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ÍNDICE I. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 1 1.1. OBJECTIVOS DO TRABALHO ..................................................................... 2 1.2. METODOLOGIA............................................................................................. 2 1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO ..................................................................... 3 II. ENQUADRAMENTO TEÓRICO……………………………………………..5 III. DO CONTO ORAL AO CONTO ESCRITO .................................................. 8 3.1. A TRANSMISSÃO ORAL E A LITERATURA TRADICIONAL ................ 8 3.2. O CIRCUITO COMUNICATIVO E A ANONÍMIA .................................... 10 3.3. OS CICLOS TEMÁTICOS E A TIPOLOGIA DE CONTOS ....................... 12 3.3.1. OS CICLOS TEMÁTICOS ........................................................................ 12 3.3.2. TIPOLOGIAS DE CONTOS ...................................................................... 13 IV. A RECRIAÇÃO DO CONTO BLIMUNDO ................................................. 16 4.1. O CONCEITO DE CONTO…………………………………………………16 4.2. ORIGEM TEMÁTICA DO CONTO ............................................................. 19 4.3. A ESTRUTURA DO CONTO ....................................................................... 21 4.4. OS PROCESSOS DE RECRIAÇÃO DA NARRATIVA…………………...25 V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 38 VI. BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 41 ANEXOS

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Page 1: ANTÓNIO SANTOS DA LUZ - portaldoconhecimento.gov.cv · Roland Barthes e Greimas em modelo de análise actancial, destacando as ... ao modelo proppiano de análise estrutural da narrativa,

ÍNDICE

I. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 1

1.1. OBJECTIVOS DO TRABALHO ..................................................................... 2

1.2. METODOLOGIA ............................................................................................. 2

1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO ..................................................................... 3

II. ENQUADRAMENTO TEÓRICO……………………………………………..5

III. DO CONTO ORAL AO CONTO ESCRITO .................................................. 8

3.1. A TRANSMISSÃO ORAL E A LITERATURA TRADICIONAL ................ 8

3.2. O CIRCUITO COMUNICATIVO E A ANONÍMIA .................................... 10

3.3. OS CICLOS TEMÁTICOS E A TIPOLOGIA DE CONTOS ....................... 12

3.3.1. OS CICLOS TEMÁTICOS ........................................................................ 12

3.3.2. TIPOLOGIAS DE CONTOS ...................................................................... 13

IV. A RECRIAÇÃO DO CONTO BLIMUNDO ................................................. 16

4.1. O CONCEITO DE CONTO…………………………………………………16

4.2. ORIGEM TEMÁTICA DO CONTO ............................................................. 19

4.3. A ESTRUTURA DO CONTO ....................................................................... 21

4.4. OS PROCESSOS DE RECRIAÇÃO DA NARRATIVA…………………...25

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 38

VI. BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 41

ANEXOS

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I. INTRODUÇÃO

O conto popular BLIMUNDO: do texto oral ao texto escrito, é o tema que

escolhemos para construir o nosso trabalho de fim de curso, uma exigência académica

que coroa uma longa etapa de estudos e de vida académica.

Com esta proposta de tema, que ora se apresenta, não se almeja outra coisa a não

ser desenvolver uma leitura analítico-interpretativa da versão escrita do conto popular

BLIMUNDO, publicado em 1999, pelo artista plástico sãovicentino Leão Lopes,

visando compreender não só o percurso que descreveu até à actualidade, na forma de

texto oral, mas também as transformações de que foi objecto ao se transferir para a

forma escrita. De entre as várias versões deste conto que se conhecem, sobretudo orais

ou oralizantes, fez-se uma clara opção pela versão escrita que se justifica por se investir

de pretensões literárias.

Deste modo, e a fundamentar-se esta hipótese, este trabalho opta por desenvolver

uma análise estrutural da narrativa, destacando as componentes diegéticas sobre as quais

se estrutura e se organiza e os mecanismos e processos de recriação da diegese.

Partindo da concepção genológica de texto, tentar-se-á enquadrar o conto no

quadro da relação do binómio literatura oral e literatura escrita, procurando discutir as

fontes ainda que remotas deste texto, e problematizar as modalidades de transmissão e

difusão que lhe permitiram alcançar a actualidade uma vez que se integra na narrativa

oral cabo-verdiana, um importante campo de interpenetração cultural.

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1.1. OBJECTIVOS DO TRABALHO

A partir da definição da proposta de tema, desenharam-se alguns objectivos que se

propõem alcançar, ao longo do desenvolvimento deste trabalho de pesquisa que, entre

outros, se centram nos seguintes:

i. tentar o enquadramento do conto popular Blimundo no domínio da literatura

oral e da literatura escrita;

ii. discutir a narrativa oral cabo-verdiana enquanto campo de interpenetração

cultural;

iii. apresentar uma proposta de leitura analítico-interpretativa do conto a partir da

aplicação do modelo de análise estrutural proposta por Propp e reelaborada por

Roland Barthes e Greimas em modelo de análise actancial, destacando as

componentes diegéticas sobre as quais se estrutura e se organiza e os

mecanismos e processos de recriação da história.

1.2. METODOLOGIA

A leitura analítico-interpretativa de um texto impõe ao estudioso o recurso a

métodos específicos de abordagem textual e literária em função da natureza do estudo

que pretende levar a efeito. Neste sentido, uma narrativa de transmissão oral exige uma

abordagem estrutural a partir das formulações teóricas proppianas e post proppianas

enunciadas na fundamentação teórica.

A aplicação do modelo de analise impõe a observação de determinados requisitos

que se traduzem em:

i. escolha do texto objecto de análise - versão escrita do conto popular intitulado

Blimundo, recriado por Leão Lopes;

ii. construção da bibliografia de suporte teórico atinente à fundamentação e ao

enquadramento conceptual da pesquisa;

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iii. construção do quadro teórico referencial;

iv. aplicação ao texto do modelo de análise estrutural proppiano.

1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO

Este trabalho encontra-se estruturado em cinco capítulos, correspondendo

cada um aos diferentes aspectos que este trabalho desenvolve.

Capitulo I: corresponde à Introdução do trabalho onde se podem apreciar a

apresentação e a justificação da escolha do tema, se definem os objectivos, a

metodologia seguida e se apresenta a organização interna do trabalho.

Capítulo II: constrói a Fundamentação Teórica onde se conceptualizam e se

discutem os pressupostos teórico-metodológicos sobre os quais assenta o

desenvolvimento do tema. Sobre o eixo teórico repousam os princípios inerentes

ao modelo proppiano de análise estrutural da narrativa, destacando algumas das

componentes diegéticas sobre as quais se estrutura e se organiza, sobretudo a

categoria personagem, e os mecanismos e processos de recriação da diegese.

Capítulo III – intitulado Do Conto Oral ao Conto Escrito propõe uma definição

do conceito de conto, clarificar as circunstâncias que presidem à sua elaboração e

reflectir sobre o seu circuito específico de transmissão, no quadro do circuito

comunicativo, bem como a noção de autoria anónima e/ou colectiva das narrativas

populares. A partir do conceito de Literatura Tradicional problematizam-se as

origens genéticas do conto, a tipologia de contos e os ciclos temáticos.

Capítulo IV – este momento da pesquisa, de carácter mais prático, centra-se em A

Recriação do Conto Blimundo e desenvolve uma leitura sobre o texto em estudo

pela reconstituição dos processos de recriação da narrativa. Partindo da origem

temática do conto e da reconstituição do protagonista da história, a figura possante

do boi Blimundo, analisa-se a organização funcional da narrativa, restabelecendo

algumas das categorias diegéticas.

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Capítulo V – apresenta algumas Considerações Finais decorrentes das reflexões

e da leitura textual realizada para além de enunciar alguns caminhos a desbravar

futuramente em outros trabalhos sobre as narrativas orais cabo-verdianas.

Capítulo VI – reúne a Bibliografia que serviu de suporte teórico, literário e

metodológico ao trabalho. Organizada em bibliografia activa – textos referenciais

objecto de uma análise mais aturada – e passiva que engloba os estudos críticos e

literários utilizados.

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II. ENQUADRAMENTO /FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A importância do estudo do conto popular repousa em dois aspectos essenciais.

Se, por um lado, o conto popular partilha das mesmas características que o conto

literário consagrado, por outro, constitui uma modalidade específica de discurso, que

merece a atenção dos estudiosos da literatura, já que encerra em si a alusão explícita à

fonte responsável pela sua produção e às formas especificas de transmissão e difusão.

Deste modo, a leitura e a compreensão deste subconjunto particular de textos

narrativos (não literários) passam necessariamente pela discussão do funcionamento do

circuito comunicativo tendo em consideração que a instância que detém o estatuto de

emissor, o povo, é “ um ser colectivo, preferencialmente situado num espaço rural

periférico, pouco permeável a contaminações urbanas”1. Trata-se de um conceito em

torno do qual se concentram fortes divergências conceptuais e, que no quadro da

comunicação literária, recoloca não só a questão da anonímia (uma espécie de sujeito

colectivo anónimo), como a das divergentes recepções literárias.

Legitimado pela comunidade onde circula, que se encarrega de o (re) emitir, o

conto popular, juntamente com outras formas de manifestação de um povo, faz parte da

literatura tradicional de transmissão oral.2 Neste âmbito, importa delimitar os

contornos do conceito de literatura tradicional e (re) estabelecer as articulações

possíveis com a noção de tradição, segundo a perspectiva adoptada por Roman

1 Reis, Carlos, Dicionário de Narratologia, p.83 2 Literatura tradicional de transmissão oral é uma designação polémica que encerra em si um princípio paradoxal, que

tem feito correr muita tinta no domínio dos estudos literários, construída à luz da dicotomia escrita/oralidade.

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Jakobson3, ao analisar a relação tradição-interprete, forjando uma analogia com a

conhecida dicotomia saussuriana língua/fala a partir da qual se concebe a existência de

versões ou variantes de um mesmo conto-tipo.

A expressão conto popular recobre um vasto conjunto de narrativas bastante

diversificadas do ponto de vista temático o que tem suscitado várias propostas de

classificação de tipos de conto: contos maravilhosos ou de encantamento, contos de

exemplo, contos de animais, contos religiosos, entre outros. A propósito destes ciclos

temáticos que estão representados em múltiplas áreas geo-culturais, Carlos Reis4 avança

que, embora não exista uma teoria concludente sobre a origem desse tipo particular de

texto, a ocorrência de “ uma espécie de fundo arquetípico universal”, é de se admitir

que:

Do ponto de vista histórico, os contos populares constituem resíduos de

crenças e mitos primitivos que se foram progressivamente adaptando a novos

cenários culturais;

Se assiste, hoje, à procura do perfil matricial do conto popular (o que, desde

logo, dilui a importância do estudo das origens do conto).

Nesta procura da construção de uma matriz estrutural do conto pular, ressalvam-se

os trabalhos de Vladmir Propp5, na sua conhecida obra intitulada Morfologia do Conto,

que teve o mérito de propor uma descrição da estruturação dos contos, segundo as

componentes em que se organizam e das relações que estas partes mantêm entre si e

com o todo, introduzindo nos estudos de narratologia uma modalidade de análise

designada por análise estrutural.6

A análise estrutural é norteada pelos seguintes princípios: a concepção do texto

literário como um todo acabado e a noção de relativização que afecta os seus

componentes, isto é, baseando-se em categorias teóricas específicas, procura descortinar

3 Apud Reis, Carlos, Dicionário de Narratologia, p.83 4 Ibid. p. 85 5 Muito embora o pioneirismo se tenha ficado a dever a Joseph Bédier que, procurou definir a essência orgânica dos contos, a sua forma prototípica. 6 Esta modalidade de análise proposta por Propp foi posteriormente retomada e alargada por vários teóricos como Roland Barthes, em 1966, com o seu modelo de análise funcional, com Philipp Hamon e Greimas, com o modelo actancial, entre outros.

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as relações que os seus componentes entre si sustentam. O que quer dizer que tudo no

texto literário é relativo, não podendo ser isolado do que o rodeia.

Segundo o estruturalismo proppiano, o texto é uma “estrutura em que as partes

estabelecem relações dinâmicas entre si, dotadas de carácter sistémico e, como tal,

desempenham funções específicas, assim, a ausência ou desvalorização desses

elementos é susceptível de pôr em causa o equilíbrio e a estabilidade de toda a obra”,

por isso não pode ser estudado por parcelas mas como um todo visto que o texto

literário não é uma soma de elementos ligados uns aos outros de uma forma

desorganizada, mas um tecido com uma estrutura linear em que os acontecimentos

narrados parecem ordenados segundo um fio condutor adoptado pelo autor com o

objectivo de atingir um determinado fim.

A proposta da análise estrutural dos contos de transmissão oral edificada por

Propp consiste na constituição e leitura de um corpus textual 7 e na identificação de um

conjunto restrito de elementos invariantes – as funções – que se (re) combinam de

forma idêntica, numa ordem rígida de sucessão cronológica. A estrutura do conto

decorre deste conjunto de elementos solidários e interligados. Tais funções estão

repartidas por sete esferas de acção inerentes a sete personagens-tipo.

A evolução deste modelo de análise conduziu-nos à gramática da narrativa, um

tipo de abordagem que privilegia o plano da história em detrimento do discurso, seja na

perspectiva funcional, proveniente de Propp e reelaborada por Barthes, seja na

perspectiva sequencial.

7 Propp analisou um corpus constituído por cem contos maravilhosos russos.

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III. DO CONTO ORAL AO CONTO ESCRITO

3.1. A TRANSMISSÃO ORAL E A LITERATURA TRADICIONAL

Os textos orais apresentam um carácter efémero e fugaz. A palavra falada está

sujeita a modificações por não se inscrever num espaço de fixação e a linguagem

realizada oralmente submeter-se à dinâmica temporal, por isso estes textos têm a

particularidade de se alterar com o tempo, adequando-se às necessidades, desejos e

anseios das comunidades que os vão (re) actualizando segundo as conjunturas e as

circunstâncias. Para além de que, os sujeitos individuais têm a natural tendência para

adulterar a sua substância a favor das suas necessidades comunicativas.

Se bem que o estudioso da narratologia Carlos Reis8 é de opinião que os

conteúdos da literatura de expressão oral têm permanecido ao longo dos tempos, dado

que a comunidade tem desempenhado um importante papel na preservação desse

património cultural, transmitindo-o de geração em geração. A sua perenidade deve-se ao

facto de retratarem os grandes problemas não só do homem antigo, como também os

problemas que continuam a acompanhar o homem de hoje e de sempre: a luta pela

autonomia, a rivalidade com as figuras parentais, a rivalidade fraterna, a construção

de uma identidade adulta, a solidão do homem na terra, a realidade trágica e, por

vezes, cruel das relações humanas.

8 Reis, Carlos e Cristina Lopes, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 1987, p.83

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Um outro estudioso da tradição oral africana, Lourenço do Rosário9, confirma que

as narrativas de tradição oral são o reservatório de valores culturais de uma comunidade

com raízes e personalidade regionais muitas vezes perdidas na amálgama da

modernidade. A narrativa funciona igualmente como um dos principais veículos de

transmissão do conhecimento, mantendo a ligação entre as gerações de uma mesma

comunidade.

Ao considerar a situação da oralidade nas narrativas africanas, aceita-as como um

dos mais poderosos meios pedagógicos. O seu funcionamento como tal estabelece-se em

torno de dois níveis que impõem duas funções: i) a função de nível explícito – através da

narrativa, a memorização torna-se mais fácil em função da curiosidade e do prazer. Deste

modo, a aprendizagem e a compreensão realizam-se de forma rápida e o acto de ensinar

torna-se fácil; ii) a função de nível implícito – em que a narrativa não é um simples

instrumento metodológico de transmissão de conhecimentos, ela transporta em si própria,

através da exemplaridade, o próprio objecto de ensinamento que se quer transmitir.

De um outro ângulo, discute-se o carácter universal das narrativas de transmissão

oral. A bem de verdade, todo o indivíduo a quem se endereça uma narrativa, está apto a

compreender que os conflitos apresentados na intriga podem perfeitamente ter lugar no

próprio universo do grupo de que faz parte. São ao mesmo tempo, e em qualquer lugar, um

grande ponto de interrogação sobre os problemas com que o indivíduo se defronta no dia-

a-dia na sua sociedade. Ao mesmo tempo, todos os elementos da comunidade percebem

que os conflitos veiculados pelas narrativas representam um universo simbólico, o que lhes

permite criar a distinção necessária para a reflexão.

Como actos de cultura e especificamente de criação as narrativas de expressão oral

são formas literárias transmitidas pelo sistema verbal oral. Embora não se conteste a

invasão do universo das narrativas pelo mundo real (que é inevitável), Rosário considera

que tal facto não permite concluir que se possa estabelecer uma relação imediata entre os

ingredientes do mundo real e a própria realidade. Por outras palavras, as narrativas orais

não serão propriamente fontes documentais de carácter histórico nem sociológico. A

dimensão histórica aparece nelas como um desfasamento entre a narração presente, que se

socorre de alguns elementos do real quotidiano, e um contexto etnológico ausente,

9 Rosário, Lourenço J. da Costa. A Narrativa Africana de Expressão Oral, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, (ICALP) 1ª ed. 1989.

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longínquo, fabuloso ou, até sobrenatural. Não há uma referenciação de um contexto actual,

nem mesmo uma actualização de situações socialmente conhecidas, daí a passagem para o

mundo simbólico dos ingredientes «realistas». No entanto, é certo que a compreensão do

sentido das narrativas ou a correcta interpretação da simbologia dos seus elementos só é

possível desde que se conheça a geografia a história, os hábitos sociais, económicos,

culturais e morais da comunidade que as produz.

3.2. O CIRCUITO COMUNICATIVO E A ANONÍMIA

Tudo o que os seres humanos fazem no seu dia a dia envolve a comunicação, ou

seja, não convivem com seu semelhante sem se comunicar, pelo que só é possível viver

em grupos sociais, comunicando.

A ideia de que todas as coisas que o homem faz são construídas com o objectivo de

comunicar com os outros, com a intenção de comunicar, de dividir os sus sentimentos

com o semelhante, é realçada por Aguiar e Silva10

para quem todo o comportamento do

homem é um comportamento sígnico e (…) todo o fenómeno artístico constitui um

peculiar fenómeno comunicativo.

O processo comunicativo tem merecido desde há muito tempo a atenção de alguns

estudiosos, apesar de não existir consenso entre eles. Eric Buyssens, citado por Aguiar e

Silva11

, assinalou, desde 1943, que o objectivo da disciplina científica que designa por

Semiologia, é o estudo dos processos de comunicação, dos sinais convencionais,

voluntários, intencionais, de carácter social. Buyssens abre a polémica em torno desta

questão, ao pretender defender uma concepção restritiva da comunicação que remete para

um plano secundário os fenómenos de significação. No pólo oposto surge Roland

Barthes que se distancia desta visão ao defender a semiologia da significação como o

domínio de investigação que estuda os fenómenos que não constituem formas de

comunicação voluntária e intencional, ao sublinhar o facto de que muitos sistemas

semiólogicos se constituem mesmo em objecto de uso cuja razão originária de ser não

reside na significação, mas que sofrem, no âmbito social, um processo de semantização,

o mesmo é dizer, de ressignificação. O teórico italiano Umberto Eco solucionou este

problema de semiótica da significação e da semiótica da comunicação de uma forma

10 Aguiar e Silva, Victor. Teoria da Literatura, 8ª edição, Coimbra, 1978 11 In op cit. p. 186

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coerente. Segundo ele, é teoricamente possível estabelecer uma semiótica da significação

independentemente de uma semiótica da comunicação, mas não será possível o inverso.

Para Buyssens e Prieto e outros autores, o fenómeno da comunicação só ocorre quando

um emissor produz voluntariamente e intencionalmente sinais, com o objectivo de

influenciar o receptor.

Sabemos já que nem todas as artes têm o mesmo estatuto comunicacional, e esta

diferenciação funda-se na natureza diversa dos signos constituintes do sistema semiótico

de cada arte, na heterogeneidade dos códigos, dos canais, dos mecanismos de recepção e

dos factores pragmáticos actuantes em cada arte.

A literatura ocupa necessariamente uma posição privilegiada entre todas as artes

devido à sua essencial solidariedade semiótica com o sistema da comunicação por

excelência de que dispõem os seres humanos – a linguagem verbal.

Há muito que Roman Jakobson assegurava que, para que houvesse a comunicação

verbal, pressupunha-se necessariamente a interacção de seis «factores inalienáveis» que

esquematizou da seguinte forma:

Contexto

Emissor………………….Mensagem………….……Destinatário

Contacto

Código

Para este teórico, a comunicação oral é uma comunicação próxima e instantânea, e

realiza-se na presença dos interlocutores; é bidireccional, pois o emissor e receptor

podem assumir alternadamente a função um do outro durante o mesmo acto

comunicativo, ambos os interlocutores imitem e recebem informações alternadamente.

Aguiar e Silva reforça esta ideia, ao afirmar que o processo comunicativo entre o emissor

e o receptor realiza-se in presentia de ambos e in presentia de um determinado contexto

de situação.

De entre as várias formas de comunicação, a nossa atenção centra-se na

comunicação literária uma vez que o conto literário, escrito por um autor, se manifesta

através da comunicação literária, pese embora o facto de, na sua primitiva forma, o

conto popular fosse transmitido oralmente, de geração em geração. Assumindo a

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comunicação literária como unidireccional, nela não é possível a reversibilidade das

funções do emissor e do receptor, o receptor e o emissor não trocam de papéis durante o

acto comunicativo. É uma comunicação do tipo disjuntivo e do tipo diferido, isto é,

realiza-se in absentia de uma das instâncias - o emissor e receptor - e num lapso

temporal de maior ou menor amplitude entre o momento de emissão e os momentos de

recepção. Aguiar e Silva12

teoriza o processo comunicativo e apresenta-o como

funcionalmente defectivo, isto é, como um processo em que a instância emissora e a

instancia receptora não se encontram co-presentes fisicamente e em que, por

conseguinte, não podem ser esclarecidos e solucionados in pesentia de ambas as

dificuldades e os distúrbios porventura ocorridos no acto comunicativo.

Relativamente à propriedade autoral, ela não pode ser atribuída a um único criador, mas a

toda uma comunidade. Neste sentido, a instância emissora difere do conto literário escrito, em

que a entidade responsável pela enunciação se define intratextualmente bem como a instância a

quem endereça a mensagem literária.

É Carlos Reis quem afirma que “( …) é bem mais complexo o estatuto do emissor do conto

popular, na medida em que estas narrativas são discursos anónimos, legitimados pela comunidade em que

circulam.”13

3.3. OS CICLOS TEMÁTICOS E A TIPOLOGIA DE CONTOS

3.3.1. OS CICLOS TEMÁTICOS

Porque não existe uma relação directa entre o conto e a realidade, torna-se difícil

indicar os temas absorvidos pelas narrativas que os contos configuram. Na verdade,

apresentam-se relacionados com épocas históricas e com particulares momentos

vivenciais. Os contos são recriados de acordo com os contextos socio-culturais e com as

exigências de cada época. Daí a diversidade de temas que apresentam. De um lado,

figuras humanas, como heróis ou anti-heróis; do outro, aspectos da vivência social:

religiosidade, aventuras, casos de amor; outras envolvem animais, o que representa, de

certo modo, a maneira como as comunidades convivem com estes seres: ora exaltando-

os, como é o caso do boi «Blimundo» que, além de protagonizar a história narrada no

12 Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, (8ª edição), Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p.198 13

Reis, Carlos, op cit p 84

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conto em estudo, confere-lhe o título por que é conhecido, ora envolvendo-os em lendas

que os põem em confronto com os seres humanos ou humanizados, como é caso de

muitas “estórias” de Lobo e Chibinho que fazem parte do imaginário popular cabo-

verdiano e do seu património cultural.

Os contos, ao serem transportados de região para região, sofrem adaptações ou

reformulações que os adequam ao novo ambiente; as personagens passam por

transformações, ganham novas figurações; a própria história altera-se de modo a

condizer com a nova situação criada pela mudança do meio ecológico, social e cultural,

ou em função do processo de construção em curso de novos espaços sociais.

3.3.2. TIPOLOGIAS DE CONTOS

Muito tem sido as classificações a respeito do conto, se bem que não exista

consenso entre os autores no que diz respeito à classificação deste tipo de texto.

A classificação elaborada por Aarne/Thompson divide os contos segundo

unidades temáticas, ou seja, a identificação de cada conto baseia-se no tipo de enredo e

no tipo de personagem que encerra.

A classificação de Antti Aarne e Thompson é a seguinte: i) Histórias de Animais

(Animal Tales); ii) Contos populares comuns (Ordinary Folktales); iii) Pilhérias e

Anedotas (Jokes and Anedotes); iv) Contos de Mentiras (Tales of Lying); v) Contos

Acumulativos ou de Repetição (formula Tales); vi) Contos não-classificados

(Unclassified Tales).

Para Propp, antes de se fazer qualquer estudo sobre o conto (estabelecer teses

sobre a origem dos contos e determinar tipos de contos), é preciso, em primeiro lugar,

descrevê-los, conhecer a sua estrutura. Com base neste princípio, Propp rejeita as

classificações que dividem os contos em: histórias fantásticas, histórias tomadas da

vida quotidiana e histórias de animais (de U. F. Miller). Ou as que tentam dividi-los por

assuntos – contos de animais, contos propriamente ditos, contos jocosos – (de Antti

Aarne), sem especificar, na verdade, o que é assunto e o que é variação de um assunto,

de forma a possibilitar o enquadramento de um conto em mais de um tipo.

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A uniformidade específica do conto não se explica, pois, segundo Propp, por

temas (Antti Aarne), por motivos (Veselovski), por assuntos (Volkov), ainda que eles se

repitam, mas por unidades estruturais em torno das quais estes elementos se agrupam.

Propp acredita que todas as classificações estariam inconscientemente baseadas

na «estrutura» do conto, quando esta não teria sido sequer definida, não se traduzindo

em sistemas de signos formais como o fazem outras ciências. Assim, a divisão dos

contos maravilhosos por «temas» resultaria absolutamente impossível em virtude

mesmo da lei de permutabilidade vigente, segundo a qual «as partes constitutivas de um

conto podem ser transportados para outro conto sem mudança alguma, o que torna falso

a premissa que considera cada tema como um todo orgânico, independente em si

mesmo.

Propp procede à descrição do conto segundo as partes que o constituem e

segundo as relações destas partes entre si e destas partes com o conjunto do conto.

Partindo da análise da acção das personagens, destacam-se as acções constantes a que

ele chama de funções. Podemos observar que as personagens dos contos fantásticos, ao

mesmo tempo que permanecem muito diferentes na sua aparência, idade, sexo, género

de preocupação, estado civil e outros estados estáticos e atributivos, realizam, ao longo

da acção, os mesmos actos. Isto determina a relação das constantes com as variáveis. As

funções das personagens representam constantes, todo o resto pode variar. Por exemplo,

o envio e a partida ligados às buscas são constantes. Aquele que envia e aquele que

parte, a motivação de enviar, etc., são variáveis. Em seguida, as etapas de busca, os

obstáculos, etc., podem coincidir sempre na sua essência sem coincidir na sua aparência.

Uma vez isoladas as funções, poder-se-ão agrupar os contos que alinham as

mesmas funções. Podem ser considerados como contos do mesmo tipo. O que leva a

afirmar que todos os contos maravilhosos pertencem ao mesmo tipo no que diz respeito

à estrutura.

O conto maravilhoso, do ponto de vista morfológico, é o desenrolar de qualquer

acção que parte de uma malfeitoria ou de uma falta e que passa por funções intermédias

para ir acabar em casamento ou em outras funções utilizadas como desfecho. A função-

limite pode ser a recompensa ao alcançar o objecto da demanda ou, de maneira geral, a

reparação da malfeitoria, etc. chamamos a este desenrolar de acção uma sequência. Cada

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15

nova malfeitoria ao prejuízo, cada nova falta, dá lugar a uma nova sequência: um conto

pode ter várias sequências.

Segundo Propp é possível inserir todos os contos maravilhosos na seguinte

esquema ABCDEFGHMINKPrRsOLQExTUW; os contos que apresentam uma

sucessão invertida destas funções são variações e não novos sistemas de composição. Este

esquema confirma a tese geral da uniformidade absoluta da estrutura dos contos

maravilhosos.

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16

IV. A RECRIAÇÃO DO CONTO BLIMUNDO

4.1. O CONCEITO DE CONTO: O CONTO ORAL E O CONTO ESCRITO

O conto foi, em sua primitiva forma, uma narrativa oral. Para preencher o tempo

de lazer, depois de um dia árduo de trabalho, as populações rurais reuniam-se à volta de

um contador de estórias, que animava as noites quentes de luar, com narrativas

ingénuas de bichos, lendas populares ou mitos arcaicos. É de salientar que à volta do

contador não se reuniam apenas crianças, também adultos da comunidade.

Carlos Reis reforça esta ideia, ao afirmar que: “tal como o romance, a novela ou a

epopeia, o conto pertence ao género narrativo, que se enraíza em ancestrais tradições

culturais que faziam do ritual do relato um factor de sedução e de aglutinação

comunitária. O conto esteve originalmente ligado a situações narrativas elementares:

nelas, um narrador, na atmosfera quase mágica instaurada pela expressão «era uma

vez… suscitava, num auditório fisicamente presente, o interesse por acções relatadas

num único acto de narração e que não raro tinham, para além dessa função lúdica,

uma função moralizante.»14

14 REIS, Carlos e Cristina Lopes, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 1987, p.79

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Tendo em conta estas duas funções presentes nos contos populares, Lopes Filho15

avança que, desempenham um papel pedagógico e asseguram a transmissão das

tradições. Através da interpretação simbólica dos mesmos, é possível detectar-se o nível

de representação dos valores morais e regras sociais presentes no imaginário local e

possível de serem transmitidas as gerações mais novas.

A palavra «conto» foi utilizada para designar uma forma popular folclórica, uma

criação colectiva da linguagem. Apontava para dois tipos de textos muito diferentes: o

conto popular ou tradicional, de origem popular e oral,16

transmitida de geração em

geração, que narrava as aventuras, frequentemente fantásticas, de um herói (ou heroína);

e o conto de autor, com característica e estilo personalizado, escrito por um autor que é

um indivíduo empírico, historicamente situado, que relata um episódio, um caso

humano ou uma situação exemplar.

A expressão popular remete-nos para a ideia de povo, o que não é singular, mas

que engloba um colectivo. Para Carlos Reis, é um conceito relativamente ambíguo que

denota de forma difusas, um certo colectivo preferencialmente situado num espaço

rural periférico, pouco, permeável a contaminações da cultura urbana. Sublinha,

assim, que o conceito popular tem as suas raízes não no mundo letrado da cultura

«consagrada», oficialmente reconhecida, e assegurada pelos livros, mas nas camadas

não hegemónicas da população, onde a cultura é transmitida de geração em geração

oralmente.

O conto popular enraizava-se na tradição oral dos povos, actuando como veículo

de transmissão de ensinamentos morais, valores éticos ou concepções de mundo. O

conto não se prestava apenas para divertir e fazer passar o tempo como também incutia

nos espíritos humanos aspectos filosóficos da vida, aprovados pela comunidade, e que

eram passados de geração em geração, uma espécie de legado passado de pais para os

filhos.

É através desta estratégia de circulação na (s) comunidade (s) que o conto afirma a

sua especificidade, juntamente com outras manifestações populares como as expressões

15 LOPES, João Filho, «As estorias na Cultura Cabo-verdiana, Revista de Estudos Cabo-verdianos»,

Comissão Nacional p/ a Instalação da Universidade de Cabo Verde, nº 1, Julho de 2005, p. 19 a 34.

16 Estas narrativas eram posteriormente recolhidas em antologias e passadas a diferentes leitores ao longo

dos tempos.

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proverbiais, os adágios, as adivinhas, as canções, os jogos de palavras, entre outras,

integrando-se na chamada literatura.

O conto popular é transmitido oralmente de geração em geração, ou seja, o conto

não registado nos livros mas sim na memória e sem suporte material de fixação o conto

popular é literalmente promovido à existência na e pela oralidade. Como a própria

denominação diz, foram criados e narrados pelo povo, nasceram da oralidade (da boca)

e do espírito inventivo de muitos. Mas embora realizado oralmente, ele não se exaure no

momento da sua realização: persiste no tempo, evidenciando de forma clara que a

pervivência de um determinado cultural não passa inevitavelmente pelo o recurso a um

código grafemático. Como já foi referido acima o património cultural pode ser mantida

através da transmissão oral.

No século XIX o conto conhece a sua época de maior esplendor, e passa a

ser cultivado por muitos autores que recriavam narrativas já existentes dando-lhes

roupagem nova. Segundo Moisés Massaud, além de se tornar forma «nobre», ao lado

das demais até então consideradas, sobretudo as poéticas, passa a ser larga e seriamente

cultivado. Abandona o seu estágio empírico, indeciso e por assim dizer folclórico, para

se ingressar numa fase em que se torna produto tipicamente literário. O conto deixa de

ser uma criação colectiva para se tornar uma criação individual, de um autor com um

estilo literário próprio. Muitos contos populares são recriados por autores que lhes

atribuem marcas individuais, passando assim a fazer parte da literatura escrita, onde já

vamos ter um autor conhecido (mesmo que não se conheça o nome, a autoria é

reconhecível pelo estilo e coerência dos textos); origem mais ou menos recente, mas

geralmente atribuível a datas relativamente precisas.

O conto atinge nos nossos dias o seu apogeu como forma literária, passa a ser

escrito em livros, já com uma formulação artística, afastando-se do domínio colectivo

da linguagem. Passa a ser possível identificar o autor através da sua forma peculiar,

individual de escrever e de recriar a narrativa.

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19

4.2. ORIGEM TEMÁTICA DO CONTO

Não existe um consenso entre os estudiosos quanto à questão dos motivos

temáticos dos contos pelo que não tem sido fácil explicar de forma clara esta matéria.

Nem mesmo os estudiosos que adoptaram as perspectivas marxistas têm conseguido

explicar claramente a questão dos motivos temáticos.

O estudo dos contos sob o ponto de vista da teoria marxista, segundo Rosário,

pecam por se agarrar de uma forma linear aos modos de produção clássica

(comunitarismo primitivo, esclavagismo, feudalismo, capitalismo, socialismo) com as

correspondentes formas superestruturais da cultura e da sociedade. Se, por acaso na

narração surgem elementos que nos remetem para esses modos de produção, trata-se

sobretudo de uma questão de assimilação ao nível da actualização da narrativa que

dinamiza o processo de transformação das narrativas, adaptando-as às situações

concretas e actuais, sem que, no entanto, percam os valores e a linguagem que estão

para além das realidades historicamente conhecidas. Por outras palavras, as narrativas

folclóricas são recriadas conforme as exigências socioculturais e politicas de cada

época, o que leva à introdução de elementos que nos remetem para uma época

específica como por exemplo: o colonialismo, o feudalismo, o capitalismo, o

socialismo, etc.

Hoje no mundo contemporâneo, dominado pelas novas tecnologia pode verificar

que não há uma referência directa ao sistema de produção actual, que é praticamente

inexistente como motivo temático. Mesmo nas sociedades modernas industrializadas o

motivo temático continua sendo a caça, a agricultura e outras actividades a elas ligadas.

Os motivos temáticos continuam a retratar as vivências do homem rural e não do

homem citadino.

Segundo Propp, as narrativas conservam, através dos tempos, a memória das

crenças e rituais primitivos, ligados à sociedade clânica de regime de recolecção e da

caça, embora a sua sistematização e difusão se tenha desenvolvido com o surgimento da

fase agrícola da humanidade.

A origem do conto não esta ligada à base económica de produção em curso no

século em que se começou a registá-lo ou a recria-lo. É com a realidade histórica do

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passado que devemos confrontar o conto e ali procurar as suas raízes, determinar o que

precisamente nesse passado é indispensável para a explicação do conto.

Esta teoria de Propp sobre as origens do conto é retomada por Lopes Filho17

para

explicar as origens da narrativa popular cabo-verdiana. Este antropólogo explica que

para se apurar a génese das narrativas, devem equacionar-se as bases culturais da

respectiva sociedade, sem ignorar as relações culturais, históricas, políticas e

económicas estabelecidas entre povos vizinhos, bem como as influências exercidas por

uns sobre os outros, devido a condicionalismos vários, dinamismo e versatilidade de

cada grupo humano. Com base neste pressuposto, avança que a narrativa oral cabo-

verdiana (e mais concretamente as estórias) são basicamente testemunhos de uma

oratura18

nascida do tipo de povoamento que se processou no arquipélago, pois,

evoluiu em conjunto com a própria sociedade. No entanto, uma leitura mais atenta dos

seus segmentos estruturais poderá, possivelmente, revelar contribuições europeias ou

africanas e, por vezes, uma reapropriação simultânea de elementos de ambas as

culturas. Assevera ainda que, em boa parte, as narrativas orais cabo-verdianas

resultaram da coexistência de elementos da cultura africana e da europeia que, depois

incorporados deram origem às novas versões pelo processo de adaptação e pela técnica

do reconto.

A história do boi Blimundo, consagrado pela escrita em dois textos até então

conhecidos,19

constitui um conto tradicional cabo-verdiano cujas origens se perderam na

noite dos tempos.

Narrativa de transmissão oral chegou à actualidade através do circuito

comunicativo específico da literatura tradicional. Contada em todos os cantos dos país,

onde recebe formulações diversas, Blimundo tem conhecido uma infinidade de versões,

infelizmente não recolhidas, correndo o risco de se perderem para sempre. Não sendo

objectivo deste trabalho nem a recolha destes textos nem o estudo comparativo das

diferentes versões, ainda possíveis de resgatar, regista para futuras investigações este

assunto.

17

LOPES, João Filho, «As estórias na Cultura Cabo-verdiana, Revista de Estudos Cabo-verdianos»,

Comissão Nacional p/ a Instalação da Universidade de Cabo Verde, nº 1, Julho de 2005, p. 19 18

Ibid. p.20 19

São as versões escritas de Leão Lopes, objecto de análise neste trabalho e de Aldónio Gomes

constantes da nossa bibliografia.

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Leão Lopes, autor do texto publicado não há muitos anos, refere no prefácio do

livro que este conto é ainda contado às crianças, pelas ribeiras do interior de Santo

Antão, onde é conhecido, às vezes, com ligeiras nuances de pormenor, em quase todas

as ilhas com tradição de trapiche.

A literatura tradicional cabo-verdiana regista algumas composições versificadas

em torno da figura do boi. Publicadas nas Cantigas de Trabalho, recolhidas por

Oswaldo Osório, constituem um corpus textual que nos remete para a presença de um

ciclo temático em torno do boi, tendo como espaços referenciais as ilhas agrícolas onde

a prática do fabrico do aguardente e do mel da cana do açúcar era uma actividade com

um peso económico significativo – referimo-nos sobretudo às ilhas agrícolas como

Santiago, Santo Antão, Fogo e São Nicolau.

Nestes textos, o boi é um animal mitificado e constitui o tema central o que

demonstra a importância deste animal no desenvolvimento das actividades agrícolas. A

partir destas narrativas e de outras formas poéticas sobre este tema, pode estudar-se a

representação do ciclo do boi e a persistência dessas manifestações no imaginário

popular cabo-verdiano.

4.3. A ESTRUTURA DO CONTO

Quanto à estrutura, podemos dizer que o conto é uma narrativa curta. Caracteriza-

se por uma forte concentração da intriga – unidade de acção, uma célula dramática,

portanto, gravita em torno de um só conflito, um só drama e uma só acção; do espaço –

unidade de espaço; do tempo – unidade de tempo. Integra um número reduzido de

personagens, confere pouca importância às pausas descritivas, mas cede um amplo

espaço ao diálogo, a modalidade discursiva que predomina neste subgénero narrativo.

A unidade de acção corresponde à unidade de espaço, e esta decorre da

circunstância de apenas determinado ambiente encerrar importância dramática. Da

mesma forma que uma única acção possui relevância dramática, um único espaço serve

de teatro ou palco do conflito que o conto revela. Pode dizer-se, consequentemente, que

no conto se processa a determinação do tempo e do espaço na medida em que os demais

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momentos e lugares são vazios de dramaticidade. Do contrário, pela criação de vários

pólos dramáticos, haveria desequilíbrio interno, e o conto perderia o seu carácter próprio

para se tornar esboço de novela ou de romance.

Poucas são as personagens que intervêm no conto, como decorrência natural das

características apontadas: as unidades de acção, tempo e lugar obrigam à presença de

uma reduzida população no palco dos acontecimentos.

Propp, em Morfologia do Conto, observou que as personagens dos contos

fantásticos, ao mesmo tempo que permanecem muito diferentes na sua aparência, idade,

sexo, género de preocupação, estado civil e outros estados estáticos e atributivos,

realizam ao longo da acção os mesmos actos. Assim, é possível estudar os contos a

partir das funções das personagens: o que muda são os nomes das personagens; o que

não muda são as suas acções ou as suas funções. O conto empresta muitas vezes as

mesmas acções a personagens diferentes. As personagens dos contos, ainda que

diferentes, cumprem as mesmas acções. O próprio modo de realizar uma função pode

mudar: é um valor variável. Mas a função, enquanto função, é um valor constante.

Propp chegou à conclusão de que, no conto maravilhoso, se observam trinta e uma

funções possíveis, assinalando que a ausência de algumas delas não compromete a

ordem das que permanecem nem o seu reconhecimento enquanto tipo estrutural. A lista

de funções representa a base morfológica dos contos maravilhosos em geral. Os contos

começam habitualmente pela exposição de uma situação inicial – designa-se por .

A abertura é seguida das seguintes funções:

I. Um dos membros da família afasta-se de casa (definição: afastamento, designado por

β).

II. Ao herói impõe-se uma interdição (definição: interdição, designada por γ ).

III. A interdição é transgredida (definição: transgressão designada por δ ).

IV. O agressor tenta obter informações (definição: interrogação, designada por ε ).

V. O agressor recebe informações sobre a sua vítima (definição: informação, designada

por ζ ).

VI. O agressor tenta enganar a sua vítima para se apoderar dela ou dos seus bens

(definição: engano, designada por η).

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VII. A vítima deixa-se enganar e ajuda assim o seu inimigo sem saber (definição:

cumplicidade, designado por θ ).

VIII. O agressor faz mal a um dos membros da família ou prejudica-o (definição,

malfeitoria, designado pela letra A).

VIIIa. Falta qualquer coisa a um dos membros da família, um dos membros da família

pretende possuir qualquer coisa (definição: falta designada por ).

Alguns elementos próprios ao meio do conto, são transportados para o início em alguns

contos.

IX. A notícia da falta ou da malfeitoria é divulgada, dirige-se ao herói um pedido ou

uma ordem; este é enviado em expedição ou deixa-se que parta de sua livre vontade

(definição: mediação momento de transição, designado por B)

Os heróis dos contos são de dois tipos diferentes: 1º heróis os que-demandam-alguem

ex.: se Ivan parte em busca de uma jovem raptada do horizonte paterno é ele o herói do

conto e não a jovem; 2º herói-vitima não há ninguém que vai demandar alguma coisa.

X. O herói que-de-manda aceite ou decide agir (definição: inicio da acção contraria,

designada por C).

XI. O herói deixa a casa (definição: partida, designada por ↑)

XII. O herói passa por uma prova, questionário, um ataque, etc que o preparam para o

recebimento de um auxiliar mágico (definição: primeira função do doador, designada

por D)

XIII. O herói reage as acções do futuro doador (definição: reacção do herói, designada

por E)

XIV. O objecto mágico é posto a disposição do herói (definição: recepção do objecto

magico, designado por F). os objectos mágicos podem ser 1º animais (cavalo, águia,

etc.), 2º objectos de onde saem auxiliares mágicos (o isqueiro e o cavalo, o anel e os

jovens) 3º objectos que tem propriedades mágicos: espada, violino, esfera e muitos

outros; 4º qualidades recebidas directamente como por exemplo a força, a capacidade de

se transformar em animal.

XV. O herói é transportado, conduzido ou levado perto do local onde se encontram o

objectivo da sua demanda (definição: deslocação no espaço entre dois reinos, viagem

com um guia, designado por G)

XVI. O herói e seu agressor defrontam-se em combate (definição: combate, designado

por H)

XVII. O herói recebe uma marca (definição: vitoria, designado por I)

XVIII. O agressor é vencido (definição: vitória, designado por J)

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XIX. A malfeitoria inicial ou a falta são reparadas (definição: reparação, designado por

K)

XX. O herói volta (definição: volta, designado por ↓ )

XXI. O herói é perseguido (definição: perseguição, designado por Pr)

XXII. O herói é socorrido (definição: socorro, designado por Rs)

XXIII. O herói chega incógnito a sua casa ou a outro país (definição: chegado incógnita,

designado por O)

XXIV. Um falso herói faz valer pretensões falsas (definição: pretensões falsas,

designadas por L)

XXV. Propõe ao herói uma tarefa difícil (definição, tarefa difícil designado por M).

XXVI. A tarefa é cumprida (definição: tarefa cumprida, designado por N)

XXVII. O herói é reconhecido (definição: reconhecimento, designado por Q)

XXVIII. O falso herói ou o agressor, o mau é desmascarado (definição: descoberta,

designado por Ex.)

XXIX. O herói recebe uma nova aparência (definição: transfiguração, designado por T)

XXX. O falso herói, o agressor é punido (definição: punição designado por U)

XXX. O herói casa-se e sobe ao trono (definição casamento, designado por Wºo)

A acção de numerosos contos originários das mais diversas nações, decorre entre

os limites destas funções.

A malfeitoria, o envio ou o apelo de socorro, a decisão de reparar o mal sofrido e a

partida (ABC↑) constituem o nó da intriga. A prova a que o herói é submetido pelo doador,

a sua reacção e recompensa (DEF) constituem um certo conjunto. Outras funções

aparecem isoladas (partida, punição, casamento, etc.).

As funções estão agrupadas segundo certas esferas de acção que correspondem às

personagens que cumprem as funções: 1) a esfera de acção do agressor (ou do mau)

compreende: a malfeitoria (A), o combate e as outras formas de luta contra o herói (H),

a perseguição (Pr); 2 - esfera de acção do doador (ou provedor) compreende a

preparação da transmissão do objecto magico (D), o pôr o objecto magico à disposição

do herói (F); 3- a esfera de acção do auxiliar, compreende a deslocação do herói no

espaço (G), a reparação da malfeitoria ou da falta (K), o socorro durante a perseguição

(Rs), o comprimento das tarefas difíceis (N), a transfiguração do herói (T); 4 - a esfera

de acção da princesa e do seu pai, compreende: o pedido para cumprimento de tarefas

difíceis (M), a imposição de uma marca (J), a descoberta do herói (Q), a punição do

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segundo agressor (U), o casamento (W); 5- esfera de acção do mandatário, compreende

só o envio do herói. 6 - a esfera de acção do herói, compreende a partida para a

demanda (C↑), a reacção as exigências do doador (E), o casamento (W); 7 - esfera de

acção do falso herói, compreende: a partida para a demanda (C) a reacção as

exigências do doador, sempre negativa (Eneg), e, enquanto função, especifica as

pretensões mentirosas.

Há portanto sete personagens no conto. Além disso existem personagens especiais

para as ligações (queixosos, denunciadores, caluniadores tal como informadores

particulares para a função informação obtida). Uma esfera de acção corresponde

exactamente a uma personagem; uma única personagem ocupa várias esferas de acção;

o caso inverso: uma só esfera de acção divide-se entre várias personagens.

Quanto à linguagem o conto deve ser objectiva e utilizar metáforas de curto

espectro, de imediato compreensão para o leitor. Despe-se da abstracção e de toda a

preocupação pelo rendilhado ou pelos esoterismos. O conto, por seu estofo

eminentemente dramático, deve ser tanto quanto possível, dialogado. Os conflitos, os

dramas, residem na fala das personagens, nas palavras proferidas (ou mesmo pensadas)

e não nos actos ou gestos (que são reflexos ou sucedâneos da fala); sem dialogo não há

discórdia, desavença ou mal-entendido, e sem isso não há conflitos nem acção.

4.4 OS PROCESSOS DE RECRIAÇÃO DA NARRATIVA.

A recriação da narrativa oral, transmitida de boca em boca, segundo Lopes Filho,

deve-se a não fixação das estórias tradicionais, através da escrita (como é sabido a palavra

escrita esta associada à imutabilidade), o que leva a que o seu primitivo autor passe ao

anonimato e, desta forma, cada contador possa ser visto como o possível autor da narrativa.

Mas mesmo assim, esta liberdade de criação de que dispõe o intérprete não pode

levá-lo a cair no exagero, no extremismo, o que conduziria obviamente a criações

arbitrárias. Lopes Filho avança que a criatividade do narrador não é arbitrária por estar

submetida ao sancionamento da respectiva sociedade, mas tal não impede que a

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“actualização” das estórias dê lugar à existência de múltiplas variantes, por vezes em

resultado de adaptações à vivência sociocultural de cada comunidade.

Se um indivíduo produz inovações ou variações apreciadas pela comunidade, elas

serão imitadas e assim passarão a fazer parte do repertório colectivo da tradição. Se suas

inovações não são aprovadas, elas serão rejeitadas pela comunidade, não entrando assim

no repertório colectivo da comunidade, morrerão com o criador. Assim, sucessivos

públicos decidem se uma determinada estória vai sobreviver e de que forma

sobreviverá. É nesse sentido que o povo participa da criação e transformação da cultura

popular.

Propp afirma que há domínios em que o narrador popular nunca inventa, e há

aqueles em que cria com maior ou menor liberdade. Segundo as análises feitas por este

estruturalista russo, o narrador não é livre nos seguintes domínios:

- na ordem das funções em que a cadeia se desenrola;

- nos elementos cujas espécies estão ligadas por uma dependência absoluta ou

relativa.

- na escolha de algumas personagens em função dos seus atributos, quando não

tem necessidade de uma função determinada.

- na verificação de dependência entre a situação inicial e as funções seguintes:

por exemplo quando é necessário ou quando se deseja utilizar a função A2

(rapto do auxiliar) este auxiliar deve estar inserido na situação inicial.

Por outro lado segundo o mesmo autor o narrador é livre nos seguintes domínios:

- na escolha das funções que omite ou que, pelo o contrário, utiliza.

- na escolha do meio pelo qual a função se efectua. É precisamente este o

caminho que leva, à criação de novas variantes, de novos assuntos, de novos

contos.

- na escolha da nomenclatura e dos atributos das personagens.

- na escolha dos meios que a língua lhe oferece.

Propp acrescenta que, quanto às noções de tema e de variante, é completamento

impossível “distinguir um tema de uma variante. Há apenas duas maneiras de ver as

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coisas: ou cada transformação origina um novo tema, ou todos os contos têm apenas

um único tema sob diversas variantes. Na verdade, as duas formulações exprimem a

mesma coisa. Deve considerar-se o conjunto dos contos maravilhosos como uma cadeia

de variante.”

A nível intratextual, os intervenientes na construção da mensagem literária são

entidades imaginárias, que não têm existência real, às quais cabe a responsabilidade da

construção e organização do universo imaginário. A enunciação narrativa está a cargo

de um autor textual com funções narrativas que, em termos teoréticos, não poder ser

confundido com o autor real. Na medida em que toda a mensagem literária tem um

destinatário, a este nível, é endereçada a uma instância fictícia que assume as funções de

destinatário intratextual da mensagem. Esta instância é presente, ausente ou virtual, é

designada por narratário. Assim, o circuito comunicativo intratextual estabelece-se entre

um narrador e um narratário, duas criaturas fictícias com funções imaginariamente

diferenciadas.

Todo o texto narrativo, de índole literária, institui um universo ficcional no qual

movem as personagens diegéticas. Contudo, apenas a ficcionalidade não caracteriza

suficientemente o texto pertencente ao modo narrativo, há que ter em conta outras

propriedades textuais como a intertextualidade – todo o texto pressupõe um espaço

intertextual virtual e amplo -, a coerência técnico-semântica e a estratificação – o texto

narrativo é por excelência articulado em diversos estratos (Roman Ingarden).

Esse universo imaginário ou quase-mundo, que o texto cria, articula-se com o real

a partir de um pretenso enraizamento num mundo empírico, com existência histórica,

por um processo de pseudo-referencialidade ou auto-referencialidade, na medida em

que os objectos, os seres, os espaços presentes no mundo ficcional também se

encontram no mundo real. São representados literariamente sob a aparência de

ingredientes do mundo real.

Leão Lopes, o autor do texto em estudo, afirma no prefácio da obra, que

Blimundo era “ um boi imaginário, de grande estatura, símbolo da liberdade no

contexto rural das ilhas, contexto agrícola e com estruturas sociais ainda bem definidas

…” Trata-se de um universo e uma ambiência ruralizantes, em que as figuras de

destaque conformam pólos opostos – de um lado o boi e do outro o Rei, símbolos do

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poder e da soberania e da opressão, resistência e luta pela liberdade e a vida. Neste

sentido, constitui pano de fundo da acção o mundo rural, sendo descrito pela

enumeração dos elementos que o compõem tais como ribeiras, campos, montanhas,

ruas, apresentando-se como o macro-espaço. O espaço da acção propriamente dito é

extremamente concentrado, como convém ao conto, e resume-se ao micro-espaço

relativo ao pequeno reino.

O narrador reafirma a apresentação feita do herói da história. Ao construir o

enunciado literário apropria-se da adjectivação já utilizada pelo autor do texto e

descreve a entidade imaginária que protagoniza a história, sob uma figura taurina, mas

investido de profundos sentimentos humanos. Um boi, um boiona, um boi de trapiche

que, cansado da vida de trabalho e de cativeiro, ter-se-á revoltado contra o seu amo e

senhor (o Senhor Rei) e fugido para se esconder nas muitas rochas e ribeiras da ilha

(Santo Antão). O Rei que não perdoa esta traição, move contra ele uma grande

perseguição, trazendo-o à sua presença para ser severamente punido. As ordens do Rei

eram: “ Guarda, reúne os soldados e que me tragam o Blimundo, morto ou vivo!”

Enquanto herói da história, Blimundo é descrito como uma figura contraditória.

Se, de um lado, constitui um personagem “ filho das rochas, possante, calmo e sabedor

do mundo, amante da vida e da liberdade, boi respeitado por todos os seus iguais (…)

amigo da harmonia (…) nada fazia que contrariasse a justiça e a ordem natural da

evolução da vida”, por outro era visto, sobretudo aos olhos daqueles que representavam

a lei, a ordem e a justiça, como “irreverente em relação às leis estabelecidas (…)

vagabundo, revoltoso”.

Para além da personagem principal acima descrita, fazem parte deste mundo

construído neste conto outras personagens com estatutos e papéis diferentes. Destacam-

se entre outras, o Rei que se opõe directamente a Blimundo e o rapazinho que o co-

adjuva na captura de Blimundo.

Do ponto de vista teórico, os papéis distribuídos aos personagens constroem-se

em função da teia de relações que se tece em torno das diferentes personagens que

povoam esse universo ficcional. Assim, definem-se em termos de protagonismo e

secundariedade. Aguiar e Silva estabelece a figura do deuteragonista em relação ao

protagonista, referindo-se à personagem secundária de maior destaque na narrativa. No

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caso concreto de Blimundo, este papel caberá ao Rei, muito embora acumule também o

papel de antagonista, partilhado com o do rapazinho, que tem exactamente a mesma

função. Contudo, se entendido na sua relação com o Rei, este funciona como adjuvante

opondo-se a Blimundo.

As demais personagens, se bem que com alguma importância na história,

integram uma outra categoria identificada por este mesmo estudioso à qual confere a

designação de figuras esparsas ou episódicas. São identificadas como: filhinha do Rei

(codezinha), a vaquinha da praia, a filha do Rei Vaquinha da praia, os soldados, outros

bois e convivas.

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30

3.4. Perspectiva estruturalista sobre a versão do conto Blimundo recriado por Leão Lopes: uma aproximação

1ª Sequência:

Era uma vez um boi. Um boi grande, um boiona que se chamava Blimundo.

Blimundo, filho das rochas, possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade, era boi respeitado

por todos os seus iguais, e não só, pelas ribeiras, campos e vertiginosas montanhas. Amigo da harmonia em todas as

coisas, Blimundo nada fazia que contrariasse a justiça e a ordem natural da evolução da vida. Tinha o seu próprio

entendimento do mundo e da liberdade, que ele defendia no quotidiano pelos picos, bordeiras e assomadas.

Situação inicial

Senhor Rei, ao saber das existência de Blimundo e do seu comportamento, que ele considerava irreverente em relação

às leis estabelecida no seu reino, não admitia que boi algum do seu território fugisse à obediência, às demandas dele

senhor todo poderoso, dono das ribeiras, campos, lombos e vertiginosas montanha, dono das aguas e dos trapiches.

y1

Interdição

Que boi julgava ser Blimundo, que procurava com o seu exemplo, tornar irreverente ao Rei, todos os outros bois do

território real? Que bicho depois fazia os trabalhos do campo, faria andar o trapiche para o mel e para o grogue, daria

carne para o sustento à grande e pomposa mesas real? Ainda por cima ele não queria vagabundos no reinado,

revoltosos e bichos que não acatassem às ordens!

1

Transgressão da

interdição

Um Rei é um Rei!Um boi é um boi!

- E, se mando cortar a cabeça de um boi para o meu jantar, têm que me obedecer! – Pensava alto e irritado o

senhor Rei.

- Guarda, reúne os soldados e que me traga Blimundo, morto ou vivo! Ordenou o Rei.

y2

Ordem

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31

Saiu a tropa armada de machados, machadins, coletes de ferro, capacete, arpões e afins, espumando, na sede de

cumprir a tão real missão.

Subiram rochas, desceram ribeiras, rebuscaram campos, em busca de Blimundo. A um dado momento da penosa

busca e dum lombo estratégico este os detectou e aguardou.

2

Execução da ordem

No momento decisivo, pensando os heróis do reino – dentro dos seus fatos de ferro e cravo – apanhar o

possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade que era Blimundo, não tiveram mais tempo para

saber contar a história depois.

Blimundo deu conta deles, num estilhaçar de machados, coletes de ferro, capacetes, arpões e afins, com a

sabedoria das rochas que aprendera!

A

Malfeitoria

Não descansou senhor Rei, quando soube da notícia.

B

A notícia da

malfeitoria é

divulgada

2ª Sequência:

O reino está ameaçado por Blimundo, que arrastando na sua irreverência outros bois – dignos servidores do reino –

poderão levar-nos a miséria e a fome! A conduta deste Blimundo e verdadeiramente perigosa para nossa

sobrevivência nesses lombos e ribeiras! Quem depois poderá reinar quando todos os bois tomarem a liberdade?

- Quem fará andar os trapiches?

- Quem fornecerá carne a minha mesa?

- Quem?

- Respondam!

- Quem?

Falta

1.ª Sequência (cont.)

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- Morte o Blimundo e viva o Rei! - Berrou senhor Rei.

- Viva senhor Rei, – Secundaram os súbditos

y2

Ordem

Estes, fiéis servidores do Rei, obedientes e tementes ao senhor, armaram-se de facas e facões, paus e forquilhas,

fisgas e enxadas e saíram a cata de Blimundo, o possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da

liberdade, e amigo da harmonia em todas as coisas.

Os súbditos, ingénuos e obedientes, galgaram lombos, desceram encostas, palmilharam ribeiras, revolveram

furnas, ate que encontraram o procurado.

2

Execução da ordem

Blimundo já os esperava. Sabia que a liberdade que ele tanto amava teria que passar por tão altos preços e que

o senhor Rei não desistiria do intento de o transformar, morte ou vivo, num boi que tivesse que acatar às demandas e

aos abusos do Rei, sem se revoltar.

Deixou os súbditos aproximar e esperou pelo ataque. Foi um encontro rápido e decisivo. Não ficou inteiro um

só homem valente do reino, nem faca nem facão, nem pau nem forquilha, nem fisga nem enxada, em postura de vir a

contar como foi.

Blimundo respirou fundo e angustiado, afastando-se da cena.

A

Malfeitoria

Quando chegaram as notícias ao palácio, Senhor Rei caiu em desespero.

B

Noticia da

malfeitoria

2ª Sequência (cont.)

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3ª Sequência:

Não tinha mais estratégia de combate ao Blimundo, e não podia suportar a ideia de tão perigoso desafiador à solta. È

nisto que lhe chega a notícia de um rapazinho criado no «borralho de cinza» que lhe promete ir buscar Blimundo.

C

Inicio da acção

contraria o herói

decida agir.

- Quero vê-lo já! – Ordenou Senhor Rei.Trouxeram o rapaz, e o Rei espantado pergunta:

- Tu menino Trazer Blimundo? Esse maldito que me desfez um exército e os meus melhores homens do

reino? Como podes trazer-me Blimundo?

D

O herói passa por um

questionário

- Senhor Rei: dá-me um cavaquinho, um «bli» d´àgua e uma bolça de «prentém» que eu lhe trago

Blimundo e, como recompensa, quero a metade da riqueza do reino e sua «codezinha» * para com ela casar!

F

Recepção do objecto

magico (objecto que

tem propriedades

magicas)

E assim fez Senhor Rei, comprometendo com a recompensa.

w1

Promessa de

casamento

Com o seu saco de «pretém», «bli» d´àgua a tiracolo e seu cavaquinho ao peito, saiu o rapazinho do

palacio, rumo aos campos e ribeiras, lombos e furnas, picos e atalhos, à cata de Blimundo, com todo o sentimento

e sem parar:

Partida do herói

** Oh Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem ´shcóbe

pabo bô bê casá q´Vequinha de Praia

Tim-Tim ne nhê cavequim

Cóp-cóp ne nhê prentém

Glú-Glú ne nhê bli d´àga

Oh Blimundo

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34

Senhor Rei mendé-me bem ´shcóbe

pabo bô bê casá q´Vequinha de Praia

Tim-Tim ne nhê cavequim

Cóp-cóp ne nhê prentém

Glú-Glú ne nhê bli d´àga

A dada altura, Blimundo do seu esconderijo, ouve a canção que o encanta. Levanta as grandes orelhas e se põe a

escuta com mais atenção. Quando entende bem a mensagem, deixa o rapazinho aproximar:

Canta, canta outra vez! Toca o teu cavaquinho!

Oh Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem ´shcóbe

pabo bô bê casá q´Vequinha de Praia

Tim-Tim ne nhê cavequim

Cóp-cóp ne nhê prentém

Glú-Glú ne nhê bli d´àga

B7

Canto de lamento

- É verdade que eu vou casar com a Vaquinha de Praia?

- Não me estás a enganar?

- Não! Respondeu o rapaz.

1

O agressor interroga

o herói

3ª Sequência: (cont.)

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- Então vou contigo!

O rapaz pede ao Blimundo que se abaixe todo e que o deixe ir montado porque o caminho é longo e duro.

K7

Captura imediata

utilizando astúcia

Blimundo obedece, mais exige:

- Mas... vais a cantar! É tão bonita esta cançlão...

E assim foram:

Oh Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem ´shcóbe

pabo bô bê casá q´Vequinha de Praia

Tim-Tim ne nhê cavequim

Cóp-cóp ne nhê prentém

Glú-Glú ne nhê bli d´àga

B7

Canto de lamento

De vez enquanto Blimundo confirmava:

- Mas... eu vou casar com a Vaquinha de Praia?

Foram andando, andando, em direcção ao palácio do Rei.

1

O agressor interroga

o herói

Não pares de cantar! Canta mais perto do meu ouvido! Pedia Blimundo:

Oh BlimundoSenhor Rei mendé-me bem ´shcóbepabo bô bê casá q´Vequinha de Praia

Tim-Tim ne nhê cavequim

Cóp-cóp ne nhê prentémGlú-Glú ne nhê bli d´àga

B7

Canto de lamento

3ª Sequência: (cont.)

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Entretanto Senhor Rei, pelo sim, pelo não, e com medo do que viesse a acontecer, mandara a tropa colocar-se em

pontos estratégicos do lugar real e ordenara aos súbditos que ninguém se mostrasse quando o rapaz aparecesse com

Blimundo.

y2

Ordem

Já o sol tinha passado para a outra ribeira, quando à entrada do lugar real surgiu Blimundo, pachorrento e

feliz, e sobre ele o rapazinho com o seu cavaquinho.

Regresso do herói

Senhor Rei que esperava no sobrado, não queria acreditar no que estava vendo. Impressionado pela

grandeza do Blimundo, perguntava para si mesmo, como conseguiu o rapaz trazer-lhe o tão arrostado e temido

personagem que muitas noites de sono lhe roubara e muitos estragos ao reino causara.

N

Realização da tarefa

difícil

Blimundo seguiu pela rua principal crivado de olhares de medo através das frestas as portas e janelas,

devidamente trancadas.

Só um amor só uma velha paixão; só esta grande força arrastaria Blimundo, feliz, calmo e confiante, pela

rua que o levaria a enfrentar o Rei que sempre o perseguira pelos seus ideais de amor e de liberdade.

Só a correspondente paixão da Vaquinha de Praia e da enorme vontade de libertar das garras do Rei, o

levaria a enfrentar com suficiente tranquilidade, esse chamado dono das terras, águas, ribeiras, atalhos, furnas e

campos, rochas e lombos.

K4

Reparação da

malfeitoria

Chegados juntos a entrada do palácio, o rapazinho pediu ao Blimundo que o deixasse descer e que o esperasse, pois

tinha que pedir o barbeiro ao Rei para lhe fazer a barba, antes de o apresentar a Vaquinha da Praia.

O rapaz entra pelo palácio dentro e explica ao Rei o seu plano. Veio com ele um barbeiro e seus

apetrechos. Atrás, Senhor Rei, ansioso pelo o desfecho do plano concebido pelo o rapaz.

Blimundo, paciente, deixa-se envolver pela a toalha e ensaboar, enquanto o rei e o rapaz assiste com ar

triunfante a cerimonia.

Blimundo fecha os olhos imaginando a impaciência da Vaquinha de Praia esperando, enquanto o pincel de

barba envolve deliciosamente, com espuma branca e fresca, a sua barba selvagem.

Blimundo deixa-se embalar quase que num sonho e, num ápice, num terrível e certeiro golpe de navalha de

U

Punição do agressor

3ª Sequência: (cont.)

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1ª Sequência: y1

1 y

2

2 A B

2ª Sequência: y2

2 A B

3ª Sequência: C D F w1 B

7

1K

7 B

7

1 B

7 y

2 N K

4U neg pos

Forma final do conto: y1

1 y

2

2 A B y

2

2 A B C D F w

1 B

7

1K

7 B

7

1 B

7 y

2 N K

4U neg po

barba do barbeiro-carrasco, fica o plano consumado. É traiçoeiramente assassinado Blimundo. Seu corpo cai por

um lado e, nu estrebuchar de revolta e violência, uma bela patada traseira de toneladas de força, atinge o Senhor

Rei que acaba aí o seu reinado.

O rapazinho e o barbeiro fogem espavoridos, mas jamais iam esquecer o último olhar de revolta de

Blimundo, o ultimo olhar que os havia de perseguir eternamente

Blimundo cantou no seu derradeiro fôlego. Cantou na agonia do momento a sua última canção – uma

canção profunda condenadora, bela e terrivelmente melancólica que já mais deixaria de condenar os seus

assassinos.

neg

Resultado negativa

da função

E, no grande banquete a seguir a tragédia, cada bocado de carne no prato dos convivas, levava o sabor de

revolta e da bela e condenadora canção que imortaliza Blimundo, esse sabedor do mundo e das coisas, amante da

vida e da liberdade, amigo da beleza e da harmonia e que nada fazia que contrariasse a justiça e as leis da própria

natureza.

pos

Resultado positiva

da função

3ª Sequência: (cont.)

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V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar o nosso trabalho, podemos afirmar que o conto foi em sua primitiva

forma, uma narrativa oral, circulando ao longo das gerações, pela voz de um conjunto

indefinido de sujeitos individuais, funcionando como um dos principais veículos de

transmissão do conhecimento, mantendo a ligação entre as gerações de uma mesma

comunidade. Posteriormente, os contos orais passam a ser recolhidos e fixados pela escrita

em acto de (re)criação, adquirindo assim uma formulação artística, literária, afastando-se

do domínio colectivo da linguagem para o universo do estilo individual de um certo

escritor, que é um indivíduo empírico, historicamente situado.

Roman Jakobson foi um dos teóricos da literatura que se debruçou sobre a relação

que o intérprete estabelece com a tradição. Conclui que, tal como a língua, também os

contos constituem um tesouro colectivo armazenado na mente dos membros de uma

comunidade. São esquemas relativamente abstractos que sofrem concretizações

diversificadas ao serem actualizados pelos intérpretes.

A narrativa transmitida oralmente está sujeita a modificações, muitas vezes

voluntárias do intérprete. É impossível evitar que toda a vez que o contador conte, pela

repetição habitual dos mesmos episódios, não os vá dispondo e modificando a seu bel-

prazer, apagando-lhes cada vez mais o cunho pessoal e anónimo, para lhes dar carácter

individual, realizando assim o que o prolóquio português ensina: quem conta um conto

acrescenta-lhe um ponto ou retira-lhe um ponto. Pode introduzir-lhes inovações

pontuais, ditadas pela sua imaginação criadora ou pelo próprio contexto situacional,

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pode reordenar parcialmente os elementos constitutivos do conto e adicionar novos

elementos figurativos, mas, no essencial, o intérprete tem de se submeter à lógica

profunda dos «esquemas» prescritos pela tradição. Ou seja, pode não alterar

profundamente a fisionomia do conto, o que seria condenado pela comunidade.

É de salientar que estes recursos criativos também podem ser utilizados na

passagem do conto oral ao conto escrito, qualquer mudança feita interfere no conjunto da

narrativa dando assim origem a diferentes versões do conto, tal como acontece com o

conto Blimundo que já foi recriado por alguns autores a partir da versão oral anónima

existente.

Podemos observar que as personagens dos contos maravilhosos segundo Propp, ao

mesmo tempo que permanecem muito diferentes na sua aparência, idade, sexo, género de

preocupação, estado civil e outros estados estáticos e atributivos, realizam, ao longo da

acção, os mesmos actos. Isto determina a relação das constantes com as variáveis. As

funções das personagens representam constantes, enquanto que a forma de realizar esta

função é variável.

Podemos isolar as funções das personagens. Os contos fantásticos conhecem trinta

e uma função. A ausência de alguma delas não compromete a ordem das que

permanecem nem o seu reconhecimento enquanto tipo estrutural, como observamos nas

versões recriadas do conto em estudo as verões não apresentam todas as funções, mas a

ausência de algumas delas não influencia a ordem de sucessão das outras. A ausência de

algumas funções não impede que seja feita um estudo comum.

A literatura tradicional cabo-verdiana regista algumas composições versificadas

em torno da figura do boi. Publicadas nas Cantigas de Trabalho, recolhidas por

Oswaldo Osório, constituem um corpus textual que nos remete para a presença de um

ciclo temático em torno do boi, tendo como espaços referenciais as ilhas agrícolas onde

a prática do fabrico da aguardente e do mel da cana do açúcar era uma actividade com

um peso económico significativo – referimo-nos sobretudo às ilhas agrícolas como

Santiago, Santo Antão, Fogo e São Nicolau.

Nestes textos, o boi é um animal mitificado e constitui o tema central o que

demonstra a importância deste animal no desenvolvimento das actividades agrícolas. A

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partir destas narrativas e de outras formas poéticas sobre este tema, pode estudar-se a

representação do ciclo do boi e a persistência dessas manifestações no imaginário

popular cabo-verdiano.

Enquanto herói da história, Blimundo é descrito como uma figura contraditória.

Se, de um lado, constitui um personagem “ filho das rochas, possante, calmo e sabedor

do mundo, amante da vida e da liberdade, boi respeitado por todos os seus iguais (…)

amigo da harmonia (…) nada fazia que contrariasse a justiça e a ordem natural da

evolução da vida”, por outro era visto, sobretudo aos olhos daqueles que representavam

a lei, a ordem e a justiça, como “irreverente em relação às leis estabelecidas (…)

vagabundo, revoltoso”.

Recorrendo ao processo de antropomorfização e partindo de uma concepção

antropocêntrica da narrativa, o narrador coloca um boi no centro da história, a

representar a figura central, qualidade que o destaca dos demais personagens humanos

que povoam esse universo. Na verdade trata-se de o único animal com forte presença na

história e em forte contraposição aos humanos.

Do ponto de vista simbólico, as imagens dos animais são muito frequentes e

comuns nas narrativas populares. O boi, neste caso, representa o espírito macho

combativo, força fertilizante que ambiguamente pode referir-se tanto à sexualidade

como à perfeição espiritual. Em outros contos populares, o boi, por vezes, evoca a

sensualidade e a impetuosidade masculinas, o poder fertilizante que, ao mesmo tempo,

atrai e mete medo; a energia animal que precisa ser alquimicamente transmutada em

sentimento, para possibilitar o encontro de amor e o restabelecimento da condição

humana plena do ser metamorfoseado.

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