do caos“Vai surgir algo novo no país” com GUILHERME BOULOS

Por mais orgânicos“Você come veneno. E sabe” com MATTHIAS BORNER

Itaquera virou centroAltar dos esquecidoscom PE. PAULO BEZERRA

Lição da IslândiaOs Piratas aportaram no gelo por LUIZ MILLER

Pela legalização e pela paz Filha, papai é maconheiro com FERNANDO DA SILVA

ANO 1 | Nº 1

edição gratuita

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O problema não é

a política. É a falta

que você faz nela.

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA

EM RAIZ.ORG.BR

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PARA QUE SERVE ESSA REVISTA?

As pessoas estão cansadas de política e já têm acesso a informação, certo? Então, por que fazer uma revista para falar de política se político não presta e revista é coisa do passado? O melhor mesmo seria esperar a crise passar e torcer por tempos melhores. Acontece que os ventos andam trazendo

novos empresários milionários no poder e mantendo velhos telejornais na sala de casa. Falar sobre política, direitos e democracia ficou nostálgico e démodê demais. Então, para não esperar o tempo passar e assistir ao mundo acabar, decidimos lançar a CIDADANISTA e começar a falar de política como cidadania. Afinal política e cidadania são a mesma coisa e uma revista, além de comunicar, tem a força de agregar pessoas e empoderar causas. Convidamos você também a fazer um exercício de linguagem e quebrar seus preconceitos. Tente refletir sobre o significado das palavras e substituir ‘lutas operárias’ por ‘economia colaborativa’, ‘mídia manipuladora’ por ‘jornalismo cidadão’, ‘luta de classes’ por ‘inovação social’... A lista de analogias é grande e serve apenas para lembrar que, independente das palavras usadas, todos nós queremos a mesma coisa: viver bem e em harmonia com os outros e o entorno. É tempo de juntar e é para isso que essa revista nasceu. Para aglutinar pessoas, disseminar conteúdo transformador e afirmar que o consenso é necessário e a ação é urgente. Os caminhos podem ser pela resistência ou pela proposição, mas nunca pela omissão. A busca pela cidadania plena será fruto de uma RAIZ e um movimento que quer contar com você.

Seja muito bem-vindo, cidadanista. Estamos te esperando.

EDITORES CIDADANISTAS

CARTA DO EDITOR | por IVAN ZUMALDE

4 CIDADANISTA

SUMÁRIO | Edição de lançamento - dezembro 2016

Sumario03_Carta do editor04_Sumário06_ Árvore de conteúdo 08_ Palavras cidadãs

BEM VIVER 10_Boas práticas: mundo12_Boas práticas: Brasil14_Boas ideias: legalização 16_Boas ideias: fé20_Bem viver: orgânicos

MOVIMENTOS24_O poder da rua com GUILHERME BOULOS

CIDADÃO 34_Prévias cidadãs. Você quer? por CÉLIO TURINO44_PEC 241 é a pior saída por CHARLES NISZ 46_E a Islândia? por LUIZ MILLER 50_Para que servem as cotas? por DJAMILA RIBEIRO 54_Cinema na perifa por JULIANO COELHO

HISTÓRIA VIVA58_A ditadura do capital com DOM ANGÉLICO

VOTO 62_Mulheres no poder com Mariana Conti 64_Renda cidadã com Eduardo Suplicy

FRUTOS 66_Esquerda unida por Cynara Menezes 68_A resistência pelo comumpor Eduardo Brasileiro70_A mídia não manipulapor Tiago Mota

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EXPEDIENTE

CONSELHO EDITORIALREVISTA CIDADANISTA (Coordenação de comunicação da Raiz - movimento cidadanista)

Airton FranciscoCélio TurinoClaudino da Silva Dias Diego dos Santos Veiga SilvaFabiana Padula Santiago da Costa Ivan Zumalde Josir Cardoso Gomes Maria Teresa del Niño Jesus Espinós de Souza AmaralRonaldo Correa FabianoRubens SallesSilvana Aparecida BragattoVictor Gomes CavalcanteVitor Taveira RochaViviane Ferreira de Limae demais colaboradores dos círculos cidadanistas

EDITOR: Ivan Zumalde (MTB 29263)

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:Célio Turino, Cynara Menezes, Djamila Ribeiro, Eduardo Brasileiro, Juliano Coelho, Luiz Filho, Renata Monken, Susanne Sassaki e Tiago Mota

DENTRO DA RAIZ 73_Carta cidadanista74_Como participar da RAIZ75_Como entrar nos Círculos76_Diálogos: partido ou não77_Enraizados com a palavra

A revista Cidadanista é uma publicação independente vinculada aRAIZ Movimento Cidadanista - Para falar com a redação, ligue: 11 983 166 642

Todos os artigos e conteúdos veiculados nesta publicação refletem as opiniões de seus autores e não necessariamente dos editores da revista Cidadanista ou da RAIZ Movimento Cidadanista.

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ÁRVORE DE CONTEÚDO | Cabeças cidadãs

Árvore de conteúdoUma revista se faz com gente e o nosso pomar está carregado. Sem preconceitos e de forma plural, demos voz a todos que possam despertar a cidadania dentro de você

Conteudistas

EntrevistadosGUILHERME BOULOS - líder do MTST

EDUARDO SUPLICY- Vereador por São Paulo, PT

ALESSANDRA OROFINO - Ativista do Meu Rio

DOM ANGÉLICO - Bispo Emérito de Blumenal

MARIANA CONTI - Vereadora por Campinas, PSOL

YONATHAN PARIENTI - Empreendedor social

JONAS LESSA- Idealizador da Retalhar

PE. PAULO BEZERRA - Pároco de Itaquera

MATTHIAS BORNER - Criador do festival Off de orgânicos FERNANDO DA SILVA - Ativista da Causa Cannabis

CÉLIO TURINOHistoriador, escritor e gestor de políticas públicas, é fundador da RAIZ e criador do Pontos de Cultura, além de autor de diversos livros.Escreveu a matéria “Previas cidadãs. Você quer?”

DJAMILA RIBEIROFilósofa, feminista e ativista da causa negra, Djamila atua como secretária adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.Escreveu a matéria “Para que servem as cotas?”

CYNARA MENEZESCynara Moreira Menezes já percorreu grande parte das redações da imprensa brasileira. Atualmente se dedica ao blog socialistamorena.com.br Assina o artigo “Por uma frente (de gente) de esquerda”

LUIZ MILLERJornalista e colaborador da revista Guerrilha, Luiz deixou São Paulo para viver atualmente no interior de Santa Catarina atrás de uma vida simples.Escreveu a matéria “Os Piratas aportaram na ilha do gelo”

TIAGO MOTATiago Mota é comunicólogo e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Assinou o artigo “A mídia não manipula”

EDUARDO BRASILEIROBacharel em Sociologia e Política pela FESPSP, Eduardo é membro das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica em Itaquera, São Paulo.Assinou o artigo “A resistência pelo comum”

JULIANO COELHOMúsico e jornalista, Juliano é paulistano e já colaborou para UOL, Trip e revista Sexy entre outros veículos da imprensa com o jornal Folha de S. Paulo.Escreveu a matéria “Cinema na perifa”

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CHARLES NISZCharles Nisz é jornalista em SP e já cobriu Meio Ambiente, Economia e Tecnologia em veículos como UOL, DCI, iG e Yahoo. Escreveu a matéria “Por que a PEC 241 não é a melhor $olução? (segundo eles, os economistas)”

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Quer ajudar a mudar o

país? Pergunte-nos como.

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA

EM RAIZ.ORG.BR

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SEMENTE | O que eles disseram

“Enquanto não houver consciência de que a responsabilidade pela situação política, econômica, social, cultural e moral no qual nós, os brasileiros, nos envolvemos, é de todos nós, não teremos condições de sair deste atoleiro.

” CÉLIO TURINO

Palavras cidadãsUma seleção de frases ditas por nossos entrevistados para a edição de lançamento da revista Cidadanista. Sábias palavras para momentos nem tão claros assim.

“A gente não pode fazer essa separação entre fé e política. A fé é política. A fé tem dimensão de inserção na realidade e não pode ser privatizada.

“ PE. PAULO BEZERRA

“ O mercado que não tiver orgânicos no futuro vai fechar.

” MATTHIAS BORNER

“O mundo está buscando e lançando soluções criativas de economia solidária.

”YONATHAN PARIENTI

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“Vamos pensar e elaborar esse mandato compartilhado. Já germinou, basta a gente semear essa democracia mais participativa.

” LUIZ FERNANDO

“Eu acho que uma esquerda que não queira dialogar com os mais amplos setores e que não esteja disposta a fazer o esforço de convencimento, seja por ressentimento ou por qualquer outra coisa, é uma esquerda que não está preparada para assumir os desafios históricos.

” GUILHERME BOULOS

“ O #queroprevias vai injetar energia transformadora no sistema político e oxigenar, com novos atores e lideranças, demandas não atendidas dos movimentos sociais. É uma questão de vida ou morte. Sem isso não faz sentido.

” ALESSANDRA OROFINO

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BEM VIVER | Boas práticas: MUNDO

TEM TROCO PARA DOAÇÃO?

O que é a Spotlight e com qual objetivo ela foi criada? Como é a mecânica de funcionamento e financiamento do projeto?O lançamento da Spotlight, a primeira moeda social global, é uma prova de que o mundo está buscando e lançando soluções criativas de econo-mia solidária e capitalismo consciente. A Spotlight é uma moeda digital não especulativa e que tem como objetivo circular e gerar valor social ao invés de ser entesourada. O financiamento de nossos projetos se dá por meio dos nossos parceiros de negócios, mas no caso do Spotlight também pe-los usuários da plataforma, que adquirem a mo-eda e a fazem circular dentro da plataforma para que seus membros, organizações, artistas e cida-dãos possam construir mudanças positivas.

Você acredita que a prática de mecanismos de inovação social podem ser uma forma política de o cidadão transformar a realidade? Você acre-dita que empreendedores sociais podem entrar na política tradicional em um futuro próximo?Nossa plataforma é apolítica e apartidária. Acredi-tamos que cada cidadão global é capaz de fazer o bem e contribuir para um futuro melhor, indepen-dentemente de sua presença no cenário político. Uma nova geração de empreendedores sociais está surgindo e, através de sua criatividade e entu-siasmo, eles contribuem para construir uma nova dinâmica na sociedade civil. Ao fazer isso, eles dão um passo para atingir o ideal de construir cidades

Já ouviu falar em negócios sociais? Em rede social do bem ou em moeda social global? Não é assistencialismo ou marketing para camuflar marcas. Trata-se de um caminho que ganha adeptos no mundo e no Brasil e que se apropria de mecanismos do próprio sistema capitalista para transformar o mundo e um lugar mais justo. Conheça a Horyou e a Spotlight pelas palavras do criador Yonathan Parienti

CONGRESSO DO BEM O último congresso organizado pela Horyou aconteceu em novembro de 2016 no Marrocos.

por REDAÇÃO

colaboração de ZURIQUEfo

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harmoniosas, que são o princípio mais puro da po-lítica. Assim, podemos contemplar a possibilidade de que alguns empreendedores sociais possam estender sua experiência entrando no caminho da política, trazendo suas ideias e criatividade a serviço da sociedade.

O Brasil e o mundo passam por uma crise de representatividade política aliada à recessão econômica, e esse cenário trouxe à tona ideais conservadores. Como fazer crescer ideais mais humanistas, igualitários e progressistas neste contexto adverso?O ser humano é capaz de ações humanistas, igua-litárias e progressistas em qualquer tipo de cená-rio. Nossa plataforma é uma prova disso - todos os dias vemos pessoas de todas as classes sociais, perfis e países do mundo atuando em projetos sociais que realmente mudam a vida de suas co-munidades. Ao serem compartilhadas em redes sociais como a Horyou, esses grandes atores hu-manitários inspiram e dão esperança para a nossa sociedade. Por esse motivo, a filosofia da nossa plataforma é Sonhar, Inspirar, Agir.

“O mundo está buscando e lançando uma solução criativa de

economia solidária e capitalismo consciente. A Spotlight é isso”

Somos um país com desigualdade social acen-tuada e graves problemas de saúde, educação, violência, entre outros. Qual é sua visão sobre o Brasil e como acredita que suas iniciativas po-dem mobilizar a população para uma cidada-nia mais plena?O Brasil é um país com um povo criativo, amo-roso e extremamente filantrópico. Muitas das organizações mais ativas da nossa plataforma têm sede no Brasil, e fazem um trabalho diverso e inspirador para outras organizações no mundo. Esses projetos têm como foco a solução de pro-blemas urgentes de países em desenvolvimento, como acesso a saúde, educação e prevenção à violência, mas também atuam em áreas que tam-bém são desafios para o mundo desenvolvido, como promoção ao meio ambiente e igualdade de gênero. Essas iniciativas podem ser potencia-lizadas sendo compartilhados pelo mundo. É por isso que acreditamos no poder das redes sociais para o bem social.

CONHEÇA MAIS EM horyou.com

MONEY IS GOOD Yonathan discursa sobre a rede social do bem Horyou e a moeda Spotlight. O executivo saiu do mercado financeiro para empreender em negócios sociais.

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BEM VIVER | Boas práticas: BRASIL

RETALHAR PARA MUDAR

Quando surgiu a Retalhar? Conte-nos um pou-co como o empreendimento social funciona? A ideia surgiu em 2012 e a formalização se deu em 2014. Hoje, quase dois anos depois, somos seis pessoas na equipe e nosso modelo de negócio consiste na prestação de serviço de logística rever-sa de uniformes profissionais, em que as empre-sas descartantes nos pagam um valor por kg para garantirmos a descaracterização e a destinação ambientalmente adequada de uniformes profis-sionais. Temos orgulho em dizer que todo material que recebemos é reutilizado ou reciclado, nunca encaminhado para aterro sanitário. Sob a ótica do trabalho, toda a mão de obra técnica de costura é proveniente de cooperativas localizadas na pe-riferia de São Paulo, as quais geram renda e são empoderadas para se tornarem independentes e cada vez mais consolidadas. Também usamos nos-sa capacidade de articulação para formar parcerias com organizações sociais, como é o caso do Pimp My Carroça e do Entrega por SP.

Como a Retalhar pode mudar o cenário de ex-ploração do trabalho muito característico no setor têxtil? Certamente a questão do trabalho sempre foi uma preocupação da Retalhar. Não à toa, lá no início da história, o trabalho já era realizado com coo-perativas e pautado na economia solidária. Mais que isso, há um impacto social evidente que vai muito além da geração de renda. Estamos falando de mulheres (a grande maioria) que se apropriam de suas vidas, que crescem como cidadãs ao ver seus produtos se espalhando pela sociedade, que crescem como pessoas ao se verem responsá-veis por importantes decisões sobre o futuro de

Conheça a Retalhar, ganhadora - pelo voto popular - do Prêmio Empreendedor Social 2016, e descubra como a empresa liderada por Jonas Lessa e Lucas Corvacho pretende jogar luz sobre meio ambiente, relações de trabalho, economia solidária e ainda pode influenciar políticas públicas sobre reciclagem de resíduos

RETALHO DO BEM Economia colaborativa é o que move o negócio social da Retalhar.

PREMIADOS Jonas e o time da Retalhar já conquistaram muitos prêmios e certificações pela inovação social da marca

por REDAÇÃO

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seu negócio e o valor do seu trabalho. A lógica da Retalhar é basicamente a de transformar um problema comum em uma solução inovadora e inclusiva. Olhando para a indústria têxtil, sou um pouco mais cauteloso. Há um movimento macro, global, que por enquanto o ativismo e o empre-endedorismo social não conseguem reverter em escala. Na busca por redução de preço, quem paga são os trabalhadores e o meio ambiente. Sinto que, enquanto a massa consumidora não for firme em rejeitar este modelo de produção, dificilmente atingiremos uma mudança efetiva e de grande alcance.

Acredita que o negócio de vocês tem vocação para se transformar em política pública? Acredito na Retalhar como um meio para enga-jar as pessoas. E, quem sabe, podemos inspirar

políticas públicas no futuro. Se você analisa a Po-lítica Nacional de Resíduos Sólidos, há uma obri-gatoriedade das grandes empresas em garantir a destinação ambientalmente adequada de todos os resíduos passíveis de reciclagem ou reutilização. No caso dos uniformes, as empresas querem doar, mas quem recebe doação acaba aproveitando uma par-cela muito pequena e, no final das contas, a maior parte vai para o aterro sanitário. Então o que se vê é a empresa terceirizando o problema do resíduo - e sem nenhum custo. Eu vejo a Retalhar como uma iniciativa que muda o comportamento do mercado a partir das empresas que internalizam as questões socioambientais - aqueles custos que todo mundo finge que não vê, mas estão aí - na cidade poluída, no aterro abarrotado, por exemplo. A Retalhar tem esse nome não à toa. Lembra a palavra ‘retaliar’. Te-mos sim essa ideia de promover rupturas com os paradigmas ineficientes sobre os quais o sistema se monta. O espírito questionador e a conscientização de pessoas e empresas entram aí.

Quais são os planos para o futuro e como a Reta-lhar pode ajudar a mudar a sociedade? Os planos para o futuro da marca são os mais no-bres. Queremos ser uma referência global em lo-gística reversa. Não aquela que enxerga o resíduo como uma oportunidade para extrair o máximo de dinheiro possível, e sim aquela que olha para o resíduo como um problema que afeta a todos e, a partir daí, como uma oportunidade para ge-rar valor compartilhado. Trata-se de usar os exces-sos do nosso modo de vida para conscientizar as pessoas e empoderar produtores de baixa renda. Queremos assegurar que nenhum resíduo têxtil seja destinado aos aterros e incineradores, mas que isso seja feito com uma visão ampla, garan-tindo que a sociedade enxergue como e por que fazemos isso. Mas o grande impacto é o de inspi-rar as pessoas: quanto mais negócios sociais por aí, mais crítico, consciente e exigente será o mercado consumidor. E é aí que reside a grande mudança, já que, como diz o Criolo, “toda indústria tem no comércio sua forma de reprodução”. Quando você compra uma camiseta produzida com trabalho escravo, você está “dizendo” para aquela marca: “continue assim”!

DO LIXO AO USO Os uniformes recebidos pela Retalhar voltam para o uso, estimulando uma cadeia produtiva inteligente e sem prejuîzo ao meio ambiente.

“Quanto mais negócios sociais por aí, mais crítico, consciente e exigente será o mercado consumidor”

14 CIDADANISTA

BEM VIVER | Boas ideias: LEGALIZAÇÃO

FILHINHA,PAPAI É MACONHEIRO

Você acabou de ser pai. Como ensinar à nova ge-ração a lidar melhor com a questão das drogas?O melhor caminho é a informação, a informação amorosa e a informação que busca compreender a necessidade do outro, que apresente um caminho que seja sensível ao outro. Com a Jasmim, eu preten-do dialogar e comentar sobre os riscos, como acon-tece com a alimentação, ou com a bebida alcoólica. “Olha, isso é de adulto e o seu momento de usar vai ser mais para frente. Precisa tomar cuidado para usar”. Eu acho que é o caminho da informação. A proibição e o estigma não ajudaram até agora, só fizeram com que houvesse conflitos familiares e casos de separa-ção. É preciso debater mais.

Como foi a experiência em participar da cam-panha municipal? Qual foi o resultado das ur-nas e o mais importante no processo?Foi muito bacana. O acolhimento da RAIZ com o PSOL, um partido que respeito muito, embora te-nha algumas discordâncias, foi perfeito. E o resul-tado foi legal, mesmo com poucos recursos finan-ceiros. Além disso, estava sem recursos de tempo e com cuidados com a família, com meu trabalho. Resultado: 1776 votos com todas essas dificulda-des. Ao comparar com outras campanhas, fui bem. Mostra que a proposta cannabis é um tema político urgente e que foi muito importante levar a causa para o ambiente de debate da eleição.

Tem receio de ser rotulado pela sociedade? O que diria para as pessoas que te julgam pejo-rativamente como “maconheiro”?Sim, eu tive esse receio quando comecei com meu ativismo em meados de 2009 e até por isso recorri a esse mecanismo de comunicação que foi a cria-

Ele foi candidato a vereador em São Paulo. Não se elegeu, mas encabeça importante movimento cultural sobre a conscientização das drogas no país. Conheça o pai da Jasmim, o advogado e publicitário Fernando da Silva ou, se preferir, pode chamar de Profeta Verde, o cidadão e maconheiro que defende a legalização das drogas como uma forma de trazer a paz na guerra do narcotráfico

ELEIÇÕES VERDES Profeta Verde participou de debate com candidatos à presidência da República em 2014 realizado na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP.

por REDAÇÃO

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ção do personagem Profeta Verde. É para quebrar o preconceito e falar da questão da maconha pelo viés cultural. A saída para quebrar esse estigma é a divulgação da cultura canábica que, em um mo-mento posterior, levará ao debate sobre o tema da legalização. As experiências internacionais aju-dam, o debate científico ajuda e provalvelmen-te a legalização vai vir antes de uma adequação cultural do tema, mas é importante empoderar a opinião pública, que ainda é muito conservadora sobre o universo das drogas.

O ex-secretário de Segurança do Rio de Janei-ro, José Mariano Beltrame, disse ser a favor da descriminalização das drogas e que o estado perdeu a guerra contra o narcotráfico. Como enxerga esse depoimento?Concordo que a descriminalização das drogas é ne-cessária, mas não vai resolver o problema da guerra contra o narcotráfico. Explico: descriminalizar as dro-gas é permitir que o usuário faça uso. Hoje o usuário que faz uso sofre um processo criminal e toma uma pena de advertência, ele não vai preso. Quem vai preso é o traficante, quem vende, fornece a droga para o usuário. Se a gente descriminaliza o usuário, o uso vai continuar, talvez até aumente um pouco. A oferta vai continuar ilegal e talvez até aumente o nú-mero de traficantes. E todos os problemas de guerras às drogas que a gente carrega, como morte de po-liciais, traficantes, abuso policial, invasão domiciliar e principalmente encarceramento de uma juventude pobre, negra, periférica é algo que não vai ser resol-vido pela descriminalização. Só vai ser resolvido com uma legalização das drogas, que é você possibilitar a produção, distribuição e o acesso às drogas de forma lícita, de forma legal, e fazer com quem hoje

vende droga deixe de ser um traficante e se torne comerciante sujeito a regras bastante claras que obviamente vão ser bem diferentes para o caso da maconha, da cocaína ou de outras drogas. A gente já tem muitas drogas pesadas que são legalizadas. A morfina é uma droga que tem origem na mesma planta que a heroína e é permitida, vendida legal-mente com restrições. Você não compra morfina na biqueira ou no mercado pirata. A gente precisa fazer isso com a cocaína, a heroína e outras drogas e quem sabe com isso acabar com a existência de drogas adulteradas como as drogas sintéticas igual ao crack. Não basta a descriminalização, é preciso a legalização com a regulamentação da produção, distribuição e acesso às drogas.

Pretende se candidatar novamente? Vislum-bra outras formas de atuação política?Não descarto uma nova candidatura, mas acredito que é possível fazer um mandato compartilhado, em que um grupo de pessoas participe. Pode ter dez, vinte pessoas que colocam um nome para representar a todos. Seria mais conectado com a sociedade. Não faço questão de que o nome do Profeta Verde participe como um candidato, fa-zendo a propaganda com o número coletivo e tal. A gente poderia colocar nas urnas um nome cole-tivo, RAIZ com PartidA (movimento partido femi-nista), por exemplo, para despersonalizar um pou-co. Acredito muito nisso e quero fazer um convite às pessoas. Vamos pensar e elaborar esse mandato compartilhado?Já germinou, basta a gente seme-ar essa democracia mais participativa.

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ATIVISMO CANNABIS À esquerda, Fernando participa de audiência pública sobre legalização no Senado Federal. Abaixo, em evento sobre maconha medicinal promovido pelo jornal Folha de S. Paulo.

“Quem vai preso é o

traficante, quem vende e fornece a droga para o usuário. Se a gente

descriminaliza o usuário, o uso vai continuar, talvez até aumente.

16 CIDADANISTA

BEM VIVER | Boas ideias: HOMILIA CIDADÃ

ALTAR DOS ESQUECIDOS

Padre, o senhor já convidou para o altar pes-soas para discursar que geraram forte reação e polêmica. Os fiéis são conservadores?A comunidade é tranquila. Acontece que existem alguns grupos conservadores fora de Itaquera que ficam incomodados com certos temas que abor-damos, como por exemplo, a sexualidade. Isso ocorreu depois que colocamos todas as nossas atividades e comunicados em redes sociais e esses grupos mais conservadores reagiram. A Marilena Chauí veio em certa ocasião e disseram que ela era comunista, uma mulher que é contra a Igreja. Até montagem fotográfica com fundo de guer-ra fizeram. Em outra ocasião, convidei uma drag queen da própria comunidade e questionaram por que eu a deixei erguer o cálice. Esses grupos pre-pararam um documento e enviaram para Nuncia-tura Apostólica em Brasília argumentando que eu não poderia ter feito isso. Outra que pegaram no

Existe um lugar na periferia leste de São Paulo com nome indígena que significa pedra dura. Neste local sagrado para homens do passado e do presente habita um líder que está chamando gays, feministas, filósofas, políticas e líderes de movimentos sociais para o altar e com isso está despertando uma nova consciência na comunidade e na Igreja católica. Conheça o padre Paulo de Itaquera e as pedras de preconceitos que ele está quebrando há 34 anos na Paróquia do Carmo

por REDAÇÃO

de ITAQUERA

DA PERIFERIA PARA O CENTRO A igreja está localizada na periferia de São Paulo, mas vira centro de atenção quando o assunto é diálogo com a comunidade.

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pé foi a teóloga Ivone Gebara – teóloga feminista que foi censurada pelo papa João Paulo II, e ficou exilada na Bélgica por dois anos. Ela veio aqui fa-lar em uma de nossas novenas e, claro, colocamos convite nas redes sociais e a reação ocorreu: “Ela é contra o papa, contra o bispo, contra a Igreja, exigimos que essa mulher seja impedida de ir à igreja desse padre comunista.” O bispo de São Miguel me chamou para prestar esclarecimen-to e eu informei que ela nem havia vindo ainda. Resumindo: eu não cancelei o evento, ela veio e fui censurado pelo clero depois. Outro foi o Leo-nardo Boff, que veio aqui e me mandaram tirar a legenda que fazia associação com a comunida-de. E por último foi o padre excomungado que chamei. Eu sei que minha pasta em Brasília está transbordando, mas a comunidade nunca recla-mou. A paróquia vai seguir investindo na forma-ção do povo, pois isso é muito importante.

Como é ser padre na periferia de São Paulo? Quais são os principais desafios que o senhor encontra hoje aqui na paróquia de Itaquera?Como falava anteriormente, o desafio atual na paróquia e na periferia é retomar uma caminha-da de educação popular e formação das bases a partir de uma teologia engajada, a partir de uma fé comprometida. Esse desafio bate em outros desafios maiores, como, por exemplo, essa onda de privatização da fé que vem tanto da vertente pentecostal-evangélica quanto da linha católica--carismática. Na religião que vejo hoje, as pessoas buscam resultados imediatos. É só você ligar a te-levisão e ver os cultos de madrugada, de dia, de

tarde, tanto nas neopentecostais como na Can-ção Nova. Para enfrentarmos esse desafio de for-mação e levar o povo a uma fé mais engajada, você tem que enfrentar esses grandes meios de comunicação. Acho que esse é o foco: a disputa pelo pensamento do povo.

Na sua visão, o que o povo vem buscar na paró-quia de Itaquera? Quais tipos de questionamen-tos as pessoas trazem ?São sete comunidades agregadas a Itaquera e acho que as pessoas vêm com sede da palavra de Deus, com a vontade de buscar uma mudança. Como eles não encontram aqui na paróquia respostas espirituais superficiais como nos cultos de cura e libertação, eles vêm pelo tipo de pregação que oferecemos, mais engajada. Sobre os questiona-mentos que eles trazem, creio que estão relacio-nados à precariedade da vida, como o papa Fran-cisco já falou, que é algo profundo e que atinge toda a humanidade.

É consenso que a Igreja entrou em uma nova fase com o papa Francisco. Quais serão os le-gados de seu papado? O papa Francisco é um dos maiores líderes polí-ticos do mundo atualmente. E ele definiu muito bem o que ele quer. Ele sabe o que quer, não está preocupado com verdades eternas; a preocupa-ção dele é com o processo de vivência da fé, o processo de empoderamento das pessoas, literal-mente. E quais pessoas hoje estão mais interessa-das em desencadear processos do que em buscar resultados imediatos e ganhos fáceis? Constante-

NO ALTAR A drag queen Dindry Buck, personagem vivida por Albert Roggenbuck, que participou de missa em Itaquera.

MARILENA CHAUÍ A filósofa participou da novena e falou para a comunidade da periferia de São Paulo. Na foto, ao lado de Pe. Paulo e integrantes da paróquia no dia da homilia. di

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BEM VIVER | Boas ideias: HOMILIA CIDADÃ

mente esse papa colocou a Igreja nesse processo. Qual será o legado desse movimento eu não sei, mas acho que ele está preparando isso hoje. Por exemplo, ele nomeou uma comissão para estudar o diaconato feminino. Esse papa é articulador e por isso deve permanecer mais tempo, não exata-mente no poder, mas justamente por desencade-ar esses processos para o futuro. Ele já afirmou que o tempo é maior que o espaço.

Como fazer o povo se organizar e se mobilizar por seus direitos e qual o papel da fé nesse contexto? A fé tem consequências políticas. No passado, nós tínhamos um movimento que se chamava “Fé & Política”. Fazíamos o trabalho de base, com lutas reivindicatórias que ajudavam as pessoas a se articular. Esses trabalhos de articulação do povo foram deixados de lado. E agora temos que reto-mar dentro daquilo que são os desafios do mundo atual. Hoje está tudo disponível e fácil na tela e as pessoas não se mobilizam. Curtem, mas não se mobilizam. Por isso eu acho que a rua é uma sa-ída. Temos que dialogar com os movimentos pela saúde, pela habitação e junto com os movimentos dos estudantes. E seria fundamental que houves-se uma articulação da diocese nesse sentido. Para que você fosse a qualquer lugar da Zona Leste e esse tema fosse abordado. Mas eu penso que essa questão da mobilização ainda tem que ser desco-berta, está em aberto.

Acredita que a população precisa acordar e des-pertar para algo? A ditadura já tá aí, né! A ditadura do capital a servi-ço da comunicação e da política. Mas essa ditadura, esse poder econômico é tão inteligente e sacana que o povo não está percebendo, mesmo com toda a informação que está disponível. Por bem ou por mal, pode ser que as massas se levantem. As massas da periferia, as massas de trabalhadores, dos

estudantes. O papa falou para os jovens: troquem o sofá pelo par de tênis. Acho que tem que sair da zona de conforto e ir para a luta. É um desafio nos-so. Quando as pessoas participam, elas entendem melhor o outro lado, perdem o preconceito.  

Qual esperança o senhor vê daqui para frente?Os valores passam pela educação e Paulo Freire já falava isso. Porque se você não tem uma cabeça virada para os valores humanos, você entra no jogo neoliberal e no discurso de que tem que pri-vatizar porque funciona. Para quem funciona? Pre-cisa perguntar! Você tem 100 mil que dizem que têm casa própria e tem 100 milhões que não têm. Desses 100 milhões, ninguém lutou? São todos vagabundos? Se tem 100 mil com plano de saú-de e 100 milhões que não têm como pagar, existe algo errado, não faz sentido. Não é possível que esses excluídos sejam “sobrantes-vagabundos”. São “sobrantes-planejados”. Esse é nosso trabalho, fazer as pessoas abrirem os olhos e perceberem.

E a Igreja conseguiu fazer isso nesses últimos anos? Acredita que houve retrocesso? Olha, o Evangelho é tão claro, e não sei como as pessoas conseguem descaracterizá-lo tanto. Ti-rar tudo. Às vezes escuto que Jesus deu um carro. Quem disse que Jesus é dono de concessionária? Mas é o que se prega. De fato a Igreja católica per-deu espaço e o que entrou foi uma grande aliena-ção. Aproveito para compartilhar um episódio que aconteceu na semana passada. O evangelho conta-va sobre um leproso, o Naamã, que tinha que tomar banho 7 vezes para ficar purificado. Então ele rece-beu a graça da cura e o Evangelho ensinava que o reino de Deus é para todos, inclusive os excluídos, como um leproso na época. Então, uma senhora, uma moça até, visitou um padre nosso da comu-nidade com um véu na cabeça e disse: padre, vá se banhar 7 vezes no rio Tietê, porque você tem que se limpar da sua desobediência à Igreja. É com esse

“ A gente não pode fazer essa separação entre fé

e política. A fé é política. A fé tem dimensão de

inserção na realidade e não pode ser privatizada.”

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pensamento que você se depara hoje. E onde eles vão beber dessa fé? Nos cultos carismáticos, onde a pessoa tem que obedecer, onde tudo é pecado, e os padres se colocam em uma figura divina. É uma alienação. Essas missas de cura e libertação são um desserviço ao cristianismo. Acho que andamos muito para trás nesses últimos 30 anos, com alie-nação, inclusive.

Como o tema sobre o governo atual é aborda-do? Acredita que as pessoas aqui na paróquia têm opinião sobre se foi ou não golpe? A gente sempre traz isso na paróquia. É um tema que está entrando e acho que as pessoas perce-bem que é golpe mesmo. Agora, sobre a ques-tão partidária, minha opinião é que precisamos de uma reforma. Não dá mais. Esses partidos não representam mais a gente. Tem que tomar outro

tipo de representação política. O próprio PT não fez sua releitura e o PSOL tem uma nova força. Mas o descrédito nessa ferramenta que deveria causar o bem comum na verdade desencantou, como o sindicato desencantou também. É preciso outra maneira de representação. Se você tem um grupo organizado em um bairro, por que não pode ofe-recer esse movimento como uma alternativa de representação dentro da instituição?

Existe algum movimento político na zona leste promovido pela comunidade? Sim, aqui na Paróquia do Carmo, temos o IDPM, Igreja Povo de Deus em Movimento e ocorre mui-ta articulação, incluindo encontros e mobilizações principalmente com o jovem. Também existe uma escola de cidadania feita pelo padre Ticão em Ermeli-no Matarazzo. Não é possível ficar assim do jeito que está. Os próprios políticos prestaram um desserviço à política e por isso todo mundo está desacreditado. O povo deu a resposta agora. É importante dizer tam-bém que a reforma política que precisamos virá de uma conscientização política da população e volta-mos àquele assunto de como mobilizar e encantar novamente e investir na formação da base. É preciso continuar lutando, meu irmão.

ITAQUERA É POP A paróquia toma a iniciativa de se abrir para temas atuais e seguir o papa Francisco. Maneira de parar a perda de adeptos e de se aproximar da base. Acima, o bairro visto da torre e Pe. Paulo falando em missa.

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BEM VIVER | Boas causas: ORGÂNICOS

COMO, LOGO NÃO PENSO

O que come, Matthias? Gostei da pergunta. Olha, nós não somos diferen-te de todo mundo. Tentamos comprar ao máximo orgânicos, e, quando falamos ao máximo, significa 30% e 60%. Uma coisa eu sei: quando consumo ali-mentos orgânicos eu me sinto muito mais à vonta-de. Eu sou um daqueles loucos que come banana com casca. Mas orgânicas, por favor! Eu gosto de fazer suco com a casa do abacaxi. Fica uma delícia e com uma consistência diferente.

E um refrigerante ou uma coxinha de vez em quando?Eu tenho um filho e nós vamos muito a come-morações de aniversário infantil onde tem coca e guaraná à vontade. Não vamos baixar o santo e querer mudar o mundo. Não vamos ser o terror da alimentação. Nós compramos orgânico, mas lógico que não temos só isso em casa. Outro dia meu filho pediu uma coxinha. Nós perguntamos: tem certeza? E pediu a coxinha, comeu a parte da casca, da massa e deixou o recheio. Eu pergun-tei: não vai comer a parte de dentro? Não, eu não quero comer esse animal. Olha só a consciência da criança. Interessante, não? 

Qual é a diferença entre o Brasil e a Alemanha em relação aos orgânicos?Eu sou alemão e percebi que lá a alimentação era orgânica e principalmente era natural. Nós tínha-mos eventos populares e festas com comidas na-turais. Hoje, na Alemanha um prato tem de 20% a 30% de alimentos orgânicos. Isso é menos da me-tade ainda, mas no Brasil isso é 1%. Na Argentina, 7%, e no Chile, 6%. Nos EUA são 10%. O Brasil está na lanterninha mundial. Mas por outro lado, o país tem um tamanho e uma estrutura que favorece o cultivo orgânico, com a pequena agricultura fami-liar e propriedades que são propícias ao cultivo or-gânico. Um potencial gigantesco, o Brasil tem três safras por ano. A Alemanha só tem uma. O país é 36 vezes maior que a Alemanha. 

Mas o orgânico não é caro? Como baratear e fazer o ecossistema orgânico ganhar mais adeptos?Todo mundo reclama dos fornecedores e dos pre-

Ele é alemão, mas adotou o Brasil e tenta trazer a cultura dos orgânicos da Europa para cá. Longe de tentar convencer que todos comam melhor, Matthias faz um trabalho de conscientização da cultura do bem viver, da agroecologia e profetiza sobre a inevitável transformação que viveremos com prateleiras repletas de produtos orgânicos

VAI UM CARAMELO AÍ? Refrigerantes possuem a substância Caramelo 4, um agente cancerígeno.

por REDAÇÃO

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ços mais altos. É o que ainda está na cabeça das pessoas, que custa o dobro. Mas quando o merca-do de varejo entrou, isso mudou um pouco. Com mercados como o Pão de Açúcar estimulando o consumo, a cadeia mudou. A marca teve um pa-pel importante na cultura do orgânico e no desen-volvimento dos pequenos produtores. O que que-ro dizer é que a iniciativa privada pode fomentar e fortalecer um sistema como o dos orgânicos e a agroecologia sustentável. Um empresário conse-gue entusiasmar todo o segmento. Por outro lado, no mercado gastronômico, os chefs ainda não compraram tanto a ideia. Por enquanto.

E como conquistar a opinião pública sobre o va-lor e a qualidade do produto orgânico?Você tem que chegar no preço viável como é na Europa hoje. Se a diferença for até 10% na gôn-dola, entre um orgânico e outro não orgânico, o consumidor opta pelo natural. E é uma tendência mundial irreversível. O mercado que não tiver or-gânicos, no futuro, vai fechar. Quando você fala entre caro e barato, você tem que saber  que os

orgânicos são produtos premium. Uma geleia or-gânica, por exemplo, tem mais fruta. Uma conven-cional, você tem engrossador e um monte de ou-tros ingredientes e, em razão disso, esses produtos não podem ser comparados de maneira tão sim-ples. Se comparar pelo produto de fato, você vai ver que o orgânico é mais em conta, pois é mais integral e, portanto, tem mais valor. 

Mas existem produtos premium que não são or-gânicos. Por que comprar um orgânico?Qual a diferença do chocolate Lindt e da Amma? A marca. Os dois produtos são premium, mas o que faz o chocolate Amma melhor? 1º, ele é regional e vende aqui. 2º, ele é orgânico; a marca olha toda a cadeia, é sustentável e preza pela saúde de quem trabalha e também de quem consome. Dentro desse produto não tem glisofato (herbicida usado em plantações que causa dano ao meio ambiente e à saúde). No Lindt, fatalmente você vai encontrar o glisofato. Todo produto convencional hoje tem algum grau de resíduo tóxico. O orgânico pode até ter um grau disso, por contaminação, mas nun-

VAI UMA LARANJA AÍ? Mais do que se alimentar bem, os alimentos orgânicos melhoram o planeta e a vida de quem trabalha na cadeia sustentável.

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BEM VIVER | Boas causas: ORGÂNICOS

ca passa de 5% e nunca acima do limite da Anvisa. O morango convencional passa 60%, o pimentão passa 80% de substâncias tóxicas. Você tem a certe-za que está comprando resíduos agrotóxicos. 

E por que consumimos alimentos que possam ter agrotóxicos? Ou no caso dos alimentos in-dustrializados, por que comemos determinados produtos feitos de maneira artificial?Porque nós crescemos aprendendo a consumir esses produtos. O caso da cerveja, por exemplo, é um exemplo de alteração. As cervejas fizeram uma evolução nos últimos 30 anos e por uma lógica econômica são mais baratas hoje. Para ter mais lucro e maior margem, o preço vai aumen-tando enquanto o da produção vai diminuindo. Como você diminui? Você usa milho na cerveja, por exemplo. Aonde quero chegar? Se você tem uma cerveja que desce de um jeito especial é porque eles estão usando ingredientes que no início jamais usariam. Eles baratearam a produ-ção e o produto que você gostava mudou, mas você continua consumindo porque desce de um jeito especial, entende? E assim funciona com a maior parte dos produtos industrializados ali-mentícios. Ou até no setor de vestuário. Algo entre 60% e 70% do algodão brasileiro é trans-gênico. Usa-se bastante glisofato ou também outras substâncias no algodão transgênico. Isso está na sua camiseta, no seu jeans. Ou pior, nas mulheres, está no absorvente íntimo. Você tem resíduos tóxicos perigosos que são proibidos em outros países, mas que no Brasil podem ser usados. A gente gosta de não olhar isso, pois vai se assustar muito. A opinião pública pressente e tem medo. Todo mundo conhece e vê isso. Pes-soas com alergias ou problemas de saúde, cân-cer. Tudo isso são sinais de um mundo que está em cheque e a gente ignora. O fato é que a gente

consome as mais altas porcarias. Quem vai em sã consciência tomar caramelo 4, um cancerígeno? Quem vai tomar? Todo mundo. Porque existe uma marca e tomamos há décadas. Tem guaraná em todos os aniversários infantis. A gente dá isso para nossas crianças. Guaraná é uma delícia, mas de fato não faz bem à saúde.

Acredita que se as restrições e a legislação fos-sem iguais às que se aplicam sobre cigarro, esta-ríamos mais protegidos? A sociedade decidiu que o cigarro é ruim. Todos podiam fumar onde queriam. Depois o fumante não podia mais no avião, depois no trem, depois no restaurante, depois não vai mais poder fumar em casa. Se eu fosse um legislador da bancada do alimento saudável, não existe, aliás, mas se existis-se, e eu fosse responsável pelas leis, eu aplicaria o mesmo rigor que está sendo aplicado ao cigarro e ao álcool aos alimentos. Todos podem tomar um gole de cerveja e não vai acontecer nada no trânsi-to, certo? Não mais. O Brasil fez um sinal. Não que-remos que você tome nada. Por que afinal qual a diferença entre tomar uma e duas? Me diga, naque-la conversa com o guarda que te parou. Você vai falar: “só tomei uma, seu guarda”, mesmo que tenha tomado dez. Então o legislador se antecipou a ma-landragem e fez a lei. Fizeram um radicalismo total no cigarro, no álcool e, muito pior, nas drogas como maconha e cocaína. Estaríamos mais protegidos se fosse feito isso com os alimentos.

E por que o Estado não intefere? Por que acha que não faz isso?Interfere onde a opinião púbica é forte e cons-ciente. Na Dinamarca vão mudar tudo. Em 20 anos eles vão comer tudo orgânico. Um caminho muito forte, onde a opinião falou: “Já deu, agora a gente vai fazer direito”. Vai ter imposto sobre

“Eles (da indústria cervejeira) baratearam a produção e

o produto que você gostava mudou, mas você continua

consumindo porque desce de um jeito especial, entende?”

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açúcar que tem dentro da nossa comida, como o caramelo 4 que tem na cerveja escura, nos re-frigerantes. O Estado vai interferir pelos impostos.

Como vê o Brasil dentro do contexto mundial de mudanças dos países por um mundo mais sustentável?O Brasil é hoje a Alemanha de 30 anos atrás. Natu-ralmente está atrasado em alguns aspectos, mas está melhor em outros. Outra questão que se nota aqui é ainda uma falta de conscientização pública e por consequência do Estado. Hoje, no Brasil, os governantes querem que se aprenda matemática e química e isso pode fazer com as pessoas sejam mais facilmente influenciáveis. Tem gente con-tando que só a agricultura transgênica consegue alimentar a população. Se você repete, repete, re-pete, as pessoas acabam acreditando nisso.

O Brasil é um país de grandes latifúndios e com uma bancada ruralista forte que protege inte-resses do agronegócio. Vê isso como um entra-ve ao crescimento dos orgânicos no país?Esse setor tem a intenção de crescer e não acho isso ruim. Na minha opinião, o que tem que ser feito é o Estado limitar e regular o agronegócio e o sistema. Então, se tiver que desmatar para plantar, não pode. Tem que reflorestar. Sim, isso vai aumentar o preço da carne, mas são medidas sustentáveis e o governo tem que fazer isso. Se você vende uma carne aonde o gado pasta em uma área livre de desmatamento, com projetos de escolas e não usa agrotóxico isso vai conquistar um mercado com um selo de sustentabilidade. O

governo tem que sair do transgênico e estimular a sustentabilidade. Esse é o caminho: criar mais va-lor com menos destruição.

E o sistema de certificação, como funciona? Como uma propriedade pode se tornar orgânica?Temos certificadores que visitam a fazenda, colhem os relatos, os índices de agrotóxicos e fazem um plano junto com o proprietário para a proprieda-de virar orgânica em até dois anos. A partir desse momento eles entram no regime e no sistema de trabalho orgânico. E em três anos, com o solo re-cuperado, eles recebem o selo. É um processo ISO muito rígido. E realmente as pessoas ficam fiéis para não perder, uma vez que já investiram dinheiro no processo. Mas o melhor são os vizinhos. Eles estão vendo o que está fazendo. Sabem se tem glisofato na sua prateleira. Não existe falsidade, funciona. As relações entre as pessoas também acabam mudan-do com maior diálogo entre trabalhador e produ-tor. Esses conceitos são bem firmes no orgânico, é um sistema que vale muito a pena para todos.

CERTIFICAÇÃO O processo para que uma propriedade rural seja considerada orgânica passa por desintoxicação do solo e pode levar até 3 anos.

BONITO, PERO NO MUCHOO tomate cultivado de forma não orgânica é um dos campeões no ranking de quantidade de tóxicos

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NA RUA ATO 11º DE MAIO

Trabalhadores Dia do Trabalho é palco de reivindicações contra o impeachment. Na foto, trabalhadores protestam no viaduto Guadalajara na Zona Leste

MOVIMENTOS | O poder da rua: com Guilherme Boulos

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BOULOS

ENTREVISTA EXCLUSIVA

por IVAN ZUMALDEde SÃO PAULO

Desmistificando

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MOVIMENTOS | O poder da rua: com Guilherme Boulos

Existe muito preconceito em relação ao movi-mento? Acha que falta compreensão?BOULOS: Esperamos e trabalhamos para que al-gum dia as pessoas possam compreender que a luta concreta – a luta por moradia, por saúde, edu-cação, trabalho – está associada a uma luta antica-pitalista, porque esse sistema não é capaz de ga-rantir condições dignas de vida para a maioria do povo. Agora, a luta concreta imediata é uma luta reivindicativa por direitos muito determinados, por algo que afeta de uma maneira muito per-ceptível a vida das pessoas. Então é isso que torna o MTST capaz de colocar 20, 30 mil pessoas nas ruas em São Paulo e outras tantas pelo país afora. É o fato de o movimento conseguir dar expressão para uma demanda concreta de milhões de pes-soas – que é a falta de moradia – e transformar isso em luta, mobilização, em cobrança de política pública do Estado e enfrentamento à especulação mobiliária, fazendo ocupações de terra. Isso dá a legitimidade do MTST e garante sua capacidade de mobilização.

Qual é a forma de atuação política que o movi-mento defende nas ruas?A atuação do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) é uma atuação que parte de uma demanda muito específica – e na nossa opinião, muito fundamen-tal – que é a luta por moradia. Então, o MTST não mobiliza a partir de uma pauta política genérica, abstrata; ele organiza sua atuação a partir de uma demanda definida que afeta milhões de pessoas que vivem nas periferias do Brasil. Os trabalhado-res mais pobres, mais precarizados. Hoje nós te-mos 6 milhões de famílias sem moradia no Brasil,

isso dá mais de 20 milhões de pessoas. Isso é só o chamado déficit quantitativo, que são famílias que têm custo excessivo de aluguel, famílias que estão em áreas de risco; coabitação, ou seja, mais de uma família morando na mesma casa. E dá o déficit qualitativo – que são mais de 15 milhões de famílias – que são aquelas que, embora tenham alguma casa, a infraestrutura e os serviços urbanos são precários. Então, o problema da moradia é um dos mais graves no país.

E por isso a estratégia das ocupações urbanas, onde o MTST leva esse contingente de pessoas...BOULOS: Essas ocupações são fundamentalmen-te famílias que não estão conseguindo mais pa-gar aluguel e que vão para a ocupação por falta de alternativa. Então, o gancho da nossa atuação é esse, e nós achamos às vezes que, por parte de uma certa esquerda universitária, existe uma fal-ta de compreensão sobre como se dá o processo de mobilização popular, “ah, mas o MTST não fala de socialismo”, as pessoas, imediatamente, não se mobilizam por socialismo.

E como você enxerga o futuro do movimento daqui a uma década diante dessa onda de con-servadorismo e opressão que vivemos hoje? BOULOS: É difícil dizer como será o Brasil daqui a uma década. Nós estamos em um processo de desmonte e de regressão aceleradíssimo. E junto a isso, um processo de construção de um Estado de exceção, de judicialização da política, de crimi-nalização de lutas sociais, então eu não me arrisco a dizer. E acho que seria muita ousadia, de quem quer que seja, dizer como vai ser o Brasil daqui a

Guilherme mora no Campo Limpo, tem duas filhas, dá aulas em universidades e é conhecido por ajudar as pessoas a conquistar casas para morar, direito garantido em nossa Constituição. Guilherme também é conhecido por Boulos, militante do MTST que faz ocupações para colocar em prática o mesmo direito acima. Com qual imagem você prefere ficar? Nesta entrevista exclusiva à Cidadanista, Guilherme Boulos tira o rótulo que todos querem imputar, falando de um valor que, independente dos caminhos, todos almejam: a cidadania.

CIDADANISTA 27

10 anos. Agora, ao mesmo tempo em que há uma tentativa de desmoralizar e calar o movimento social – do MTST, inclusive – a tentativa é com-plexa, porque ela não se dá apenas pelos padrões antigos de repressão: bota a polícia, joga bomba. É isso aliado a uma criminalização no âmbito judi-cial – prender por formação de quadrilha, esbulho possessório – e vai para um outro caminho que é a criminalização midiática, a desmoralização. Este tem sido utilizado com maior recorrência, quer dizer, se criou quase que um consenso na socie-dade, uma banalização dizer que o movimento social existe porque quer boquinha, porque quer privilégio do Estado, porque não quer trabalhar, porque são pes-soas que ganham dinheiro ou algum tipo de vantagem. Essa desmoralização é muito pesada no movimento social e tem sido feita de maneira contínua e eficaz pela mídia brasileira.

Qual caminho enxerga para o futuro da esquerda e a melhor estratégia para ela voltar a ter protagonismo político? BOULOS: Eu acho que a esquer-da precisa retomar uma aposta na mobilização de rua, na luta direta, como um elemento fundamental da sua estratégia. Se nós olharmos os últimos 20 anos ou mais, o campo da esquerda foi migrando de uma prática que era muito ligada a movimento, a rua e a trabalho de base, para uma completa institucionalização. É evidente que a disputa institucional é importan-te, mas você precisa ter respaldo na mobilização popular. Você obtém ganhos institucionais e ain-da assim se deixa refém de fazer os acordos com quem sempre comandou as instituições brasilei-ras, o Estado brasileiro. Ou seja, o Estado brasileiro é iminentemente conservador, atrasado, oligárqui-co. Então, se não houver uma força viva de ampla mobilização popular, as mudanças não ocorrem, ou ficam muito limitadas. O último período deixa isso como lição, que é preciso ter mobilização do povo pra enfrentar um governo golpista, ilegítimo – como é o do Temer. Por que não resistimos ao

golpe? Porque a massa trabalhadora, o povo das periferias não veio às ruas. A resistência foi de mi-litância, setores progressistas. O grande protago-nista da luta social no Brasil não entrou em cena, nem de um lado, nem de outro. Nem foi de verde e amarelo para a Paulista, nem foi conosco resis-tir ao golpe. Então, para que a gente possa obter vitória no enfrentamento ao governo Temer e ao ataque aos direitos, vai ser preciso reconstruir a ca-pacidade de mobilizar as massas. Isso se faz com trabalho de base, com comprometimento com as pautas do povo. Com a luta por direitos.

Acha que a mobilização popular se dará antes da representação política partidária?BOULOS: Certamente. Se você pegar a experiência do próprio PT, por exemplo. O PT, para obter vi-tórias e espaços na instituição, se construiu na base do movimento sindical, das comunidades ecle-siais de base, nos movimentos populares, de ocupações rurais e urbanas. A força social precede a força política. Senão a força políti-ca fica flutuante, e aí, volto a dizer, uma força política flutuante está

sujeita – pra poder se sustentar e obter a tal da governabilidade – a fazer todo tipo de acordo pro-míscuo com a casa-grande. Então, eu não tenho dúvida de que a maior tarefa que está colocada hoje para a esquerda, para o movimento social, para o povo brasileiro, é a tarefa de ampla mobi-lização social; de reconstrução pela base nas ruas. Reitero: não há uma dicotomia, não há um anta-gonismo. A disputa institucional precisa ser trava-da: não vamos falar, agora vamos todos para a rua e abandonamos a disputa institucional. Não pode. A disputa institucional deve ser travada, mas não se pode ter uma ilusão de que ela é a solução dos problemas. Portanto, o investimento prioritário de forças não pode ser nela.

E nesse sentido de mobilização, como analisa a eleição do Doria como prefeito em São Paulo? A periferia também deu apoio e votou nele.

“ AS PESSOAS,

IMEDIATAMENTE,NÃO SE

MOBILIZAM POR SOCIALISMO

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MOVIMENTOS | O poder da rua: com Guilherme Boulos

BOULOS: O Doria se elegeu com apoio maciço de todas as regiões da cidade. Se você pegar o índice de votos dele na periferia, não o levaria a ganhar no primeiro turno.

Mas ainda sim ele ganhou na maioria dos colé-gios eleitorais da cidade...BOULOS: Mas perdeu no Grajaú e em Parelhei-ros. Agora, os índices maiores do Doria, que o permitiram vencer no primeiro turno, foram, ob-viamente, nas regiões mais ricas da cidade. Ago-ra, é verdade: a periferia votou no Doria também.

Voltando a questão da desmoralização feita pela mídia. Em teoria, as pessoas não têm as ferra-mentas da internet para con-frontar essa situação? BOULOS: Vejamos, a internet, embora seja crescente, ela ainda não é totalmente abrangente e não é exatamente democrática. A televisão continua sendo, de longe, o principal meio de co-municação de massa no Brasil. Eu gostaria muito de crer, mas não partilho da ideia de que a televisão está indo para a sua bancarrota. O rádio, incrivel-mente, ainda continua sendo um mecanismo extremamente eficaz, e é concentrado, assim como a televisão. Quem parece estar numa crise brutal são jor-nais impressos, e a internet evidentemente cresce, só que também na internet existe uma atuação, a internet não é terra de ninguém, existe mobilização organizada na rede. Você pega o Facebook, pega as empresas que fazem intervenção em rede social, que são contratadas pra fazer linchamento ou de-fesa de um grupo ou de alguém; de uma ideia. Ou seja, existem técnicas pra intervir na internet. Nós vimos os movimentos de direta que foram às ruas em defesa do impeachment fazer isso de forma evi-dente, com muito dinheiro, inclusive.

Construindo uma narrativa...BOULOS: Claro, uma narrativa, uma orientação de

rede... e isso implica dinheiro. Então a internet não é exatamente democrática, quem tem dinheiro tem condições de ter muito mais espaço de rede nas redes sociais, nos sites, onde quer que seja. A internet, na minha opinião, embora abra mais janelas para um discurso contra hegemônico, ela não resolve nosso problema. Agora, eu dizia que, embora tenha toda essa criminalização e desmo-ralização, existe uma coisa que isso não contém: a necessidade. O avanço da necessidade e da de-manda do povo. Veja, estamos em uma recessão brutal; as políticas desse governo só vão ampliar o peso dessa recessão nas costas do povo. O Brasil pode até voltar a ter, daqui a um tempo, cresci-mento econômico, mas esse crescimento vai ser

totalmente apropriado pela casa-grande. A PEC 241, por exemplo, acaba com o investi-mento em moradia. Você tem políticas que levam à redução da massa salarial, à redução do salário mínimo, aumento do desemprego. Ou seja, isso vai levar a explosões nas cidades brasileiras, e o tema da mora-dia vai estar central aí, porque o cara hoje consegue pagar o aluguel, mas e se ele ficar de-sempregado amanhã? E se o salário dele arrochar amanhã? Hoje, ele ainda tem a esperan-ça – porque existe uma política pública que oferece moradia –

de poder ser atendido por essa política pública. E como vai ficar com o fim disso? Cada vez mais não resta outra alternativa para as pessoas que não seja se organizar e lutar. No caso da moradia, fa-zer ocupações. Então, ao mesmo tempo que você tem uma tendência duríssima contra os movi-mentos, de desmoralização e criminalização, você tem – por baixo – uma força social incontida, que tende a crescer. E, por isso, eu acredito que o fu-turo do MTST é um futuro de ampliação das lutas sociais e um futuro de crescimento.

Você enxerga o MTST se juntando com outros mo-vimentos que tenham outras demandas sociais?

“ A INTERNET

EMBORA ABRA MAIS JANELAS PARA UM DISCURSO CONTRA HEGEMÔNICO, NÃO RESOLVE NOSSO

PROBLEMA.“

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BOULOS: Olha, nós construímos uma iniciativa que é a Frente Povo Sem Medo, da qual o MTST faz parte; o IPDM faz parte; um conjunto de seto-res e de movimentos também ligados à moradia e à luta comunitária – o MLB, brigadas populares – também fazem parte; que é um espaço onde a gente tenta ir além da nossa reivindicação es-pecífica e entende como um espaço de unidade da esquerda dos movimentos sociais por pautas mais amplas. A Frente Povo Sem Medo foi uma das principais protagonistas da luta contra o golpe e depois pelo “Fora Temer”. Então nós entendemos que esse é um espaço importante.

E que de certa forma une as demandas sociais...BOULOS: Isso. É importante aglutinar, unificar lutas, articular demandas diferentes, mas que, ao fim, se juntam num mesmo enfrentamento.

E o que você diria para a parte da população que tem outras demandas? O que diria para a parte da classe média que foi pedir o impeachment da presidente? Acredita que eles foram enganados?BOULOS: Venderam peixe podre para a classe média. Venderam para a classe média uma narra-tiva da corrupção, de que o PT era o partido mais corrupto da face da Terra, de que o PT inventou a corrupção e de que a solução seria tirar o PT do poder e os problemas estariam resolvidos. Só que não, porque o PT saiu do governo para entrar um grupo que é envolvido até a medula em qualquer esquema de corrupção no país desde o início da nova República, que é o PMDB. Figurinhas carim-badas, metade do ministério indiciado por cor-rupção, alçado ao poder por um Parlamento sem moral, sem legitimidade, e totalmente corrupto.

Então, a parte da classe média – porque eu não acho que é toda que se ludibriou – mas a parte da classe média que foi ludibriada com esse pro-cesso tem toda a razão de entrar com ação por estelionato, contra o MBL, contra essa gente toda, e de se sentir enganada. Agora, precisa tirar uma lição disso. Não basta se sentir enganada e agora ficar assistindo ao que se desdobrou disso tudo. É preciso pegar aquela mesma energia que tiveram para vestir uma camisa amarela e para bater pane-la nas sacadas para se juntar às lutas e mobiliza-ções contra esse governo do Michel Temer.

Você acha que falta diálogo da esquerda com a classe média, por exemplo, e com outros setores da sociedade e da política?BOULOS: Eu acho que uma esquerda que não queira dialogar com os mais amplos setores e que não esteja disposta a fazer o esforço de conven-cimento, seja por ressentimento ou por qualquer outra coisa, é uma esquerda que não está prepara-da pra assumir os desafios históricos. Agora, existe uma outra parte dessa classe média, que eu diria que é a classe média tradicional, nos grandes cen-tros urbanos em especial.

O setor mais conservador...BOULOS: Sim, que é um setor que, historicamen-te, pensa com a cabeça da casa-grande. É um setor que pensa na lógica dos privilégios, que, digamos, com algum grau de ascensão social que os mais pobres tiveram, particularmente no governo Lula e no governo Dilma, esse setor se sentiu incomo-dado. Não porque ele perdeu objetivamente, mas porque ele teve perdas relativas. Porque agora ele tem que pagar direito trabalhista para emprega-

NA RUA ATO 231 de Agosto

EstudantesDia após o Senado aprovar o impeachment de Dilma. Secundaristas na rua e repressão policial.

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MOVIMENTOS | O poder da rua: com Guilherme Boulos

da doméstica; porque o aeroporto não é mais só dele; porque tem o constrangimento de ter preto estudando com o filho dele na universidade. Esse segmento mais rançoso, historicamente mais con-servador da classe média, esse foi às ruas por con-vicção, não por estar enganado; esse, hoje, deve estar se sentindo feliz com a retomada dos seus velhos privilégios relativos. Esse setor deve se sen-tir aliviado e com a missão cumprida.

E para onde você acha que foi aquele eleitor que sempre votou na esquerda, que votou no PT e agora está desiludido. BOULOS: Eu acho que ele se dividiu em três ver-tentes: a primeira é ter ficado no PT, uma parte dessas pessoas continuaram votando no PT; diga-mos, um voto de opinião, progressista. A segun-da foi com o PSOL; o PSOL canalizou uma parte desses votos, cresceu. A candidatura da Luiza Erundina, que embora no final tenha sido muito desidratada pelo voto útil, mas o Freixo, no Rio de Janeiro; o Edimilson, em Belém; você teve tanto em Florianópolis como em Cuiabá o PSOL com mais de 20% dos votos; em Porto Alegre com mais de 10%; tendo vereadores mais votados em várias capitais, em especial vereadoras, mulheres. Então, uma parte desse voto – ainda insuficiente, na mi-nha opinião, para dizer que o PSOL tomou o lugar do PT, não tomou – mas uma parte desses votos foi para o PSOL. E uma terceira vertente, uma par-te desses votos foi para o não, para o “ninguém”; foi para o voto nulo, abstenção; para a desilusão política, que continua crescente. Não foi um fe-nômeno que surgiu nessa eleição, já vinha numa escalada, mas nessa eleição assumiu em alguns lugares níveis recorde. No Rio de Janeiro, 41%; em Belo Horizonte, 42%. O eleitorado simplesmente não votou, ou votou nulo e branco. Em São Paulo foi 30 e tantos por cento. Em um país onde o voto é obrigatório, essa cifra é considerável.

E qual é a consequência que você vê dessa aver-são à política para a democracia brasileira? BOULOS: Eu acho que antes de pensar o que isso significa para a democracia, é interessante a gente fazer a pergunta inversa e entender como esse modelo de democracia levou a isso. A demo-cracia no Brasil sempre foi muito frágil, o sistema

político definido pela nova República foi um sis-tema de arranjo, que, embora tenha introduzido o voto popular direto, ele manteve algumas travas decisivas à participação popular, como o modo de eleição do Congresso Nacional, que favorece as oligarquias locais. Nunca houve uma maioria progressista no Congresso Nacional. Essa coisa de ser totalmente permeável ao interesse econômi-co pela forma de financiamento de campanha e fechado aos mecanismos de baixo; de participa-ção popular; plebiscitários; de acompanhamento direto das gestões pelo povo; conselhos... enfim, essa democracia está totalmente descredibilizada, ela chegou a um esgotamento. Então, é compre-ensível que as pessoas rejeitem a política, há uma razão concreta para isso; esse modelo político não apresenta alternativa para a vida das pessoas. Não oferece sonhos, perspectivas. Não oferece solu-ções. Esse modelo político está carcomido, esgo-tado, falido. Então, é legítimo que as pessoas rejei-tem essa forma de fazer política e associem isso à política de forma geral, porque é a forma que está dada e que eles conhecem. Agora, evidentemen-te, o efeito disso é perigoso, porque a negação da política em si e a negação de saídas políticas levam a alternativas sempre perigosas e preocu-pantes. Pode levar à ideia do gestor: eu substi-tuo o político pelo técnico, pelo gestor – João Doria, em São Paulo; Donald Trump, nos Estados Unidos; de algum modo, Berlusconi, na Itália; – e pode levar a saídas messiânicas, proto-fascistas: a política não presta, tem que vir alguém acima da política, com o tacão na mão, salvador. Não é à toa que nas últimas pesquisas – não sei se foi o Datafolha que fez – saiu uma agora, esse ano, de que nunca foi tão baixa a aposta na demo-cracia como melhor forma de governo, e aí as pessoas começam a ter uma simpatia genérica por governos ditatoriais. Então, essa perspectiva de negação da política é extremamente preocu-pante, a esquerda não pode ir nessa onda. Mas, ao mesmo tempo, a esquerda tem que ser capaz de compreender os motivos legítimos que fazem as pessoas negar a política, e isso implica se apre-sentar como algo diferente do “mais do mesmo”. E implica em ter abertura pra dialogar com esse sentimento antipolítico. Não para legitimá-lo, mas para oferecer alternativas que sejam políti-

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cas, porém contra essa forma de se fazer política. Claramente contra esse sistema político.

Acredita em um outro caminho, um caminho de organização de resistência?BOULOS: Eu não acho que esse caminho seja di-ferente. Acho que quando se fala de política, isso é política também. O MTST, por exemplo, é um movimento eminentemente político, embora não dispute eleições. A política não deve se reduzir à disputa institucional. A resistência de rua é uma forma de fazer política.

E qual é sua aposta? Acha que as pessoas vão se sensi-bilizar mais para o ativismo por meio de organizações ou pelo sistema partidário e ins-titucional?BOULOS: A instituição está mais desgastada hoje. Então surgem novas formas de ati-vismo como resultado disso, mas essas formas não podem negar a política. Essa é a enca-lacrada em que nós estamos. Nós precisamos apresentar um projeto político para um enfrentamento disso, mas ao mesmo tempo, esse proje-to político tem que ter uma demarcação clara contra este modelo e este sistema políti-co. Esse é o desafio de narrativa e de prática que está posto para a esquerda hoje.

Internacionalmente vemos o nascimento de projetos alternativos como o Podemos e o Syri-za? Acha possível isso acontecer aqui?BOULOS: Eu sou muito simpático à experiência do Podemos, gosto muito. Tive a oportunidade de ir lá conhecer um pouco mais de perto, e acho que a experiência do Podemos é uma experiên-cia equilibrada e que tem conseguido demarcar. Claro, para o contexto espanhol. O tipo de movi-mento popular que se faz na Espanha é diferente do tipo que se faz no Brasil. A composição social é bem diferente. Agora, o Podemos vem de um cal-

do de mobilização de rua, que foi o 15M, movi-mento dos indignados, em 2011. O Podemos não surgiu imediatamente daí, ele só vai surgir em 2013 -2014, mas ele vem desta construção, deste caldo social de negação. A crise de representa-tividade. Então, o Podemos nasce daí, mantém uma vinculação forte com essa base articulada a movimentos organizados. Mas por exemplo, a Plataforma dos Afetados por Hipoteca, que veio a eleger a prefeita de Barcelona, foi um movimento forte que participou dos indignados e que tinha uma pauta muito concreta – da moradia tam-

bém, contra os despejos por conta da crise financeira, por-que os bancos estavam to-mando as casas das pessoas. Então essa plataforma teve um papel importantíssimo na formação do Podemos. Vários dos quadros atuais do Podemos são originários da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca. Tem uma vincula-ção com movimento social. O Podemos mudou, em dois anos, o bipartidarismo secu-lar espanhol e se tornou o terceiro maior partido, colado no Psoe e PP.

E qual deveria ser o papel da esquerda brasileira no cam-po institucional?

BOULOS: Eu acho que o papel da esquerda é fa-zer a disputa em todos os campos em que ela es-teja, agora, é preciso ter em mente que o modelo, por exemplo, adotado pelo PT a partir dos anos 90 – que foi foco na disputa institucional e des-potencialização da mobilização de massa – esse modelo esgotou e deu no que deu, na absorção e adoção das mesmas práticas políticas, que histori-camente marcaram o Estado brasileiro. Não hou-ve a oxigenação por fora e não houve nenhuma preocupação em tê-la, ao contrário, houve até um direcionamento pra engessar e desmobilizar.

Você acha que o PT vai ter capacidade de se co-nectar com essa base social novamente?

“ É COMPREENSÍVEL QUE AS PESSOAS

REJEITEM A POLÍTICA. ESSE

MODELO POLÍTICO NÃO APRESENTA

ALTERNATIVA PARA A VIDA DAS PESSOAS.

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MOVIMENTOS | O poder da rua: com Guilherme Boulos

BOULOS: Eu acho que se encerra um ciclo na esquerda brasileira. O PT bateu no limite. Mas eu acho que ainda não surgiu aquilo que possa vir a tomar esse lugar. Nós temos, nesse momento, um vácuo; o PT não tem mais condições de ser o guarda-chuva que foi unificando o conjunto da esquerda, mas não surgiu um instrumento, uma organização, que ocupe este lugar. Ainda. O PSOL cresceu, é expressivo, merece o reconhecimento e respeito. Nós do MTST temos uma relação mui-to próxima e de aliança com o PSOL, mas ele não ocupa ainda esse lugar.

Acredita que deva surgir algo novo em breve?BOULOS: Vai surgir algo novo no país. Existe espa-ço para que surja algo novo, existe todo um setor da sociedade que está órfão e que clama por algu-ma alternativa dessa natureza. O que vai ser esse algo novo ainda não está claro, mas eu acho que cabe às forças políticas preocupa-das com o futuro da esquerda e engajadas na esquerda brasileira, pensar e se envolver na constru-ção desse processo.

Você acha que virá pelas ques-tões do trabalho e da classe operária tendo em vista que atu-almente os sindicatos estão, de alguma forma, menos mobiliza-dos do que na época do PT?BOULOS: Acho que o movimento sindical tem papel chave. Não dá para pensar a transformação social num país como o nosso sem a participação dos trabalhadores organizados, mas surgem ou-tros tipos de movimento. Surgem movimentos organizados pelo território, movimentos organiza-dos em torno de, digamos, causas que, historica-mente, na esquerda foram chamadas de direitos humanos: causa específica de gênero, a luta das mulheres; luta LGBT; movimento negro. Então, sur-ge algo dinâmico. Surgem novos movimentos de juventude, expressos principalmente na luta dos secundaristas no último período. Estamos nesse momento com 500 escolas ocupadas (o número pas-sava de 1000 até o fechamento desta edição). Isso não pode ser desprezado, tem forças vivas da sociedade se

articulando. A luta pelo direito à cidade e um con-junto de outros movimentos que não se organi-zam diretamente pelo espaço do trabalho... Então, eu acho que o novo na esquerda brasileira tem que surgir da conexão entre essas várias frentes.

E olhando para o aspecto mais local da vida do cidadão nas cidades, como conseguir fazer as pessoas despertarem para mobilização?BOULOS: Eu acho que nós temos que fazer o es-forço contínuo de enfrentar essa muralha que é o monopólio dos meios de comunicação. Isso faz com que as pessoas tenham uma visão passiva e apassivadora da realidade. Mas eu acho que, fun-damentalmente, as pessoas se movimentam pelas

suas demandas mais concretas, suas necessidades. Eu acho que quando a necessidade bate à porta é que as pessoas são mais impelidas a se mobilizar e a pen-sar em alternativas de luta e em novas alternativas políticas.

Acredita que a mudança virá pela campo da realidade e me-nos pelo conscientização?BOULOS: Claro que é também uma disputa de consciência, de narrativa, uma disputa simbóli-ca. Isso, evidentemente, está em jogo cada vez mais na nossa so-ciedade. Isso é fortíssimo e funda-mental, mas acho que os grandes

momentos de mobilização popular e ascenso de lutas na história estão marcados à luta por diretos sociais e à luta por direitos muito concretos, que estão relacionadas à condição de vida das pesso-as, a deterioração dessas condições de vida. Você pega o ciclo que gerou e impulsionou o Partido dos Trabalhadores; ele foi, antes de tudo, impulsio-nado por grandes greves por conta de arrocho de salário, condições de vida reais de milhares de me-talúrgicos. Isso gerou as greves do ABC, que foi um movimento capaz de se propagar e ter uma força política que gerou um partido, um presidente da República e todo um processo político. Isso veio de um movimento concreto e real, isso não veio simplesmente de ideias. Claro que isso se juntou, se amalgamou com gente que estava pensando

“ EXISTE ESPAÇO

PARA QUE SURJA ALGO NOVO,

EXISTE UM SETOR DA SOCIEDADE

QUE ESTÁ ÓRFÃO.“

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no Brasil, com outros tipos de movimento, com se-tores da Igreja, progressistas... mas o sopro foi um sopro de luta por necessidade. Então, por incrível que pareça, esse processo de destruição que eles estão protagonizando no Brasil nesse momento, destruição dos direitos sociais, é um processo que vai deixar também um rastro de resistência e de reação que pode impulsionar grandes lutas.

Qual sua expectativa para as eleições de 2018?BOULOS: Acho muito difícil dizer o que vai aconte-cer em 2018 pela gravidade do que tende a acon-tecer em 2017. Em 2017, em um ano, essa gente pode tentar destruir uma rede de proteção social de 30 anos – 30 anos nós estamos falando em rela-ção à Constituição. Agora, em relação a direitos tra-balhistas: a CLT é da década de 40, nem a ditadura militar ousou mexer na CLT. Essa gente, em um ano e meio, dois, quer destruir a CLT. A gravidade do que está acontecendo, o risco de regressão no país é tremendo. Então, é difícil dizer o que isso pode mo-vimentar ou o que isso pode gerar e como vai estar a percepção do povo sobre esse processo em 2018, entende? Você pode ter os efeitos desse processo ainda não materializados na população e você ter uma eleição de um segmento de direita, ainda nes-se clima de direita conservadora, ou o povo pode ter começado a perceber e acordar em relação a esse projeto de terra arrasada. A perceber que o golpe foi contra ele – contra milhões de pessoas no país – e aí, se perceber, isso abre espaço para ou-tras alternativas. Seja o Lula, se não inviabilizarem a candidatura dele, pois há uma tendência fortíssima de querer destruir o Lula. E quem ataca o Lula hoje não ataca pelos seus erros, ataca pelo o que ele re-presenta, ou seja, por representar o ponto de vista

popular. Muitos ainda o percebem como represen-tação da esquerda, embora os seus governos não te-nham sido propriamente de esquerda. Não sei como o Lula vai chegar a 2018, não sei como a esquerda, como a nossa capacidade de resistência e reação vai estar em 2018, depende de todos esses fatores.

Guilherme, e sobre você? Onde você mora?BOULOS: Na periferia de São Paulo, no bairro do Campo Limpo.

Você tem filhos? Como é seu dia a dia?BOULOS: Tenho duas filhas, trabalho e dou aula. É a forma como é minha rotina e minha vida. Mas dedico uma parte importante do meu tempo para a militância que eu optei fazer: no MTST; na cons-trução da Frente Povo Sem Medo; no debate das alternativas para a esquerda brasileira– isso conso-me uma parte expressiva do meu tempo – presen-te nas ocupações; assembleias; atividades junto à militância do movimento; atividades junto a outros movimentos sociais; ajudando a construir o movi-mento pelo país, com atividades em várias cidades.

Suas filhas têm que idade?BOULOS: Uma de quatro e outra de seis anos.

E que futuro que você acha que elas vão ter? Elas vivenciam a sua rotina? BOULOS: Claro. Às vezes vão comigo para ocupa-ções, minha companheira também é militante do movimento, então não há fuga. Mas a gente con-versa muito sobre isso, está presente na formação delas, e eu acho que vão ser pessoas que, onde estiverem, com as opções que fizerem, vão estar lutando. Espero isso e tento formá-las para isso.

NA RUA ATO 34 de Setembro

Movimentos SociaisAto promovido por movimentos sociais reúnem mais de 100 mil pessoas na Av. Paulista

Ivan

Zum

alde

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Detalhes de imagens do movimento. Acesse compartilhadores.queroprevias.org.br e conheça mais detalhes.

CIDADÃO | Prévias Cidadãs

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Por um novo campo político, construído de baixo para cima

PRÉVIASCIDADÃS.Você quer?

por CÉLIO TURINOde SÃO PAULO

ARTIGO ESPECIAL

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CIDADÃO | Prévias Cidadãs

Que encalacrada! Assim o Brasil se encontra, metemo-nos em um atoleiro e quanto mais nos mexemos, mais nos ato-lamos. Metemo-nos é o ter-mo justo, porque enquanto não houver consciência de que a responsabilidade pela

situação política, econômica, social, cultural e moral na qual nós, os brasileiros, nos envolvemos é de to-dos nós, não teremos condições de sair deste atolei-ro. Claro que há níveis diversos de responsabilidade e autoria pela situação em que nos encontramos, sendo que há alguns espertalhões com muito mais poder e culpa que outros. Mas há também o povo, do qual deveria emanar todo o poder (ao menos é o que inscrevemos em nossa Constituição), que po-deria exercitar melhor sua cidadania; afinal, socieda-des empoderadas, conscientes e protagonistas não produziriam uma imagem tão vergonhosa quanto a expressa no Congresso Nacional e demais insti-tuições do poder. Uma imagem distorcida, sem dú-vida, como a refletida nestes espelhos em parques de diversões, quando as pessoas tornam-se mais altas ou gordas, a depender do ângulo e formato do espelho, mas ainda assim uma caricatura de nós mesmos, não há como negar. A ignorância, o po-der econômico e político, a força bruta de institui-ções a serviço do sistema, ou a força ‘soft’ da mídia igualmente a serviço do sistema, as manipulações, as mentiras, o abuso de autoridade, tudo contribui para a distorção de nossa própria imagem; porém, quando assistimos às bizarrices e locupletações na política, é um pouco de nós que está sendo proje-tado, inclusive nas poucas exceções éticas. Apenas transferir responsabilidades (como é característica da cultura nacional) não terá serventia para resol-vermos o problema; por isso a necessidade de cha-mar a solução do problema sempre para a primeira pessoa no plural: nós. Nós por nós, nós para nós.

Talvez não seja simpático iniciar um artigo, que se pretende esperançoso, falando de nossa cara, e de uma cara que talvez não seja tão bonita, muito menos justa. Mas se não enfrentarmos este primeiro desafio, jamais romperemos com esta ingresia, como dizem os sertanejos do Nordeste brasileiro. O Brasil atual está confuso, obscuro, inin-

“ SEGUIR NOS VITIMIZANDO,

COMO SE FÔSSEMOS INOCENTES CIDADÃOS À MERCÊ DE POLÍTICOS

CORRUPTOS, NÃO BASTA, HÁ QUE NOS PERCEBERMOS

COMO PARTE E SOLUÇÃO DO PROBLEMA.

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CONSTRUINDO JUNTOS Integrantes explicam as bases do #queroprevias. A reunião foi realizada em São Paulo dias antes do lançamento oficial em 8 de novembro e contou com participação da população e de coordenadores do movimento como a economista Laura Carvalho e o cientista político Marcos Nobre.

teligível. Alguma dúvida de que nos encontramos nesta situação? Seguir nos vitimizando, como se fôssemos inocentes cidadãos à mercê de políticos corruptos, não basta, há que nos percebermos como parte e solução do problema. E esta solu-ção, ou virá por nós, ou não será uma boa solução; quando muito, a superação de uma encalacrada por outra, até nos encontrarmos novamente enta-lados em um espinheiro da caatinga. Isto aconte-cerá se depositarmos nossas únicas esperanças na busca de um salvador ou herói. “Triste o país que precisa de heróis!” disse Galileu, na dramaturgia de Bertold Brecht. Mais infeliz o país em que as pessoas correm desesperadamente na busca de salvadores da pátria; e foram muitos os que se colocaram, ou buscam se colocar, nesta condição, sendo que o re-sultado sempre foi o aprofundamento no atoleiro. Para tirar o Brasil da ingresia, primeiro há que nos olharmos no espelho e nos reconhecermos sem medo ou preconceito. Após isso nos cabe, escru-pulosamente, ir separando os espinhos, desatan-do nós e nos movendo no lodo. Este movimento

pode até levar mais tempo, pode ser mais difícil e até mais dolorido, mas ou será assim ou não haverá futuro saudável para o Brasil.

COMO SAIR DO ATOLEIRO?Depois de nos olharmos no espelho e de compre-endermos quem somos nós (de forma um pouco menos distorcida que a atual, ao menos isso) há que se aproximar daqueles que, como nós, buscam, honestamente, sair desta encalacrada. E sair desta situação por meio de um caminho ético, genero-so, democrático e diverso. Somos muitas e muitos, mas precisamos nos reunir e nos entender melhor. Convergir, confluir, este é o nosso desafio. Uma con-vergência cidadã em processos democráticos, hori-zontais, radicais (de ir à raiz) e profundos.

Se voltarmos a nos olhar no espelho de for-ma mais acurada, vamos descobrir que, para além do lodo e dos espinhos, há também um povo ge-neroso, criativo e empreendedor. Um povo que tra-balha de sol a sol, um povo que inventa, um povo que socorre o outro. Mas para ver este povo no es-pelho é preciso sair da superfície, é preciso esmero e voltar às origens, à base. Há tanta gente boa e fa-zendo coisas belas e generosas por aí! Cabe a nós observarmos e nos juntarmos mais, promovendo o Brasil escondido. Um caminho: Prévias Cidadãs.

Já há um movimento em gestação: #quero-prévias. Se houver êxito e se este movimento tiver

Ivan

Zum

alde

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CIDADÃO | Prévias Cidadãs

O que quer o #queroprevias? E aonde espe-ram chegar? A gente quer colocar essa ideia no mundo e fa-zer um chamado público para que as pessoas manifestem sua adesão e nos ajudem a construir um debate sobre o processo de Prévias nas elei-ções de 2018. Queremos criar um diálogo com partidos e movimentos e mostrar que existe uma vontade popular e uma militância disposta a fortalecer lideranças existentes ou promover novas lideranças que, hoje, não encontram um caminho dentro do processo eleitoral.

Qual o planejamento e as datas para concre-tizar as Prévias?  Até o dia 10 de dezembro esperamos colher centenas de milhares de adesões e começar a conversa com partidos e movimentos. A ideia é apresentar lideranças – incluindo pessoas não filiadas – até março, abril do ano que vem por-que o prazo de candidatura para as eleições de 2018 se encerra em outubro de 2017. 

Como mobilizar a população a se interessar pela política no atual momento de desencan-tamento das pessoas pelo processo? O #queroprevias entende que a melhor ma-neira das pessoas se reconectarem ao proces-

“QUEREMOS OXIGENAR O SISTEMA”A porta-voz do movimento fala sobre os próximos passos do #queroprevias

so em um momento de descrença da política institucional é fazendo com que essa estrutura seja mais permeável com a própria sociedade. Apesar da descrença que as pessoas veem nos partidos, elas ainda acreditam em política e os movimentos estudantis, feministas, negros são formas pelas quais a sociedade civil pratica polí-tica. O que queremos é que esses movimentos dialoguem com o sistema partidário e institu-cional. E não apenas no momento eleitoral, na hora de votar, sem debate positivo e apenas em disputa muito negativa. A ideia do #queropre-vias é justamente antecipar esse período eleito-ral para que esse debate possa ocorrer de forma mais profunda, enriquecedora e transparente.  

Como o movimento está articulando para engajar esses movimentos historicamente afastados do processo democrático e institu-cional brasileiro? O Brasil é um país desigual e qualquer mo-vimento no início vai ser refém das suas ori-gens. Então ele vai ser atravessado por essas estruturas de desigualdade porque nossas relações são influenciadas pelo racismo e pe-

TODOS JUNTOS Uma das porta-vozes do movimento #queroprevias, a ativista social Alessandra Orofino, criadora do Meu Rio e diretora do Nossas.

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Oro

fino

por IVAN ZUMALDE

clareza e firmeza para unir corações e mentes, po-tências e afetos, algo de muito bom poderá brotar. Mas para tanto é preciso transbordar os partidos. Há que ter coragem, sabedoria e desprendimen-to para buscar novos caminhos e não temer o novo, muito menos temer a perda de controle; aí já surge a primeira contradição com os partidos políticos constituídos, mesmo os do campo da es-querda, pois é da natureza dos partidos o desejo de controle, a verticalização e o mando hierárqui-co (expressa até desapercebidamente no voca-bulário militar: “militante”, “cabo eleitoral” etc.) Um desafio e tanto, que pressupõe uma nova cultura política, mas que precisa ser enfrentado desde já, pois não há tempo a perder.

A Prévia Cidadã seria uma forma de constru-ção coletiva do diálogo, de um programa comum e de recomposição de um campo democrático, popular e cidadão; ou melhor, de composição do campo da vida em contraposição ao campo dos sistemas. Isso pressupõe novas formas de agir e sentir, menos vanguardismo e mais retaguarda, com mais horizontalidade e polifonia. Partindo des-te princípio não seria uma Prévia Cidadã, mas Pré-vias Cidadãs. Para além da escolha de programas e candidaturas para a presidência e vice-presidência da República, as Prévias devem abrir espaço para a formação de chapas legislativas, via bancadas ativistas, e candidaturas a governos estaduais. As Prévias também devem ser percebidas como um processo de ocupação da política e das formas de poder, de modo a orientarem a ocupação de Con-selhos Cidadãos nos municípios e demais níveis de poder. Precisamos ocupar o vazio de um Estado em desmantelamento e este vazio se expressa de forma mais palpável nos municípios e nos poderes locais. Ocupar tudo! Como os secundaristas e uni-versitários começam a fazer, experimentando no-vos exercícios de cidadania. Sem esta combinação entre a disputa na macropolítica e na micropolítica, o movimento por Prévias Cidadãs estará fadado ao insucesso, pois inevitavelmente se deslocará das formas mais pujantes da vida.

Do mesmo modo, o programa e a escolha das pessoas que virão a expressar este programa devem ser construídos em um só processo. “O mo-vimento da carroça coloca as melancias no lugar”,

las diferenças de classes, mas já temos movi-mentos se aproximando e invadindo o debate. Acho que o #queroprevias vai ter sucesso ao injetar uma energia transformadora no siste-ma político e oxigenar, com novos atores e lideranças, demandas não atendidas dos mo-vimentos sociais. É uma questão de vida ou morte. Sem isso não faz sentido. 

Hoje, existem diversos coletivos e movi-mentos sendo criados na sociedade civil. Não acha que muitas iniciativas podem causar mais dispersão do que união? Qual o diferencial do #queroprevias em relação aos outros? O #queroprévias tem uma característica úni-ca muito interessante que é essa busca, não pelo resultado específico, e sim pelo proces-so distinto. Não é uma proposta de reforma política profunda contestando todas as re-gras do jogo. Em certa medida o #queropre-vias já aceita algumas regras e quer propor uma nova conexão da sociedade com os partidos. Por outro lado, acho que a gente não pode apresentar uma solução absoluta e que vai resolver todas as questões. Tem gente, por exemplo, que está trabalhando em uma perspectiva de resistência, o que é muito importante. Então, o #queroprevias flutua no meio, não é nem algo tão imedia-dista, como vamos resistir a tudo agora, nem algo a tão longo prazo. É uma construção, algo que pode se iniciar agora e continuar depois, a médio prazo. É um processo.

“A BUSCA NÃO É PELO RESULTADO ESPECÍFICO E SIM PELO PROCESSO

DISTINTO.“

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CIDADÃO | Prévias Cidadãs

precisamos aprender mais com a sabedoria caipira. Tivéssemos aprendido já teríamos percebido que um dos grandes problemas que levaram à desmo-ralização da prática política atual (nos mais diversos partidos) é a distância entre o que se diz e o que se faz. Assim, forma (candidatura) e conteúdo (progra-ma) deverão ser constituídos em conjunto, em Pré-vias Polifônicas e Policêntricas, com enraizamento pela base e construção de novas formas de contra-poder. Somente assim será possível oferecer ao Bra-sil uma candidatura cidadã com forte componente comunitário e vínculo com o mundo da vida.

O QUE FAZER?Juntar quem quer estar junto e fazer com ousa-dia. Simples como no poema de Torquato Neto: “Só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”. Mais que nunca, o sentido de ur-gência histórica está colocado no Brasil. O caminho são as Prévias e em processos de transbordamento dos partidos. Estamos convencidos disto? Se esta-mos convencidos, vamos a ele sem vacilação, pois o ajuste se dará no processo. Este deve ser o pri-meiro ponto de convergência e quem quiser estar junto de corpo e alma, com disposição e coragem, ética e desprendimento, que siga junto. Uma Con-fluência de Redes, Movimentos, Organizações, Par-tidos (com registro legal ou não) e pessoas (muito importante que seja um movimento em que as pessoas tenham vez e voz, para além das organiza-ções formais), como base para uma Convergência de Potências e Afetos.

“Quando os todo-poderosos governam com a irrazão e sem limites, somente os que pos-suem nenhum poder são capazes de imaginar uma humanidade que um dia terá poder e, com isso, mudará o próprio significado desta palavra” (Terry Eagleton). Utilizei esta citação quando escrevi o programa Cultura Viva e a proposta para os Pontos de Cultura, isso em 2004; mais que nunca, esta refle-xão segue atual e necessária para que o país supere a crise em que estamos metidos. E esta superação terá que vir de baixo para cima, de dentro (da so-ciedade) para fora (o Estado). E a comparação exata tem que ser esta mesma, a sociedade é o dentro (somos nós) e o fora são as instituições e o Estado. São estes que estão fora da ordem, não o povo, não

as pessoas. Porém, ao longo de séculos, o sistema nos fez crer que é a vida que deve servir ao sistema. Assim, diariamente, somos adestrados para sermos comandados pela lógica dos sistemas, do mercado, do Estado, das igrejas e poderes construídos. Mas, como bem disse o papa Francisco: “os sistemas que precisam servir à vida, nunca o contrário”. Chamar para a cidadania o comando de um novo processo de convergência política no país (via Prévias Cida-dãs) é, sobretudo, um ato de afirmação da vida. Ou será assim ou o Brasil seguirá em crise, ou em totali-tarismo, ou em barbárie.

Para ter êxito, as Prévias precisarão ir além dos partidos e organizações instituídas. Há muitos novos movimentos brotando, há muitas pessoas agindo, há muitas boas ideias no ar. Ao final do processo das Prévias, para além de candidaturas, o processo poderia resultar na costura efetiva de uma Frente Cidadã, convergente, afirmativa, pro-gressista, democrática e diversa. Não uma Frente como as que vão se constituindo, a partir de lide-ranças, partidos e organizações que decidem se unir, estes também, sem dúvida, mas uma Frente costurada pelas pessoas, em processos de base e em meio à luta cotidiana, será muito mais bem costurada. Isto significa que o processo de Prévias tem que estar colado na luta real e, ao lado das Prévias, deve exigir plebiscito, para que o povo de-cida sobre os planos de austeridade do governo (a PEC 55 – antiga PEC 241, que congela o gasto público por 20 anos, permitindo apenas o reajuste pela inflação) e a reforma da previdência, em que todo o custo recairá sobre trabalhadores e apo-sentados. Por este caminho as Prévias estarão ul-trapassando seu próprio objetivo original, poden-do se transformar em um atrator da resistência aos retrocessos desencadeados pelo golpe de Estado (de caráter judicial, midiático e parlamentar) que o Brasil está sofrendo, não em dissonância com as frentes já existentes (Brasil Popular e Povo Sem Medo), mas somando-se a elas, que, igualmente, podem se somar às Prévias. Mais que isto, a agre-gação entre Prévias e plebiscito sobre problemas concretos será um claro sinalizador de que tudo que diz respeito à vida e que afeta a vida das pes-soas tem que ser decidido pela própria vida, pelas pessoas (e não por cardeais do sistema), que são a

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única fonte soberana de direito. Prévias significam, portanto, ampliação da democracia direta.

Mais que simples abertura para a participa-ção, deliberação e votação por qualquer cidadão que queira se inscrever no processo das Prévias, de forma simples e desburocratizada, a organização das Prévias tem que apresentar a sincera disposi-ção em prospectar novas propostas, lideranças e candidaturas. Ou as Prévias terão a abertura para candidaturas independentes, ou que venham da base de partidos populares, ou será um simulacro de Prévias, servindo ape-nas para a legitimação dos poderes de sempre. Prévia tem que ser para valer e exige a coragem em per-der o controle. Mais que um evento, as Prévias de-vem ser percebidas como um movimento social, em que os cidadãos chamam para si a responsabilidade em se encontrar uma saída para o país em que vivem. As pessoas que se agluti-nam em torno da platafor-ma #queroprevias já cami-nham neste sentido e por isso devem ser apoiadas e empoderadas. Também será necessário desenvolver regras claras e inteligíveis, sempre buscando tornar o processo o mais iguali-tário e justo (se não promovermos a igualdade e justiça entre nós, jamais teremos força moral para exigir igualdade e justiça no país). Na sequência as inscrições, com critérios mínimos de representativi-dade, bem como um procedimento que induza à convergência, pelo método do consenso progres-sivo e não disputas acirradas e fratricidas. E isto só é possível quando o bem comum está à frente do interesse individual ou de grupo. E assim será.

Assim será porque assim tem que ser. Mais que um meio para o arranjo entre as forças políti-cas da cidadania, as Prévias precisam ser entendi-das como um meio para a disputa ética e cultural.

Sem dúvida, a grande derrota, que nós, os brasi-leiros, estamos sofrendo é resultado de uma der-rota acontecida no campo cultural, ético e moral. A própria cidadania se desfaz quando as pessoas são colocadas, e se deixam colocar, muito mais na condição de produtores e consumidores do que de cidadãos. Precisamos urgentemente resgatar o debate de valores, e fazê-lo de forma não doutri-nária e sim concreta, por meio de atitudes coeren-tes. Há como fazê-lo, desde que nos disponhamos a procurar em nós mesmos, cavando até encon-

trarmos nossas raízes mais profundas, e nelas extrair a seiva vital para a retomada de nossas forças. Na raiz do povo brasileiro está o bem viver ameríndio, expresso no tekó porã dos Guaranis, a convivência com a natu-reza, o viver em harmonia consigo mesmo, com os semelhantes e com o pla-neta, as perspectivas que mudam de lugar a depen-der do sujeito, o se colocar no lugar do “outro” pela prática da alteridade. Tam-bém a roda, a colaboração, o ser no “outro”, o estar bem quando o “outro” está bem, herdamos isso de nossa ancestralidade africana, com a ética e da filosofia Ubuntu. Da mesma for-

ma que herdamos as lutas sociais e os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, tão necessá-rios e ainda não realizados. Mesmo que as pessoas nem percebam, nem conheçam estas palavras e conceitos, até as repudiem, ainda assim elas estão dentro de nós, elas são nós. Prévia sem disputa cul-tural e de valores, ainda mais em um país tão desi-gual e intolerante, nem teria sentido, isso porque a retomada da esperança e da generosidade não será fácil, de tão entorpecidos que fomos pelo pragma-tismo, imediatismo, hedonismo, egoísmo. Mas sem esta disputa no campo de valores e da cultura não haverá mudança efetiva e sustentável.

“ CHAMAR PARA A

CIDADANIA O COMANDO DE UM NOVO PROCESSO

DE CONVERGÊNCIA POLÍTICA NO PAÍS

(VIA PRÉVIAS CIDADÃS) É, SOBRETUDO,

UM ATO DE AFIRMAÇÃO DA VIDA

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CIDADÃO | Prévias Cidadãs

COMO FAZER? Aglutinação de apoios e lançamento do movimen-to ainda em 2016. Para início de 2017, abertura para inscrições, com foco na presidência da República e, ao longo do processo, abrindo caminho para for-mação de bancada ativista no legislativo e candida-turas a governos estaduais, bem como à ocupação dos conselhos locais, a servirem de base para Jun-tas do Bom Governo. A primeira fase deve ser para apresentação de pré-candidaturas em debates te-máticos (Economia, reforma do Estado e Política, Cultura e Educação, Direitos Sociais, Diversidade, entre outros), que poderiam acontecer em regiões diversas do país e com deliberação na forma de As-sembleias Cidadãs (votam os presentes na assem-bleia, levantando a mão, primeiro na candidatura que melhor expressa o programa, para, em seguida, estabelecer processos de convergência programá-tica, aproveitando o que cada proposta tem de me-lhor). Esta fase deve durar três ou quatro meses. Na sequência verificar-se-ia quais as pré-candidaturas se mantêm para a fase seguinte, que seria estadual. O Brasil é um país-continente, portanto estas Pré-vias devem acontecer em datas diferentes, por esta-do ou grupo de estados próximos. Ao final do pro-cesso seria possível identificar quais candidaturas têm maior consistência; em havendo necessidade, uma última fase com as candidaturas e propostas mais bem colocadas. Outra vantagem deste pro-cesso de Prévias longas é que ele permite uma de-puração natural de candidaturas e propostas, bem como um melhor preparo, conhecimento e costura das convergências em torno das candidaturas, uma vez que todo o país vai acompanhando o processo, mesmo quando a Prévia não esteja acontecendo em determinado estado da Federação.

Em paralelo, caberá ao movimento bus-car meios para um financiamento equilibrado ao conjunto dos participantes, bem como à estrutura das prévias e sua cobertura via internet e demais meios de difusão. Outra medida será a negociação com partidos políticos com registro legal, para que participem e se submetam ao resultado das Pré-vias, inclusive abrindo a legenda para candidaturas democráticas e solidárias, uma vez que devem ser estimuladas candidaturas sem filiação partidária

prévia. Esta negociação não será tão simples, pois na forma com que os partidos estão constituídos, nem todos, mesmo no campo progressista, estarão dispostos a abrir mão de seu poder cartorial. Po-rém, na medida que o movimento for ganhando legitimidade social, talvez seja possível que alguns partidos compreendam que se desprender do po-der é o que de melhor eles têm a oferecer ao país. A verificar. Para que a Prévia não fique refém ape-nas desta alternativa, cabe propor, em paralelo, a possibilidade de candidaturas independentes, via lista cidadã. O Congresso está a votar nova refor-ma política, obviamente preservando a lógica de poder dos que estão lá, mas é possível, de forma ágil, propor lei ou emenda que incorpore candida-turas independentes, como acontece em diversos países democráticos, via lista de apoiamento. Seria um ótimo caminho para romper o monopólio dos partidos sobre a representação política. Será que te-rão coragem em fazê-lo? Será que a sociedade tem força e disposição para fazer valer esta mudança na política? Outra alternativa seria reforçar o processo de legalização de novos partidos (RAIZ, UP, Piratas, PartidA, Mais), mais abertos a esta simbiose entre pessoas, movimentos e instituições. Ou mesmo um misto entre as três alternativas. Enfim, há alternati-vas e caminhos. Se até a Física já demonstra que o Universo não é mais uno, sendo um Multiverso, em que diversas dimensões se entrelaçam e se com-plementam, por que não fazer o mesmo na polí-tica? Uma disposição para conter e estar contido, encontrando a unidade na diversidade, fazendo com que a singularidade complemente o múltiplo, sem a necessidade de se anular. Vamos nos arriscar neste novo fazer político, colocando a política em nossas mãos? Se sim, feito! Agora é seguir com a ousadia de quem nunca desiste da esperança.

Célio Turino – Historiador, escritor e gestor de Políticas Públicas. Autor de diversos livros e ensaios, entre eles, NA TRILHA DE MACUNAÍMA – ócio e tra-balho na cidade (Ed. SENAC/2006) e PONTO DE CULTURA – o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi/2009), traduzido para vários países e idiomas. Ocupou vários cargos públicos, tendo sido secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10), quando idealizou e desenvolveu o pro-grama Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Desde 2011 dedica-se à difusão e organização de movimento e políticas públicas de cultura em mais de 20 países, tendo sido convidado pelo papa Francisco para a difusão da Cultura do Encontro e dos Agentes Jovens de Cultura Cidadã pelo mundo. É funda-dor do Partido-Movimento “RAiZ – Movimento Cidadanista”.

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Estamos de prontidão! Em todo o Brasil, nas ruas e nos espaços virtuais, coletivos se formam, atos e marchas são convoca-dos e milhares de ocupações constroem a resistência. Se nunca nos faltou disposição para agir, esta energia cresce e se alastra na base da socie-dade. A resposta à perda de direitos e às deficiências da democracia brasileira só pode ser mais democracia, direitos e igualdade!

Queremos contribuir com a re-organização das forças com-prometidas com essa agenda e assegurar a construção de um programa de governo que dispute as eleições pre-sidenciais de 2018 e apoie o surgimento de novas lideran-ças nos processos eleitorais estaduais e municipais. Se as eleições não são tudo, são um momento decisivo da disputa política, o que torna as Prévias um caminho para que bases democráticas, inquietas e cria-tivas da sociedade encontrem canais para formular e dar va-zão a suas propostas.

As Prévias serão um espaço comum de diálogo no qual di-versos atores sociais poderão escutar uns aos outros, apre-sentando análises e propostas e debatendo seus potenciais e limitações. Sem abrir mão da pluralidade de pensamentos e iniciativas, este processo pre-tende apoiar a busca por con-vergências que produzam um programa de transformação social para o Brasil.

Sabemos que não há tempo a perder e que o aprofunda-mento da democracia exigirá a participação franca e aberta no debate público, evitando a dispersão e buscando a maior colaboração possível. Uma agenda que amplie a igualda-de, os direitos e a própria noção de democracia chegará mais forte às eleições à medida que for debatida nas Prévias: sem vetos, sem preconceitos e sem imposições.

Por mais democracia, direitos e igualdade e por um proces-so que dê voz às várias vozes, QUEREMOS PRÉVIAS!

MANIFESTO

Acesse compartilhadores.queroprevias.org.br e conheça mais sobre o movimento.

Conheça o manifesto proposto pelo movimento

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CIDADÃOS | A PEC do fim do mundo

Por que a PEC 241 não é a melhor $olução?

ECONOMIA

(Segundo eles, os economistas)

por CHARLES NISZ

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Com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, há um aumento da incerteza no ce-nário geopolítico internacional. Relações mais tensas com Rús-sia, China e Oriente Médio, além de maiores restrições no âmbito comercial, devem tornar as re-

lações entre Brasil e Washington mais difíceis em termos de comércio exterior. Assim, o Brasil deve-rá se apoiar menos no intercâmbio comercial para fazer a economia crescer.

Nesse cenário, a PEC 241 torna-se ainda mais relevante para a discussão sobre como resol-ver o déficit nas contas públicas brasileiras. A PEC é o tema legislativo que fomenta mais discussões entre políticos, economistas e a sociedade civil por propor um engessamento dos gastos do go-verno federal por 20 anos. A proposta é criticada tanto por sua longevidade (cinco mandatos presi-denciais) quanto por limitar gastos em áreas como saúde e educação.

O principal argumento dos defensores da PEC 241 é que a medida “é o caminho para a volta do crescimento da economia e da gera-ção de empregos que o Brasil precisa”. A frase foi dita em pronunciamento em rede nacional do ministro da Fazenda Henrique Meirelles em 6 de outubro. Segundo o governo, no atual ritmo de crescimento, o gasto do governo federal chegará a 22% do PIB em 2019. Com a PEC, esse gasto seria de 18,3% nesse mesmo ano. Projeção feita pelo economista Fábio Klein, da Consultoria Ten-dências, aponta uma despesa pública federal de 15,9% em 2026, mesmo nível verificado em 2002. Tudo isso supondo um crescimento do PIB de 2,7% ao ano, a partir de 2017.

Para André Perfeito, economista-chefe da Gradual Investimentos, “o objetivo é diminuir o ta-manho do Estado em relação à Economia”. Porém, Perfeito não considera o Estado brasileiro grande, mas sim mal-gerido. Na opinião do economista da Gradual, o corte de gastos na educação talvez tenha efeito inverso ao pretendido: “Sem Educa-ção, não conseguiremos melhorar a produtividade econômica do país, um dos principais entraves ao crescimento do PIB”, avalia ele. Além disso, a dimi-nuição do gasto em saúde e educação agravará os

problemas dos já sofríveis sistemas educacionais e hospitalares no Brasil. “No curto prazo, teremos um aumento da demanda por esses serviços públicos”.

Para Perfeito, o maior problema da PEC 241 é que ela dificilmente cumprirá o que promete. O governo espera uma forte retomada do cresci-mento econômico e que ele seja sustentado pelos próximos 10 anos. Segundo o economista da Gra-dual, além do problema do déficit – “o gasto públi-co realmente cresceu” – o problema está na queda abrupta da receita: só em setembro, a arrecadação federal de tributos caiu 10% na comparação com o mesmo mês de 2015. Ou seja, para aumentar a receita, o governo tem duas opções: aumentar tributos (onerando ainda mais a produção) ou in-centivar a economia.

Os principais críticos da PEC avaliam que so-mente a retomada da confiança não será suficiente para fazer a economia retomar o crescimento. Se-gundo Laura Carvalho, economista da FEA/USP, o aumento dos indicadores da confiança da indústria não se converteram em melhora real da produção industrial – houve queda em 20 setores. “O empre-sário só vai aumentar a produtividade se a deman-da estiver plena”, complementa Perfeito. Para ele, esse é o principal motivo pelo qual a PEC 241 será insuficiente para resolver o problema do déficit nas contas públicas do governo federal.

De acordo com Perfeito, há um risco pouco discutido na PEC 241: o risco da medida ampliar a recessão brasileira. Há três trimestres consecutivos, a economia nacional apresenta queda na atividade econômica. “Podemos ter um cenário de uma infla-ção recessiva – aumentam-se os juros para fazer os preços caírem e os preços aumentam por uma falta de oferta no mercado”, resume Perfeito.

Gastos como benefícios previdenciários, pensões militares, subsídios e isenções fiscais con-cedidos pelos governos estaduais e federal são pouco afetados pela PEC 241. Para Perfeito, a PEC tem um único mérito, opinião compartilhada com economistas ortodoxos, como Henrique Meirelles, Marcos Lisboa e Alexandre Schwartsman – obrigar a sociedade brasileira a discutir onde e como o país gasta seus recursos. “Com a discussão sobre a PEC 241, vamos ver quais grupos de interesse têm mais poder na discussão sobre políticas públicas e sobre o projeto de país que queremos”, afirma Perfeito.

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CIDADÃOS | Partido Pirata da Islândia

Os Piratas aportaram na ilha de geloO crescimento do Partido Pirata na Islândia demonstra que há alternativas de mudança na política mundial

por LUIZ MILLERINTERNACIONAL

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O pastor Crivella está eufórico ao lado de sua esposa. Abre as duas mãos espalmadas, indicando o número do seu partido em sinal de vitória após ter sido eleito prefeito do Rio de Janeiro. Essa foi a imagem final de uma das

piores eleições municipais para a esquerda bra-sileira. Antes disso, João Doria, o empresário do showbusiness e dos eventos empresariais, aturdiu a todos que acreditavam numa guinada à esquer-da no final do primeiro turno da disputa paulistana. Não deu. Levou logo de cara com mais de 50% dos votos. O PT perdeu seus redutos históricos – San-to André e São Bernardo – numa só tacada. Aliás, o partido perdeu em todas as capitais e grandes cidades, arrastando consigo outras legendas de esquerda. Até mesmo o PSOL foi de certa forma afetado, afinal, muitos eleitores ligam o partido ao PT como se fosse uma linha auxiliar política e não uma dissidência. Foi ruim para Freixo, foi ruim para a esquerda do país. Entramos num período de mui-tas incertezas políticas.

No mesmo dia em que Crivella foi a imagem surreal do que se tornou a política brasileira, a Islândia terminava de contar seus votos para a formação do novo Parlamento. Antes mesmo de a contagem ter-minar, as pesquisas indicavam a vitória da coalização de esquerda e o crescimento do Partido Pirata. Na contagem final houve crescimento, mas não maio-ria. Apesar de ter triplicado o número de assentos no Parlamento, de três para dez, a coligação de esquer-da da qual fez parte o Piratas assegurou 27 assentos de um total de 63. Sem dúvida será uma força.

Quem fica como papel de intermediador e define o primeiro-ministro na Islândia é o partido

NEM TÃO PERTO ASSIM Os ventos de populismo nacionalista da Inglaterra ou da Europa continental não chegaram à ilha da Björk.

AVANTE, MULHERES! Trinta mulheres, praticamente 50% do total de cadeiras, foram eleitas para o Parlamento. O equilíbrio democrático já começa na distribuição igualitária de gêneros na política. Na foto a poeta e líder do partido Birgitta Jónsdóttir, que foi eleita.

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CIDADÃOS | Partido Pirata da Islândia

que elege o maior número de deputados. No caso, o Partido da Independência, com 21 assentos e a incerteza de que conseguirá impor suas políticas. Nenhuma das coligações, tanto à esquerda como à direita, conseguiu uma maioria vantajosa, dei-xando o papel de intermediador para o centrista Partido Regeneração. Como ele é uma dissidência do Independência (de direita), dificilmente vai se alinhar às ideias liberais de uma coligação que tem o Piratas como maior representante. No final de tudo, o que podemos ver é que a população islandesa deu sinais de rompimento com a velha forma de fazer política. Mas qual o porquê disso?

ATO 1 – A CRISE FINANCEIRAEm 2008 o mundo conheceu uma das piores ca-tástrofes financeiras e aprendeu da pior forma o que é a especulação, e tudo aquilo que foi alarde-ado por Jesus há dois mil anos sobre o crime que é a usura. Logo após a quebra do banco de investi-mentos Lehman Brothers, a Islândia foi o primeiro país a sentir o golpe que, como num castelo de cartas mal feito, foi derrubando a economia frágil de diversos países. A crise seguiu para a Espanha, Portugal, Itália, Grécia e foi, como um tornado de incertezas, dizimando e empobrecendo.

Até o final dos anos 90, a Islândia era um país tranquilo. Não era uma das maiores econo-mias da Europa, mas vivia-se bem. O país tinha em seus recursos naturais e no turismo sua maior participação no PIB. As pessoas viviam da pesca, as casas tinham aquecimento, já que o país produz energia geotérmica em abundância e os sistemas educacionais e de saúde públicos atendendo os 320 mil habitantes perfeitamente. Então o gover-no, num momento neoliberal, decidiu privatizar o que vinha funcionando, principalmente a Reykja-vik, maior produtora de pescados do país.

ATO 2 – O CAOSA privatização, juntamente com os juros na casa dos 15%, fizeram com que os bancos islandeses entrassem em modo de loucura capitalista. Co-meçaram a captar dinheiro de investidores inter-nacionais em moeda forte – dólar e euro – e em-prestar a empresas e pobres velhinhos na moeda

local, com juros menores e prestações maiores. O resultado foi o esperado. As pessoas entraram em euforia, deixaram as varas de pesca de lado e se transformaram em investidores sem o mínimo co-nhecimento do mercado financeiro. Até antes da crise, a Islândia era um paraíso para gananciosos investidores internacionais com muita fome de lu-cros exorbitantes.

Então a bolha estourou. Quando se deram conta, os três maiores bancos islandeses detinham uma patrimônio 10 vezes maior que o PIB do país. O Lehman Brothers quebrou. Os capitalistas inter-nacionais entraram em desespero e queriam seus investimentos de volta. Mas como devolver um dinheiro que é meramente especulação? Não dá. Ele não existe. O primeiro-ministro na época, Geir Haarde, foi à TV fazer um pronunciamento à popu-lação e encerrou com um “Deus nos proteja”. Essa frase ligou o alerta e fez as pessoas correrem para os caixas eletrônicos a fim de salvar o que restava de suas economias.

Os islandeses experimentaram durante uma semana a sensação do apocalipse, até que o governo resolveu intervir. Deixaram os bancos que-brarem e os fatiaram ao meio. Ficando responsável pela parte que salvaria os correntistas islandeses e, com isso, manteria a economia interna funcionan-do. As dívidas com os credores internacionais foram privatizadas para grupos estrangeiros que, de certa forma, assumiram também o controle de diversas empresas no país. Bem, isso é um pouco do que vem na conta quando se pede a salvação e o indu-to do FMI, após esse lhe emprestar 2,2 bilhões de dólares para restabelecer a ordem. O que sobrou foi um gosto amargo e a desilusão com o establish-ment político e econômico.

ATO 3 – A DECEPÇÃO POLÍTICADepois de uma série de catástrofes, os islandeses se viram órfãos de representantes, ligando os fa-tos que levaram à crise econômica aos tradicio-nais partidos do país. Os quais eram mais, assim como cá, fantoches de grupos capitalistas. O pri-meiro resultado dessa insatisfação veio em 2010. Jón Gnarr, até então um radialista satírico, criou o Melhor Partido e concorreu às eleições municipais

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da capital Reykjavík. Com promessas do tipo: proibir o con-sumo de drogas no Parlamento e com-prar um urso polar para o zoológico da cidade; elevou a disputa política ao patamar da insanida-de. E, como uma espécie de efeito Tiririca, Gnarr ganhou a eleição.

Percebendo que a crise e o descrédito nas instituições políticas continuavam, um grupo de ativistas cibernéticos, anarquistas e ambientalistas, liderados pela poetisa Birgitta Jónsdóttir, forma-ram o Partido Pirata da Islândia, o Piratar, em 2012. Em seu manifesto eles defendem a democracia participativa direta, uma internet mais livre e com menos restrições devido aos direitos do autor e maior distribuição de renda através das riquezas geradas de fontes de recursos naturais.

Essa platafoma, e também a forma como demonstram transparência, fez com que parte da população, principalmente os mais jovens, desse ao partido, já em sua primeira eleição em 2013, os primeiros assentos no Parlamento islandês. Para um partido que não tinha nem um ano, foi uma vi-tória que deixou os sempre governantes e conser-vadores partidos Independente e Progresso, com a sensação do incômodo e que agora, depois de décadas, eles têm uma oposição que se faz ouvir.

ATO FINALA crise de 2008, apesar de ter sido superada na mesma velocidade com o que aconteceu, tinha deixado alguns rastros e fantasmas no status quo islandês. O maior vazamento de documentos da história, conhecido como Panama Papers, fez sua sua primeira vítima na Islândia. O nome do primei-ro-ministro Sigmundur Gunnlaugsson apareceu como sendo um dos donos de uma conta offsho-re que ocultava milhões de dólares. O dinheiro, adivinhe, era oriundo de investimentos feitos em um dos bancos que vieram a quebrar. Quando a crise veio e a quebradeira foi geral, Gunnlaugsson cinicamente bradou para que os bancos pagas-sem seus credores.

Gunnlaugsson sentiu o golpe. Talvez tenha sido o único político afetado pelo Panama Papers e, com o nome envolvido no escândalo, foi obri-gado a renunciar e a convocar novas eleições, mesmo a contragosto do presidente. Novamente entrou a descrença nas instituições tradicionais, e o Piratar, juntamente com outros partidos de es-querda, sentiu que era a hora de conquistar mais espaço no Parlamento e, enfim, colocar em práti-ca alternativas políticas que façam o país caminhar para uma participação mais direta da população. Uma delas é a de uma nova Constituição escrita colaborativamente com todos os setores sociais da Islândia. O que na verdade já foi feito, mas ainda falta a aprovação do Parlamento.

Um dia antes das eleições, Birgitta Jóns-dóttir estava confiante e dizendo que o partido antissistema seria a segunda força no Parlamento. O que se confirmou, mesmo não conseguindo a totalidade de cadeiras que lhes dariam a chance de ser o sistema e mostrar que é possível mudar e que a descrença e as crises, diferentemente daqui, podem contribuir positivamente para a constru-ção de um modelo político transparente e real-mente democrático.

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REVIRAVOLTA À ESQUERDAAcima a capital Reykjavík e abaixo comunicado à imprensa organizada pelo Piratar. No detalhe, campanha da última eleição do país.

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CIDADÃOS | Entenda antes de criticar

Cotas.Por que existem e para que servem?É na mesma medida fantasioso e cruel querer anular mais 350 anos de escravidão de um povo tecendo um discurso de igualdade inexistente

por DJAMILA RIBEIRODIREITOS

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O sistema de cotas é uma modalidade de ações afir-mativas que visam garantir o acesso da população ne-gra ao Ensino Superior. Para entender a necessidade das políticas de ações afirmati-vas é preciso, antes, enten-

der o contexto histórico da opressão racista.No Brasil, foram 354 anos de escravidão ne-

gra para um país de 515 anos. Ou seja, temos mais tempo como país de escravidão do que de não escravidão. No período de pós-abolição, no pro-cesso de industrialização do Brasil, não foram cria-dos mecanismos de inclusão para essa parte da população. Ao mesmo tempo, o Estado estimulou a vinda dos imigrantes europeus para cá, que vie-ram para trabalhar, inegavelmente, mas o fato de não terem vindo na condição de escravizados lhes confere outro status de humanidade.

Se hoje usufruem de uma realidade dife-rente da dos negros foi porque receberam incenti-vos deste país para isso, o que não ocorreu com a população negra, que veio para cá como escrava e em condição muito mais desumana, portan-to. O poder sempre se esforçou para esconder a origem social das desigualdades, como se as dis-

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RESPONDA RÁPIDOEsta foto foi feita no Brasil em 1860. Quem você acha que teve mais condições de entrar na faculdade hoje, em 2016? Os filhos de quem carrega ou de quem é carregado?

I HAVE A DREAM, TRUMPMartin Luther King Jr. em seu discurso feito em Washington, em 28 de agosto de 1963. Mais de cinquenta anos depois, os EUA elegeram um presidente que enxerga menos direitos do que seu antecessor negro.

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CIDADÃOS | Entenda antes de criticar

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MSparidades fossem naturais, meritocráticas ou pro-

videncialmente fixadas. O que faz, por exemplo, que muitas pessoas não percebam ou não quei-ram perceber que os direitos negados e a situação de pobreza da maioria da população negra são decorrentes de uma estrutura social herdeira do escravismo.

Esse contexto nos mostra que o racismo é um elemento que estrutura todas as relações sociais, relegando a população negra à margina-lidade. E se o Estado nega direitos a esse grupo é dever desse mesmo Estado reparar essa de-sigualdade. Não se pode invocar o conceito de igualdade abstrata quando, concretamente, é a desigualdade que se verifica. Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas se mostram como um caminho para diminuir distâncias. São um conjunto de ações em determinados âmbitos como saúde, educação, mercado de trabalho para inserir a população negra em espaços que foram bloqueados por conta do racismo estrutural. Uma dessas modalidades é a política de cotas. A pri-meira universidade no Brasil a instituir cotas raciais foi a UERJ – Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro, em 2001, seguida pela UNB – Universidade de Brasília, em 2004. Em agosto de 2012, foi institu-ída a Lei 12711, que garante a reserva de 50% das matrículas, por curso e turno, nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação a alu-nos oriundos de escolas públicas, e dentre esses, levando em conta, o percentual de estudantes negros. Essa é uma medida importante de com-bate ao racismo por incluir aqueles que historica-mente foram barrados desse espaço. Importante frisar, então, dentro dessa lógica, que cotas dizem respeito às oportunidades e não à capacidade. Ca-pacidade todos têm, o que não são iguais são as oportunidades, as possibilidades concretas para se acessar certos espaços.

A melhoria do ensino público deve conti-nuar sendo cobrada, quando o movimento negro

reivindicou cotas, foi sempre pensando nesta me-lhoria, uma reivindicação não exclui a outra, em absoluto. Cotas são necessárias como medidas emergenciais para romper, de certo modo, com um ciclo de exclusão sistemático. Enquanto se luta por uma educação de mais qualidade, não se pode condenar mais gerações ao não acesso aos espaços de privilégios.

Estudos realizados pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pela Uni-versidade de Campinas (Unicamp) mostra-ram que o desempenho médio dos alunos que entraram na faculdade, graças ao sistema de cotas, é superior ao resultado alcançado pelos demais estudantes. O primeiro levantamento so-bre o tema, feito na UERJ em 2003, indicou que 49% dos cotistas foram aprovados em todas as dis-ciplinas no primeiro semestre daquele ano, contra 47% dos estudantes que ingressaram pelo sistema regular. No início de 2010, a universidade divulgou novo estudo, que constatou que, desde que fo-ram instituídas as cotas, o índice de reprovações e a taxa de evasão total permaneceram menores entre os beneficiados por políticas afirmativas.

No Brasil, a discussão sobre ações afirmativas ganhou como foco maior a educação, mas ainda é necessário se ampliar para outros campos. Um caminho longo para reparar séculos de desigual-dade racial.

DOIS PESOS, UMA MEDIDANegros e imigrantes europeus chegaram ao Brasil para trabalhar na colheita de café.Uns vieram escravos, outros não.

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Eles disseram que

não iam pagar o pato.

E você? Acredita

em Pato Donald?

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA

EM RAIZ.ORG.BR

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CIDADÃOS | Spcine se consolida nos CEUs

Cinema para quem não precisa de PolíciaÉ com salas de cinema que o circuito Spcine conquistou 247 mil usuários dentro dos CEUs nas periferias da cidade. Cultura é sempre melhor solução do que repressão policial

por JULIANO COELHOCULTURA

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“Quando fiquei sa-bendo que tinha ci-nema de graça nos CEUs, pensei ‘xiii, sei não’. Mas eu gostei, viu? Agora, sempre que dá, venho aqui assistir a um cine-

minha”, diz a empregada doméstica Aucilene Lobo, 32, antes de entrar em uma sessão dominical de “Mais Forte que o Mundo”, filme de Afonso Poyart que conta a trajetória do lutador brasileiro de MMA José Aldo. Junto de sua mãe, Sebastiana Lobo, 57, Aucilene é uma das recentes habituês da sala de cinema do Circuito Spcine do CEU (Centro Educa-cional Unificado) Meninos, no bairro de São João Clímaco, na zona sul da cidade.

O cinema com 450 lugares é um dos 15 já inaugurados pela prefeitura em CEUs. Todos têm a mesma programação, com três horários todas as quartas, quintas e domingos. As salas dos CEUs se juntam a outros três espaços mais centrais -- uma sala na Galeria Olido, no Centro, e duas no Centro Cultural São Paulo, na Bela Vista -- para formar toda a estrutura atual do Circuito Spcine (a prefeitura promete até o final de novembro a inauguração das duas últimas salas, uma no Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes e outra na Biblioteca Roberto Santos, no Ipiranga).

O début do circuito ocorreu em março deste ano e ficou marcado pelo fato de o prefeito Fernan-do Haddad afirmar que o Circuito Spcine tinha a intenção de “passar o Cinemark” e tornar-se o maior exibidor da cidade. Hoje, oito meses depois, ficou claro que há uma distinção entre o circuito comer-cial e as salas da prefeitura: “eu cheguei a chamar os principais exibidores da cidade pra conversar, porque no começo eles ficaram com um pouco de medo. Eu falei, ‘gente, olha o mapa e veja onde es-tão nossas salas’. O shopping mais perto do Spcine Paz (no CEU de mesmo nome, no bairro da Brasilân-dia), por exemplo, está a uma hora e meia de ôni-bus. O objetivo é que a gente se iguale na escala de usuários, mas não no sentido comercial”, diz Alfredo Manevy, diretor-presidente da Spcine, que, além de administrar o circuito de salas, gerencia toda a polí-tica pública de cinema da cidade.

Em números, ainda há também um longo caminho para o Spcine se igualar à maior rede exi-bidora: enquanto o Cinemark tem 166 salas em 22

CINE NA PERIFA Aonde as grandes salas não querem ir, o Spcine vai. Acima, população assiste e se diverte nas sessões de cinema exibidas nos CEUs.

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CIDADÃOS | Spcine se consolida nos CEUs

complexos em São Paulo, o Circuito Spcine, quan-do estiver inteiramente instalado, contará com 20 salas em 19 endereços.

Para focar seus cinemas na periferia, a prefei-tura se escorou em um estudo da consultoria JLeiva que revelou que 30% dos paulistanos da classe D/E nunca foram ao cinema na vida. “Essa informação é chocante, ainda mais porque se trata do maior centro comercial e urbano da América Latina. São pessoas que nunca tiveram contato com o espaço social da sala escura e com um equipamento de ci-nema de última geração”, diz Manevy.

CIRCUITO INFANTILUma das maneiras mais eficientes de ver o fascínio que só a telona exerce em um público que não está familiarizado com o cinema é assistir a uma das ses-sões do Circuito Spcine voltada ao público infantil. Em uma quarta-feira, às 14h45, no CEU Quinta do Sol, no bairro de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, um ‘exército’ de crianças de 3 a 12 anos entrou pra ver uma sessão de “Angry Birds”, lotando todas as 250 cadeiras do recinto. Desde os trailers -- quando o aperitivo de “Carrossel 2” foi recebido com alegria e um coro de “Carrossel, Carrossel, Car-rossel!” --, as crianças não pararam de interagir. E, mesmo com toda a compreensível gritaria infantil, os projetores digitais 2K com capacidade de fluxo luminoso de 10 mil lumens e o sistema de som Dolby 5.1 venceram a batalha e conseguiram, com sucesso, contar a história do pássaro vermelho Red em busca da paz de espírito.

FUTURO CINEASTADentre os pequenos fascinados com as novas pro-jeções, um assíduo na sala do CEU Meninos tem mostrado particular paixão pelas telonas. Vitor Andrade tem quatro anos e arrasta sua mãe, a em-pregada doméstica Valéria Andrade, de 44 anos, a dezenas de sessões de cinema: “eu já vi ‘O Pequeno Príncipe’ quatro vezes, vi ‘Mais Forte Que o Mundo’ duas vezes. Ele não quer sair do cinema”, diz a mãe.

A Cidadanista encontrou Vitor e sua mãe em uma sessão bastante inusitada, a “única” que os dois ainda não tinham visto na agenda semanal do Spci-ne Meninos. Às 16h de um domingo, os dois assisti-ram, do começo ao fim, ao filme “Planeta Escarlate”, que faz parte da grade do Festival de Cinema Latino Americano de SP. O filme, de Dellani Lima e Jonnata

Doll, é uma espécie de ficção científica rural, que mistura tomadas longas e contemplativas com cenas de sexo e violência (todas elas devidamente censuradas por Valéria, pondo as mãos nos olhos de seu filho). Vitor, ao sair da sessão, nem ligou para o fato de sua mãe ter odiado o filme e foi sintético ao avaliar, “Planeta Escarlate”, “eu gostei”.

Em geral, a única crítica da comunidade diz respeito à divulgação. “Acho que tinham de distri-buir panfletos pelo bairro, porque ainda tem pouca gente que sabe”, diz Valéria. “Eu aviso sempre lá na pensão em que eu moro pra virem aqui. Quando dá, trago minhas filhas. Gosto muito, só não gostei quando puseram um cartaz do filme do Batman com ‘em breve’ e depois o filme não veio pro cine-ma”, diz José Carlos, 51, que é modelista de bolsas e assiste religiosamente às três exibições dominicais do cinema do CEU Meninos.

FORA DOS CEUSDentre as salas fora das periferias, a primeira a ser inaugurada fica na Galeria Olido, no Centro, e, com preços de R$ 8 o ingresso (R$ 4 a meia), tem uma programação híbrida, que tenta atender à deman-da da população local e do público mais ligado a cinema autoral. As outras duas -- que também co-bram R$ 8 pelo ingresso -- estão no Centro Cultural São Paulo e servem como um “laboratório” do cir-cuito: “As salas do CCSP têm uma história de cine-filia muito forte, que a gente pretende respeitar e aprofundar. Toda essa inteligência de programação pode ser exportada para os CEUs. Porque a periferia também tem coletivos de hip hop, de grafite, que querem biscoito fino. Esses caras querem David Lynch, querem Antonioni”, diz Manevy.

Toda implementação tanto do Circuito Sp-cine quanto da própria Spcine está muito ligada à gestão de Fernando Haddad e, depois que João Do-ria Júnior, do PSDB, foi eleito, há a chance de todo o projeto ser alterado, diminuído ou até extinguido. O prefeito eleito não decidiu ainda quem será seu secretário de Cultura e, de férias, não atendeu à Ci-dadanista. Alfredo Manevy não nega a chance de o programa ter um fim prematuro, mas se mostra otimista: “O que a gente espera é que não haja par-tidarização com uma coisa como o cinema, como a Cultura. Acho que as políticas públicas que são vito-riosas, ou seja, que são absorvidas pela sociedade, deveriam alcançar um patamar de consenso”.

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Políticos são todos

farinha do mesmo saco?

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HISTÓRIA VIVA | Contra a ditadura do capital

DomENTREVISTA EXCLUSIVA

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Figura importante na luta por direitos na época da ditadura militar brasileira, Dom Angélico Bernardino Sândalo falou em entrevista exclusiva à Cidadanista sobre o atual momento que vivemos e suas semelhanças com o passado. No alto de seus 83 anos, o morador do bairro da Brasilândia critica partidos, estimula a mobilização popular e pede que lutemos contra a soberania do capital nas relações humanas

Em recente entrevista, o senhor afirmou que “a Igreja precisa conscientizar a formação política do povo, porque ele é enganado”. Como fazer a população se engajar para defender seus direi-tos e lutar por trabalho, moradia, saúde, educa-ção e cultura?

ANGÉLICO: É fundamental que no regime demo-crático o poder seja efetivamente emanado do povo e por ele exercido através de seus represen-tantes. Na realidade isso frequentemente é uma solene hipocrisia, porque o povo não tem nas suas mãos, por exemplo, os meios de comunicação que são um poderoso instrumento na formação ou de-formação do povo. E esses meios, geralmente os grandes meios, estão nas mãos do poder econômi-co e o poder econômico está interessado no regime capitalista liberal como esteve também durante o regime escravagista. Ele está interessado nos lucros daqueles que detêm esse poder. O povo que se las-que. Então o que é fundamental é que valorizemos a política que é a arte e a ciência de governar e or-ganizar a cidade, a Pólis. E para isso é fundamental que o povo seja organizado e unido. É aí então que há um trabalho por parte dos movimentos popula-res, da Igreja, que não pode se omitir nesse trabalho de organização do povo, de conscientização da po-pulação através das comunidades eclesiais de base e através das pastorais sociais. Somos chamados a ser irmãos e se somos irmãos precisamos nos amar e aí a urgência de todos terem acesso àqueles bens que Deus destinou. Não a poucos no mundo, mas a toda humanidade. Bens como moradia, trabalho, educação, saúde. Em uma palavra, todos os bens. E para que o povo realmente tenha em mãos esses bens, é preciso que se organize pois o sistema que está aí favorece os que têm o capital. Essa que é re-alidade nua e crua. O demais é hipocrisia.

Se por um lado existe um força de atuação insti-tucional baseada em partidos políticos, por ou-tro lado existe uma força baseada em movimen-tos sociais. Qual caminho é mais efetivo para o povo conseguir seus direitos? Através de uma representação política ou por um caminho de luta e pressão contra o Estado?

por IVAN ZUMALDEde SÃO PAULO

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HISTÓRIA VIVA | Contra a ditadura do capital

ANGÉLICO: Em primei-ro lugar eu acho que nós precisamos de uma refor-ma política profunda, por-que eu desafio o cidadão brasileiro que saiba elen-car os partidos existentes que nos representam. São mais de 30 e me digam quais os princípios que norteiam esses partidos. Por isso é preciso uma re-forma política profunda, mas eu não acredito que isso possa vir simplesmente do Parlamento que está aí. É preciso que cresça a pressão popular, a organização dos movimentos populares, o robus-tecimento por parte da Igreja, das pastorais sociais, das comunidades eclesiais de base, dos grupos de rua e voltados para a defesa da vida concreta e vida é sinônimo de pão, trabalho, creche, edu-cação, de todos os valores fundamentais. Por isso precisamos do povo na rua, nas praças. É preciso que o povo levante bandeiras concretas e saia às praças e não se deixe mais enganar, se alienar. São essas bandeiras concretas que vão colocar os polí-ticos atendendo ao clamor do povo. Do contrário eles ficam nas negociatas do Parlamento, que é o que nós estamos assistindo do Brasil atual.

O senhor citou que a concentração dos meios de comunicação está a serviço do capital. Ao mesmo tempo, a internet permitiu um maior acesso mas não necessariamente uma mobilização. Qual é o caminho para comunicar e mobilizar hoje?

ANGÉLICO: A revista na qual estou falando é um meio de comunicação de conscientização. É neces-sário que se multipliquem esses pequenos meios. Durante a ditadura militar nós tinhamos pequenos meios que exerceram um papel muito grande na redemocratização desse país. À parte disso, esses outros meios, como a internet, existem para os dois lados: há aqueles que estão a favor da conscientiza-ção do povo e há aqueles que estão contra o povo. O importante é que jamais deixemos de resistir e que caminhemos para a organização do povo, para uma democracia verdadeira, independentemente dos meios que possam surgir.

O senhor falou sobre o poder para o povo e na relação com o Par-lamento, mas vemos a proposta da PEC 241, por exemplo, que limita gastos em saúde, edu-cação para esse povo.

Como o senhor analisa essa situação contraditória?

ANGÉLICO: Pessoalmente e, não pertencendo a partido político, entendo que as propostas de reforma trabalhista, terceirização, reforma do En-sino Médio, da previdência social e sobretudo a proposta da PEC 241, que estabelece teto nos re-cursos públicos por 20 anos, colocam sim em risco direitos sociais do povo brasileiro, sobretudo dos empobrecidos. Em sintonia social da Igreja não se pode equilibrar as contas cortando os investi-mentos públicos que atendem os mais pobres de nossa nação. Não é justo que os pobres paguem essa conta, enquanto outros setores continuam lucrando com a crise. Os jornais acabaram de publicar que existem ministros desse governo ganhando fortunas como o Eliseu Padilha e o Ge-ddel Vieira Lima. O primeiro ganha R$ 50 mil por mês e o segundo ganha R$ 51 mil. E ainda tem aposentadoria, onde o primeiro ganha R$ 19 mil por mês e o Geddel está recebendo R$ 20 mil por mês. E na reforma da previdência, eles estão de-fendendo o arrocho dos previdenciários e assim por diante. Isso é um escândalo, uma vergonha. Nós temos que largar não os políticos, mas cer-tos políticos. É um absurdo um ministro receber cerca de R$ 50 mil mais as mordomias ao mesmo tempo que estamos diante de um salário mínimo que não chega a R$ 900 reais.

O senhor afirmou que regimes de força e de men-tira, baseados na injustiça e não no bem comum, não têm vida longa. Temos um governo sem apoio popular e acusado de ser golpista. Qual é a melhor maneira de se lutar por um governo que, de fato, represente os interesses do povo?ANGÉLICO: Eu aprendi durante o golpe militar de 64 que é preciso organizar o povo e resistir.

“ EU NÃO ACREDITO QUE A

REFORMA POLÍTICA POSSA VIR SIMPLESMENTE DO

PARLAMENTO QUE ESTÁ AÍ.“

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Com o povo da zona leste de São Paulo, nós saímos às ruas com 15, 20 mil pessoas a partir da Praça do Forró em São Miguel Paulista rei-vindicando nas ruas, li-berdade, creche, trans-porte, educação. Acho que o único caminho que nós temos é organização do povo para que este povo tendo bandeiras legítimas nas mãos e, sem baderna alguma, saia às ruas reivindicando seus direitos. Aí não há político que resista. Essa que é a verdade. Aquilo que nós dizíamos vale para sempre: o povo unido jamais será vencido.

O maior partido de esquerda perdeu espaço e o conservadorismo cresceu aqui e no mundo. O senhor acha que governos socialistas ou de cunho social não foram capazes de dar uma res-posta para a população e perderam força para o liberalismo e o capital? 

ANGÉLICO: Eu sou pela socialização. Sou por uma economia solidária. Eu acredito que todos os partidos, especialmente os partidos de esquer-da, devam passar por uma profunda revisão. Me permitam fazer essa crítica, mas o PT abandonou as bases populares. Ele ficou mais na governabili-dade do Parlamento. E o que aconteceu? Alguns de seus membros inclusive foram condenados por corrupção juntamente com segmentos das grandes empresas. É preciso que esses partidos voltem às suas bases. O sindicato e os operários também estão divididos com opções partidárias e isso enfraquece muito a luta. O sindicato deve olhar para o trabalhador e não para opções parti-dárias que prejudicam a causa. 

O senhor acredita que a Igreja Universal  te-nha um projeto de poder baseado na fé? A elei-ção do Crivella no Rio representa isso? 

ANGÉLICO: Os cristãos têm um compromisso com o Reino de Deus e acreditamos que toda a humanidade deve deixar de lado os interesses do

capital. Eu acho que o cristianismo é a op-ção evangélica pelos pobres. Deve trabalhar para que realmente a miséria seja extinguida na face da Terra. E nós como cristãos devemos

trabalhar para que nos entendamos como irmãos. Eu tenho muito medo quando uma igreja cristã se partidariza. Não é o caminho. Se a Igreja Universal está fazendo isso, eu não quero afirmar, mas só te-nho lido isso. À Igreja Universal compete explicar.

E na opção da Igreja pelos mais pobres, não se-ria oportuno uma renovação da Teologia da Li-bertação para os dias atuais? 

ANGÉLICO: Meu irmão, para nós basta a palavra. Nós temos que ter menos de teologia e mais de ética. Colocar em prática o que disse Jesus, quan-do em Jerusalém ele enfrentou o poder econômi-co e o poder politico.

Qual será o principal legado do papa Francisco? 

ANGÉLICO: O papa Francisco é um iluminado. Que alegria de estar com ele. É um homem iluminado. A urgência de nós irmos às periferias humanas e geo-gráficas, ao encontro dos pobres, num compromis-so inarredável será sem dúvida um legado.

Qual é a esperança do Dom Angélico para o fu-turo do país e do mundo?

ANGÉLICO: Quando era criança lá no interior, fi-lho de trabalhador, eu aprendi no grupo escolar de Saltinho, que é minha terra pertinho de Piraci-caba, que não há país melhor do que esse. O Brasil é muito maior do que as suas crises, aliás essa cri-se que falam tanto não é só do Brasil, não, é crise cíclica do capitalismo liberal que atinge países da Europa, como França, Portugal, Grécia, Espanha… Mas a realidade maior que nós temos nesse país é a grandeza de seu povo, que deve ser amado, respeitado, organizado e jamais explorado.

“ AQUILO QUE NÓS DIZÍAMOS (NA DITADURA MILITAR DE 64) VALE PARA SEMPRE: O POVO UNIDO JAMAIS

SERÁ VENCIDO.

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SEIVA | Mulheres no poder: MARIANA CONTI

Mariana ContiMariana Conti é mestre em Sociologia pela Unicamp, servidora pública em Campinas e feminista. Acaba de ser eleita vereadora

com a maior votação feita a uma mulher na história da cidade e vai enfrentar sozinha (ela também foi a única mulher eleita) uma

bancada esmagadoramente masculina em busca de mais representatividade na Câmara. Nesta entrevista exclusiva fala sobre

sua campanha pelo PSOL e suas esperanças e projetos para o futuro

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Como é ser a única mulher eleita para a Câmara de Vereadores? Acha que vai sofrer preconceito na Câmara?

MARIANA: O fato de termos apenas uma mulher na Câmara de Vereadores de uma cidade como Campinas ilustra como a nossa sociedade é ex-tremamente machista. Ainda sofremos o peso da herança patriarcal que estabelece diferenciação de papéis determinados pelo gênero e a política não escapa a esse preconceito. Acredito que precisa-mos incentivar as mulheres a participarem da polí-tica e que elas o façam representando as bandeiras de luta das mulheres contra o machismo. Por isso, o feminismo é uma arma fundamental para acabar-mos com o sexismo da política. Sobre preconceito na Câmara, com certeza isso vai ocorrer. Em 2015, enfrentamos uma tentativa de mudança na lei or-gânica da cidade que tinha o objetivo de proibir a discussão de gênero nas escolas. Várias vezes os manifestantes tomaram o plenário da Câmara, mas a reação dos vereadores foi vergonhosa: xingamen-tos e ofensas machistas e homofóbicas; incentivo ao ódio, ao preconceito e à intolerância e, em uma dessas sessões, uma manifestante foi agredida por um defensor do projeto. Vergonhoso.

Você foi militante da escola pública. Fale-nos sua opinião sobre a ocupação das escolas pelos secundaristas

MARIANA: A juventude tem dado lições impor-tantes. As ocupações contra o fechamento das es-colas protagonizadas pelos secundaristas em 2015 e agora, em 2016, contra a imposição da reforma do Ensino Médio e a PEC 241 foram os movimen-tos mais importantes desde o levante de junho de 2013. A responsabilidade e a maturidade com que esses jovens conduziram esse processo são impressionantes. Desmonta aquela ideia do sen-so comum de que o jovem não está preocupado com nada. Muito pelo contrário, eles mostraram estar preocupados com futuro, com as condições do ensino público e com o país.

Você foi eleita pelo PSOL, mas ao mesmo tem-po a esquerda perdeu espaço no país frente a um avanço do conservadorismo. Como unir a esquerda e o campo progressista?

MARIANA: Nós estamos vivendo um período em que o debate político tende a ser cada vez mais polarizado, à esquerda e à direita. Isso é um fenô-meno mundial. Aqui no Brasil vivenciamos, na últi-ma década, o desfecho trágico de um dos maiores partidos de origem popular do mundo. Por isso, a sensação de desalento. Contudo, eu acredito que estamos vivendo uma nova fase de lutas sociais no Brasil, o que coloca desafios e experiências. É um momento que exige novas alternativas. Esse processo tende a unificar os lutadores. Mas, para além dessa unificação prática, acredito que é ne-cessário um acerto de contas em relação à estraté-gia adotada pela esquerda desde os anos 80.

A RAIZ - movimento cidadanista está em proces-so de colheita de assinaturas para figurar como partido. O que diria para a militância do movi-mento da RAIZ?

MARIANA: Eu diria à militância da RAIZ para se manter firme. O processo de legalização do parti-do não é simples, ainda mais para uma proposta que conta basicamente com a força da militân-cia. E assim que conseguirem a legalização que a militância participe da vida partidária e da de-finição dos rumos e decisões do partido. Essa é a única forma de manter viva a democracia no interior do partido.

As pessoas estão com aversão à política e aos políticos. O que diria para essas pessoas que não acreditam mais no processo político como transformação social?

MARIANA: A descrença da população em re-lação à política e aos políticos é legítima. Ela é consequência do desapontamento: mesmo aqueles que pareciam diferentes se tornaram iguais a todos os outros. Aos olhos de uma imensa parcela da população não existe saída; tanto que já há algum tempo existe uma pressão enorme para as escolhas políticas transitarem entre o ruim e o menos pior. Isso só pode causar aversão mes-mo. Eu acredito que a forma de combater a de-sesperança é construindo alternativas. Para tanto, precisamos aprender com os erros do passsado e dar novos exemplos. O PSOL tem cumprido um papel importante nesse sentido.

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SEIVA | Cidadania básica: Eduardo Suplicy

Eduardo SuplicyEm entrevista exclusiva à Cidadanista, Eduardo Suplicy, o vereador mais votado da história da cidade de São Paulo e representante histórico do Partido dos Trabalhadores, fala sobre comunicação com eleitores, cartas a Michel Temer, aversão do cidadão à política e a esperança de ver seu legado de transformação social implementado

pela renda básica da cidadania.

Vereador eleito - São Paulo

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Como conscientizar o cidadão sobre a impor-tância da política institucional na conquista de uma cidadania mais plena?

SUPLICY: É importante que esclareçamos a po-pulação e todas as gerações de quão importante é a participação na vida política. A política é a ci-ência de como alcançar o bem comum, uma vida justa para todos, conforme Aristóteles nos ensi-nou. E para que haja uma vida justa para todos é necessária a justiça política, a justiça distributiva que torna mais iguais aos desiguais. Então é im-portante que as pessoas percebam que aqueles que se dispõem a participar da vida política, estão expressando vontades e representando a popula-ção. Para isso, obviamente, é necessário o contato dos cidadãos, dos eleitores com aqueles que es-tão exercendo o mandato. E é responsabilidade minha, agora como vereador eleito, estar muito atento ao que constitui a vontade da população e estar sempre em contato com as pessoas.

Além da conscientização da população pela po-lítica, é importante também a mobilização das pessoas para exercer a política...

SUPLICY: Sim, sempre que há alguns assun-tos de grande repercussão, como o assunto do impeachment da presidenta Dilma, a luta por eleição livre direta... Eu, por exemplo, se fosse se-nador, teria votado contra o impeachment. Che-guei a propor que Michel Temer convocasse um referendo e que, caso a população dissesse sim, ele poderia chegar até 2018, mas se a maioria dissesse não, então ele deveria convocar eleições livres e diretas o quanto antes.

Mas como não vemos uma situação nesse sen-tido, qual seria a melhor maneira de o cidadão ser ouvido?

SUPLICY: Bom, eu já escrevi ao presidente Michel Temer, carta assinada por centenas de estudantes e professores com essa proposta. Acho que todos os brasileiros e brasileiras podem fazer o mesmo. E a cada decisão incorreta que for feita, precisa-mos reforçar, esclarecer e deixar claro que essas decisões não estão certas. Se necessário fazemos

o movimento nas ruas para que os objetivos de democratização e de melhoria de bem-estar da população possam ser alcançados.

O senhor é conhecido como um mediador de conflitos e um interlocutor de muito diálogo. Neste momento em que o campo progressista perdeu muito, o que a esquerda deve fazer para se unir e ganhar protagonismo novamente?

SUPLICY: Acho que precisamos divulgar quais são os projetos mais importantes que podem unir a todos nós. Dentre os quais, a renda básica de ci-dadania, o direito de toda e qualquer pessoa, inde-pendente de sua condição, de participar da rique-za comum de nossa nação através de uma renda que, com o tempo, com o progresso do país, será suficiente para atender às necessidades vitais de cada um. Eu escrevi por três anos 34 cartas a presi-denta Dilma Rousseff para que ela constituísse um grupo de trabalho para estudar as etapas previstas na Lei 10835 de 2004 e sancionada pelo presidente Lula em 8 de janeiro de 2004 para implementar a renda básica de cidadania no Brasil o quanto antes.

As iniciativas como o Podemos na Espanha e a RAIZ no Brasil podem ser uma alternativa à crise de representatividade que vivemos no sis-tema político?

SUPLICY: O Podemos é um partido que nasceu dos inúmeros movimentos sociais e, se você olhar o programa do Podemos, lá está a defesa da renda básica universal de cidadania

Qual a esperança que o senhor vê para o futuro do país? O que esperar de 2018? 

SUPLICY: Eu acho importante que, sobretudo, os jovens se interessem mais e mais pela política e percebam que, se eles não o fizerem, há aqueles que se interessam e acabam tomando decisões que podem contrariar o que eles avaliam como melhor para o país. É importante alertar a todos para participar democraticamente e também lembrar a todos o quão bom é a democracia. Não podemos permitir de maneira alguma qualquer regressão a formas não democráticas de poder. 

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FRUTOS | Esquerda unida

Por uma frente (de gente) de esquerda

Tenho insistido há tempos sobre a necessi-dade de a esquerda no Brasil se organizar numa frente ou nunca irá conseguir go-vernar e fazer o país avançar. Deveríamos

mirar o exemplo uruguaio, que fez um trabalho de formiguinha e construiu uma frente com todas as agremiações de esquerda do país para finalmente chegar ao governo em 2005, após 24 anos de luta. Hoje em seu terceiro mandato, a Frente Ampla não encontra dificuldades para suas pautas pro-gressistas dentro do Parlamento porque conquis-tou esmagadora maioria.

Meu desejo e o de muitos brasileiros de esquerda esbarra, porém, na má vontade dos polí-ticos de esquerda. Não se vê nenhum movimento dos políticos e dos seus partidos para criar esta frente. Pelo contrário, mesmo com o massacre que estamos vivendo, os políticos dos diversos partidos de esquerda continuam se digladiando, se atacando, disputando espaço entre si, por vai-dade e sede de poder. Lamentavelmente, isto se refletiu na última eleição para prefeito: desunida,

a esquerda perdeu em capitais onde poderia ga-nhar se tivesse a capacidade de sentar para nego-ciar entre si.

Vejo gente do PSOL, partido que admiro e que até agora se safou das denúncias de corrup-ção, dizer que só ele é de esquerda “de verdade”. Acho isso um equívoco brutal. Sim, é possível di-zer que o PT ou o PCdoB, em suas direções parti-dárias, não são de esquerda. Mas é inegável que tem muita gente de esquerda dentro de ambos os partidos. E o mais importante: tem muito eleitor de esquerda que vota no PT e no PCdoB (e até no PSB e no PDT). Portanto, não faz sentido o PSOL se arvorar em “único representante da esquerda”.

O PT, por outro lado, em vez de fazer um necessário mea culpa sobre as más decisões que tomou em nome da “governabilidade”, prefere continuar atacando o PSOL, que saiu de sua cos-tela justamente quando ficou claro que o Parti-do dos Trabalhadores estava abandonando os princípios que guiaram sua fundação. Como se o PSOL fosse o culpado pelo fato de o PT, em vez

por CYNARA MENEZES

Cynara Moreira Menezes é baiana e já percorreu grande parte das redações da imprensa brasileira. Atualmente se dedica ao blog socialistamorena.com.br. É coautora de livro Golpe16 publicado pela revista FÓRUM.

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de combater o financiamento de campanha, ter se unido a ele. O eleitor de esquerda fica no meio deste fogo cruzado, porque, se não for militante partidário, sente simpatia pelo PT e pelo PSOL.

Enfim, a real é que não há interesse dos partidos de es-querda em criar uma frente. Mas um dia destes tive um estalo: por que não deixar de esperar pelos políticos e criar uma frente não de partidos, mas de gente de esquerda, juntando movimen-tos sociais e sindicatos? Uma frente não para se organizar no Congresso nas votações ou para lançar candidatos, e sim para co-brar dos políticos da esquerda posicionamentos necessários. E principalmente para organizar eventos para rediscutir o papel da esquerda no Brasil e no mundo – uma tarefa urgente na qual os políticos tampouco parecem interessados.

Isso já existiu, na verdade: o Fórum Social Mundial funcionou como uma frente de gente de esquerda na qual os políticos participavam como convidados. Infelizmente, desde que o PT chegou ao poder, a ideia de foruns para discutir a esquerda foi praticamente abandonada. A não ser quando era para reunir os “capas-pretas”, a nomenklatura

da esquerda no poder. Não, o que proponho é um fórum onde qualquer cidadão possa se manifestar, não apenas militantes partidários, até porque não

é todo mundo de esquerda que gosta de militar em partidos. Eu mesma não gosto.

Em 2017 completam-se 100 anos da Revolução Russa. Não haverá nunca um momento tão oportuno para se debater a esquerda quanto esta data. Para rever erros e acertos. Para nos co-locar no mundo como protago-nistas. Para direcionar os holofotes sobre os novos nomes da esquer-da mundial. Para atrair os jovens, os negros, os índios, as mulheres, os LGBTs, os sem-terra, os traba-lhadores. Os políticos entrariam como participantes e não como os gestores destas discussões. Não

se trata de negar a política e os políticos, mas de tomar o protagonismo também para nós, eleitores.

O que proponho: um grande congresso de esquerda em 2017 no Brasil, com convidados inter-nacionais, políticos, intelectuais. Nossa gente. Quem sabe Bernie Sanders, o socialista dos EUA? E Jeremy Corbyn, o trabalhista inglês? Noam Chomsky, Pablo Iglesias, do Podemos... Os cineastas Michael Moore e Oliver Stone. É tanta gente boa que nem saberia por onde começar. Quem topa?

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“ UM FÓRUM ONDE

QUALQUER CIDADÃO POSSA SE MANIFESTAR,

NÃO APENAS MILITANTES

PARTIDÁRIOS“

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FRUTOS | A resistência pelo comum

A resistência por políticas comuns

O período em que vivemos pode ser re-conhecido como o de transformações mais rápidas e líquidas de todos os tempos. Não por acaso a sua produção

é incomensurável e os corpos políticos que estão inseridos dentro dela, podem ser incapazes de ver a centralidade do capital dentro da vida da juventude, da cidade e sua reação de resistência. A oposição fortemente mobilizada desse cenário, ocupando e tomando a cidade como morada, contradizendo o simples passar entre as coisas: escola, casa, trabalho e lazer. É falar de habitar/ser.

Avançar sobre essa política do todo que é comum diante de uma sociedade que foi seto-rizada em lutas é um desafio olímpico. O capital colonizou o meio ambiente, o corpo, a religião, a identidade e, por isso, é nosso dever lutar por con-cepções contra-hegemônicas dos direitos huma-nos, como afirma o sociólogo Boaventura Sousa

Santos (2013). Quais são nossas outras linguagens para os direitos humanos nos canais de resistên-cia das periferias do capital? Isso é um arranjo a ser conectado por esforços de lutas e insistência no debate do direito de ocupar. Confronto que ultrapassa as ruas e não se resume aos que vão às ruas. Reside aí um embate ético-político, cultural--religioso-identitário que será vivido no Brasil na centralidade periférica. Por outro lado, só se forjará uma resistência a esse sistema que abarca a todos se avançarmos sobre o além das coisas que se vê, ou seja, sobre o que não se vê. A dificuldade por grande parte do povo sobre a realidade das coisas mais complexas e cheias de conexões, gera uma sociedade que apela por violência diante de uma violência. É a visão individualizada e embrulhada.

A energia de ocupar uma cidade passa por um desejo comum, o ser. E, é no comum, uma das ontológicas figuras do ser que focalizo a reflexão.

por EDUARDO BRASILEIRO

A liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações. (David Harvey)

Eduardo Brasileiro, 25 anos, é bacharel em Sociologia e Política pela FESPSP e membro das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica em Itaquera, São Paulo, e está à disposição para qualquer ajuda.

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As possibilidades de lutas pelo comum vêm sen-do exaustivamente propostas pelas juventudes. Ao apontar em 2013 a disputa por transporte pú-blico com tarifa zero, ao lutar contra a Copa, as ma-nifestações das mulheres por direitos, as marchas contra as grandes mineradoras, a organização dos povos indígenas e agora, nacionalmente forte, as ocupações das escolas, reafirmam a postura de lu-tas comuns. O comum está no que não se vê mais.

O filósofo italiano Antônio Negri (2014), não por acaso, apresentou teses sobre o triunfo desse sistema em nossas sociedades com a formulação de um sujeito endividado, mediatizado, securitiza-do e representado. Segundo o autor, o endivida-do é o cidadão empobrecido e despontecializado de sua subjetividade. Mediatizado pode ser todo aquele cuja consciência é incluída ou absorvida na internet, que dá bandeiras patrocinadas e consu-mos alienantes. O securitizado é o fenômeno do vigia sobre tudo que concerne a nossa vida, corpo e sociedade, como uma sociedade prisional. E por fim, o representado é o que reconhece o colapso das es-truturas de representação, mas, incapaz de enxergar alternativas, é arremessado de volta ao medo.

O medo é explorado: a política institucional, mesmo que em crise de representação, se vê ainda surfando na bonança, por meio de sua manipula-ção popular. As suas garantias se dão ao crimina-lizar mais profundamente os movimentos popula-res, como o editorial do jornal Folha de S. Paulo que

em 13 de junho de 2013 clamava por “retomar as ruas”, isto é, tirar os manifestantes dela para que o fluxo “normal” dos carros motorizados e individu-ais retomasse a paisagem urbana. A criminalização da greve com o uso da lei antiterrorismo (2016) e a despolitização completa da informação gerando comentários bestiais diante de jovens que estão em luta. O que se vê é simplesmente a baderna potencializada por ideologias e a perda de senti-dos e valores.

Os coletivos de resistência precisam, ao re-tomar o comum, buscar um princípio: desmoronar o desejo colonial de unidade a qualquer custo, que encobre diferenças na política, na Igreja, nos movi-mentos e organizações. Essa intuição perpassa so-bre uma crítica aos limites da disputa pelo Estado realmente democrático. O Estado é uma instituição ocidental e sua gestão orienta historicamente a homogeneizar as políticas. É possível política parti-cipativa, protagonista, comunitária – para a conjun-ção de horizontes além da disputa eleitoral e parti-dária. Para assim, chegar à política do comum, que é onde se fortalece a participação nas decisões do que é público, – na política e na economia é preciso ir além e perceber que não é somente estatizar as coisas, mas torná-las comuns, seguindo as pistas da juventude que, ao “disputar” uma escola, quer de-bater o quanto os muros nos afastaram dela. Que-rem fazer da cidade uma casa realmente comum e ocupada por todas as pessoas.

Experimentar a política do comum é a re-sistência bela e apaixonante que muitos carregam no Brasil, hoje. Reinventando as práticas cotidianas de como moldamos e habitamos a cidade, para além dos mapas fixos, mas a partir das “artes de fazer” (e resistir) – o que não se vê no desejos e sonhos de nossos corações.

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“ EXPERIMENTAR A POLÍTICA

DO COMUM É A RESISTÊNCIA BELA E APAIXONANTE QUE

MUITOS CARREGAM NO BRASIL, HOJE.

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FRUTOS | A mídia não manipula

Por que somos manipulados se temos a internet?

A pergunta acima é, na verdade, a pergun-ta errada. A aplicação do termo “manipu-lação” pressupõe um vetor, uma lineari-dade da comunicação. A palavra não dá

conta do que é a experiência da mídia. Antes de nos questionarmos sobre manipulação é preciso que nos indaguemos sobre outra questão mais profunda: por que, afinal, nos comunicamos uns com os outros e pelas nossas mídias?

COMUNICAÇÃO E CORPONo final da década de 1960, o comunicólogo e jornalista alemão Harry Pross deu início a uma si-lenciosa revolução ao incluir o corpo nos estudos da Comunicação. “Toda comunicação começa no corpo e nele termina.” Esta sua frase implica uma radical mudança de pressupostos.

Ao trazermos o corpo para este papel fun-damental, optamos por um enfoque germinal. O corpo é anterior às categorias abstratas de “mente” ou “razão”. O corpo biológico, histórico e cultural não se reduz a um vetor, por isso derruba os con-

ceitos lineares de emissão e recepção. O corpo é um gerador de ambientes, e sua presença nos re-corda da nossa necessidade primordial de lançar vínculos com o mundo.

Mas o corpo é finito, limitado em espaço e tempo. Sua comunicação é efêmera. A própria consciência da morte nos coloca em uma jornada em busca da permanência. Criamos, então, veícu-los de comunicação da continuidade, o que Pross chama de mídias secundárias e terciárias: a escrita, a imagem eletrônica e digital, etc.

Há uma mudança de rumo nos estudos da mídia: entender comunicação não como conexão ou emissão de mensagens, mas como vinculação. Corpos narrativizam os entrelaçamentos que su-prem suas carências, e a materialidade dos meios de comunicação facilita a vinculação na busca da sua permanência por meio das grandes imagens que estes mesmos reverberam.

COMUNICAÇÃO E EMOÇÃO Com o corpo no momento germinal da comunica-

por TIAGO MOTA

Tiago Mota é jornalista, comunicólogo e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

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ção, afasta-se a crença da autonomia e da onipotên-cia da mídia. Qualquer análise primeira encontraria alguns indícios de manipulação nos conteúdos que nos chegam dos noticiários. Todavia, porque a “ma-nipulação” pressupõe um vetor linear de emissão e recepção, a palavra apenas descreve um sintoma de um processo mais complexo.

Desde o nascimento, nossas comunicações emergem das nossas primeiras carências: a fome, o frio, a dor, etc. Se enquanto bebês nós não nos vin-culássemos para suprir estas necessidades, morrería-mos. Temos a vocação de nos comunicar para que os outros nos preencham daquilo que nos falta.

Se nós nos vinculamos para suprir nossas carências, por muitas vezes lançamos de volta ao mundo também nossas ignorâncias e procuramos nele outras vozes que os corroborem. Na nossa bus-ca por permanência, as mídias – o grande outro – se tornam catalisadoras, portanto, destes sentimentos.

Um exemplo disso: o luto televisionado ao vivo para o mundo de Michael Jackson, em 2009. A partir deste episódio, o prof. Christoph Wulf, outro alemão, demonstra como as nossas mídias são efi-cazes na comunicação das emoções. Um agir ritual como o de um velório é poderoso em comunicar emoções e imagens (de vida e de morte, da passa-gem, do eterno, etc.) para aqueles que o comun-gam. Hoje, assim como em tempos antigos, a vida em sociedade é impossível sem estes rituais e suas emoções correlatas. Mas nossos rituais migraram dos espaços do culto para se tornarem midiáticos. Com

isso, uma mesma emoção pode ser globalizada e re-produzida em escala grandiosa. Do dia para noite, o mundo chorou a morte de Michael Jackson.

As tecnologias comunicacionais globalizadas são muito eficazes em trazer para a existência as coi-sas que elas próprias divulgam. Por mais controversa que tenha sido a figura de Michael Jackson, a emo-ção de luto comunicada pela mídia foi de tal maneira intensa de modo a nos atingir a todos.

A produção de imagens e notícias sobre a re-alidade não é instrumental e linear, como queremos crer. Ela é, sim, o princípio da geração do próprio real. Uma realidade tecida não pela nossa racionalidade, mas pelas nossas emoções, medos e carências. So-mos, de modo ambivalente, vítimas e agentes do nosso consumo midiático.

Este é um diagnóstico muito mais aterrori-zante do que o a da “manipulação”. Força-nos a pre-sumir que os espaços da mídia substituem, hoje, o espaço que já pertenceu à Igreja medieval. Quando consumimos mídia, não simplesmente recebemos conteúdos, mas tomamos parte em um culto, parti-lhamos destas emoções e esperamos que nossas mí-dias corroborem sempre para nossa visão de mundo. Ao passo que, do outro lado, não há um grupelho de porcos engravatados, mas pessoas que também partilham das mesmas paixões.

E-TOPIACom a internet, passamos a acreditar numa e-topia, segundo o Manuel Castells. A crença de que as re-des democratizam os discursos, quando, na verdade, tanto o acesso à internet quanto a produção de seus conteúdos também estão concentrados.

É imprudente falar em democratização quando nossas vozes geram riquezas para poucos grupos, como Facebook e Google. A internet está loteada e quase não é possível produzir trocas sim-bólicas e ser ouvido fora dos interesses privados destas empresas. Nossas vidas nas redes são um diário da cultura de consumo.

Além disso, quando entramos nas redes, ou quando consumimos mídias em geral, lá está co-nosco o próprio motivo pelo qual nos comunica-mos: nossas carências. Nesse ambiente emocional, a única democratização que existe é a da felicidade e do prazer individual. Nossa identidade pessoal depende dos espelhos que construímos, onde es-peramos encontrar aquilo que nos ofereça um lu-gar no mundo ao confirmar nossas crenças. Nossas interações na internet tendem a se tornar um culto ao indivíduo e ao consumo.

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O QUE É A CARTA CIDADANISTA?A CARTA CIDADANISTA é o documento que identifica a RAiZ - Movimento Cidadanista, que apresenta suas raízes filosóficas e seus principais objetivos. Foi escrita por muitas mãos, e traz a sua mensagem de otimismo e determinação a todos os brasileiros e brasileiras, de todas as idades, regiões, crenças e etnias.

É um manifesto de coragem e de fé em um futuro que acreditamos possível, e pelo qual vale a pena lutar com todas as forças, pois trata-se do nosso futuro, fu-turo dos nossos filhos e netos, e futuro do próprio planeta em que vivemos, e sua maravilhosa diversidade natural, que mal conhecemos e já está sendo destruída.

UBUNTU“Eu sou porque você é”, “nós somos porque você é e eu sou”. Importante é a dignidade de todas as pessoas.

TEKO PORÃSomos “parte” da natureza e, para nossa própria sobrevivência como es-pécie, há que romper de uma vez por todas com a ideia de que podemos continuar vivendo “à parte” da natureza.

ECOSSOCIALISMONão temos o direito de seguir roubando o futuro dos que estão por vir. Para reverter este processo, o único caminho é a Revolução Ecológica.

LEIA A CARTA NA ÍNTEGRA EM RAIZ.ORG.BR

movimento cidadanista

DENTRO DA RAIZ 75_Carta cidadanista76_Como participar da RAIZ77_Como entrar nos Círculos78_Diálogos: se tornar partido ou não79_Enraizados com a palavra

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DENTRO DA RAIZ | Conheça a RAIZ

COMO PARTICIPAR DA RAIZ CIDADANISTAVamos SEMEAR e CULTIVAR um novo Brasil!

Você pode conhecer e participar da RAIZ de várias formas. Basta se cadastrar em raiz.org.br para começar a receber nossos informes e agenda de ativi-dades. Também é possível participar das discussões em nossos círculos nas redes sociais no Facebook ou em outros foruns de debate criados por cada círculo. Ao se cadastrar como visitante você recebe as instruções para partici-par desses grupos.

Caso queira participar das reuniões presenciais, basta se informar onde serão realizados nossos Círculos Cidadanistas. Os Círculos são as instâncias delibe-rativas da RAIZ e já existem diversos em todo o país.

Ainda é possível, a participação nas reuniões virtuais na nossa Teia Digital. Para fazer parte da Teia Digital, você precisa se cadastrar como colaborador ou pré-filiado pelo nosso site. Como PRÉ-FILIADO ou como COLABORADOR poderá participar dos Círculos Cidadanistas, com pleno direito de voz e voto no âmbito dos debates, exercendo assim sua cidadania com protagonismo.

MAIS INFORMAÇÕES EM RAIZ.ORG.BR

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COMO PARTICIPAR DOS CÍRCULOSPartido-Movimento é constituído por Círculos autônomos e protagonistas, que se inter-relacionam uns com os outros, igualmente de forma autônoma e democrática. Círculos são unidades de participação e respeito à diferença e à construção do comum. Círculos temáticos (reforma urbana, política de drogas, ambientalismo, etc.), territoriais (por estados, cidades, bairros, co-munidades, escolas, universidades, locais de trabalho) ou identitários (LGBT, indígenas, jovens, etc.).

Os Círculos que se cruzam numa rede sem hierarquia que, por meio do méto-do dialógico, constroem unidades de pensamento e ação. Garantem a integri-dade de cada participante e não necessitam forjar sua força como maioria que esmaga o divergente, ou aquele que ainda não se convenceu plenamente da melhor solução. Efetivamente, os Círculos pretendem formar uma estrutura la-cunar, em edificação constante, num consenso progressivamente construído. Basta ter a iniciativa de criar um Círculo e juntar pessoas para que ele seja criado.

PARA PARTICIPAR DE ALGUM CÍRCULO ACESSE RAIZ.ORG.BR

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Ronaldo Fabiano é Coordenador-geral da RAIZ.

DENTRO DA RAIZ | Conheça a RAIZ

Legalização da RAIZ x Reforma PolíticaA proliferação de partidos políticos chegou ao limite que enseja algumas medidas saneadoras, não sob o ponto de vista ideológico, mas sob o ponto de vista institucional. Muitos partidos foram criados para gerar receita a pequenos grupos sem nenhum diferencial ideoló-gico. Por menor que seja uma represen-tação partidária, nós temos que respeitar o ideário dessa minoria, que enriquece o debate e sedimenta o processo demo-crático. Dentro desse contexto se insere a RAiZ, uma organização política com ideários pautados no cidadanismo plu-ral. Não visualizamos a reforma política como uma barreira intransponível mas como um obstáculo, um processo de adaptação circunstancial no cenário po-lítico partidário. Para nós é uma oportu-nidade a debater e dialogar com outros partidos de igual porte, sobre o futuro desse país, em diversos temas. Existe um espaço a ser ocupado hoje no cenário Político Partidário, o resultado das elei-ções para prefeito sinalizou essa tendên-cia com os aproximadamente 40 milhões de votos no chamado “ninguém” ( votos brancos, nulos e abstenção), é um dado importante e visualizamos como uma oportunidade.

Tenho conversado com outros partidos em formação (denominação dada pelo TSE aos partidos que ainda

não atingiram o número de apoiamento mínimo de assinaturas para o registro de-finitivo) e tenho observado a TSE do “der-rotismo” exatamente ao contrário do que pensamos na RAiZ.

Quanto ao cronograma de im-plantação da nova reforma política es-peramos algumas medidas para o se-gundo semestre de 2017, e teremos que nos adaptar através dos debates interno e externo.

A RAiZ, a partir de novembro/16, tem 18 meses para conseguir certificar 487 mil assinaturas de apoiamento de eleitores, no mínimo em nove estados. Estamos em movimentação para iniciar a coleta em 16 a 19 estados - RS, PR, SP, RJ, SC, MS, AC, BA, AL, RN, PB, CE, PA, AM, PI, SE, PE, AP, MG. A meta legal é atingível e é evidente que temos alguns ajustes a fa-zer internamente nas áreas operacionais, mas já estão em curso.

Creio que a grande estratégia será a teoria da “de grão em grão a galinha enche o papo”. Cada um dos pré-filiados se empodera de suas próprias metas em seus Círculos de amizade e trabalho, e faz o “corpo a corpo” , pois há fatores inegáveis no cenário. A oportunidade de demandar um partido cidadanista “leve”, acolhedor, compatível com o ideário da RAiZ.

É um desafio!

Diálogos Temas em debate dentro da Teia Digital da RAIZ que viram artigos na Cidadanista

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Gilberto da Silva é enraizado e participa do Círculo Sampa.

EU SOU RAIZ!

A RAIZ surgiu como uma alternativa a uma militância que foi ignorada pelos partidos tradicionais, sua forma horizontal de organização. A Carta Cidadanista sintetiza novos e contemporâneos desafios para a busca do bem viver, o ecossocialismo e viver o ubuntu nas relações pessoais e políticas. Construir um novo “cidadanismo” é um desafio enorme, mas extremamente necessário. Estamos vivendo um período em que as forças conservadores estão em ascendo. Veja o caso da cláusula de barreiras que tenta impor dificuldades aos partidos com menor representatividade no Congresso. É o tipo de lei que “não mata, deixa morrer”. Caso a nova PEC seja aprovada, será necessário, para ter representação no Congresso, que os partidos alcancem, nas eleições de 2018, 2% dos votos válidos apurados nacionalmente, espalhados em 14 estados. Talvez tenhamos que estabelecer novas conexões com novos grupos e movimentos. O movimento contra novos partidos é muito forte e temos que combater esta visão. Precisamos construir uma nova linguagem política, uma linguagem revolucionária e atenta às demandas populares, e essa linguagem deve ser construída em harmonia e sintonia com os movimentos. Para aqueles que não querem nem estar na vanguarda dos movimentos sociais e nem na retaguarda, mas sim ao lado, juntos e solidários aos movimentos, a RAIZ é o caminho nesse momento. Convido todas as pessoas que desejam construir uma sociedade transformadora e torná-la mais humana, ética, solidária, inclusiva, justa, democrática e sustentável, que nutrem o desejo da mudança que conheçam e participem do nosso movimento.

Enraizados Os cidadxs que participam do partido movimento falamporque participam da RAIZ

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Enraizados Os cidadxs que participam do partido movimento falamporque participam da RAIZ Airton Francisco é enraizado

e coordenador de comunicação

EU SOU RAIZ!

Existem diversos partidos hoje em nosso país, e na esquerda dentro de alguns partidos diversas correntes, mas foi na RAiZ - Movimento Cidadanista que encontrei uma forma de ver o Brasil e o mundo e uma proposta concreta de encaminhamento para resolver os problemas que enfrentamos que foi além do convencimento intelectual, foi o encantamento com a proposta. Foi verificar que para além das análises havia a preocupação com o humano, através do resgate das tradições e culturas milenares dos povos africanos, ameríndios, além de resgatar o ecossocialismo. O ubuntu, eu sou porque nós somos, O teko porã, a cultura do bem viver, o ecossocialismo, contra o consumismo, que vai além da simples conservação da natureza, mostrando que é necessária uma mudança radical da sociedade, mas com uma nova forma de fazer política, através de frentes cidadãs, com os movimentos populares, democracia direta, com mandatos coletivos. É uma grande mudança, que só será feita com a participação da população, de forma cidadã, e esta é a proposta da RAiZ, que inclusive em sua estrutura interna de partido-movimento aplica o que prega, a horizontalidade, o consenso progressivo, a construção de baixo para cima. Não é simples, dá trabalho, mas vale a pena, pois a construção de algo novo leva tempo, muito tempo. Quem planta tâmaras, não colhe tâmaras, mas alguém vai colher.”

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Temos 35 partidos

no país. Qual

te representa?

CONHEÇA A RAIZ MOVIMENTO CIDADANISTA

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