arroyo - os movimentos sociais e a construção de outros curriculos

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Os Movimentos Sociais e a construção de outros currículos The Social Movements and the construction of other curricula Miguel G. Arroyo 1 RESUMO O artigo destaca as seguintes questões: primeiro, que indagações, sabe- res, culturas e valores têm trazido a diversidade de movimentos sociais; segundo, como incorporá-los na elaboração de currículos de formação de docentes-educadores/as e na elaboração de currículos de educação básica nas escolas das populações do campo, indígenas, quilombolas, das flores- tas. Dois pressupostos orientam a análise: a educação do campo, indígena, quilombola, não se efetivará enquanto os educadores/as não a efetivarem em sua formação, em suas práticas pedagógicas nas escolas. Esta não se efetivará enquanto não se avançar na construção de currículos que traduzam as concepções, os conhecimentos, as culturas e valores de que são produtores e sujeitos os movimentos sociais. O texto destaca as seguintes dimensões trazidas pelos movimentos sociais para a elaboração de outros currículos: que sejam abertos à consciência de mudança; que fortaleçam a especificidade do direito à educação dos trabalhadores do campo, indígenas, quilombolas; que garantam seu direito aos conhecimentos produzidos pela diversidade de movimentos sociais na diversidade de formas de produção, trabalho e resistências; currículos que reconheçam e fortaleçam a diversidade de culturas, memórias, identidades e universos simbólicos dos educandos; que garantam, ainda, o saber de si como sujeitos produtores de conhecimentos, culturas, valores e história; que coloquem em diálogos horizontais esses saberes com o conhecimento produzido pela humanidade. Palavras-chave: educação; currículo; movimentos sociais; camponeses; povos indígenas e quilombolas. 1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Av. Antônio Carlos, 6.627, Pampulha. CEP: 31.270-901. DOI: 10.1590/0104-4060.39832 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 55, p. 47-68, jan./mar. 2015. Editora UFPR 47

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M. Arroyo

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  • Os Movimentos Sociais e a construo de outros currculos

    The Social Movements and the construction of other curricula

    Miguel G. Arroyo1

    RESUMO

    O artigo destaca as seguintes questes: primeiro, que indagaes, sabe-res, culturas e valores tm trazido a diversidade de movimentos sociais; segundo, como incorpor-los na elaborao de currculos de formao de docentes-educadores/as e na elaborao de currculos de educao bsica nas escolas das populaes do campo, indgenas, quilombolas, das flores-tas. Dois pressupostos orientam a anlise: a educao do campo, indgena, quilombola, no se efetivar enquanto os educadores/as no a efetivarem em sua formao, em suas prticas pedaggicas nas escolas. Esta no se efetivar enquanto no se avanar na construo de currculos que traduzam as concepes, os conhecimentos, as culturas e valores de que so produtores e sujeitos os movimentos sociais. O texto destaca as seguintes dimenses trazidas pelos movimentos sociais para a elaborao de outros currculos: que sejam abertos conscincia de mudana; que fortaleam a especificidade do direito educao dos trabalhadores do campo, indgenas, quilombolas; que garantam seu direito aos conhecimentos produzidos pela diversidade de movimentos sociais na diversidade de formas de produo, trabalho e resistncias; currculos que reconheam e fortaleam a diversidade de culturas, memrias, identidades e universos simblicos dos educandos; que garantam, ainda, o saber de si como sujeitos produtores de conhecimentos, culturas, valores e histria; que coloquem em dilogos horizontais esses saberes com o conhecimento produzido pela humanidade.

    Palavras-chave: educao; currculo; movimentos sociais; camponeses; povos indgenas e quilombolas.

    1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Av. Antnio Carlos, 6.627, Pampulha. CEP: 31.270-901.

    DOI: 10.1590/0104-4060.39832

    Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 55, p. 47-68, jan./mar. 2015. Editora UFPR 47

  • ABSTRACT

    The article highlights the following issues: firstly, what questions, knowledge, cultures and values have brought about the diversity of social movements; and secondly, how to incorporate them into the design of training curricula for teachers-educators and in the curricula of basic education development in the schools of rural, indigenous, maroon and forest populations. Two assumptions guide the analysis: the first being that rural, indigenous and maroon education shall not become effective until educators actualise it in their training and in their teaching practices in schools. The second being that this shall not become effective until there is a move forward in building curricula that reflect the concepts, knowledge, cultures and values that the social movements produce, also becoming their subjects. The text highlights the following dimensions brought about by social movements which can be used to develop other curricula: being open to consciousness change that strengthens the specificity of the right to education of rural workers, indigenous peoples, maroons; guaranteeing their right to the knowledge pro-duced by the diversity of social movements in diverse forms of production, labour and resistance; developing curricula that recognizes and strengthens the diversity of cultures, memories, identities and symbolic universes of learners; ensuring that they also get to know themselves as subjects who produce knowledge, cultures, values and history; Putting this knowledge into horizontal dialogues with the knowledge produced by humanity.

    Keywords: education; curriculum; social movements; peasants; indigenous and maroon peoples.

    Introduo

    Oriento minha contribuio no Dossi temtico Educao do Campo e Movimentos Sociais: saberes, prticas e polticas, colocando-me a seguinte questo: Que indagaes e contribuies tm trazido a diversidade de movimen-tos sociais, especificamente do campo, para a construo de Outro currculo nas escolas do campo, indgenas, quilombolas, comunidades camponesas negras e para a construo de outro currculo de formao de outros professores? Parto de dois supostos: a educao do campo, indgena, quilombola, no se efetivar enquanto os educadores/as no a efetivarem em sua formao, em suas prticas docentes e pedaggicas nas escolas. Esta no se efetivar enquanto no se avan-ar na construo de Currculos que traduzam as concepes, os conhecimentos, as culturas e valores de que so produtores e sujeitos os movimentos sociais.

    ARROYO, M. G. Os Movimentos Sociais e a construo de outros currculos

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  • Gimeno Sacristan (2013) nos lembra que o currculo tem se convertido em um dos ncleos de significado mais denso para compreender a educao na diversidade de contextos sociais e culturais. Mas ao mesmo tempo o currculo se tem convertido em uma ferramenta de regulao do conhecimento e das prticas educativas. O currculo condiciona as prticas docentes e discentes. Condiciona o direito educao, ao conhecimento, aos valores, cultura dos educandos/as que frequentam as escolas. A escola sem contedos culturais uma fico, uma proposta vazia, irreal e irresponsvel... O contedo cultural a condio lgica do ensino e o currculo a estrutura dessa cultura. (SACRISTAN, 2013, p. 10). Tentemos destacar algumas dimenses que exigem ser levadas em conta nas pro-postas de repensar e reelaborar os currculos de formao de docentes-educadores e nos currculos das escolas de educao dos campos, indgenas, quilombolas. Dimenses que so destacadas pela diversidade de movimentos sociais.

    Educao do campo: uma construo histrica

    Comecemos pela primeira contribuio dos movimentos sociais para o currculo das escolas e da formao de professores/as. Se o currculo a sntese do conhecimento e da cultura, a primeira questo a colocar-nos que conheci-mentos e que cultura fazem parte dos currculos de formao e das escolas e como abri-los a que conhecimentos, culturas, valores que vem sendo produzidos pelos movimentos sociais do campo, indgenas, quilombolas. A questo a pesquisar se esto ausentes ou so reconhecidos como conhecimentos incorporados nos currculos de formao e de educao bsica. Roseli Caldart (2012), no verbete Educao do Campo, do Dicionrio da Educao do Campo, nos lembra que Educao do Campo um conceito em construo, que j pode configurar-se como uma conscincia de mudana, como uma categoria de anlise da situao ou das prticas e polticas de educao dos trabalhadores do campo. H prticas sociais, polticas que configuram essa categoria de anlise Educao do Campo e que tem como sujeitos, protagonistas os movimentos sociais camponeses. Uma prtica social ainda em processo de construo histrica.

    Uma conscincia de mudana presente no movimento indgena, quilombo-la, negro, nos movimentos de trabalhadores sem-teto das cidades. Esse ser um trao prioritrio na construo de currculos de formao de docentes-educadores e de educao: estar abertos a essa conscincia de mudana, inovar, mudar a rigidez das grades em que nossa tradio curricular aprisiona os conheci-mentos a serem ensinados e aprendidos nas escolas. Pesquisar se essa cons-

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  • cincia de mudana, essa categoria de anlise, de prtica social em construo histrica, est sendo incorporada nos currculos de formao de professores/as e nos currculos das escolas. Se central ou se est ausente, como incorpor--la? Se os currculos so a sntese das concepes e prticas de educao e dos conhecimentos, esses conhecimentos e as anlises sobre esse processo de construo histrica deveriam ser centrais nos currculos de formao docente e das escolas. Os docentes-educadores/as e as crianas, os adolescentes, os jovens e adultos tm direito a conhecer a produo dessa histria, dessa conscincia de mudana de que so sujeitos os trabalhadores. Tm direito a entender que so processos formadores, de produo de Outros conhecimentos, culturas, valores, a ser incorporados nos currculos e nas prticas pedaggicas. Toda a riqueza de prticas educativas, formadoras que acontece no trabalho, nas aes coletivas emancipatrias pressiona por ser incorporada nos currculos. Se fora das grades h uma construo histrica de uma nova conscincia de mudana como avanar em uma nova conscincia de mudana no trabalho escolar, nos currculos, na cultura docente? Os currculos de formao e de educao bsica somente sero Outros se se abrirem aos processos de mudana que acontecem nas lutas sociais e culturais dos trabalhadores. Se no forem incorporados, a educao no acontecer no cotidiano das escolas.

    Se a educao um processo intencional, poltico em construo histrica o currculo de formao de docentes-educadores/as e das escolas ter de ser uma construo histrica poltica intencional a ser assumida pelos movimentos sociais e pelos intelectuais que analisam e teorizam essa nova conscincia de mudana. Enquanto essa nova conscincia e essas novas anlises no forem traduzidas e incorporadas no cotidiano da conscincia docente e das prticas escolares a educao do campo, indgena, quilombola no se enraizar. Poderemos acumular anlises com alta radicalidade poltica e terica sobre essa nova conscincia de mudana, porm distantes de fracas prticas pedaggicas no cotidiano do currculo e da docncia. Nas escolas continuaro as prticas reprodutoras da velha e pobre educao rural resistente conscincia de mudana.

    Nada fcil incorporar essa histrica nova conscincia de mudana nas estruturas curriculares gradeadas, fechadas. Se exigem novas artes de mudana curricular. Tem sido mais fcil incorporar essa conscincia de mudana nas anlises e na produo terica e poltica do que incorporar essa mudana nas grades curriculares. A interveno nos currculos escolares no est a exigir a traduo dessas anlises para a concretude do fazer docente-pedaggico ou at esto a exigir Outras anlises da educao do campo, indgena, quilombola, na concretude de um sistema escolar to desestruturado e de currculos to cerca-dos? Quebrar as grades, cercas do currculo no tem sido tarefa fcil. Mas ser a primeira tarefa para possibilitar que outros conhecimentos entrem nos currculos.

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  • Fraqueza dos currculos na fraqueza do sistema escolar

    Por a avanamos para outro ponto central na compreenso do currculo das escolas: a precariedade do nosso sistema de educao do campo, indgena, quilombola, das florestas ou das guas. Falta-nos pesquisar mais sobre a histria dessa fraqueza e inexistncia para entender a fraqueza-inexistncia do currcu-lo das escolas. Um sistema intencionalmente inexistente at na materialidade mais bsica, na inexistncia de uma rede de escolas, de professores/as. As prprias comunidades de trabalhadores dos campos, das florestas, ribeirinhos, quilombolas, indgenas colocam a existncia de uma rede fsica de escolas e de docentes como precondio para a garantia do direito educao bsica e para avanar em um projeto de educao e de currculo. Escola do Campo no Campo, professores do Campo no Campo. Sem avanar, consolidar e afirmar as escolas na sua materialidade fsica e nos projetos escolares concretos poss-veis de educao, poderemos ter um corpo avanadssimo de reflexo poltica e terica sobre currculo e educao do campo e uma existncia material fraca e at inexistente nas escolas. Como aproximar essa riqueza terica to radical com o fazer pedaggico possvel dos docentes-educadores/as to limitado na estreiteza da materialidade fsica das escolas? Dando centralidade a pesquisar com prioridade e produzir anlises sobre os processos polticos que produziram em nossa histria e continuam produzindo essa inexistncia de um sistema pblico de educao no campo e nos territrios indgena, quilombola. O co-nhecimento dessa histria dever ser incorporado nos currculos de formao de professores/as e dos trabalhadores/as.

    Os movimentos sociais revelam a conscincia da centralidade das lutas pelas bases materiais da existncia, reforma agrria, terra, trabalho, mas lutam tambm contra as estruturas de poder que condicionam os avanos na reforma agrria e em outro projeto de campo. Uma questo a ser trazida s lutas pelo avano da educao: como a organizao do poder no campo vem produzindo essa fraqueza e inexistncia de um sistema de educao? Torna-se urgente pesquisar mais sobre como essa histria de construo de um sistema escolar na precariedade de sua base material est atrelada organizao do poder, aos repartos de poderes. H uma histria de correlaes de foras econmicas e polticas a que em nossa histria esteve atrelada a construo da inexistncia e fraqueza do nosso sistema educacional. (ARROYO, 2006, 2013). A histria da precarssima e velha educao rural inseparvel da histria do trato pa-trimonialista, da apropriao pelas elites da terra, do Estado e do pblico. A inexistncia da esfera pblica um trao em nossa histria econmica e poltica.

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  • (OLIVEIRA, 2003a). Inexistncia ainda mais explcita no campo mostrada em clssicas anlises como Coronelismo, Enxada e Voto. (LEAL, 1948). Articu-laes entre os interesses dos governos e dos coronis e latifundirios tm sido centrais na histria da inexistncia do sistema de educao. (WELCH, 2012).

    A inexistncia de um sistema escolar e de currculos na educao do campo no encontra explicaes nessas estruturas econmico-polticas e nesse padro de poder patrimonialista do pblico. Como pesquis-las e entender sua centralidade nos currculos de formao de professores/as de educao bsica? S entendendo essa histria se entendero os profissionais desse inexistente e fraco sistema e entendero como seu trabalho est atrelado a essas estruturas econmico-polticas de poder. Entendendo essa histria podero somar com os movimentos sociais nas diversas frentes de emancipao e de reao a essas estruturas de poder. S se entende a fraqueza e inexistncia da educao enten-dendo os processos de apropriao-expropriao da terra, da renda da terra e do trabalho e de manter as relaes sociais e polticas, o Estado e at o sistema escolar a servio dessas relaes. A organizao do Estado e de suas instituies como o sistema educacional, a fraqueza da esfera pblica reproduzem essas formas de dominao-subalternizao, apropriao-expropriao da terra e do trabalho, do conhecimento e da cultura. Como essa histria da organizao do Estado e de suas instituies do sistema escolar, especificamente condiciona a educao do campo e a sua fraqueza e inexistncia? Essas correlaes tm de ser destacadas nas anlises da educao e incorporadas nas anlises dos currcu-los de formao de professores nas anlises dos currculos da educao bsica das escolas. Um conhecimento a ser incorporado e garantido como direito dos trabalhadores/as desde a educao bsica.

    Essas anlises sobre a inexistncia e a precariedade do sistema de educa-o no campo, indgena, quilombola nos leva a priorizar que currculos foram possveis e impossveis nessa inexistncia e precariedade. A especificidade dos currculos nas escolas tem merecido pouca ateno. A escassez de intervenes na produo de Outros currculos para as escolas do campo tem motivado a escassez de anlises tericas sobre os currculos. Ou talvez a reformulao dos currculos escolares tenha sido secundarizada diante da urgncia de investir poltica e teoricamente em fronteiras mais urgentes e mais prioritrias.

    Volta a pergunta: o que leva a no dar a devida centralidade poltica, terica e estratgica para repensar e reformular os currculos das milhares de escolas onde se educam, aprendem milhes de crianas-adolescentes-jovens-adultos, trabalhadores/as do campo, indgenas, quilombolas? Talvez porque os currculos so a expresso mais resistente, mais cercada e gradeada do sistema escolar. As mudanas nos currculos exigem estratgias de intervenes estruturais no Estado e nas suas instituies. Exigem dar maior centralidade ao Estado e

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  • sua apropriao como propriedade dos donos da terra. No h como reinventar outro sistema de educao sem anlises mais aprofundadas do Estado, de suas instituies e dos processos de sua apropriao. O Estado condensa as relaes sociais e polticas na especificidade de nossa sociedade. Que atores sociais, or-ganismos, intelectuais controlam o Estado e especificamente o sistema fraco de educao do campo? Como tem sido usado at na sua fraca existncia a servio de seus interesses? Nesse sentido no apenas escola mais do que escola, o sistema de educao escolar tem sido mais do que escolar, tem sido um territrio de fortalecimento ou de no enfraquecimento das estruturas de poder no campo, coronelismo, enxada, voto, escola rural. Os trabalhadores/as vtimas dessas estru-turas de poder tem direito a conhecer essa histria. Haver lugar nos currculos?

    As lutas dos movimentos sociais explicitam, radicalizam, reorientam po-liticamente as velhas e mltiplas formas de conflito no campo a que estiveram e esto atreladas s possibilidades e limites de um sistema de educao do campo. Que centralidade dar aos saberes dessas resistncias nos conhecimentos dos currculos? O sistema escolar foi fraco como aparelho de hegemonia-dominao--subordinao no campo. (ARROYO, 2012b). Porque as elites econmicas hegemnicas preferiram outros processos de dominao-subalternizao mais brutais, mais eficazes. A reside a fraqueza e inexistncia do nosso sistema de educao pblica, particularmente rural e do campo. Pesquisar, aprofundar e teorizar sobre essa histria do nosso sistema escolar, do campo mais especifica-mente, seria uma tarefa dos cursos de graduao e ps-graduao de formao de professores do campo, uma tarefa dos seus intelectuais-militantes-pesquisadores. Sem se construir o sistema de educao escolar no h como avanar na recons-truo dos currculos das escolas nem avanar na garantia do direito educao dos trabalhadores dos campos. Uma tarefa simultnea, urgente:elaborar outros currculos do campo no ser possvel em um vazio material, sem a existncia de estruturas escolares. Os currculos no so apenas contedos organizados por boas teorias e intenes ideolgicas, so grades estruturantes de conhecimentos e do trabalho docente que pressupem uma base material, um sistema. A pres-so poltica por um sistema com uma slida base material uma das fronteiras mais urgentes na garantia do direito educao dos trabalhadores/as do campo.

    Currculos que garantam o direito ao conhecimento

    Os movimentos sociais apontam por onde avanar. Na diversidade de fronteiras de suas lutas terra, territrio, espao, trabalho, renda... colocam

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  • com destaque o direito escola, universidade, educao, ao conhecimento, cultura, aos valores produzidos pela humanidade, um direito atrelado a essas bases materiais do viver. Esta uma das fronteiras de luta que toca mais diretamente nos currculos das escolas e de formao de professores/as. Escola mais do que escola. Ocupemos a escola. Lembro-me do momento solene de inaugurao do curso de Pedagogia da Terra na FAE/UFMG (Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais), o grito das militantes do campo, indgena, quilombolas era: Ocupemos o latifndio do saber. Ocupe-mos a universidade territrio de produo, acumulao do saber hegemnico a que temos direito e que nos foi negado porque cercado e apropriado pelas elites como foi apropriada e cercada a terra por que lutamos e ocupamos. Nesse grito militante fica expressa de um lado a conscincia do direito ao conhecimento, mas fica tambm expressa a conscincia de que o conhecimento tem sido apropriado, cercado para poucos, lhes foi negado aos povos do campo.

    Lutar pela escola escola do campo no campo e pela universidade tem sido uma das fronteiras mais disputadas nas lutas dos vrios movimentos sociais, o que repe lutar pelo direito ao conhecimento socialmente produzido, aprendido na especificidade dessas lutas. H produes sobre essa centralidade poltica dada pelos movimentos sociais ao direito ao conhecimento e cultura, aos valores. Reconhecer essa centralidade e essa produo terica existente ser um ponto de partida quando se est em processos de formulao dos currculos tanto da formao de professores quanto de educao bsica. Os movimentos sociais apontam a necessidade de serem currculos densos em conhecimento e em cultura, valores. A histria dos currculos das escolas tem mostrado que s crianas e adolescentes e jovens-adultos lhes so oferecidos currculos pobres em conhecimentos e em cultura e apenas medocres em habilidades primarssimas de leitura-escrita, contas, noes de cincias, porm fartos em bons conselhos moralizantes. Os movimentos sociais, ao lutarem pelo direito ao conhecimen-to, cultura, s artes, aos valores, esto a exigir currculos densos na garantia desses direitos. Lembro-me de uma frase do governador de Minas no final dos anos 20 do sculo XX: para mexer na roa nem leitura-escrita necessria e menos conhecimentos.

    Ser que estamos em outros tempos de reconhecimento do direito dos trabalhadores dos campos ao conhecimento, cultura? Que respostas vm sendo dadas nas polticas e diretrizes curriculares a essas lutas pelo direito educao, ao conhecimento, cultura, aos valores, s artes...? Nos seminrios e dias de estudo sobre que currculos para a educao dos trabalhadores/as do campo, indgena, quilombola seria conveniente pesquisar nessas polticas e diretrizes, como pensam o direito educao, ao conhecimento, cultura e se pensam na especificidade dos Outros, dos coletivos sociais, tnicos, raciais, dos campos, das

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  • periferias, indgenas, quilombolas, ribeirinhos. Incorporar essas pesquisas ser uma obrigao dos currculos de formao de docentes e da educao bsica.

    H algumas constantes que merecem ser levadas em conta ao pensar nos currculos da educao desses coletivos diferentes produzidos como desiguais, como inferiores em nossa histria social, poltica, cultural e at pedaggica. Nas lutas cvicas dos anos 1980 contra a ditadura e pela democracia uma das fron-teiras de luta era pela educao, direito de todo cidado e dever do Estado. Os movimentos do campo retomam, repolitizam e radicalizam essas lutas: educao direito nosso, dever do Estado. Um campo de anlise crtica seria pesquisar como o Estado responde a essas presses to radicais dos movimentos sociais. Tem avanado a presso poltica popular sobre o Estado dito democrtico, de direito, sendo obrigado a afirmar-se a garantia dos direitos universais da cidadania e do trabalho. A diversidade de polticas e diretrizes curriculares no se esquece de afirmar a educao como direito universal, ao menos afirmar a universalizao do acesso de todos escola fundamental dos 6 aos 14 anos, agora dos 4 aos 17 anos.

    Seria interessante pesquisar sobre como as contradies desse Estado democrtico se revelam no prprio campo dos currculos e das lutas pelo conhecimento. Como essas presses incorporaram nos documentos oficiais a afirmao da garantia universal do acesso escola e educao de qualidade mnima. Ser necessrio aprofundar nas consequncias dessa proclamao ofi-cial do direito universal educao, ao conhecimento, cultura, aos valores, s artes... Qual a interpretao oficial? Significa que se acredita que os currculos so a sntese de todo o conhecimento, de todas as culturas, de todos os valores? Ou se acredita existir um conhecimento, uma cultura, uns valores, um universo simblico nico cujo depsito nico legtimo so os currculos nicos a serem aprendidos por todos? Nessa concepo oficial de universalizao do direito a esse conhecimento, a essa cultura nicos tem sido possvel pensar na espe-cificidade de currculos das escolas do campo, indgenas, quilombolas? Nessa nfase em concepes universalizantes, nicas de conhecimento, de cultura, de valores haver lugar para o reconhecimento da diversidade no prprio campo do conhecimento, da cultura, dos valores? Haver lugar para a diversidade nos currculos? Uma questo trazida pelos movimentos sociais. (ARROYO, 2012a).

    Currculo e o reconhecimento da diversidade

    Para entender as possibilidades e os limites da afirmao de um currculo de educao do campo ser necessrio pesquisar e aprofundar as questes sobre

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  • se h lugar para a diversidade nas concepes de currculo, de conhecimento e de cultura. Mas ser necessrio, sobretudo, levar em conta como as presenas afirmativas dos movimentos sociais em sua diversidade de fronteiras por direi-tos e especificamente pelo direito educao, ao conhecimento, cultura vm pressionando as polticas e diretrizes curriculares a reconhecer a existncia dos diversos, das diferenas. Nas polticas do Estado, nas diretrizes curriculares se avana para o reconhecimento? Que reconhecimento? Uma questo central se se pretende elaborar outros currculos. Um reconhecimento genrico marcado pelas formas histricas de pens-los e aloc-los nas estruturas econmicas, polticas e pedaggicas no padro capitalista de apropriao da terra, da renda, do conhecimento. Como so pensados pelas polticas e diretrizes curriculares? Destaquemos alguns traos.

    Continua se afirmando a velha organizao dos conhecimentos em uma base nacional comum a ser completada por uma parte diversificada ou que contemple as diversidades regionais e locais. Parte diversificada porque exigida pelas caractersticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. As afirmaes das diversidades sociais, tnicas, raciais, dos cam-pos so apenas reconhecidas como contribuies para a base nacional comum do currculo e das disciplinas. Assim, a Lei de Diretrizes e Bases LDB n 9.394/96 sugere que sejam reconhecidas as contribuies das diferentes cultu-ras e etnias para a formao do povo brasileiro... a ser includas no ensino da Histria do Brasil, assim como as contribuies dos diversos grupos tnicos na formao da sociedade brasileira... Essa concepo e estrutura de currculo avanam no reconhecimento das diferenas, porm as reinterpreta como con-tribuies. Mas quem define o que contesta ou contribui na compreenso do ncleo comum e especificamente ao enriquecimento da histria social, poltica, cultural de formao brasileira? Esse reduzir o reconhecimento das diferenas s contribuies termina ignorando e ocultando a produo histrica dos di-ferentes como desiguais, sua histrica segregao como trabalhadores, como classe, raa, etnia, camponeses. Ignora a destruio de suas culturas, saberes, identidades. Sobretudo, esse reconhecimento dos diferentes nos documentos, polticas e diretrizes. O que termina ocultando e descaracterizando os proces-sos de afirmao poltica, econmica, social, de afirmao dos diferentes em lutas to radicais por terra, territrio, trabalho, teto, renda, memrias, culturas, identidades. Por outro projeto de sociedade. Essa radicalidade poltica no cabe nessa dicotomia em que continuam estruturados os currculos: base comum nacional a ser complementada por uma parte diversificada que contemple as diversidades regionais e locais e at as contribuies das diferentes culturas e etnias na formao da sociedade brasileira.

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  • Na persistncia desses ordenamentos curriculares fica difcil encontrar espaos para currculos dos trabalhadores/as do campo, indgenas, quilombolas que incorporem a radicalidade com que os diferentes se afirmam em suas lutas polticas sociais e culturais pela educao e pelo conhecimento. A obrigatorieda-de da histria da frica e as especificidades das diretrizes da educao do campo, indgena, quilombola avanam no reconhecimento da diversidade, mas ainda prevalece na cultura e diretrizes gerais e das polticas da educao, nos contedos e no material didtico uma viso da diversidade apenas complementar base nacional comum. Ser necessrio aprofundar onde se localizam as resistncias formulao de currculos que reconheam a radicalidade poltica da afirmao dos diferentes em nossa histria, especificamente os campos.

    Destaquemos alguns pontos. Os documentos oficiais destacam a nfase na formao comum para o exerccio de uma cidadania comum e para progredir no trabalho comum para alm das diferenas individuais e das determinaes sociopolticas e culturais. Ainda predomina a iluso de que a escola, o currculo comum, a formao e o aprendizado de habilidades, conhecimentos comuns igualar as diferenas sociais. Esse iderio poltico e essa auto identidade da educao, de suas polticas e currculos, ser o princpio, a matriz equalizante das desigualdades sociais, econmicas, polticas, alimenta as diretrizes curriculares e sua nfase no ncleo nacional comum equalizante desde que todos tenham acesso escola em igualdade de condies.

    Os movimentos sociais em sua diversidade de fronteiras vm descons-truindo essa histria de construo da cidadania e de sua segregao como subcidados e at de sua condio de no reconhecidos cidados porque no escolarizados. Vo alm e desmistificam at as lutas mais progressistas cujo slogan tem sido educao para a cidadania dos ainda no reconhecveis como cidados enquanto no tiverem um percurso, uma formao escolar para o exerccio da cidadania. Os diferentes ao se afirmarem cidados exercendo uma cidadania radical desconstroem essa nfase das diretrizes curriculares na formao comum para o exerccio da cidadania. Para o exerccio to radical de sua cidadania conquistada e exercida nas lutas por seus direitos cidados no esperaram o acesso escola, aprenderam seu exerccio radical da cidadania nas lutas por seus direitos cidados e do trabalho. Por a os currculos do campo, indgenas, quilombolas, dos trabalhadores dos campos e das cidades avanam nas bases legitimantes de seus direitos educao, formao, ao conheci-mento. Essa uma das crticas polticas radicais dos movimentos sociais aos parmetros, s bases e diretrizes dos currculos. Crtica radical a ser incorporada nas tentativas de elaborar currculos de educao do campo. Currculos que os reconheam cidados j e que incorporem essa histria de formao poltica de sua cidadania.

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  • As mesmas anlises poderamos fazer em relao preparao para o exerccio do trabalho. Primeiro ingnuo pensar em saberes comuns nos currculos para o exerccio de trabalhos to diversos se aprendemos com o movimento operrio e especificamente com os trabalhadores do campo que o padro de trabalho capitalista classista, sexista, racista. O que os trabalhadores vtimas desse padro de trabalho exigem so currculos que deem acesso aos saberes sobre esse padro de trabalho. O que exige ir muito alm de afirmar na base comum do currculo uma formao genrica para progredir em um trabalho genrico. Um currculo da educao do campo dever dar toda centralidade histria do trabalho tanto no seu padro classista, sexista, racista, explorador como nas lutas histricas do movimento operrio e especificamente dos tra-balhadores do campo por outras relaes de trabalho. Lutar pela ocupao do latifndio do saber lutar pelo direito a conhecimentos sobre essa histria do trabalho e especificamente do trabalho no campo. (ALENTEJANO, 2012).

    Currculos e a nfase na diversidade cultural

    Os documentos oficiais de polticas e diretrizes curriculares privilegiam a diversidade cultural dos diferentes. O reconhecimento da diversidade em que se avana lentamente nas polticas e diretrizes curriculares d nfase em que os conhecimentos dos currculos valorizando as diferenas ajudem a toda criana, adolescente, jovem-adulto na construo, reconstruo da diversidade de suas identidades culturais ou a respeitar as mltiplas diversidades e a pluralidade cultural. A educao, seus currculos e suas teorias e iderios sempre se sentiram em seu lugar no territrio da cultura, as diferenas privilegiadas so as diferenas culturais. Da o reconhecimento das diferenas nos currculos privilegiarem a chamada valorizao da diversidade cultural e a reconstruo das identidades culturais. Sem dvida que os coletivos diferentes lutam pelo reconhecimento de suas culturas e identidades: operria, camponesa, indgena, quilombola, negra... mas no como produes isoladas dos processos materiais de produo das suas existncias. (TARDIN, 2012). Suas nfases so na relao entre produo das identidades culturais e trabalho, agricultura, terra, extrativismo, resistncias e lutas coletivas por direitos... Terra matriz formadora, trabalho determinao da cultura; cultura determinao do trabalho; tensos reconhecimentos da di-versidade cultural. (ARROYO, 2012b, p. 93-119). A cultura inseparvel da totalidade do social. (WILLIANS, 2012). Os movimentos sociais repem uma

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  • cultura popular libertadora, reconhecem suas lutas como culturais e produtoras de outra cultura contra-hegemnica. A cultura da libertao. (DUSSEL, 2006).

    Pensando na elaborao de currculos do campo, indgenas, quilombo-las... ser necessrio destacar essa radicalidade da construo de identidades culturais que os movimentos sociais afirmam. Ser necessrio destacar como essa radicalidade em que afirmam suas identidades culturais desconstri a viso to limitada de diversidade cultural que os documentos oficiais continuam pro-clamando. Desconstri a viso to limitada de cultura e repe nos currculos a histria tensa de resistncias culturais de construo de culturas de libertao. Uma tarefa necessria na elaborao dos currculos de educao bsica e de formao de professores/as ser como superar concepes generalistas de cul-tura e concepes simplificadas de identidades culturais e como incorporar as culturas afirmadas pelos movimentos sociais, cultura do trabalho, da terra, das resistncias e da libertao de que so sujeitos. A cultura tem estado ausente nos currculos de educao bsica e de formao de docentes-educadores/as, ausente nos diversos cursos de educao superior. As escolas, as universidades, os cur-rculos deixaram de se pensar e de ser centros de cultura, de reconhecimento e de trabalho das tensas relaes polticas entre culturas. Os movimentos sociais so protagonistas centrais na politizao das tensas relaes entre as culturas e do no reconhecimento da diversidade cultural. Politizam as tentativas de destruio das culturas dos povos indgenas, quilombolas, negros. Politizam a cultura para alm de concepes, que os pensam submissos, passivos ou parti-lhando da cultura hegemnica.

    Como dar a devida centralidade a essa politizao da cultura nos currculos das escolas indgenas, quilombolas e da educao do campo? Como incorporar essa politizao da cultura que os movimentos sociais pem na agenda poltica e curricular? Como reconhecer, valorizar a cultura camponesa, do trabalho, da terra, das florestas, das guas, indgenas, quilombolas? Os movimentos sociais em suas marchas, msticas, msicas e em seus encontros e smbolos se tm mostrado educadores da cultura reinventando pedagogias e artes culturais de extrema densidade pedaggica. Como incorporar essas pedagogias nas prticas escolares?. (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004).

    Os movimentos sociais no se pensam excludos

    Uma das questes a pesquisar como as diretrizes curriculares e as pol-ticas e teorias educacionais pensam os Outros. As polticas e currculos para os

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  • Outros so respostas a como essas polticas e diretrizes os pensam nos padres de poder, de trabalho, de renda, do projeto de cidade ou de campo. As polticas e as diretrizes curriculares enfatizam uns aspectos ou outros quando pensam os diferentes dependendo da viso que tm dos Outros e do lugar social e de classe dos trabalhadores, camponeses, indgenas, quilombolas, ribeirinhos, das florestas, das guas, das vilas, favelas... Um termo frequente nos documentos oficiais v-los como excludos. Consequentemente propor escolas, currculos, polticas e programas inclusivos. Termos demasiado leves para entender os brutais processos de produo dos Outros como classes, como trabalhadores desiguais, segregados, explorados, oprimidos. Uma pergunta urgente: Os Outros se reconhecem ou se sabem oprimidos, explorados como trabalhadores como classe, negros, indgenas, quilombolas...? No tm direito a saber-se assim pensados e alocados e saber como reagem a esses processos brutais?

    Na diversidade de resistncias e lutas revelam a viso que construram de si mesmos. Afirmam-se lutando no movimento operrio e na diversidade de movimentos sociais contra a explorao de classe, de gnero, de raa, de etnia... No se reconhecem nessa categoria excludos, to leve que oculta processos de dominao-subalternizao mais radicais, consequentemente no lutam por polticas, escolas, currculos inclusivos. Currculos inclusivos no daro conta da radicalidade poltica das lutas dos movimentos sociais por educao. Como incorporar nos currculos crticas a essas formas de pensar os povos do campo, mas, sobretudo, como incorporar os saberes que vm construindo em suas lutas afirmativas de identidades positivas? Uma das tarefas quando a proposta avanar na construo de currculos das escolas mapear como os documen-tos oficiais pensam os Outros, os trabalhadores, especificamente os povos do campo, excludos, por exemplo, mas ir alm e analisar porque essa viso to leve e como oculta realidades mais radicais de segregao, explorao, opresso econmica, social e poltica. Levar s crianas-adolescentes-jovens-adultos do campo currculos e material didtico que ocultam sua realidade com termos to leves como excludos, estaremos negando-lhes o direito a saber-se nas relaes sociais, econmicas, polticas, de classe.

    H outra dimenso a ser aprofundada: enfatizar a condio de excludos e afirmar currculos, escolas inclusivas repem uma linha marcante nos currculos, nas polticas e diretrizes. Por que so considerados excludos? Qual o currculo proposto para incluir os excludos? Os povos do campo e os trabalhadores em sua diversidade so classificados como excludos sociais, culturais, porque pensados analfabetos, ignorantes, iletrados, incultos, irracionais, sumidos em misticismos, no senso comum. O domnio ou no do conhecimento hegemnico passa a ser o parmetro da classificao dos coletivos sociais em excludos ou includos. Logo, qual o papel das escolas, dos currculos inclusivos? A universalizao

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  • do letramento (na idade certa), o domnio das habilidades e saberes escolares ao menos elementares para que saiam da condio de analfabetos, iletrados. De excludos. O grau de incluso dos diferentes passa a ser medido pelo grau de escolarizao. Os milhes de reprovados, repetentes, defasados idade-srie sero considerados ainda excludos porque sem cabea para as letras, com problemas de aprendizagem. O percurso escolar como medida de includos ou ainda excludos. As excluses mais radicais da terra, do trabalho, da moradia, da renda sero atribudas a seus fracassos escolares. A excluso escolar causa de todas as excluses sociais. Uma tarefa ser pesquisar nos cursos de formao e de educao bsica como essas interpretaes persistem na cultura poltica e pedaggica e como persistem nos contedos dos currculos e do material didtico.

    Os movimentos sociais lutam pelo direito aos conhecimentos, outros conhecimentos e radicalizam as formas histricas de sua produo como se-gregados at do acesso aos conhecimentos. Reagem s estruturas econmicas, sociais, polticas, de classe que os exploram e segregam. Consequentemente desestabilizam a viso simplificada das anlises oficiais, educacionais que os veem como excludos, ignorando ou ocultando esses processos histricos mais segregadores e a relao entre esses processos e a negao do direito ao conhecimento. Essa radicalidade da anlise dos movimentos sociais tem conse-quncias tambm radicais na formulao dos currculos: desestabiliza o uso da escolarizao, no escolarizao e o uso do conhecimento hegemnico como parmetros de classificao dos Outros como inferiores, subalternos, excludos porque analfabetos, iletrados, irracionais, incultos, pr-polticos. A diversidade de coletivos sociais, tnicos, raciais, dos trabalhadores em seus movimentos no se reconhece nessas categorias to inferiorizantes com que a cultura poltica e pedaggica e a prpria concepo de conhecimento hegemnico os classifica, hierarquiza e segrega. No por essa concepo segregadora de conhecimento e de escolarizao que lutam. Uma das primeiras tarefas ser limpar os curr-culos do campo dessas representaes. Uma das prioridades na elaborao de outros currculos ser mapear essas formas de ocultamento nos contedos e no material didtico. Desconstru-las e abrir espaos para as identidades positivas que os movimentos sociais afirmam.

    O conhecimento e a produo dos diferentes em subalternos

    Chegamos a um dos ncleos mais difceis de articular na elaborao de currculos nas escolas do campo, indgenas, quilombolas e das periferias urba-

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  • nas: o papel do conhecimento hegemnico na segregao, subalternizao dos Outros, dos oprimidos, dos trabalhadores. Os movimentos sociais vivenciam uma contradio: lutar pela escola, pela universidade ocupar latifndios do saber e terem sido produzidos como inferiores, subalternos pelo conheci-mento hegemnico. Os movimentos sociais repem em suas reaes uma das questes mais desestruturantes aos currculos: qual tem sido o papel poltico do pensamento e do conhecimento moderno na sua produo como inferiores subalternos? Pensando especificamente na elaborao de currculos de educao do campo, indgenas, quilombolas. Qual a funo especfica poltica do conheci-mento moderno na segregao-inferiorizao dos trabalhadores e desses povos? Questes indispensveis, nucleares na elaborao dos currculos. Hierarquiz-los como inferiores em conhecimentos, em culturas e valores no tm agido como justificativa para expropriar suas terras, seus territrios, explorar seu trabalho, justificar a segregao em espaos sub-humanos...? As formas de pensar os Outros como inferiores em conhecimento, em racionalidade, em cultura, em valores tm agido para legitimar as segregaes econmicas, sociais, de classe. O conhecimento faz parte dos conflitos de classe, no apenas na sua apropriao e segregao, mas na sua produo. Nenhum conhecimento neutro.

    Seria necessrio incluir nos currculos de formao docente e pedaggica de todos os profissionais que trabalham com as crianas, adolescentes, jovens--adultos populares, trabalhadores das cidades e dos campos, incluir os estudos que enfatizam o papel central do conhecimento nos processos de sua inferio-rizao, segregao ao longo de nossa histria colonizadora e capitalista. As polticas, diretrizes, as teorias pedaggicas mais progressistas tentam superar, so pensadas e pensam-se nesse jogo de representaes inferiorizantes dos Ou-tros para legitimar as formas de aloc-las nos padres de poder, de trabalho, de apropriao-expropriao da terra, do espao, da renda e do conhecimento. Ao elaborar currculos ser necessrio pesquisar que formas de pensar os/as edu-candos/as, filhos/as de trabalhadores das cidades e dos campos predominam nos currculos, no material didtico, nas polticas e na cultura pedaggica. Pesquisar se tentam superar ou reforam as formas como foram e continuam pensados e segregados na cultura poltica, nas relaes sociais, de classe, de trabalho, de poder, de expropriao da terra e do espao. A histria do pensamento educacio-nal e das polticas est perpassada por essas tenses entre reproduzir ou superar as formas como os Outros coletivos sociais tm sido pensados e inferiorizados nas relaes de classe. Uma tensa histria a pesquisar e explicitar e incorporar nos currculos de formao e de educao bsica. Os trabalhadores camponeses, indgenas, quilombolas, das florestas e seus filhos e suas filhas tm direito a conhecer essas formas persistentes de pens-los e segreg-los.

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  • Voltemos pergunta nuclear na elaborao de currculos de educao e de formao de professores do campo, indgenas, quilombolas: Qual tem sido o papel do conhecimento nos processos de sua subalternizao? Estudos tm destacado que o pensamento moderno tem cumprido uma funo abissal e sacrificial ao produzir e classificar os Outros como inexistentes, sub-humanos. (SANTOS; MENEZES, 2010, QUIJANO, 2005). No livro Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. (ARROYO, 2012b), exploro as contribuies desses estudos sobre o papel do conhecimento na produo dos Outros como inexistentes, sub--humanos. Essas anlises vo alm das formas como o pensamento educacional prefere ver os Outros como desiguais, excludos e mostram que em nossa histria os processos foram mais brutais: trat-los como inexistentes, logo inincluveis nas formas aceitas de incluso. Inexistentes, logo impossibilidade de presena e copresena nas instituies sociais, polticas, econmicas, da justia, do co-nhecimento e da cultura, inincluveis nos padres de direito terra, trabalho, teto, justia, conhecimento, escolarizao. Sempre pensados sem direito a esses lugares. Como estranhos nas escolas, nas universidades, no congresso, nos rgos da justia, no supremo. Reprovados quando ousam entrar, porque os classificados como inexistentes no so incluveis nem emancipveis. Os outros jogados do outro lado da linha onde apenas h inexistncia, invisibilidade e ausncia no dialtica. (SANTOS, 2010, p. 24).

    Essa impossibilidade de copresena se d na distribuio do espao urbano, da poltica de sade, de educao, lugares e instituies precarizadas para os trabalhadores empobrecidos. O Ns cria seus espaos e instituies. A nossa histria marcada pela impossibilidade da copresena nos mesmos espaos, at pblicos, porque os Outros so pensados como inexistentes. Esses estudos avanam afirmando que o pensamento moderno sacrificial: decretou a ausncia de humanidade dos Outros para afirmar o Ns como a sntese da humanidade. O Ns humanos e os Outros sub-humanos. Essas classificaes dos Outros esto muito distantes dos leves termos como excludos e currculos includos. O conhecimento e o direito modernos representam as manifestaes mais bem conseguidas do pensamento abissal (SANTOS, 2010, p. 24). Os movimentos sociais vm experimentando o papel do direito, da justia na represso a suas lutas pelo direito terra, a territrios, a teto e trabalho. Estas experincias exi-gem ser aprofundadas no entendimento do papel do conhecimento e da justia na produo classista dos Outros como inexistentes, sub-humanos. Seu papel na justificativa de reintegrao de posse, na criminalizao das lutas por terra, teto, trabalho... Representaes e prticas que exigem ser aprofundadas quando se pensa em currculos que garantam o direito ao conhecimento.

    Nos cursos de formao dos profissionais da docncia uma pergunta ser obrigatria: Por que o conhecimento abissal e sacrificial na produo dos Ou-

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  • tros como inexistentes e sub-humanos? Que papel vem cumprindo nas relaes polticas? O pensamento moderno abissal porque concede cincia moderna o monoplio da distino universal entre o verdadeiro e o falso, entre as formas cientficas e no cientficas de verdade, logo a invisibilidade das formas de co-nhecimento que no se encaixam nessa validade da forma legtima de conhecer: os conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, afro-brasileiros ou indgenas situados do outro lado do verdadeiro.

    Eles desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensurveis por se encontrarem para alm do universo do verdadeiro e do falso [...]. Do outro lado da linha opinies, magia, idolatria, entendimentos intui-tivos ou subjetivos... no obedecem aos cnones cientficos de verdade. (SANTOS, 2010, p. 24-25).

    Essa polarizao tem legitimado as elites como produtoras e detentoras de conhecimentos vlidos e tem inferiorizado os trabalhadores, os coletivos populares como relegados ignorncia, irracionalidade, a no verdade. At concepes progressistas terminam classificando os coletivos populares como inconscientes, sumidos no senso comum e na falsa conscincia, a-crticos e pr--polticos. O conhecimento crtico lhes prometido para superar o senso comum e para a sua elevao intelectual e cultural. Os conhecimentos dos currculos operam nesse cnone segregador, classista, de verdade. Uma funo difcil de desconstruir ao lutar por outros currculos e por outros conhecimentos.

    Pouco sabemos nas teorias pedaggicas e curriculares sobre essa funo abissal e sacrifical do conhecimento. Como elaborar currculos que consigam superar essa concepo de conhecimento? Aproximando os currculos dos movimentos sociais e dos seus processos de resistncia e desconstruo dessa funo abissal e sacrifical classista do conhecimento. Da destruio desse cno-ne do verdadeiro e falso. Em primeiro lugar trazer para os currculos como os Outros em seus movimentos se afirmam como existentes, apesar de decretada sua inexistncia. (ARROYO, 2012b, p. 51ss). Mostram-se existentes, copre-sentes, reagindo. Levar para os currculos a histria das presenas afirmativas dos movimentos sociais, suas marchas, smbolos, suas ocupaes, suas msicas, letras, projetos de campo, de sociedade. Suas lutas de classe. Uma tarefa ser pesquisar como se aprendem existentes e se afirmam presentes, reagindo a to-das as estruturas e representaes que decretam suas inexistncias. Que novas identidades e aprendizados de si constroem? Em que fronteiras se afirmam existentes, presentes? Nas lutas por terra, teto, territrio, renda, trabalho. Qual

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  • a especificidade de sua presena nas escolas, universidades e nos prprios cur-rculos sntese do conhecimento que os tem segregado?

    Pressionam por Outros conhecimentos. Afirmam-se produtores no apenas de outros conhecimentos, mas de outros cnones de pensamento vlido. No se reconhecem atolados na irracionalidade, nas interpretaes falsas de si e do mundo. Afirmam outra racionalidade, outras leituras de mundo, de si mesmos, das relaes sociais de classe, gnero, raa, etnia que os tm pensado irracionais. Reagem ao despojo de seu lugar na histria da produo do conhecimento e da cultura da humanidade. (ARROYO, 2012b, p. 65ss). Ser necessrio pesquisar se no material didtico no predomina ainda essa viso dos trabalhadores e dos povos dos campos, dos indgenas, quilombolas, das florestas como primitivos submetidos a formas irracionais de produo, de interpretar o mundo, sumidos em crendices. Jecas, atrasados porque ignorantes... Elaborar outros materiais didticos com representaes sociais positivas, afirmativas. Outros currculos. Exigir ter conscincia do papel do conhecimento na reproduo das relaes de classe. No ser suficiente ocupar os latifndios do saber, mas ocupados estes latifndios, plantar neles outros saberes.

    O saber de si como direito ao conhecimento

    Esse o caminho mais radical para elaborar Outros currculos. Vimos como os movimentos sociais reagem s formas de pens-los, de subalterniz-los. Tem conscincia dos processos de sua libertao. Sabem-se Outros. Como garantir nos currculos esse direito ao produzir-se e saber-se Outros? A diversidade de movimentos sociais avana na conscincia do direito escola direito nosso, dever do Estado. As crianas e adolescentes, os jovens e adultos se esforam por frequentar e permanecer nas escolas, mas sairo da escola sabendo-se? Uma constatao: os conhecimentos dos currculos, o material didtico em pouco lhes ajudam a se conhecerem, a saber mais de si mesmos, de seus coletivos, de sua histria, de seu lugar, de suas formas de produo, de trabalho, de suas culturas, de suas memrias e lutas por outro projeto de campo e de sociedade. Pouco lhes ajudam a conhecer os outros saberes produzidos pelos movimentos sociais.

    Que rostos, de que coletivos so mostrados nos currculos? Destacam-se os rostos, a histria, os valores, os conhecimentos, os modos de produo dos coletivos no poder e so ignorados, ocultados e desfigurados os rostos dos Outros. O currculo tem sido um espao de ocultamentos, de apagar suas existncias e seus conhecimentos aprendidos em sua resistncia. Ao chegarem s escolas

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  • no reconhecem nos currculos e no material didtico suas identidades sociais, polticas, ticas, estticas culturais. Por exemplo, os currculos cultuam as ci-dades e apagam os campos, a agricultura camponesa, o trabalho. Com o culto industrializao, ao agronegcio se ocultam e inferiorizam outras formas de produo como ultrapassadas, em extino. Decreta-se o desaparecimento dos coletivos humanos. Como limpar os currculos desses ocultamentos e que co-nhecimentos incorporar para garantir s crianas e aos adolescentes, aos jovens e adultos o direito a conhecer-se, a entender-se e ver-se em conhecimentos Outros, mais positivos? Mas com que saberes, saber-se? Que currculos lhes garantiro esse direito a saber-se? Questes que devero acompanhar a construo dos currculos. (ARROYO, 2012a, parte V). Os movimentos sociais vm sendo os pedagogos que constroem outras representaes de seus coletivos, constroem e mostram Outros saberes de si. Esses saberes, representaes que os movimentos sociais, em sua diversidade, vm afirmando devero ser os referentes para ela-borar os currculos. Logo, pesquisar com toda ateno os movimentos sociais e que conhecimentos afirmam com destaque. Reagem aos processos econmicos, sociais, polticos, culturais e at pedaggicos com que foram segregados, su-balternizados como trabalhadores, camponeses, indgenas, quilombolas. Como classe. Que saberes, culturas, identidades de libertao produzem?

    Os currculos de formao docente e pedaggica e da educao bsica devero aprender com os saberes dos movimentos sociais e incorpor-los. Sa-beres sobre em que processos foram subalternizados, oprimidos nas relaes de classe, etnia, raa. Ao afirmarem-se sem-terra, sem-teto, mostram que se sabem produzidos pela destruio material de seu viver. Velhos processos que vm desde a colonizao e que as relaes de produo capitalista radicalizam e aperfeioam com a apropriao da terra, com o agronegcio, com a destruio das formas de produo dos agricultores, indgenas, povos das florestas e das guas, quilombolas. Processos de destruio material do viver dos trabalhadores das periferias urbanas. Esses processos de submetimento subsistncia nos limites, a espaos sub-humanos, pobreza extrema, a sem-trabalho, fome tm sido constantes, mas no so tratados nos conhecimentos dos currculos. Os movimentos sociais trazem essa histria agenda poltica e tambm curricular. (ARROYO, 2012b).

    Os movimentos sociais ao dar tanto destaque s lutas por terra, teto, trabalho trazem uma histria persistente: os processos de subalterniz-los, segreg-los pela desterritorializao, pelo desenraizamento de suas culturas. Milhes de imigrantes, sem lugar, procura de lugar. Milhes de sem-terra, sem-territrios, sem-teto, lutando por terra, territrio, moradia, cultura, vida, identidades, saberes. Milhares de coletivos tnico-raciais reagindo ao mito da inferioridade de origem (QUIJANO, 2005), afirmando suas identidades tnicas,

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  • raciais. Os currculos de formao e de educao bsica tm a obrigao de incorporar essas histrias desses processos que continuam atuais, persistentes de destruio material do viver, de desterritorializao, de inferiorizao, su-balternizao que os movimentos sociais denunciam. Incorporar esses saberes crticos dessa histria. Mas tambm incorporar as resistncias e os processos de afirmao, libertao-emancipao que os prprios coletivos constroem. Que desde crianas ao chegarem s escolas aprendam a saber-se em currculos que incorporem essa riqueza de conhecimentos, valores, culturas, identidades de que os movimentos sociais so sujeitos, produtores.

    Os movimentos sociais nos apontam para a construo de outros curr-culos, na medida em que defendem ocupar o latifndio do saber, as escolas, as universidades, os currculos para plantar e afirmar outros conhecimentos. Para afirmarem-se produtores de outras culturas e valores.

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    Texto recebido em 12 de fevereiro de 2015.Texto aprovado em 27 de fevereiro de 2015.

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