apontamentos para uma revisão do direito constitucional ao...
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
FACULDADE DE DIREITO
Apontamentos para uma reviso do direito constitucional
ao silncio no sistema jurdico brasileiro
JOS HANIEL DE SOUZA BARROS
Monografia apresentada como requisito
parcial necessrio obteno do grau de
bacharel em Direito, realizado sob a
orientao do professor doutor Frederico
Henrique Viegas de Lima
Braslia
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2011
FICHA CATALOGRFICA
BARROS, Jos Haniel de Souza, 1985 -.
Apontamentos para uma reviso do direito constitucional ao silncio no sistema jurdico
brasileiro / Jos Haniel de Souza Barros. - 2011.
Orientador: Frederico Henrique Viegas de Lima.
Trabalho de concluso de curso (graduao) - Universidade de Braslia, Curso de Direito,
2011.
1. Direito ao silncio. 2. Hermenutica constitucional. 3. Reviso crtica. I. LIMA, Frederico
Henrique Viegas de. II. Universidade de Braslia, Curso de Direito. III. Ttulo.
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Aquele que durante o interrogatrio
insiste em no responder s perguntas
feitas merece uma pena afixada pelas
leis, uma pena das mais severas entre
as previstas, para que os homens no
faltem necessidade do exemplo que
devem ao pblico
Cesare Beccaria
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RESUMO
O presente trabalho se desenvolveu a partir de observaes empricas em
processos judiciais. Notou-se que grande parte dos acusados utilizam o silncio para retardar o
processo que tm contra si ou mesmo para ocultar um crime efetivamente cometido.
Comeou-se a questionar, assim, o que fundamenta este direito ao silncio. A anlise histrica
do instituto foi uma ferramenta imprescindvel para esta tarefa. Com este instrumento, foi
possvel apontar o equvoco de aplicar o direito ao silncio de maneira absoluta e irrestrita
(palavras utilizadas por juzes e doutrinadores) no sistema jurdico brasileiro de hoje. Isto
porque este direito surgiu em um contexto completamente diverso do atual, quando o acusado
no tinha direitos fundamentais bsicos, como ampla defesa, presuno de sua inocncia,
proteo fsica e psicolgica. Portanto, sob uma perspectiva lgica e jurdica, no mais
possvel silenciar sempre, enganando a justia ou ocultando um crime cometido. Com isto, se
quer dizer simplesmente que o direito ao silncio no absoluto, nem irrestrito. Tentou-se
demonstrar que qualquer interpretao neste sentido descabida, pois incompatvel com o
sistema jurdico brasileiro atual.
Palavras-chave: direito ao silncio; interpretao; Beccaria; reviso crtica
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Sumrio
INTRODUO..........................................................................................................................6
1. HISTRIA DO DIREITO AO SILNCIO..........................................................................11
1.1 Inveno do direito ao silncio ........................................................................................... 11
1.2. Direito ao silncio fora do Brasil ....................................................................................... 14
1.3. Direito ao silncio no Brasil .............................................................................................. 15
2. FUNDAMENTOS DO DIREITO AO SILNCIO...............................................................17
2.1. Vedao de auto-incriminao .......................................................................................... 17
2.2. Dignidade da pessoa humana............................................................................................. 18
2.3. Silncio na obra de Beccaria .............................................................................................. 19
3. INTERPRETAO DO DIREITO AO SILNCIO............................................................21
3.1. Idia de interpretao ......................................................................................................... 21
3.2 Interpretao e Constituio ............................................................................................... 23
3.3 Leitura da doutrina, da jurisprudncia e do legislador ordinrio ........................................ 25
3.4. Uma leitura com outros elementos .................................................................................... 30
CONCLUSO..........................................................................................................................36
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................................38
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INTRODUO
Segundo conta Moiss, no livro sobre a formao do mundo1, Deus criou um
jardim para o homem nele habitar. Fez brotar neste jardim trs rvores: uma agradvel a vista
e boa para comida, a rvore da vida e a rvore da cincia do bem e do mal. E ordenou Deus:
C de toda a rvore do jardim comers livremente, mas da rvore da cincia do bem e do mal,
no comers, porque no dia em que dela comeres, certamente morrers.
Deus C ressalta Moiss C conhece todas as coisas. Assim, quando Ado e Eva
descumpriram a lei, comendo justamente do fruto proibido, este fato j era conhecido pelo
Criador. Todavia, se Deus tivesse limites humanos, o que teria feito para conhecer a verdade?
Como investigaria? Com esta pergunta, adentra-se, ainda que metaforicamente, ao centro
deste trabalho.
Nesta metfora, o Estado o deus que tem o poder de impor limites aos homens.
o Estado que traa a linha que divide o bem do mal. Ao contrrio das razes de Deus, as
razes do Estado podem ser especuladas. Os limites existem para benefcio do prprio Estado.
Primeiro para sua existncia e depois para a paz de cada pessoa integrante do Estado.
Atualmente, so as prprias pessoas que criam suas regras, por um procedimento
democrtico. A imposio de um limite presume-se, ento, para bem da maioria. A todo
indivduo o Estado garante o direito de fazer qualquer coisa que quiser. S no pode
ultrapassar o limite da legalidade, matando, roubando, comendo justamente da rvore do bem
e do mal.
O problema nasce, portanto, quando algum ato ilcito cometido. Alis, o
problema surge dos limites do Estado de conhecimento desses atos. O ser humano conviver
sempre com a irracionalidade, porque de sua natureza, e C portanto C ter de conviver
sempre com o erro. Se todos os delitos fossem, entretanto, testemunhados (conhecidos) pelo
Estado, poderiam ser avaliados, corrigidos, modificados.
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Quando algum morre, o Estado precisa investigar, porque no onisciente
como um deus. Precisa saber se houve um homicdio ou se a morte se deu por causas naturais.
Como investigar? Quais os limites da investigao? A histria mostra que o poder de
investigar quase sempre se exerceu da forma mais ilimitada possvel. Em virtude disso,
surgiram diversos direitos para os que se encontravam sob investigao. Entre esses direitos,
encontra-se o silncio.
O presente trabalho constitui-se, neste sentido, em estudo especfico sobre o
direito constitucional ao silncio. A Constituio Federal de 1988 assim o estabelece: o preso
ser informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistncia da famlia e do advogado (art. 5, inciso LXIII).
O Cdigo de Processo Penal dispe de forma semelhante: depois de
devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusao, o acusado ser informado
pelo juiz, antes de iniciar o interrogatrio, do seu direito de permanecer calado e de no
responder perguntas que lhe forem formuladas (art. 186, caput).
Apesar de constar na Constituio a palavra preso, certo que o direito em
anlise se estende a todos os acusados em geral, conforme dispe o Cdigo de Processo Penal.
Por esta razo, o termo usado ao longo do trabalho, para se referir ao destinatrio do direito ao
silncio, ser acusado.
A garantia ao silncio uma construo histrica. Surgiu, de modo geral,
conforme ser detalhado no primeiro captulo deste trabalho, em reao tortura, prtica
usualmente utilizada no perodo medieval, para se obter, em um inqurito, a confisso do
acusado.
Desse surgimento mais remoto at a incorporao do direito ao silncio no
sistema jurdico brasileiro, o contexto em que se interpreta e se aplica esta garantia mudou
substancialmente. De um estado inquisitorial a um estado democrtico de direito, com a
cristalizao, desde a Revoluo Francesa at hoje, de direitos fundamentais, como o devido
processo legal, presuno de inocncia, garantia integridade fsica do preso, proibio e
criminalizao da tortura, ampla defesa, surgiram muitas mudanas.
Com efeito, ser difcil encontrar um jurista que defenda, hoje, a tortura para a
obteno de uma prova judicial. Por outro lado, a prtica jurdica moderna mostra que o
1 Gnesis, 2 : 4-17.
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silncio garantido ao acusado no cumpre mais o papel de inibidor da tortura, mas usado
essencialmente para dois objetivos: a) no produzir prova contra o prprio acusado; e b)
ocultar a prtica de um ato ilcito.
A impossibilidade de se poder exigir a um acusado que produza provas contra si
prprio, tema que ser aprofundado no segundo captulo desta monografia, um direito
reconhecido na maior parte do mundo. Neste sentido, dispe expressamente a Conveno
Americana sobre Direitos Humanos, subscrita durante a Conferncia Especializada de
Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, na cidade de So Jos, na Costa Rica:
Artigo 8 - Garantias judiciais. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito
a que se presuma sua inocncia enquanto no se comprove legalmente sua
culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, s
seguintes garantias mnimas: g) direito de no ser obrigado a depor contra
si mesma, nem a declarar-se culpada (grifo nosso)
Esta garantia parece ser, na atualidade, a que melhor fundamenta o direito ao
silncio. Persiste, todavia, um questionamento: e quando este direito utilizado de forma
fraudulenta, para ocultar um crime efetivamente cometido? Esta a questo central do
presente trabalho.
Antes de analisar este problema, preciso refletir sobre a importncia do direito
ao silncio. Os processualistas Nestor Tvora e Rosmar Rodrigues Alencar trazem
interessantes questionamentos. Em estudo sobre o interrogatrio, afirmam que uma de suas
caractersticas deve ser a espontaneidade. Entendem, no entanto, muito difcil esta
espontaneidade em interrogatrio realizado dentro de estabelecimento prisional:
claro que o preso no ficar a vontade para relatar, no interrogatrio
realizado dentro do presdio, circunstncias que possam esclarecer o fato,
principalmente se estas comprometerem outros infratores, afinal, a lei do
silncio impera nos estabelecimentos prisionais, e a pena para esta violao
paga muitas vezes com a vida. Como delatar outros infratores que esto no
mesmo ambiente prisional? E denunciar a tortura praticada para que
houvesse confisso? o risco que muitos optam por no correr2 (grifo
nosso)
Apesar de os autores estarem se referindo especificamente ao interrogatrio em
estabelecimento prisional, possvel trazer estas mesmas perguntas para um contexto maior.
2 (TVORA; ALENCAR, 2011, p. 403)
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Em quantas oportunidades um acusado deixa de apontar sua verso dos fatos para proteger a
prpria vida? plenamente possvel que o estado-polcia exija dos acusados a confisso de
um delito no cometido. Podem utilizar-se da tortura e no raro h notcias de que isso
acontece.
Algumas questes, no entanto, precisam ser igualmente refletidas. O silncio de
um acusado, quando lhe dada a oportunidade de defender-se, no pode exercer tambm a
funo de omitir um ato ilcito realmente praticado? Se verdade que a garantia ao silncio
pode evitar abusos por parte do estado-polcia, no certo tambm que o silncio pode abrigar
uma fraude prpria investigao estatal?
Os avanos tecnolgicos caractersticos da sociedade atual denunciam, com alto
grau de segurana, a inteno de muitos acusados em esconder prticas ilcitas que realmente
cometeram. Cmeras, aparelhos GPS's (Global Positioning System), celulares e outros
instrumentos que permitem obter imagem, som e localizao exatos, podem tornar inverdica
a descrio especfica de um fato feita perante um tribunal. Assim, existindo o risco de isto
acontecer, o acusado prefere silenciar, a dar uma narrativa qualquer.
O silncio que esconde o ato ilcito , desta forma, a preocupao maior deste
trabalho. Neste sentido, necessrio abrir um corte conceitual, para dividir a aplicao do
direito ao silncio em duas hipteses distintas, tendo como critrios o comportamento e
inteno do acusado no processo.
A jurisprudncia e a doutrina, conforme se notar no terceiro captulo do
presente trabalho, no conhecem este corte ou se o conhecem, no o admitem. Tanto para os
juzes, quanto para a doutrina dominante, o direito ao silncio deve ser aplicado de forma
irrestrita. Para eles, este direito constitucional permite tanto a omisso dos fatos nas mais
variadas situaes, quanto a prpria mentira sobre eles.
O legislador ordinrio, por sua vez, foi mais sensvel ao problema. De incio,
entendeu que "o juiz observar ao ru que, embora no esteja obrigado a responder s
perguntas que lhe forem formuladas, o seu silncio poder ser interpretado em prejuzo da
prpria defesa"3.
Mudou radicalmente de posio, dispondo, na redao atual do mesmo artigo,
dada pela Lei n 10.792/2003 que "o silncio, que no importar em confisso, no poder ser
3 Art. 186 do Cdigo de Processo Penal, com redao anterior ao ano de 2003.
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interpretado em prejuzo da defesa". Esta mudana de posio importante e mereceu anlise
mais detida no terceiro captulo do presente trabalho, que cuidar da interpretao do silncio.
Com a estrutura de idias apresentada, se pretendeu examinar as conseqncias
jurdicas do direito ao silncio conforme previsto na Constituio Federal de 1988. Este foi,
entretanto, apenas o ponto de partida. Foi preciso se despir de uma concepo esttica de
direito, em especial de direito constitucional, para um estudo mais dinmico, que pudesse
incluir tambm as mudanas de contexto de aplicao do direito e no apenas o direito em si.
Ver um acusado, com seu silncio, omitir fatos ou mentir sobre eles, de forma
irrestrita, fundamentando esta conduta na prpria Constituio causa perplexidade, quando se
adota a tica do presente trabalho. O que se v uma fraude ao procedimento judicial de
busca dos fatos. preciso, portanto, entender o direito ao silncio dentro de seu novo contexto
jurdico e indagar se os seus fundamentos se sustentam.
Desta forma, deve-se perguntar: a) o indiciado que tem inclume sua integridade
fsica ainda pode omitir fatos?; b) o indiciado que s ser condenado com provas de seu
delito, j que se presume inocente, ainda pode omitir fatos?; c) o indiciado com direito a um
devido processo legal, ainda pode omitir fatos? Note-se que estes so valores constitucionais
novos, se comparados ao estado inquisitorial vigente no contexto de surgimento do direito ao
silncio.
Percebe-se que o tema complexo, pois apresenta muitas variveis. Duas,
todavia, merecem destaque. A primeira se relaciona ao procedimento estatal de investigao,
pois o direito ao silncio um dos elementos que o constitui.
A segunda varivel na anlise do tema a interpretao do direito ao silncio,
isto , uma tentativa de compreender o sentido e o alcance da norma, expressando-os com
figuras diferentes das usadas em sua formulao original4. Assim, sero examinados os
discursos da doutrina e da jurisprudncia em sua anlise interpretativa, com a incluso de
novos elementos.
4 (HERKENHOFF, 2004, p. 9)
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1. HISTRIA DO DIREITO AO SILNCIO
1.1 Inveno do direito ao silncio
Este captulo abordar a histria do direito ao silncio. No , entretanto C caso
assim se imagine C um captulo meramente informativo. A histria do direito ao silncio faz
parte da essncia do presente trabalho, na medida em que ela caminho necessrio, sob a
perspectiva aqui assumida, para se abordar os fundamentos e a interpretao deste direito. As
conseqncias deste estudo histrico esto, portanto, no centro da presente reflexo.
Surge, assim, uma primeira pergunta fundamental: quando surgiu o direito ao
silncio? Como surgiu? Quais os motivos determinaram seu reconhecimento? Conforme se
notar mais adiante, o direito ao silncio no existiu sempre. Ele foi, em dado momento,
inventado. Alis, esta idia toma como premissa uma afirmao mais geral, formulada pelo
filsofo Friedrich Nietzsche, de que todo o conhecimento inventado. A afirmao esta:
Em algum ponto perdido deste universo, cujo claro se estende a inmeros
sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes
inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema
arrogncia da histria universal5
5 (NIETZSCHE apud FOUCAULT, 2003, p. 13)
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Em estudo especfico sobre esta afirmao, Michel Foucault, pensador francs,
traz diversos elementos para sua compreenso6. O primeiro distinguir a palavra inveno
(em alemo Erfindung), adotada no texto de Nietzsche, da palavra origem (Ursprung). Este
discernimento necessrio para demonstrar que a inveno uma ruptura, algo que
possui um comeo sem importncia e evolui gradativamente. So exemplos de inveno,
para Nietzsche, a poesia, a religio, o conhecimento.
O conhecimento , portanto, inventado. Como se d esta inveno, todavia? Por
relaes de poder, por resultado dos instintos. Spinoza entendia que compreender (intelligere)
era abster-se de rir (ridere), deplorar (lugere) e detestar (detestari). Nietzsche diz exatamente
o contrrio, afirmando que compreender no nada mais que um certo jogo, ou melhor, o
resultado de um certo jogo, de uma certa composio ou compensao entre ridere, rir, lugere,
deplorar, e destari, detestar7.
Neste sentido, parece que o direito ao silncio foi gestado durante a Inquisio,
como reao instintiva a ela. A Inquisio consistia em um mtodo utilizado pela Igreja para
admoestar ao seguimento estreito nos caminhos da f crist, por meio de procedimentos de
investigao destinados a este fim.
Havia, no entanto, uma unio entre Estado e Igreja, que levava a duas
conseqncias: a Inquisio tambm investigava crimes, condutas seculares, alm de pecados,
e legitimava-se, por outro lado, a investigao eclesistica pelo Estado em decorrncia desta
unio. Foucault diz, neste sentido, que se tem assim por volta do sculo XII, uma curiosa
conjuno entre a leso lei e a falta religiosa8. Este pensador resume o perodo inquisitorial
da seguinte forma:
Havia, com efeito, uma prtica de inqurito na Igreja da Alta Idade Mdia,
na Igreja Merovngia e Carolngia. Esse mtodo se chama visitatio e consistia
na visita que o bispo devia estatutariamente fazer, percorrendo sua diocese, e
que foi retomado, em seguida, pelas grandes ordens monsticas. Ao chegar
em determinado lugar o bispo institua, em primeiro lugar, a inquisitio
generalis C inquisio geral C perguntando a todos os que deviam saber (os
notveis, os mais idosos, os mais sbios, os mais virtuosos) o que tinha
acontecido na sua ausncia, sobretudo se tinha havido falta, crime, etc. Se
esse inqurito chegasse a uma resposta positiva, o bispo passava ao segundo
estgio, inquisitio specialis C inquisio especial C que consistia em
apurar quem tinha feito o que, em determinar em verdade quem era o autor e
6 (FOUCAULT, 2009, p. 14-16)
7 (FOUCAULT, 2003, p. 20/21)
8 (Idem, p. 74)
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qual a natureza do ato. Finalmente um terceiro ponto: a confisso do culpado
podia interromper a inquisio em qualquer estgio, em sua forma geral ou
especial. Aquele que tivesse cometido o crime, poderia apresentar-se e
proclamar publicamente: Sim! Um crime foi cometido; consistiu nisso; eu
sou o seu autor 9
Era este exatamente o objetivo do inquisidor: que o acusado confessasse o delito.
Acreditava-se que as informaes denunciativas eram verdadeiras. Pressupunha-se que havia
existido uma afronta aos sagrados mandamentos de Deus e precisava-se, com isto, investig-la
para puni-la. Presumia-se que o acusado era culpado e que, uma vez que no confessasse
espontaneamente o delito ou heresia, negando as acusaes ou calando-se, estava com isto
fugindo de sua justa punio. Como obter, ento, a confisso? Como quebrar o silncio? Com
a tortura.
Joo Claudio Couceiro10 ensina que a tortura era utilizada para obter a confisso,
mas tambm o arrependimento do acusado. Em verdade, o compromisso principal da Igreja
era com a doutrina que professava. A confisso no era seu objetivo principal, a ponto de o
arrependimento voluntrio implicar na interrupo do procedimento inquisitrio. No entanto,
a tortura no era dispensada para o esclarecimento dos fatos. Foi adotada como prtica
regular na bula Ad extirpanda, de 1252, por Inocncio IV e em outros atos pontifcios,
notadamente, no de Alexandre IV, em 1259, e de Clemente IV, em 1265.
preciso destacar, portanto, que o contexto em que foi gestado o direito ao
silncio completamente diverso do contexto atual. A tortura, durante a Inquisio, era
prtica legtima e institucionalizada. No se justifica C entretanto C na maioria dos sistemas
jurdicos modernos. A tortura, no Brasil, foi abolida na Constituio Poltica do Imprio.
Neste sentido, vale o histrico feito por Pontes de Miranda, glosando artigo 150, 14, da
Constituio de 1967, referente integridade fsica e moral do acusado:
Art. 150, 14. Impe-se a todas as autoridades o respeito integridade
fsica e moral do detento e do presidirio. 1) I. Constituio Poltica do
Imprio do Brasil, art. 179, 19: Desde j ficam abolidos os aoutes, a
tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas creis; 21: As
cadeias sero seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para
separao dos rus, conforme suas circunstncias e natureza de seus crimes.
II. Constituio de 1891, art. 72, 26: Fica abolida a pena de gals e a de
banimento judicial. III. Constituio de 1934, omissa. IV. Constituio de
1937, omissa. V. Constituio de 1946, omissa (grifo nosso)
9 (Idem, p. 70)
10 (COUCEIRO, 2004, p. 47)
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E depois do histrico, comenta:
A apario do art. 150, 14, na Constituio de 1967 revela que o recuo, em
1964, foi de sculo e meio. O legislador constituinte teve por fito pr-excluir
qualquer prtica de torturas, fsicas e psquicas, para que se assegurasse a
quem nasceu no Brasil ou a quem est no Brasil a integridade fsica e
psquica11
Foi o trauma causado pela Inquisio que fez nascer um instinto de proteo, de
defesa, contra as prticas realizadas naquele perodo. Assim, este sistema inquisitorial comea
a no ser mais aceito12
, at ser substitudo durante a Revoluo Francesa.
Com os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, garante-se ao indivduo
uma srie de direitos fundamentais oponveis ao prprio Estado, ou seja, o procedimento de
apurao de delitos dever seguir leis criadas pelos prprios cidados. S ser proibido (e,
portanto, passvel de punio) a conduta que a lei criada pela sociedade declarar e no mais o
que a Igreja prescreve.
Os fatores apontados, a saber, o contexto histrico vigente durante o perodo
inquisitorial e a posterior contestao desse sistema, foram os fatores que germinaram a
criao do direito ao silncio, isto , so elementos que forneceram condies para seu
desenvolvimento. No foi no perodo apontado, contudo, que este direito nasceu. Nenhum
nascimento se d sem dificuldade. E possvel dizer que o direito ao silncio ainda no est
completamente formado: ele ainda est nascendo.
1.2. Direito ao silncio fora do Brasil
O direito ao silncio no vem se desenvolvendo de maneira uniforme no mundo.
Em cada pas, parece haver um fundamento peculiar que o autorize ou rechace de maneira
mais ou menos intensa. No Brasil, este direito apresenta uma histria completamente singular,
conforme se demonstrar adiante.
11
(MIRANDA, 1968, p. 329)
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A atual legislao da Inglaterra uma demonstrao de que o direito ao silncio
no tem como nico fundamento a vedao de auto-incriminao. Depois de um longo debate
sobre o direito ao silncio, uma comisso chamada Report of the Home Office Working Group
on the Right Silence chegou s seguintes concluses: a) o direito de permanecer calado era
utilizado sobremaneira pelos criminosos profissionais; b) os advogados geralmente
aconselhavam ao acusado ficar em silncio; e c) o exerccio do direito ao silncio era a maior
barreira para a polcia obter provas que levassem a condenaes, dando margem
impunidade13
.
Por causa destes elementos houve um movimento que pretendeu abolir o direito
ao silncio, com o lema de que os inocentes no tm nada a esconder. No se aboliu,
contudo, este direito, mas ele foi bastante restringido por uma lei de 1994, o Criminal Justice
and Public Order Act.
Ao contrrio da Inglaterra, nos Estados Unidos da Amrica, a tendncia de
alargar a aplicao do direito ao silncio. Este direito entendido como incluso na 5 emenda
Constituio estadunidense: (...) ningum ser compelido a testemunhar contra si prprio
no curso de um processo criminal, a partir principalmente do caso Miranda vs. Arizona, de
1966.
Ernesto Miranda, mexicano, foi preso em Phoenix, estado do Arizona, acusado
da prtica de crime sexual. Depois de interrogado por dois policiais, estes ltimos
datilografaram uma confisso, que foi assinada por Miranda, contendo um pargrafo em que
se afirmava no ter havido qualquer ameaa e ter sido feito de forma voluntria. Esta
declarao foi utilizada como prova. Miranda foi condenado pelo tribunal do jri. O Supremo
Tribunal do Arizona confirmou a sentena. No entanto, a Suprema Corte dos Estados Unidos
anulou a condenao, entendendo que Miranda no tinha sido informado do seu direito de
ficar calado, maculando, assim, sua confisso.
1.3. Direito ao silncio no Brasil
12
Couceiro cita a crtica feita por Hobbes, no De Cive (1642), de Voltaire, no Tratado da Tolerncia
(1762), e de Pietro Verri, no Observaes sobre a tortura (1770) (COUCEIRO, 2004, p. 52/53). 13
( COUCEIRO, 2005, p. 81-82)
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A partir do caso Miranda vs Arizona, consolida-se a individualizao do direito
ao silncio, com caractersticas e fundamentos prprios. Segundo a doutrina constitucional14
e
tambm jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, este caso o precursor do
reconhecimento pelo legislador constituinte de 1988 do direito ao silncio.
preciso deixar claro que isto um equvoco. Muitas distines necessitam ser
feitas, aqui. O direito ao silncio no Brasil no surgiu com a Constituio Federal de 1988. O
Cdigo de Processo de Penal vigente C em sua redao original C j estabelecia, desde
1941, que antes de iniciar o interrogatrio, o juiz observar ao ru que, embora no esteja
obrigado a responder s perguntas que Ihe forem formuladas, o seu silncio poder ser
interpretado em prejuzo da prpria defesa (art. 186, redao original) (grifo nosso).
possvel discutir os novos contornos delineados pela Constituio, mas no se pode negar a
existncia anterior do direito ao silncio.
O reconhecimento deste direito na Carta Poltica vigente tem como causa
imediata no a influncia do caso Miranda vs Arizona, mas sim o contexto scio-poltico
brasileiro quando de sua promulgao. A Constituio estabelece que o preso ser informado
de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistncia da
famlia e do advogado (art. 5, inciso LXIII).
Uma pergunta muito pertinente deve ser feita: qual a relao entre o direito ao
silncio, a garantia de assistncia da famlia e direito defesa tcnica, por advogado? Sua
disposio em um mesmo inciso parece indicar uma causa, um fundamento comum.
necessrio lembrar que o Brasil sara recentemente, no ano de 1985, de um regime poltico
ditatorial, em que no eram raros os relatos de desaparecimentos, prises arbitrrias e torturas.
Quando ento se promulga a Constituio, smbolo por excelncia do novo
regime poltico democrtico, garante-se assistncia da famlia e do advogado, para impedir os
desaparecimentos e tutela-se o direito de permanecer calado, para evitar a tortura.
Ressalte-se a deficincia da doutrina constitucional brasileira em identificar a
histria do direito constitucional ao silncio. Parece que a interpretao deste direito tem sido
feita a partir do contexto estadunidense. Antes mesmo, entretanto, de a Suprema Corte dos
Estados Unidos individualizar o direito ao silncio no caso Miranda vs Arizona (1966), ele j
era reconhecido no Cdigo de Processo Penal (1941) vigente.
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Mesmo os contornos definidos na atual Constituio Federal tm mais relao
com o contexto latino-americano do que com as influncias das decises da Suprema Corte
dos Estados Unidos. No possvel entender, conforme salientado, o art. 5, inciso LXIII sem
entender as ditaduras que assolaram, de maneira mais ou menos uniforme, a Amrica Latina.
Interessante notar, neste sentido, que a Constituio Mexicana de 1917, promulgada logo aps
a ditadura de Porfrio Dias, findada em 1911, assegura os mesmos direitos da Constituio
brasileira:
"Artculo 20. El proceso penal ser acusatorio y oral. Se regir por los
principios de publicidad, contradiccin, concentracin, continuidad e
inmediacin. B. De los derechos de toda persona imputada: II. A declarar o a
guardar silencio. Desde el momento de su detencin se le harn saber los
motivos de la misma y su derecho a guardar silencio, el cual no podr ser
utilizado en su perjuicio. Queda prohibida y ser sancionada por la ley
penal, toda incomunicacin, intimidacin o tortura. La confesin rendida sin
la asistencia del defensor carecer de todo valor probatorio"15
(grifo nosso)
A questo principal que se coloca, doravante, conhecer as consequncias do
reconhecimento pela Constituio Federal de 1988 do direito de permanecer calado, para se
poder determinar seu alcance. Em outras palavras: o que muda no sistema jurdico brasileiro
com este reconhecimento constitucional?
14
(MORAES, 2002, p. 399-400) 15
Disponvel para download em http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf Acessado em
25/09/2011.
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2. FUNDAMENTOS DO DIREITO AO SILNCIO
2.1. Vedao de auto-incriminao
No possvel deixar de abordar o problema da fundamentao do direito ao
silncio. Isto porque a fonte buscada por cada autor para explic-lo ser diferente, a depender
de que como ele C autor C o compreenda. Assim, por exemplo, Thiago Bottino no dissocia
direito ao silncio do princpio de vedao de auto-incriminao e, em virtude disso, encontra
PAGE 19
na 5 emenda16
Constituio dos Estados Unidos da Amrica, de 1791, o primeiro diploma
legal a tutelar o direito ao silncio17
.
Por outro lado, Joo Cludio Couceiro entende direito ao silncio de forma mais
estrita, como garantia do acusado de simplesmente no falar para se defender, s admitindo
sua existncia nos sistemas continentais18
em 1897, com a promulgao de uma lei que
estabelecia uma instruo inicial (instruction pralable) ao acusado, permitindo-lhe que se
defendesse, e no sistema anglo-saxo, a partir de 1679, com o reconhecimento de alguns
instrumentos de defesa ao acusado19
.
O que fundamenta, ento, o direito ao silncio? uma consequncia do
princpio da vedao de auto-incriminao, um meio de defesa, um requisito necessrio ao
devido processo legal? Ou nenhuma dessas hipteses? Qual a base que sustenta este direito?
Segundo entendimento que se vem consolidando, tanto em sede doutrinria, quanto
jurisprudencial, o fundamento do direito ao silncio est no princpio da vedao de auto-
incriminao.
Este princpio, segundo informao que se encontra no trabalho monogrfico de
Cludia Nicolazzi Medeiros da Cunha Delpizzo20
, tem razes na Antiguidade e foi afirmado
por So Joo Crisstomo, segundo o qual ningum poderia ser obrigado a trair a si mesmo em
pblico. Faz referncia ainda existncia da vedao da auto-incriminao, no direito hebreu,
para crimes que levassem pena de morte, pois a confisso, em tal hiptese, equivaleria a
uma espcie de suicdio, no dispondo o homem deste direito, pois a vida pertence somente a
Deus21
.
Parece que o princpio da vedao da auto-incriminao tem, de fato, um
aspecto religioso, j que, dentro de categorias lgicas, incoerente ao Estado dispensar o
esclarecimento de uma possvel afronta ao ordenamento jurdico, em virtude de um direito
individual do cidado no confessar, inclusive quando tenha realmente cometido um ato
ilcito.
16
5 emenda: (...) ningum ser compelido a testemunhar contra si prprio no curso de um processo
criminal. 17
(BOTTINO, 2009, p. 54) 18
(COUCEIRO, p. 57) 19
(COUCEIRO, p. 71) 20
Disponvel em
http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/34821/Direito_Sil%C3%AAncio_Interpreta%C3%A7%C3%
A3o_Cl%C3%A1udia_Nicolazzi.pdf?sequence=1. Acesso em 29.02.2011
PAGE 20
2.2. Dignidade da pessoa humana
O princpio da dignidade da pessoa humana fundamento da Repblica
Federativa do Brasil, conforme art. 1, III, da Constituio Federal de 1988. O que informa
este princpio? Qual seu contedo? A estas perguntas tem sido dadas inmeras e diferentes
respostas. Destaca-se, entretanto, o desenvolvimento na obra do filsofo Immanuel Kant.
Segundo Kant, o ser humano deve ser tratado como um fim em si mesmo,
justamente por lhe ser inata a dignidade. No mesmo sentido, afirma que: "No reino dos fins,
tudo tem ou um preo ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preo, pode ser substituda
por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preo, e por isso no
admite qualquer equivalncia, compreende uma dignidade22
.
Diz-se que a exigncia a uma pessoa de uma explicao sobre um fato sob
investigao lhe feriria a dignidade humana. Ora, uma vez observados os direitos humanos
do acusado, presumindo-lhe a inocncia, proibindo-lhe em absoluto qualquer tipo de
tratamento desumano ou degradante, respeitando-lhe a integridade fsica e moral, garantindo-
lhe todos os meios de defender-se, em uma apurao dos fatos sem excessos, no h qualquer
motivo que justifique o direito ao silncio.
O discurso do Estado bastante claro. Ningum obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa, a no ser em virtude de uma lei aprovada por todos, em unanimidade, ou
por maioria. A liberdade a regra. Quando se pratica, entretanto, uma conduta fora dos
parmetros legais, o nico interesse possvel para o Estado, apur-la e puni-la. Em tal
hiptese, no possvel que o Estado se negue a averiguar os fatos, seja permitindo ao
cidado que omita ou minta sobre seu objeto de investigao.
Todavia, esta argumentao se justifica quando se adota unicamente a
perspectiva lgica. O que diria uma pessoa, consciente de um delito que tenha cometido,
quando perguntada sobre este mesmo delito? Falaria a verdade, confessando o crime? Ou
mentiria, ficaria calada, com o objetivo de se proteger? A ltima alternativa sem sombra de
21
(DELPIZZO, 2010, p. 17) 22
(KANT, 2004, p. 65)
PAGE 21
dvida a mais compatvel com a natureza humana. O instinto humano de auto-preservao e
por este motivo apenas muito excepcionalmente um acusado se prejudicaria, produzindo, por
si mesmo, uma prova que o incriminasse.
2.3. Silncio na obra de Beccaria
por esta razo e por nenhuma outra que se garante ao cidado a inexigibilidade
de produzir prova contra si mesmo. Interessante observar que esta linha de raciocnio no
recente. Beccaria j a esboa, no seu livro Dos delitos e das penas, em 1764. Diz ele que os
motivos desse mtodo [interrogatrio] so ou no sugerir ao ru uma resposta que o acoberte
da acusao, ou talvez porque parece contrrio natureza mesma que um ru se acuse por
si s23
(grifo nosso).
Delimitado o objeto do princpio da vedao da auto-incriminao, preciso
indagar se ele fundamenta, como sustentam doutrina e jurisprudncia atuais, o direito ao
silncio. Neste ponto, voltamos Beccaria, para ouvir sua opinio: aquele que durante o
interrogatrio insistisse em no responder s perguntas feitas merece uma pena afixada pelas
leis, uma pena das mais severas entre as previstas, para que os homens no faltem
necessidade do exemplo que devem ao pblico24
.
Quo sonora parece esta afirmao de Beccaria ao jurista de hoje. To sonora,
que muitos preferem nem ouvir. Beccaria entende que no s impossvel tutelar um suposto
direito ao silncio, como o silncio deve ser penalizado. E no penalizado de forma simples,
mas com pena das mais severas entre as previstas.
O trecho citado , pois, bastante denso e mereceria, por si somente, um estudo
aprofundado, primeiro para entender, dentro do pensamento desenvolvido por Beccaria, a
relao entre o direito ao silncio e o princpio da vedao de auto-incriminao, depois, os
motivos para uma penalizao to severa ao silncio, dentro de uma obra considerada marco
no reconhecimento de direitos.
23
(BECCARIA, 2005, p. 125) 24
(Idem, p. 127)
PAGE 22
A parte final, no entanto, fornece um elemento essencial que probe o silncio e
guarda, assim, relao com o presente trabalho. Trata-se do dever que toda pessoa tem de
contribuir para a apurao de uma possvel leso a toda a sociedade, consubstanciada na
prtica de um delito (para que os homens no faltem necessidade do exemplo que devem
ao pblico).
Beccaria chama a ateno para a dicotomia pblico / privado. Alerta para a
circunstncia de um delito no poder ser tratado como um fenmeno privado. Alis, preciso
lembrar que na alta Idade Mdia, com resqucios ainda no tempo de Beccaria, os conflitos
resolviam-se sem interveno de terceiro. Liquidavam-se entre as prprias partes,
privadamente25
.
Ento, a proposta do jurista italiano que se deve contribuir para as
investigaes, para que C caso o delito tenha realmente ocorrido C o bem pblico, expresso
na lei, seja preservado. A omisso, com o silncio s perguntas feitas em um interrogatrio,
equivaleria falta de compromisso com o pblico, com o interesse comum de apurao dos
fatos, significando que o interrogado cuida apenas das prprias causas, falando apenas quando
lhe convm.
Na seara doutrinria, perfeitamente possvel afirmar o princpio da vedao de
incriminao e negar o direito ao silncio, como se v na obra de Cesare Beccaria. Importa
fazer esta distino para se perceber que o direito ao silncio no est diretamente
subordinado ao princpio da vedao de auto-incriminao, apesar de apresentarem um
vnculo, pois o silncio tem como uma de suas caractersticas possveis a auto-proteo. H
outros fatores, entretanto, que influenciam na determinao do direito de permanecer calado,
como, no caso de Beccaria, o interesse pblico.
25
(FOUCAULT, 2003, p. 65)
PAGE 23
3. INTERPRETAO DO DIREITO AO SILNCIO
3.1. Idia de interpretao
Neste captulo, ser abordado o instigante problema da interpretao do direito
ao silncio. Como se trata de direito fundamental constitucional, sero tecidas consideraes
especficas a este objeto, tomando-se lies da hermenutica constitucional. Antes, contudo,
preciso ter uma idia do conceito de interpretao. O que interpretar?
A metfora que melhor explica esta idia a do deus grego Hermes, o qual deu
nome cincia que trata da interpretao: hermenutica. Esta palavra deriva do grego
hermeneuein e se referia ao poder do deus Hermes de compreender e traduzir o contedo da
mensagem dos deuses aos mortais26
. Trata-se de uma mediao. Nunca se soube o que os
deuses realmente disseram, mas se conheceu apenas a verso de Hermes sobre o que os deuses
teriam dito.
Mediao , portanto, a atividade essencial do intrprete. O intrprete diferente
da pessoa comum na medida em que consegue ver o sentido nem sempre to claro das coisas.
Nesta perspectiva explica Alexandre Arajo Costa que o intrprete uma pessoa especial:
Jos, Tirsias e as mes-de-santo vem o que os outros no vem, todos eles desempenham
papis semelhantes aos de Hermes, conectando o mundo dos deuses ao dos homens27
.
Interpretar, para a cincia jurdica, descobrir o sentido verdadeiro da norma
jurdica e, desta forma, determinar seu alcance.28
Qual , no entanto, o sentido verdadeiro?
Quais os critrios para determin-lo? Para responder a estas questes, Alexandre Arajo
Costa29
invoca a beleza da poesia de Alberto Caeiro.
O mistrio das coisas, onde est ele?
Onde est ele que no aparece
26
Apresentao (p. xiii) de Lnio Luiz Streck ao livro Hermenutica Constitucional dos autores Laurence
Tribe e Michael Dorf 27
(COSTA, 2008, p. 9). 28
(MAXIMILIANO, 1979, p.1). 29
(COSTA, 2008, p. 26).
PAGE 24
Pelo menos a mostrar-nos que mistrio?
Que sabe o rio disso e que sabe a rvore?
E eu, que no sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens
pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o nico sentido oculto das cousas
que elas no tm sentido oculto nenhum.
mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filsofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E no haja o que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As cousas no tm significao: tm existncia.
As cousas so o nico sentido oculto das cousas.
Alberto Caeiro, O guardador de Rebanhos, XXXIX.
As coisas no tm mesmo um sentido intrnseco. Todavia, isto no deve paralisar
a atividade do intrprete. Ocorre o contrrio: porque no h sentido intrnseco que se aceita a
atribuio de qualquer significado. preciso aqui pensar na norma jurdica. No apenas
possvel, mas necessrio que se atribua um sentido a ela.
Nenhuma lei deve ser criada para ser apenas admirada. Deve haver sempre um
sentido, um lugar para onde ela aponta, um lugar aonde quer chegar. Chega-se, assim, a um
relativo paradoxo: preciso que a norma tenha um sentido, para que no seja intil, mas j se
sabe que este sentido no existe. Qual a sada? A sada reconhecer a atividade do
hermeneuta como atividade de criao.
Se no existe um sentido intrnseco nas coisas, certo que tudo que se invoque
em nome das prprias coisas criao. Esta criao no , todavia, completamente livre. Est
inserida em um processo complexo de argumentao. Se uma norma, por exemplo, impe o
dever de ajudar o prximo da forma ajude o prximo, j se impe um limite mnimo de
interpretao, pois por deduo lgica no possvel entender que a norma, genericamente,
proba o auxlio ao prximo no ajude o prximo.
Adentra-se, portanto, em mais um problema: deve-se interpretar uma norma no
interpretvel com limites argumentativos complexos. Esta dificuldade foi bem expressa por
PAGE 25
Lnio Streck com uma metfora: Talvez tenhamos recebido o castigo de Ssifo; rolamos a
pedra at o limite do logos apofntico e imediatamente somos jogados de volta nossa
condio de possibilidade: o logos hermenutico. Estamos, pois, condenados a interpretar30
.
3.2 Interpretao e Constituio
J se disse que a norma deve sempre apontar para um lugar. Contudo, preciso
dizer muito mais. A norma deve querer mudar uma realidade, deve querer melhor-la.
Caso os homens considerassem perfeita sua realidade, no haveria normas. Esta realidade
perfeita no , entretanto, a realidade humana.
A Constituio norma fundamental de construo. nela que se encontra o
ideal humano de vida, a realidade perfeita. No possvel, todavia, esta construo sem
interpretao, isto , a Constituio sem interpretao ainda est oculta, coberta. Como
interpretar, ento? Lnio Streck incita a interpretao por meio da descoberta:
Para essa (difcil e urgente) tarefa de des-ocultao, h que se buscar o
acontecimento em que j sempre estamos apropriados (Ereignen) do Direito,
conduzindo o discurso jurdico ao prprio Direito, tornando-o visvel! Numa
palavra: deixar e fazer ver o fenmeno do Direito: esta a empreitada
hermenutica, uma vez que, conforme Heidegger, o conceito de fenmeno
implica sempre um duplo sentido: o que de si no se manifesta condio
de possibilidade do que aparece e pode-ser-levado a mostrar-se31
(grifos
no original)
Assim, a Constituio deve ser vista, nas palavras de Streck, como algo
estranho, o que leva o intrprete a ter a angstia natural sentida em frente ao novo, ao
estranho. A Constituio deve causar estranhamento. Compreender a Constituio ver
suas possibilidades ainda completamente abertas. Todavia, o novo nunca se firma sem
confronto. H aqui um confronto entre o estranho e a tradio.
A tradio representada pela cultura liberal-individualista dos Cdigos Civil
(1916), Comercial (1850), Penal (1940), Processual Penal (1943) e Processual Civil (1973).
Estes diplomas legais, apesar da inaugurao da nova ordem jurdica com a Constituio de
30
Op. Cit., p. xxxiv.
PAGE 26
1988, tm-se mantido praticamente intactos (ilesos), sem ao menos sofrer uma
(indispensvel e necessria) filtragem hermenutico-constitucional. So raros os juzes C
denuncia Dallari C que decidem os conflitos aplicando a Constituio ou lembrando-se da
existncia dela... 32
.
A interpretao do direito ao silncio insere-se neste contexto de confronto. O
prprio estado constitucional brasileiro de transio. Conforme demonstrado no captulo
primeiro, a ditadura militar acabou por trazer como conseqncia diversas garantias
processuais individuais, para proteger o cidado. Entre estas garantias est o direito ao
silncio.
O procedimento estatal de busca dos fatos no processo sofreu, assim, uma
profunda transformao. Talvez por isto e tomando em conta o contexto de confronto
apontado, a doutrina, a jurisprudncia e o legislador ordinrio se apressaram em declarar o
carter absoluto e irrestringvel do direito ao silncio, j que a Constituio Federal de 1988
ainda est em pleno processo de construo hermenutica.
Por outro lado, a pergunta persiste: como ler a Constituio? Um elemento
fundamental a ser considerado a contextualizao do que se est interpretando. A parte,
assim, no tem sentido fora de seu contexto. Alexandre Arajo Costa enuncia esta mesma
idia da seguinte maneira: vale aqui, portanto, o cnone hermenutico fundamental: as partes
devem ser compreendidas pelo todo, que deve ser compreendido pelo sentido das partes que o
compem33
. Em sentido especfico para o estudo da Constituio, a doutrina concebeu o
princpio jurdico da unidade da Constituio. Luis Roberto Barroso assim o explica:
A despeito da pluralidade de domnios que abrange, a ordem jurdica
constitui uma unidade. De fato, decorrncia natural da soberania do Estado
a impossibilidade de coexistncia de mais de uma ordem jurdica vlida e
vinculante no mbito de seu territrio. Para que possa subsistir como unidade,
o ordenamento estatal, considerado em sua globalidade, constitui um sistema
cujos diversos elementos so entre si coordenados, apoiando-se um ao outro e
pressupondo-se reciprocamente. O elo de ligao entre esse elementos a
Constituio, origem comum de todas as normas34
31
(STRECK, 2000, p. 267). 32
(STRECK, 2000, p. 276 C 279). 33
(COSTA, 2008, p. 14) 34
(BARROSO, 1996, p. 181)
PAGE 27
Certo que a interpretao constitucional parte do texto, mas no se restringe a
ele. Nesta atividade, muitos elementos podem ser utilizados. Vrios exemplos podem ser
citados. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal35
afastou a literalidade do art. 226, 336
,
para interpretar este dispositivo constitucional com base em outros princpios, insculpidos na
prpria Constituio, como princpio da igualdade, da proibio de discriminao em razo de
opo sexual, dignidade da pessoa humana, entre muitos outros.
O princpio que autoriza este tipo de interpretao justamente o princpio da
unidade, acima referido, pois no se pode interpretar tomando em conta apenas uma parte da
Constituio, mas todo o seu corpo textual, consubstanciado em outros princpios e regras que
no o do art. 226, 3.
O Supremo Tribunal Federal tambm utilizou fundamentos histricos para
decidir. Temos como exemplo, na Ao de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n 153/DF, a declarao de constitucionalidade do artigo 1 da Lei n 6.683/197937
(conhecida como Lei da Anistia), que concedia anistia a todos que cometeram crimes polticos
ou com estes conexos no perodo da Ditadura Militar brasileira.
Pleiteava-se, nesta ao, uma interpretao que exclusse do alcance da lei os
crimes conexos praticados por agentes de Estado neste perodo, tais como torturas,
homicdios, desaparecimentos forados, estupros, leses corporais e outros delitos. O
argumento utilizado para dizer que a norma era constitucional foi o de que houve um acordo
naquele momento histrico, um acordo poltico em um contexto de transio democrtica.
3.3 Leitura da doutrina, da jurisprudncia e do legislador
ordinrio
35
Conferir ADI 4.277 e ADPF 132, sintetizados no informativo n 625 do STF, disponvel em
http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%202019 Acessado em 19/09/2011. 36
Art. 226, 3 Para efeito da proteo do Estado, reconhecida a unio estvel entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua converso em casamento. 37
Art. 1. concedida anistia a todos quantos, no perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979, cometeram crimes polticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos polticos suspensos e aos servidores da Administrao Direta e Indireta, de fundaes vinculadas ao
poder pblico, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judicirio, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
PAGE 28
Como tem sido interpretado o direito constitucional ao silncio? Ressalvadas
variaes pequenas de entendimento, parece haver consenso no sentido de ter inaugurado a
Constituio Federal de 1988 um marco na interpretao deste direito.
De forma geral, tanto para a doutrina, quanto para a jurisprudncia, quanto para
o legislador ordinrio, o direito ao silncio a partir da Constituio deve ser lido da forma
mais irrestrita possvel, excluindo a possibilidade de prejuzo em virtude do silncio e
incluindo o direito de mentir. Neste sentido, Fernando Capez38
assim se pronuncia:
A lei processual estabelece ao acusado a possibilidade de confessar, negar,
silenciar ou mentir (...). Poder tambm mentir, uma vez que no presta
compromisso, logo, no h sano prevista para sua mentira. Assim, o juiz
no pode mais advertir o ru de que o seu silencio poder ser interpretado em
prejuzo de sua defesa. Alis, foi a Constituio Federal, em seu art. 5,
LXIII, quem consagrou o direito ao silencio. Assim, se o silencio direito do
acusado e forma de realizao de sua defesa, no se pode conceber que o
exerccio desta, atravs do silncio, possa ser interpretado em prejuzo do
ru39
O Cdigo de Processo Penal j garantia o direito ao silncio. Na redao original
do art. 186 deste diploma legal, dispunha-se que antes de iniciar o interrogatrio, o juiz
observar ao ru que, embora no esteja obrigado a responder s perguntas que lhe forem
formuladas, o seu silncio poder ser interpretado em prejuzo da prpria defesa (grifo
nosso).
A doutrina C ensina Guilherme de Souza Nucci40
C entendia, no entanto, que a
parte final do art. 186, que admitia a possibilidade de o silncio implicar em prejuzo ao
acusado, no teria sido recepcionada pela Constituio Federal. Este foi um dos motivos que
impulsionou o legislador ordinrio, por meio da Lei n 10.792/2003, a proibir uma
interpretao do silncio em prejuzo do acusado. Esta posio, contudo, no foi firmada com
muita convico.
O projeto inicial41
no continha qualquer referncia ao direito ao silncio.
Tratava de incluir regime disciplinar diferenciado para presos em regime fechado que
tivessem cometido falta grave e determinava que o interrogatrio do ru preso fosse feito no
38
Cf. Alexandre de Moraes, Constituio do Brasil interpretada e legislao constitucional, p. 399 e
Guilherme de Souza Nucci, Cdigo de Processo Penal Comentado, p. 413. 39
(CAPEZ, 2008, p. 339) 40
(NUCCI, 2008, p. 413) 41
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=31767. Acessado em 13/04/2011.
PAGE 29
estabelecimento penal em que estivesse recolhido. Mesmo depois de includo o direito ao
silncio, foi reputado de pouca importncia, conforme se nota pela leitura do Dirio da
Cmara dos Deputados:
Sr. Presidente, Sras. E Srs. Deputados, fico admirado de ver a questo que se
levanta com relao ao silncio do ru. uma questo de interesse
secundrio, despiciendo, sem nenhuma importncia maior. (Dirio da
Cmara dos Deputados, p. 889)
A aprovao do direito ao silncio, nos termos propostos pelo legislador
ordinrio, no foi refletida. Inspirada, conforme dito anteriormente, pela crtica doutrinria
que apontava para a inconstitucionalidade do pargrafo nico, do art. 186, o legislador
estabeleceu: a) o direito ao silncio em si, reproduzindo o dispositivo constitucional, e b) a
proibio de interpretao do silncio em prejuzo do ru.
Interessante observar, neste ponto, que o legislador ordinrio no fez qualquer
alterao no art. 19842
do Cdigo de Processo Penal, o qual admite que o silncio constitua
elemento para a formao do convencimento do juiz. Isto logicamente incoerente com o
projeto aprovado, que probe a interpretao do silncio em prejuzo do ru, pois se o silncio
no pode ser interpretado em prejuzo do acusado, no poder da mesma forma servir de
elemento para a convico do juiz.
Ora, isto s demonstra que o Congresso Nacional no refletiu efetivamente sobre
as conseqncias do direito ao silncio que estava estabelecendo. No discutiu efetivamente a
matria. No interpretou a Constituio, limitando-se a ceder as presses que alguns
estudiosos faziam.
Concomitantemente a esta alterao legislativa, a jurisprudncia43
caminhava
para uma direo semelhante. O autor Thiago Bottino, em estudo aprofundado das decises do
Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao silncio, assinala trs eixos principais de
interpretao: o primeiro eixo de extenso da garantia para outros sujeitos alm do preso, o
segundo de extenso da garantia para alm do direito de calar e o terceiro de
desdobramentos da garantia em outras formas de atuao da defesa tcnica.
42
Art. 198. O silncio do acusado no importar confisso, mas poder constituir elemento para a
formao do convencimento do juiz. 43
A jurisprudncia tratada ser a do Superior Tribunal de Justia e do Supremo Tribunal Federal.
PAGE 30
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma interpretao extensiva da palavra
preso, para entender que a norma constitucional abrange qualquer indivduo que figure
como objeto de procedimentos investigatrios policiais ou que ostente, em juzo penal, a
condio jurdica de imputado (Habeas Corpus n 68.742-3/DF) e tambm qualquer pessoa
sujeita ao persecutria do Estado (Habeas Corpus n 68.929-9/SP). Na aplicao do
direito ao silncio nas Comisses Parlamentares de Inqurito, entretanto, que o Tribunal
Excelso firma definitivamente sua posio garantista:
(...) a Constituio assegura ao indivduo o direito exclusivo de avaliar
se a resposta que lhe exigida pode prejudic-lo e, assim entendendo, o
direito de no respond-la. Nesse julgamento, portanto, o Supremo Tribunal
Federal estabelece com maior nitidez os contornos do direito ao silncio,
descolando-o definitivamente da expresso preso, bem como das definies
anteriores44
(grifo nosso)
O segundo eixo de interpretao estende no o sujeito alcanado pela norma,
mas o prprio silncio em si. Para o Supremo Tribunal Federal, um direito amplo e absoluto.
Neste sentido, note-se voto do Ministro Celso de Mello no Habeas Corpus n 68.742-3/DF,
em que foi seguido parcialmente pelos Ministros Seplveda Pertence, Ilmar Galvo e Marco
Aurlio:
Este direito C que se reveste de valor absoluto C plenamente oponvel
ao Estado e aos seus agentes. Atua como poderoso fator de limitao das
prprias atividades penais-persecutrias desenvolvidas pelo Poder Pblico
(Polcia Judiciria, Ministrio Pblico, Juzes e Tribunais).
(...)
E nesse direito ao silncio inclui-se, at mesmo por implicitude, a
prerrogativa processual de negar, ainda que falsamente, perante a autoridade
policial ou judiciria, a prtica de ilcito penal45
(grifo nosso)
O Superior Tribunal de Justia tem julgado de forma semelhante. O Habeas
Corpus n 162576 tem a seguinte ementa:
Segundo a jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, no comete o
delito previsto no art. 30746
do CPB o ru que, diante da autoridade
policial, atribui-se falsa identidade, em atitude de autodefesa, porque
44
(BOTTINO, 2009, p. 113) 45
(BOTTINO, 2009, p. 120) 46
Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito prprio ou
alheio, ou para causar dano a outrem:
Pena C deteno, de 3 (trs) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o fato no constitui elemento de crime mais grave.
PAGE 31
amparado pela garantia constitucional de permanecer calado, ex vi do
art. 5, LXIII, da CF/88 (grifo nosso).
Assim, caso o preso em flagrante se identifique autoridade policial com nome
falso, com o intuito de fugir aplicao da lei, negando que tenha sido ele a cometer o crime,
quando o foi realmente, est amparado, segundo a interpretao dada pelo STJ, pelo direito
constitucional de permanecer calado. Entende este tribunal, portanto, que no houve ofensa
ordem pblica, mas foi utilizado o direito de no se auto-incriminar.
A jurisprudncia tem demonstrado, assim, sua postura ativa, de construo,
tendo por base a insero do direito de permanecer calado no art. 5, inciso LXIII, pela
Constituio Federal de 1988. Com efeito, ressalta Bottino que no cabe duvidar aqui que se
trata da indiscutvel comprovao do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal,
modificando o texto constitucional para conform-lo imagem que o tribunal faz daquele
princpio orientador do sistema processual penal47
.
Trata-se de ativismo judicial, porque extrapola os limites traados pelo sistema
jurdico brasileiro. Modifica o prprio texto constitucional. O Supremo Tribunal Federal e o
Superior Tribunal de Justia leram o art. 5, inciso LXIII da forma mais absoluta possvel.
Mas com base em que fizeram isto? Com base em que entenderam que o silncio engloba a
mentira e que a interpretao do silncio no pode prejudicar o ru, quando a Constituio
Federal no diz isso expressamente?
Esta pergunta parece no ter resposta. Melhor: a resposta est, segundo a
doutrina e a jurisprudncia, no prprio art. 5, inciso LXIII. O fundamento est l, nas palavras
do Ministro Celso de Mello, implcito, ou ento nos termos de Fernando Capez, citado
anteriormente: alis, foi a Constituio Federal, em seu art. 5, LXIII, quem consagrou o
direito ao silencio, assim, se o silencio direito do acusado e forma de realizao de sua
defesa, no se pode conceber que o exerccio desta, atravs do silncio, possa ser interpretado
em prejuzo do ru. preciso ver nas entrelinhas. Enxergar a letra pequena deste artigo ou
ento ler uma Constituio diferente.
3.4. Uma leitura com outros elementos
47
(BOTTINO, 2009, p. 180)
PAGE 32
preciso reagir contra esta interpretao. O direito ao silncio no absoluto,
nem irrestrito. A Constituio expressa o futuro desejado pelo povo que nela acredita. O
primeiro objetivo fundamental do povo brasileiro, elencado na Constituio, construir uma
sociedade livre, justa e solidria48
. Como construir uma sociedade livre, justa e solidria com
base na mentira, na fraude, na omisso egosta? Esta norma no existe para ser simplesmente
apreciada, constitui C antes, bem antes C a prpria essncia do texto constitucional.
Sociedade livre aquela que s obedece a si mesma. Cria os prprios limites,
mas antes de tudo respeita estes limites. Um indivduo ou uma classe que silencia, com o
objetivo de omitir, esconder, uma conduta prejudicial ao resto da sociedade, torna esta mesma
sociedade escrava. Garante-se ao indivduo o direito de lutar pela sua preservao, em
detrimento do prprio corpo social. A declarao dos direitos do homem e do cidado,
aprovada pela Assemblia Nacional Constituinte da Frana em 26 de agosto de 1789, sintetiza
esta idia:
Art. 4 A liberdade consiste em poder fazer tudo que no prejudique o
prximo: assim, o exerccio dos direitos naturais de cada homem no ter por
limites seno aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo
dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados por lei
(grifo nosso)
Sociedade justa a que trata com igual respeito e considerao todos os
cidados que a integram. Trata todos com isonomia: iguais com igualdade e desiguais com
desigualdade. Como a histria mostra a conduta autoritria do Estado no procedimento de
busca da verdade, certo que se justifica a prudncia.
Em outras palavras, o silncio s se justifica pelo histrico de abuso do poder de
investigar. Portanto, diferente a situao do acusado inocente do acusado que, sabidamente
culpado, esconde sua conduta, com o silncio e com a mentira. Para este ltimo, impe-se a
interpretao deste silncio em seu prejuzo, pois ele se apropria indevidamente da prudncia
requerida ao ato estatal de investigar.
Solidariedade sinnimo do terceiro lema da Revoluo Francesa: fraternidade.
Solidariedade vnculo, unio, partilha, troca. Sociedade fraterna uma sociedade de irmos,
48
Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil:
I C construir uma sociedade livre, justa e solidria.
PAGE 33
em que cada um deles responsvel pelo outro. o oposto da sociedade de inimigos. Na
sociedade fraterna deve prevalecer a regra de ouro, segredada, conforme conta Saint-Exupry,
pela raposa ao seu amigo prncipe: tu te tornas eternamente responsvel por aquilo que
cativas49
. Omitir e mentir para se preservar no constituem, assim, uma partilha.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal respalda um interesse
individualista, consubstanciado na omisso e na mentira. Na Lei de Introduo ao Cdigo
Civil, modernamente denominada Lei de Introduo s normas do Direito Brasileiro, com a
redao dada pela Lei n 12.376, de 2010, prescreve-se que na aplicao da lei, o juiz
atender aos fins sociais a que ela se dirige e s exigncias do bem comum (art. 5). Este
dispositivo inafastvel quando se questiona como uma norma deve ser interpretada.
Todavia, parece esquecida pela maioria dos juristas.
Em estudo especfico sobre a lei mencionada, Oscar Tenrio ensina que a idia
de bem comum surge para o direito do nascimento das democracias liberais, nas quais foram
abolidos os privilgios de classe e resguardados os interesses da sociedade50
. Ressalta o autor
que o carter de bem comum de uma lei se relaciona diretamente atividade do legislador,
pois este que representa o povo e deve, assim, sempre buscar o melhor interesse
coletividade. Assinala, no entanto, que:
O direito positivo brasileiro preferiu caminho mais seguro e menos difcil.
Deu ao Juiz a misso de, na aplicao da lei, apreciar a sua finalidade social e
as exigncias do bem comum. Confiou ao juiz a misso de vencer os bices
criados por leis prenhes de individualismo51
Assim, considerando que a Constituio estabelece o direito de permanecer
calado sem outra referncia, necessrio perguntar: a interpretao que permite ao ru no
sofrer qualquer prejuzo, mesmo quando omitiu ou mentiu, sobre ato ilcito que tenha
cometido, subtraindo-se aplicao da lei, ofende ou no ofende a exigncia de bem comum?
Da mesma forma, deve-se questionar ao legislador ordinrio: a lei n 10.792/2003 no uma
lei individualista, uma vez que permite ao acusado omitir em prejuzo coletivo, sem qualquer
conseqncia negativa para este ato?
49
( SAINT-EXUPRY, 1966, p. 74) 50
(TENORIO, 1955, p. 154) 51
(TENORIO, 1955, p. 162)
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seguro afirmar que o silncio deve ser valorado, apreciado, circunstanciado,
contextualizado. O silncio deve ser interpretado e um de seus critrios deve ser o bem
comum. A Constituio garante o direito ao silncio, mas apenas na medida em que tutela o
interesse da coletividade. No se presta, como entendem o Supremo Tribunal Federal e o
legislador ordinrio, a tutelar C acima de qualquer valor C um interesse individual de defesa
do acusado.
Onde est, possvel perguntar, o prejuzo social? O prejuzo para a sociedade,
com a omisso e mentira, so muitos e podem ser claramente percebidos. Para a investigao,
preciso dispor de todo um aparato estatal a servir de instrumento para averiguao dos fatos.
Ao omitir, joga-se fora dinheiro do errio pblico e ao mentir, frauda-se a prpria justia. H
tambm um prejuzo maior, que ocorre quando o silncio d causa impunidade do acusado.
Frauda-se a lei, fraude-se a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Neste sentido, preciso destacar tambm a aplicao in casu do princpio nemo
auditur propiam turpitudinem allegans, segundo o qual ningum pode se beneficiar da
prpria torpeza. No Brasil, o princpio tem sido aplicado mais ao direito civil. preciso,
entretanto, estend-lo aos demais campos jurdicos, pois se trata de princpio geral de direito e
tambm de critrio para interpretao. Ora, de acordo com este princpio, um ru que silencia,
com o objetivo de ficar impune e no sofre qualquer prejuzo com este ato, acaba por se
beneficiar do mesmo.
Com esta conduta, o acusado beneficia-se de sua torpeza e utiliza-se de m-f.
Neste ponto, h uma ciso doutrinria, polarizando-se duas posies: de um lado, os que
entendem que no existe litigncia de m-f no processo penal, pois que se houvesse o
princpio da ampla defesa restaria bastante restringido52
; por outro lado, h uma segunda
corrente, segundo a qual a litigncia de m-f deve ser utilizada no processo penal, por
analogia ao processo civil, conforme autoriza o art. 3 do Cdigo de Processo Penal53
.
correto, com efeito, afirmar que no h no Cdigo de Processo Penal qualquer
disposio sobre litigncia de m-f. Todavia, h expressa autorizao para analogia, que
utilizada exatamente para suprir uma lacuna legislativa. Assim, guardadas todas as devidas
adaptaes, h que se observar o que dispe o art. 17 do Cdigo de Processo Civil:
52
http://www.conjur.com.br/2010-ago-28/punicao-litigancia-ma-fe-incluida-reforma-cpp Acessado em
19/09/2011
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Art. 17. Reputa-se litigante de m-f aquele que:
I - deduzir pretenso ou defesa contra texto expresso de lei ou fato
incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistncia injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerrio em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidentes manifestamente infundados;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatrio.
Desta forma, um acusado que omite um ato ilcito que tenha efetivamente
cometido, litiga de m-f, porque altera a verdade dos fatos e usa do processo para conseguir
objetivo ilegal.
A impunidade mais um elemento que desautoriza uma interpretao extensiva
ao direito de omitir e mentir sem restries. A questo no apenas terica, sem importncia.
O direito ao silncio nos termos propostos pelo legislador ordinrio, aplicado de forma
irrestrita, pode levar impunidade, falta de responsabilizao de um crime.
Muitas vezes, a prpria instruo processual, com a colheita regular de provas,
demonstra posteriormente a culpa do acusado. Em quantas oportunidades, no entanto, o
silncio no uma das causas que influenciam ou at determinam a impunidade? possvel,
inclusive, que o silncio no objetive a impunidade da prpria pessoa que silencia, mas de
outrem. Logo, em todas as hipteses levantadas, preciso interpretar o silncio, valor-lo,
contextualiz-lo.
Ao impedir que o silncio seja interpretado, o legislador ordinrio ofende o livre
convencimento do juiz. Esta questo foi levantada por um dos deputados na elaborao da Lei
n 10.792/2003:
O substitutivo diz que o silncio no poder ser interpretado em prejuzo do
ru... Claro, em nenhuma parte do mundo o ru obrigado a produzir provas
contra si mesmo; isso princpio fundamental da Cincia Penal, vem dos
romanos. E prossegue: ...nem poder influir na deciso do juiz. O que quer
dizer? Quer dizer que o juiz, ao dar a sentena, no pode utilizar-se do
silncio do ru como motivao para condenar.
Agora vem o ilustre Deputado Jairo Carneiro, meu velho amigo nesta
Casa, titular da minha admirao, dizer que estamos invadindo a
conscincia do juiz, extrapolando as nossas limitaes. Absolutamente. O
que se quer dizer que o juiz no pode utilizar o silncio do ru como
53
http://www.conjur.com.br/2009-jun-02/analogia-legis-fornece-juiz-criminal-definicao-litigancia-ma-fe
Acessado em 19/19/2011
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motivao para aplicar a pena. Mantenho essa disposio, porque realmente
necessria. O juiz, consciente de seus deveres, tomando conhecimento desta
norma, se precaver contra a influncia do silncio na sua conscincia. Saber
que o ru tem o direito de permanecer em silncio. Mas esse silncio no
pode ser interpretado em prejuzo do ru nem pode influir na conscincia do
juiz. Se assim no fosse, o silncio no prejudicaria o ru, no poderia ser
interpretado contra o ru, mas a conscincia do juiz poderia absorver o
silncio do ru como se fosse uma fuga ao esclarecimento do comportamento
que teve (grifo nosso) (p. 889-890)
Ao que parece, a questo levantada pelo deputado Jairo Carneiro no foi
suficientemente respondida. O Cdigo de Processo Penal assevera que o juiz formar sua
convico pela livre apreciao da prova produzida em contraditrio judicial54
, desde que
motivada a convico55
. Como conciliar a garantia de julgamento livre do juiz com a
imposio de uma valorao prvia do silncio, j que o juiz no pode interpret-lo em
prejuzo do acusado? Neste sentido, so as lies do professor Alexandre Freitas Cmara:
verdade, porm, que embora superado, o sistema da prova legal ainda
guarda resqucios no Direito moderno, no podendo fechar os olhos para a
realidade: ainda existem (infelizmente) algumas normas cujo fim tarifar a
prova, afirmando que determinados fatos s se provam por este meio, ou
aquele outro inadequado para provar outros fatos. Viola-se, assim, a
liberdade do juiz, que fica vinculado s tarifas estabelecidas pelo direito
positivo.
(K)
Com todas as vnias, penso que as regras de valorao legal de provas, que
contrariam o sistema C hoje adotado como regra geral C da liberdade na
valorao do material probatrio, que permite a produo de decises
arbitrrias (j que baseadas em valores de provas estabelecidas sem qualquer
contato com o caso concreto). A meu juzo, o sistema da prova legal s se
justificaria em uma sociedade que desconfiasse de seus juzes (o que,
certamente, no o caso da sociedade brasileira)56
Presume-se a imparcialidade do juiz e seu compromisso com os valores
expressos na Constituio. Assim, assegura-se a ele liberdade para julgar. Caso o juiz devesse,
de antemo, sem conhecer os fatos, sem conhecer a lide, julgar de forma pr-determinada, sem
liberdade de conscincia, sua atividade se esvaziaria completamente e perderia o sentido, a
ponto de no mais se necessitar dela. Um computador realizaria esta tarefa com maior
preciso e agilidade.
54
Art. 155. O juiz formar sua convico pela livre apreciao da prova produzida em contraditrio
judicial, no podendo fundamentar sua deciso exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigao, ressalvadas as provas cautelares, no repetveis e antecipadas. 55
Art. 93. Constituio Federal de 1988.
PAGE 37
A relao entre o caso concreto e a interpretao do silncio do acusado deve
tomar lugar de destaque no presente estudo. o juiz que preside toda a instruo processual,
tomando conhecimento do caso concreto em sua inteireza. Por isto, necessrio presumir que
ele pode interpretar o silncio do acusado em prejuzo do mesmo, considerando as
circunstncias do caso concreto.
O legislador ordinrio, ao fazer esta proibio, fere no apenas a conscincia do
juiz, como tambm sua cincia dos fatos. O acusado tem o direito de no ser obrigado a
produzir provas contra si mesmo, todavia, possvel que utilize este direito de forma errnea,
fraudulenta, para omitir delito que tenha efetivamente cometido. Ao detectar esta conduta,
completamente injustificvel sob a perspectiva de um estado democrtico de direito solidrio,
no pode ainda o juiz interpret-la em prejuzo do acusado? Esta proibio no razovel e
parte de um legislador que a estabelece de uma forma geral, reconhecendo que julga sem
conhecer o caso concreto.
preciso reconhecer a garantia que o acusado tem de permanecer em silncio,
como regra geral, mas imperdovel no distinguir o silncio que protege o inocente do
silncio que esconde o crime.
CONCLUSO
Com o presente trabalho, se pretendeu demonstrar o equvoco do tratamento
emprestado ao direito constitucional ao silncio pela doutrina, pela jurisprudncia e pelo
legislador ordinrio atuais. A histria deste direito fornece elementos claros de que ele vem
perdendo sua funo de proteo integridade fsica do acusado, para uma utilizao abusiva,
de omisso de um ato ilcito efetivamente cometido.
Seria o caso, ento, de aboli-lo? Parece que ainda no o momento apropriado.
Sua funo de inibir a tortura ainda no se perdeu completamente. O direito ao silncio ainda
cumpre este papel. Ainda possvel observar, cotidianamente, excessos nas prticas de
investigao. E se isto verdade, se h excessos mesmo com o reconhecimento de tantos
56
(CMARA, 2008, p. 383)
PAGE 38
direitos, entre eles o de se calar, melhor nem imaginar se este direito fosse abolido.
Possivelmente, as arbitrariedades seriam ainda maiores, como a obrigao ao acusado de falar,
confessar, um ato ilcito que no cometeu.
O problema no se encerra neste ponto, todavia. Fech-lo nestes termos tem sido
o grande erro dos juristas de hoje. precisar dar um passo a frente. preciso distinguir o
silncio que protege das arbitrariedades do silncio que esconde um crime. Nesta segunda
hiptese, no se aplica a argumentao anterior. Diz a Constituio que direito de todos
fazer apenas o que a lei prescreve, porque a lei presume-se vontade de todos e para bem de
todos. Ato contrrio lei no pode ficar impune, sob pena de prejudicar a toda a sociedade.
No silncio que oculta um ato ilcito, h no mnimo duas infraes: o prprio ato ilcito e a
fraude justia.
Seria bom que ningum cometesse crime algum. Todavia, uma vez cometido,
seria desejvel que o criminoso tomasse para si a responsabilidade pelo que fez. Sarte diz que
o homem est condenado a ser livre: condenado, porque no se criou a si prprio, e como,
no entanto, livre, uma vez que foi lanado ao mundo, responsvel por tudo quanto fizer57
.
O que acontece, no entanto, que o ato ilcito cometido e o infrator no deseja
arcar com as consequncias do que fez, porque contra sua prpria natureza. Ora, o que deve
ser feito nesta hiptese? Deve-se permitir que o acusado omita livremente ou at mesmo
minta, para fugir s consequncias de seus atos? Espera-se ter demonstrado no presente
trabalho que esta no a melhor alternativa, porquanto tutela apenas o interesse do infrator,
deixando de lado o legtimo interesse social.
No possvel abolir o direito ao silncio, mas tambm no se pode aplic-lo de
forma absoluta, irrestrita. preciso rever a interpretao constitucional deste direito, em
especial os entendimentos do Superior Tribunal de Justia e do Supremo Tribunal Federal. A
Constituio Federal de 1988 garante o direito de permanecer calado. No tutela, entretanto, a
impunidade e a fraude justia. Garante aos juzes a liberdade de julgar, motivadamente, pois
so eles que conhecem os fatos em suas peculiaridades. Os juzes devem distinguir o silncio,
devem interpret-lo. No possvel atribuir um sentido prvio, como o faz o legislador
ordinrio.
57
(SARTE, 1987, p. 9)
PAGE 39
A reviso do direito ao silncio conforme entendido atualmente se justifica,
portanto, por vrios motivos. Os principais so o perdimento de sua funo histrica e a
interpretao que leva em conta o contexto de impunidade, de falta de compromisso com o
bem comum, consubstanciado na lei e no se esquece da ordem constitucional de construo
de uma sociedade justa, livre e solidria.
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