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“A saída do povo daqui por essa tal de barragem”: Memória e cordel na luta dos beraderos no Submédio do rio São Francisco Carolaine Tomaz Silva Graduanda em Licenciatura em História, UEFS. [email protected] O cenário que guarda as trajetórias históricas investigadas é o Submédio do São Francisco. É a partir da década de 1950, segundo Eurelino Coelho (2014), que essa região serviu de cenário para uma série de consequentes mobilizações e enfrentamentos por grupos que tiveram seus modos de fazer, viver e configurar suas existências ameaçadas, atingidas e destituídas por medidas tomadas a contragosto pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). Tais determinações sobre os beraderos 1 foram capazes de remodelar as maneiras quais as vivências se caracterizavam nos aspectos econômicos, sociais e culturais. Este texto analisa, a partir das narrativas de sujeitos historicamente silenciados e acessa por meio dos cordéis a maneira que eles teciam suas vidas através dos elementos de saudade, a forma qual se organizavam pelo território, e também como suas inquietações, reivindicações, resistências e apropriações diante da nova realidade que batia em suas casas junto com as águas represadas. Este período no Nordeste é objeto de transformações marcadas pela expansão do capitalismo no Brasil, concomitante com a intensificação da industrialização do país. Ely Estrela (2009) faz um mapeamento de instituições criadas e legitimadas pela autoridade do Estado como garantia de execução dos olhares progressistas voltados à região. Organismos como a SUVALE (Superintendência do Vale do São Francisco), CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), SUDENE (Superintendencia de Desenvolvimento do Nordeste), IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas) e posteriormente o DNCOS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas) funcionaram enquanto dispositivos administrativos para a coordenação da expansão planejada do capitalismo no Brasil. A estruturação desses órgãos demonstra o interesse do Estado em criar instituições com propósitos de planejar e 1 A expressão foi usada por Ely Estrela pra designar os sujeitos que moravam e nortearam seus meios de produção material e cultural à beira do rio São Francisco. ESTRELA, Ely Souza. Um Rio de Memórias: o modos vivendi dos beraderos sanfranciscanos antes da represa de Sobradinho (Bahia). História & Perspectivas, Uberlândia (41): 115- 139, jul.dez.2009.

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  • “A saída do povo daqui por essa tal de barragem”: Memória e cordel na luta dos

    beraderos no Submédio do rio São Francisco

    Carolaine Tomaz Silva

    Graduanda em Licenciatura em História, UEFS.

    [email protected]

    O cenário que guarda as trajetórias históricas investigadas é o Submédio do São

    Francisco. É a partir da década de 1950, segundo Eurelino Coelho (2014), que essa

    região serviu de cenário para uma série de consequentes mobilizações e enfrentamentos

    por grupos que tiveram seus modos de fazer, viver e configurar suas existências

    ameaçadas, atingidas e destituídas por medidas tomadas a contragosto pela Companhia

    Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). Tais determinações sobre os beraderos1 foram

    capazes de remodelar as maneiras quais as vivências se caracterizavam nos aspectos

    econômicos, sociais e culturais. Este texto analisa, a partir das narrativas de sujeitos

    historicamente silenciados e acessa por meio dos cordéis a maneira que eles teciam suas

    vidas através dos elementos de saudade, a forma qual se organizavam pelo território, e

    também como suas inquietações, reivindicações, resistências e apropriações diante da

    nova realidade que batia em suas casas junto com as águas represadas.

    Este período no Nordeste é objeto de transformações marcadas pela expansão do

    capitalismo no Brasil, concomitante com a intensificação da industrialização do país.

    Ely Estrela (2009) faz um mapeamento de instituições criadas e legitimadas pela

    autoridade do Estado como garantia de execução dos olhares progressistas voltados à

    região. Organismos como a SUVALE (Superintendência do Vale do São Francisco),

    CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), SUDENE

    (Superintendencia de Desenvolvimento do Nordeste), IFOCS (Inspetoria Federal de

    Obras Contra as Secas) e posteriormente o DNCOS (Departamento Nacional de Obras

    contra as Secas) funcionaram enquanto dispositivos administrativos para a coordenação

    da expansão planejada do capitalismo no Brasil. A estruturação desses órgãos

    demonstra o interesse do Estado em criar instituições com propósitos de planejar e

    1 A expressão foi usada por Ely Estrela pra designar os sujeitos que moravam e nortearam seus meios de

    produção material e cultural à beira do rio São Francisco. ESTRELA, Ely Souza. Um Rio de Memórias: o modos vivendi dos beraderos sanfranciscanos antes da represa de Sobradinho (Bahia). História & Perspectivas, Uberlândia (41): 115- 139, jul.dez.2009.

    mailto:[email protected]

  • desenvolver a região Nordeste baseados em algumas ideias concebidas a partir de

    critérios que não consideravam nenhuma potencialidade para região, visualizando a

    terra simplesmente como canto a servir apenas de base para construção, industrialização

    e desenvolvimento do capitalismo e do país.

    Os incentivos vieram sob forma de investimentos, sobretudo aqueles aportes

    oriundos do Estado. Os discursos e ideias progressistas forneceram o embalo necessário

    e criaram um ambiente justificador para consolidação de tais planejamentos. Esses

    discursos e ideias progressistas de redenção e desenvolvimento econômico do Nordeste,

    as usinas de Paulo Afonso são tomadas como necessidade indispensável para corrigir o

    intenso desequilíbrio econômico da região, assim como fornecer estrutura para a

    industrialização do Nordestes. Tais alterações têm em sua gênese o caráter econômico

    intensivo, – ao qual aceleradamente buscava alterar a espacialidade da região sob um

    espectro nacionalista –, e trouxe implicações na alteração do tempo local que por

    consequência desencadeou em mudanças no cotidiano, sendo assim a produção de

    energia elétrica seria responsável por “dar luz” à região que do ponto de vista

    governamental estava sob atraso em relação ao resto do país.

    Se por um lado existe o Estado com um projeto desenvolvimentista para o

    Nordeste, do outro se tem a vida dos camponeses e indígenas ribeirinhos do São

    Francisco ameaçados por um movimento de anexação, de dominação e asfixia dos seus

    modos de fazer. Está em jogo um emaranhado de interesses perpassados por alterações

    irreparáveis na vida sujeitos do Submédio do maior rio da região nordestina. Há diante

    desse cenário a constituição de um discurso progressista e desenvolvimentista muito

    agudo destinado à região Nordeste e ao resto do país, o cunho de crescimento e

    prosperidade é divulgado por meio de narrativas produzidas pela CHESF através de

    filmes, cartilhas e jornais que pretendem destacar as benfeitorias que a chegada da

    hidrelétrica propiciaria ao povo ribeirinho.

    O dito desenvolvimento ganhava outras roupagens para o povo beradero, pois

    enquanto o Estado se projeta em um novo planejamento para o Nordeste, tais medidas

    não são pensadas em conjunto com a população ribeirinha. Visto que as atuações do

    Estado ignoram as vivências dos indivíduos e afetam os desejos que elas almejam para

    suas vidas e suas cidades, impõem aos cidadãos as decisões e tampouco se preocupam

  • com as consequências individuais e coletivas, sociais e culturais das ações. Afinal, os

    gestores estavam convencidos que as ações objetivavam o progresso das populações da

    ribeira do São Francisco, mesmo que esta argumentasse o contrário. Estava se formando

    o palco que guardaria os enfrentamentos, disputas e resistências entre os sujeitos

    ribeirinhos e as instituições governamentais.

    1.0 O povo como sujeito da sua própria história

    As alterações no espaço e no modo de vida dos habitantes daquela região

    provocadas pela construção das barragens provocaram a emergência de resistências,

    conflitos sociais, táticas de sobrevivência das comunidades e dos costumes ribeirinhos,

    ameaçados e atingidos pelas modificações propostas e instituídas pelo Estado através

    dos seus muitos dispositivos . As ações dos sujeitos refletem a dissonância nessa relação

    nada amistosa entre o Estado e a população ribeirinha, de maneira que o papel da

    resistência popular é evocado quando vê suas vidas ameaçadas por um inimigo

    avassalador maior que o tamanho das paredes da usina em construção.(SILVA, 2018, p.

    82).

    Táticas de resistência desses indivíduos expropriados aparecem sob diversas

    formas na região de Paulo Afonso. A memória é recurso recorrente para (re)significação

    da vida, modos de viver e de estruturar as próprias experiências. Algumas dessas táticas

    são apresentadas através da literatura, ao qual muitos sujeitos utilizavam da

    musicalidade, oralidade e do ritmo para produzir, canções, rimas e no caso das fontes

    analisadas a literatura de cordel, marcada pela memória de muitos repentistas. É através

    dos cordéis que aparece como forma de guardar, manter tradições, mas principalmente

    como forma de resistência, de indignação e insatisfação com a alteração das dinâmicas

    das vidas do povo atingido por barragem.

    O grupo de pessoas que constituíam o grupo dos Atingidos por Barragem

    (SILVA, 2018, p. 31) não era tão somente aqueles que foram tocados diretamente pela

    chegada das usinas, mas todos aqueles que o seu cotidiano rural foi modificado ou

    sofreu alguma forma de interferência à região. Sejam dos indivíduos que perderam suas

    terras, suas casas, plantações, empregos que assistiram a chegada das tecnologias, da

    luz, da televisão e até mesmo modificaram sua linguagem implantada pela

    escolarização. Faz parte desse grupo todos aqueles que tiveram as vidas diretamente ou

  • indiretamente afetadas pela construção das barragens, ou seja, homens e mulheres que

    perderam seus empregos, mudaram seus trabalhos e forçados a dar novos sentidos às

    suas vidas, as pessoas que tiveram suas culturas modificadas, a alteração do cotidiano,

    do tempo, enfim, das formas de caracterizar as suas vidas. O caráter lúdico, as cantorias

    e rimas aparecem como elemento frequente nas reuniões relacionadas aos processos de

    mobilização. Os cordéis em análise2 que devido a quantidade de cópias encontradas,

    pode ser entendida como elementos impressos em larga escala – que permite uma

    pesquisa de natureza quantitativa e/ou qualitativa. Devido a essa grande quantidade,

    pode-se inferir que se tratava de um material de consumo pelas camadas subalternizadas

    – vítimas das barragens – e também, aproximadas das dimensões linguísticas de

    significação do contexto sócio cultural que estão inseridos dos atingidos por barragem.

    Os cordéis aparecem como instrumento de arquivamento das práticas e condutas

    que compunham a identidade lavradora dos ribeirinhos, tal como de orientação quanto

    aos trajetos de oposição e disputa contra os vetores dominantes de apagamento

    registrados nas tentativas da CHESF. Segundo Umberto Peregrino, o cordel tem suas

    origens entre os cantadores e repentistas, as marcas da oralidade dão a forma gráfica

    dessa poesia. Aponta para como os registros do cordel se aproximam dos exercícios de

    observação e significação executados pelos populares no falar e cantar sobre os

    processos de subalternização e resistência. “[...] manifestações específicas das estruturas

    sociais, refletidas no tipo de vida, constituem a matéria prima de que é tecida a poesia

    do poeta repentista e daquele que o continuou e fixou através da mensagem impressa”

    (PEREGRINO, 1984). É através do processo de disputa de narrativas, discursos e

    identidade que se torna possível perceber em quais aspectos os conflitos de interesses

    começam a surgir.

    “O processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um

    lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade;

    de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la. É um

    processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos e

    2A fonte documental pertence ao acervo pessoal do Ex-deputado Alcides Modesto, Paulo Afonso- Ba,

    disponibilizado ao projeto de pesquisa: Um Rio de Lutas: História e memória dos movimentos sociais no Submédio São Francisco (1968-1994) - Universidade Estadual de Feira de Santana.

  • lingüísticos nos quais se sustenta a produção da identidade.” (SILVA, 2000,

    p.84)

    Diante disso, as batalhas travadas entre as instituições governamentais e o

    movimento dos atingidos por barragens também atuam como uma disputa e manutenção

    da identidade. A significação contida nos cordéis, as representações sobre as praticas

    dos ribeirinhos do rio São Francisco, que tiveram sua paisagem e seus meios produtivos

    ameaçados pelas barragens da CHESF, são dispositivos necessários para entendimento

    dos cordéis como elementos de resistência. As representações contidas nestes

    documentos sobre os modos de vida, os sentidos enunciados pelos sujeitos que

    capturam, nos versos, as tentativas de leitura e significação do processo de expropriação

    pungente. É uma estrofe dessa literatura, de força e resistência que intitula este trabalho,

    ao qual em poucos versos descreve a sua coragem em apresentar a própria contra

    narrativa, através do seu olhar para nova realidade social posta, tal como sugere o

    seguinte trecho de um dos cordéis:“Meus caros ouvinte/Vou escrever com muita

    coragem/A saída do povo daqui/ Por essa tal de barragem”.

    A literatura de cordel é a literatura popular em verso, ritmada, rica, produzidas

    por sujeitos da própria história que inserem no papel pardo, características das suas

    vidas, símbolos, anseios, dores, lamentos, esperanças, ou seja, suas formas de viver.

    Nesse sentido a literatura de cordel – enquanto fonte histórica – ganha destaque

    justamente por registrar a voz daqueles sujeitos do período nos mais diversos aspectos:

    sociais, econômicos, culturais e linguísticos. A literatura de cordel surge e se mantém

    como material marginal vai contra a hegemonia de outras fontes e discursos, e

    contrapõe-se ao Estado que procura a ordem e o planejamento, e uma homogeneidade

    popular. As trajetórias individuais e coletivas são transpostas nos cordéis como contra

    narrativas que se permitem investigar, pois além de narrar a vida dos autores, os

    colocam como sujeitos ativos no processo da história e constroem um pano de fundo do

    momento vivido e disputam narrativas.

    Os elementos que compõem a cartografia de vida dos sujeitos é marcada pela

    memória, experiências e consciência de que seus modos de vida que antes eram

    configurados pela vida pacata, pelo seu tempo ritmado acompanhado pelas cheias do rio

    e agora está definitivamente mudado. O tecer da vida cotidiana já não está no

    emaranhado de tecidos antigos, que guardam a hereditariedade, agora está tecida em

  • retalhos que mesclam o antigo e o novo, e que inevitavelmente se contrastam, mas a

    linha que costura as aspirações e necessidades é frágil, fina, não convence, é a linha do

    projeto modernizador da CHESF.

    O canto do sabiá já não ritma o tempo, ou quando vem a chuva, agora a televisão

    diz o horário do jornal e do jantar, a noite já não é tão longa com luz alumiando o

    quintal, muda substancialmente nos seios de todos a vida antes e depois da grande e

    geniosa CHESF. Nesse sentido, a memória é recurso recorrente para acessar os

    elementos do passado, da vida e é através dela que podemos ver as experiências dos

    sujeitos, seus saberes e seus viveres no mundo. O risco do esquecimento de um grupo e

    suas significâncias, o apagamento de suas histórias, junto com a cheia dos rios, agora

    oferece perigo de vivência e mais intenso que isso, de sobrevivência. Tornando

    pungente aos indivíduos questionamentos como: Como viver se suas terras não são mais

    suas? Como caracterizar e/ou restabelecer o sentimento de pertencimento quando não se

    sabe para onde ir? Como restabelecer o sentimento de lugar?

    O sertão aparece como espaço de disputa, disputa territorial e também narrativa,

    como propõe Michel Certeau (2008), a polilinguísta nas descrições dos lugares, no

    território trava a disputa da meta-linguaguem diferenciando as definições de lugares e

    de espaços entre o povo ribeirinho e os sujeitos “modernizadores”. Toda essa discussão

    entra na significação com o papel do povo ribeirinho nas suas trajetórias individuais e

    coletivas relatadas nos cordéis. Segundo o autor, “O espaço é feito pelas operações que

    orientam, o circunstanciam, temporalizam, levando a proximidades e conflitos”, “o

    espaço é existencial e a existência é espacial” (CERTEAU, 2008, p.202) , as vivências

    espaciais, portanto são distintas, por vezes, conflituosas, e essencialmente

    representativas de uma relação direta do lugar com a identidade. É através da elaboração

    da narrativa que se faz possível perceber a relação dos ribeirinhos com mundo, o espaço

    e o lugar em relação às ações dos sujeitos históricos.

    A oralidade é fator preponderante para expressão e manutenção dos modos de

    vida, o uso da fala é forma de resistência, pois é na circulação de sabedorias, no registro

    das falas saudosas e dolorosas e que moram os anseios, medos e os sujeitos. É através

    das palavras que se pode salvar o mundo rural do esquecimento, salvaguardar as

    trajetórias pelos seus próprios dizeres, utilizando-as como recurso historiográfico, mas

  • que demarcam também um o compromisso social para com os indivíduos que lutaram

    contra uma narrativa hegemônica. Todavia também é através da linguagem que se faz

    possível perceber os conflitos de interesse e os choques de narrativa, enquanto a CHESF

    diz em suas cartilhas “Águas do presente e do futuro”, o povo do sertão entoa “[...] a

    construção de uma barragem, para poder nos afogar”. A paisagem é construída no

    estereótipo, na imagem-clichê de uma região, é lida e representada sob o signo do

    agreste e do inóspito, lugar do seco, do espinho, do veneno, dos animais primitivos e

    rastejantes; do flagelo e do flagelado, perceber uma narrativa intencionalizada e que

    pretende “trazer luz” para população (ALBUQUERQUE JR, 2011, p. 31).

    É por meio da linguagem como recurso ideal típico sertanejo que se propõe a

    mudança de perspectivada da região do atraso, comumente inferiorizado e é também

    através da fluidez da língua, da riqueza de palavras, que se torna possível perceber a

    historicidade dos sujeitos. Os saberes dos sujeitos tratam seu estar no mundo.

    Principalmente, no sentido de compreender a vida social que esses indivíduos estavam

    inseridos, a classe social, mas também os outros âmbitos da vida, tal como a maneira a

    qual eram identificados, e através de quais táticas, dispositivos e linguagens,

    demonstravam seu senso de pertencimento e sob qual forma agiam no processo de

    perpetuação de memória.

    O princípio ontológico na teoria E.P.Thomposon (1993) sustentava-se na razão

    do processo histórico, com bases na história real e concreta que é dinâmica, fluida e

    imperante, ou seja, nas ações dos sujeitos quando se deparam com a miséria,

    dificuldade, saída do lugar de conforto. Além disso, é importante ressaltar a

    preocupação de Thompson com as classes subalternizadas em contraste com a classe

    dominante e é nesse entendimento que o trabalho se assenta. Enquanto categoria de

    análise os conceitos de costume, tradições e experiência são lançados mão com o

    propósito de abarcar com maior intensidade a vida e atuação dos indivíduos nordestinos.

    É também fator determinante de análise perceber que tudo isso perpassa pela

    consciência do indivíduo e sendo fator decisivo nas ações históricas de acordo ao lugar

    social de pertencimento e compreensão de justiça e injustiça.

    “Os homens e mulheres, retornam como sujeitos dentro desse termo, não

    como sujeitos autônomos, indivíduos livres, mas como pessoas que

    experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como

  • necessidades e interesses como antagonismos, e em seguida “tratam” sua

    experiência em sua consciência e sua cultura, agem, por sua vez, como

    situação determinada”(THOMPSON, 1983,p. 183).

    Os modos de configurar suas existências e experiências aparecem nos versos sob

    forma de saudosismo, melancolia, de uma história apagada ou ainda em apagamento.

    Tudo muda com a chegada da CHESF, e os cordéis aparecem nesse sentido com o

    propósito dos sujeitos de guardar suas tradições, práticas e enfim, suas histórias.

    Resgatar o passado passa a ser uma das únicas formas de manter as próprias

    identidades, buscando nas minúcias mais simples da vida cotidiana os sentidos

    anteriores de sua existência e como, e sob quais aspectos tudo foi alterado. A mudança o

    cotidiano transforma e é capaz de alterar até mesmo a alimentação quando tudo se

    esculpe enquanto novidade, notável em: “Tinha frutas e raízes de muitas plantas

    silvestres/Que ajudavam alimentar o povo do meu Nordeste/Quando a seca

    apertava/Com frutas e raízes brabas/Faziam comida de mestre”.

    2.0 A saudade enquanto recurso mobilizador

    A escrita dos cordéis é um processo simbólico, relata os lugares dos indivíduos

    espacial e temporalmente através do modo que circunscrevem suas vidas em versos que

    lançam mão a memória a fim de mobilizar os seus sentimentos. A memória toma por

    sentido de significar e ressignificar, durante as trajetórias individuais e coletivas,

    aspectos simbólicos de grande valor na vida de tais indivíduos. No processo da escrita

    homens e mulheres aparecem circunscrevendo suas vivências alteradas/ressignificadas

    pelo processo de expropriação da CHESF e é o exemplo de Julia Generosa dos Santos

    que descreve em seu cordel, intitulado Romance da Tristeza, e resgata com saudosismo

    o seu lugar transformado definitivamente:“O pobre pai de família/ Aqui tava muito

    bem/ Trabalhava no roçado/Sem sujeitar a ninguém/ Hoje veve na carreira/ Para ganhar

    o vintém”. O relato de como a vida era antes e depois da instalação da Companhia

    confirmam com tristeza as modificações cotidianas, contrariando todo o discurso da

    CHESF de que esta traria ao povo atingido por barragens somente melhorias na

    qualidade de vida.

    O chamamento da saudade e uso da memória aparece nos cordéis como forma de

    saudosismo, do contraste entre o mundo rural e o mundo urbano/ forçadamente

    “moderno” que está a se construir, batendo literalmente à porta dos ribeirinhos, entra na

  • preocupação dos sujeitos a resistência das suas identidades que estão em processo de

    apagamento. Todo o processo está marcado através de símbolos, histórias, vidas como

    forma de manter a sua identidade e maneiras de dar segmento à vida. É por meio da

    historicidade discursiva do sujeito que conseguimos apreender seus anseios,

    inquietações e sentimentos expressos nos versos: “Quando eu olho para água/ Que era a

    minha casinha/Eu choro e me alembro/ Daquele lindo lugar/Só me queixo da CHESF/

    Que veio me retirar”.

    É por intermédio das poesias ritmadas que se faz possível perceber as alterações

    na paisagem causadas pelo processo de expropriação. As rimas construídas confirmam a

    intensidade dos avanços progressistas na região nordestina. A saída do lugar – em que

    estavam assentados as tradições, costumes e os convívios – provoca nos indivíduos

    alterações no lugar de pertencimento entre o passado e futuro. O discurso fundador,

    como aponta Eni Puccinelli, (2009), em situações de substituição de sentidos, o sentido

    anterior da palavra, das atitudes, dos modos de viver, são desautorizados. Entã o novo

    sentido/tradição produz outros sentidos no lugar anterior, ao mesmo passo que

    apaga/interrompe uma memória produz outras novas.

    Diante dessa realidade alterada, o saudosismo, os sujeitos da beira do rio

    resgatam na memória seus modos de viver e utilizam como elementos fomentadores do

    desejo de mudança, de resgaste do seu passado em busca de um futuro um pouco

    melhor. É através de poetas, musicistas, cordelistas da região nordestinas que é possível

    ter acesso a voz dos sujeitos que sofreram, e que tentaram silenciar, mas que

    encontraram na arte de fazer rima uma forma de resistência. Fugêncio Manoel é um

    desses cordelistas, de 1973, que traz em seus papéis curtos rimas de resistência, de

    chamamento para o povo, entoando a necessidade de contestação, conta a história do

    seu povo desde o início, desde quando tudo começou, “E tudo começou/ Desde o ano

    setenta e três/Que a gente iniciou/Nossa organização/De todos trabalhadores/Para não

    perder as terras/Que a gente sempre plantou”. É a saudade o artifício usado como

    recurso comum e mobilizador entre todos beraderos.

    Fulgêncio, um dos atingidos pela barragem de Itaparica, narra nos primeiros

    versos publicados na revista Hora de mudar é hora de lembrar, publicada pelo

    Sindicato de Trabalhadores Rurais no Submédio do Rio São Francisco, o trato do início

  • do processo de resistência, relata a data de início dos processos de unificação popular,

    especialmente o povo trabalhador, os principais atingidos por barragens. O motivo da

    inquietude é claro, a barragem iria “afogar” suas vidas, trabalhos, plantações, animais

    sendo obrigados a terem uma reorganização. A mentalidade do que seus conterrâneos

    pensavam também é expressada com a estranheza e até mesmo surpresa com aos

    propósitos apresentadas pelas Companhias Hidrelétricas das construções faraônicas:

    “Quando tudo iniciou/Muita gente duvidava/E que as águas da barragem/Lá em cima

    não chegava/Desmanchar o que Deus fez/Muitos não acreditava”.

    O seguinte trecho narra como se deu o processo de entoamento e união dos

    atingidos por barragem em busca da coletividade como alternativa para as soluções das

    terras subtraídas, agindo tais como sujeitos ativos, eu que não aceitavam passivamente o

    processo de expropriação, resistindo ao exôdo forçado, reivindicando suas raízes, tendo

    em vista que o único processo aceitável para resolução daquilo que afligia a todos seria

    a organização popular. O viver comunitário, solidariedade, seriam fatores fundamentais

    e atuantes na resistência contra todas transformações que seriam negativas ao povo. É

    somente por meio da luta, coletividade que a indignação frente à destruição da natureza

    seria capaz de resolver seus problemas, mesmo que parcialmente. Fazia então parte da

    nova atribuição de sentido da vida do povo expropriado o processo de aprendizagem

    com a luta: “Assim foi se organizando/Fazendo reunião/Orientando os companheiros/E

    Fazendo concentração/Hoje já tem gente unida/que se faz um batalhão”.

    Os versos sonorizavam a indignação dos beraderos ao contraste entre o velho e

    o novo, marca também a insatisfação, demonstra o abandono do governo para com o

    povo, aquele só aparece pra desenvolver em certos momentos, a trajetória e

    conhecimentos individuais são apagadas, permanecem somente o planejamento com

    objetivo de expansão. A intensidade dos discursos dos cordelistas refletem a carga

    emocional que carregam nos versos a impetuosidade dos avanços progressistas com a

    construção das barragens e é por meio dos relatos que são efetivadas e legitimadas as

    ações: “Preste atenção como é que eles faziam/Os pobres eram quem trabalhavam/E

    eram quem produziam/E depois para comer/Tinham até que ceder/As terras que

    possuíam”

  • Os cordéis sempre tiveram em sua gênese o caráter marginal, mas é somente

    com as interferências externas na vida desse povo que eles se transformam em material

    transgressor em que os sujeitos aparecem como narradores e conscientes de suas

    próprias histórias. Para além de deleite, a literatura de cordel ganha o sentido de

    denúncia social destinada ao incômodo dos trabalhadores para com as transformações

    trazidas pelas usinas. No livro de cantos aparece o quanto a consciência do sujeito está

    pujança com a realidade que lhe envolve no momento da escrita:“Veja o

    capitalismo/Invadindo nosso chão/Expulsando o lavrador/Matando nossos irmão”3

    Nesse sentido a noção de região e regionalidade é construída forçadamente por

    um planejamento regional que pouco se compromete com as individualidades,

    coletividade e cotidiano dos sujeitos dali. É apresentado ao homem uma nova lógica de

    vivência, tempo, trabalho e produtividade e estes que devem ser abraçados em prol de

    um bem nacional muito mais amplo. Por conseguinte, as películas por fim, não retratam

    as mulheres, indígenas e negros denotando assim o silenciamento desses grupos que não

    aparecem nas filmagens como sujeitos viventes e sobreviventes da região, se antes da

    chegada do “desenvolvimento” não abarcava essas categorias, tão pouco agora elas

    serão contempladas, o progresso nesse sentido mostra seu caráter seletivo mais do que

    nunca, mostra o nordeste de quem e para quem estaria sendo construído.

    Outras fontes documentais servem-se da construção da sua narrativa como

    discurso progressista e desenvolvimentista produzido pela CHESF, ao qual elencando

    somente as possíveis vantagens propiciadas pela construção da barragem, num processo

    massivo de apagamento das vivências ribeirinhas, do outro lado fica claro que é através dos

    cordéis que o povo diverge, entoa e enuncia suas discordâncias para com a Companhia,

    também evocando para um movimento de resistência. É por meio dessa literatura que se

    busca a manutenção da vida, da identidade, num processo constante contra o

    apagamento do seu lugar, das suas culturas, dos modos de fazer. O povo se apropria da

    literatura como forma de manifestação, quando não aparece escrevendo-as, está na

    leitura do dia a dia, no deleite, e é por meio delas também que se usa como

    método/ferramenta de união popular, é o ponto de unificação.

    3 Muitos dos cordéis não possuem autoria, no entanto grande parte das fontes contém o carimbo do

    Movimento de Atingidos por Barragens.

  • Sendo assim, embora a narrativa da CHESF elenque as suas benfeitorias, é por

    meio do discurso do povo diretamente atingido que se torna possível buscar ouvir e

    compreender, aqueles que tiveram seus modos de fazer alterados, seus lugares

    apagados, conhecimentos desconsiderados, culturas subalternizadas pelo afogamento

    das águas do Rio São Francisco. O povo recorre por meio de símbolos trazer suas

    representações no papel pardo, nas rimas, no ritmo, o seu antes, agora e o depois,

    trazendo pelo vocabulário sertanejo o passado recente, o presente e tentando vislumbrar,

    e (sobre)viver ao futuro. É na historicidade desses sujeitos, ativos, e jamais passivos no

    processo de expropriação e ataque ao projeto governamental, que buscam ativamente

    seus desejos, ideais e necessidades que a história deve se atentar, não os transformando

    em heróis, mas desmistificando as narrativas nacionais amplificadas na história

    nacional.

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