art. o fim ou a reinvencao da escola marisa costa
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Artigo O Fim Ou a Reinvenção Da Escola, de Marisa Vorraber Costa.TRANSCRIPT
2 O FIM OU A REINVENO DA ESCOLA? Marisa Vorraber Costa Porto Alegre/RS Faztempoquevenhoinsistindoserprecisorenovarasreflexessobreaescola,escapandodeumemaranhadomaisoumenoshomogneodeinformaes,problemas, teorias e proposies que pouco tem contribudo para o avano na compreenso de suas transformaesedeseusatuaisdesafios.Nesteartigo,intentoescreveralgoem consonncia com esse ponto de vista. Busquei inspirao em argumentos conhecidos de UmbertoEcoacercadariquezaexplicativadashistrias-aquilosobreoquenose pode teorizar, deve ser narrado.-, cuja formulao originaleleatribuiaWittgenstein. Eco toma ao p da letra a formulao do filsofo austraco-britnico e defende serem as histriassempremaisricasdoquequalquerideia.Segundoele,asideias,aoserem remodeladasnoseventos,flexionadaspelospersonagensesubmetidasaos tensionamentosconstitutivosdalinguagemcotidiana,transformam-seemorganismos vivos, em algo completamente diferente e muito mais expressivo.1 comestaconvicoquenestetextolanoum olharsobreaescolaapartirde umapeadeteatrointituladaInimigosdeClasse.AobraestreouemPortoAlegreno recentemsdemaro,emmontagemdeLucianoAlabarse,agoracomoumasegunda leituradestediretorsobreotema.Aprimeiraencenaoaconteceuem1988,aps AlabarseterassistidoemumfestivaldecinemaaofilmeClassEnemy,dirigidopor PeterStein,umdosmaisconceituadosdiretoresdoteatroalemocontemporneo. Segundooteatrlogoportoalegrense,seuinteressesurgiudoacentomarcadamente teatraldofilme,associadoviolnciafsicaefilosficaquecaracterizavaoespao escolar representado. Atrajetriadotextoquedeuorigempeamerecereferncia.Defato,otexto originaldeInimigosdeClassedodramaturgoinglsNigelWilliams,queoteria compostoem1978comoumacrticaanarquiareinantenasescolasmetropolitanas britnicas da poca. Contudo, tornou-se mundialmente conhecido quando Peter Stein o adaptouparaocinema.OgrupodeteatroMambembe,deSoPaulo,realizoua adaptao brasileira, e a atual verso de Alabarse uma livre releitura da obra original, com recurso a um crivotemporal que atualiza linguagens e situaes, transportando-as paraocontextode2011-2012.Aolongodessesmaisde30anosquenosseparamda escrituradotextooriginal,encenaesrenovadasteatraisecinematogrficatm revitalizadoeatualizadoaabordagemdotemadadecadnciadaescola,desua destituio da condiode espao de formao e de sua transfigurao em universo de alunossemesperana,semrumo,perdidosembuscadeumfuturoincertoesem perspectivas.H verses teatrais de Inimigos de Classe compostas em diferentes pases, sendo apresentadasemmomentoscrticosdacrisedaeducaoescolar,aquelesemque acontecimentos trgicos indicam ter o processo de falncia do sistema educacional e da escola atingido um patamar insuportvel, to assustador a ponto de mobilizar narrativas de todo tipo em sua salvao. O diretor gacho declara ter abandonado seus projetos em andamento para dedicar-se montagem atual imediatamente aps o trgico e recente acontecimentoemqueumalunode10anosbaleouaprofessoraeemseguidatiroua prpria vida em uma escola de So Caetano do Sul, no estado de So Paulo. 1VerentrevistadeUmbertoEco aLilaAzamZanganehemhttp://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-pauleacute-baacutertoacuten 3 Segundo Alabarse2, ao focalizar a decadncia do sistema de educao pblica e ofossoexistenteentreasnecessidadesdequemvaiescolaeoquelhesoferecido pelasredesdeensino,otextoteatraltraztona,nasinter-relaesdospersonagens,a precariedadeeconmicaeintelectualdeseuuniversoeafaltadeperspectivasede futurosobdiferentescondiesevisesdemundo.Aagoniadeumsistema administradopelosvaloreseducacionaisdademocraciaocidentalomoteparaos embates e o antagonismo dos personagens centrais, alunos abandonados sua revelia e aoseudestinoinexorvel.Aagoniamoribundadasilusessociaismaisprimriaso mote central da atual encenao Antesdeprosseguir,convidoosleitoresaseaproximaremumpoucoda narrativa teatral. AcenadeInimigosdeClassetranscorreemumasaladeauladepredada,cujas paredespixadasemobiliriodespedaadoexpressamdestruioeabandono.umdia comumdeaulana2srieCdoEnsinoMdio,turmacompostaporseisalunos desajustados,rebeldes,grosseiroseviolentos.Suasroupasexpressamdesleixoeesto emsintoniacomimagensdeculturasjuveniscontemporneas,comcabelos desgrenhados ou cabeas raspadas, tatuagens, muitos medalhes, correntes, jaquetas de courodetonadas,jeansdesmantelados,botasecamisetasrasgadas.Hpoucaluzea movimentao em cena transcorre mesmo antes do incio do espetculo, com as cortinas dopalcoabertas,mostrandoalunosnervosos,movimentando-sesemparar,num ambientecujostonsvariamdocinzaaoquasepreto,perpassadopornuancesdeum amarelo mortio. A depredao faz parte do espetculo, prosseguindo implacavelmente aolongodaencenao.Cadeiraseopoucoquerestadomobilirioescolarvosendo destroados medida que os personagens fazem aflorar sua crescente agressividade, sua desesperana,seudescrdito,desrespeitoedesencanto.Apeacomeacomaentrada nasaladeaula,aosgritos,dolderdogrupo,Ferro,relatandoterelemesmopostoa correraltimaprofessoraquelheshaviasidoenviada.Compalavrasegestualeivado deobcenidades,aturmazombadetudoetodos,inclusivedesuacondiosempre esperadeumnovoprofessor.Ansiososedesorientados,elesnosabemoquefazer, mas tambm no admitem a possibilidade de voltar para casa, lugar para eles destitudo de qualquer atrativo ou condio de permanncia. Diante disso, Ferro resolve o impasse determinandoqueenquantoaguardam,cadaumdarumaaulaparaosdemais.Com vaiasedeboches,ogruporeageproposta.Elesnosuportamaideiadelevarem-na adiante,tornando-secadavezmaistensoessemomentodiantedoperigoiminentede desnudarem seu bem guardado (e renegado?) universo pessoal. Finalmente, acabam por submeter-seaoperceberqueBola,principalantagonistadeFerro,tambmconcorda comaideia.Cadaalunoda2Cobrigadoaescolherumassuntoparasuaaulae, surpreendentemente,estasacabamabordandotemastovariadoscomojardinagem, sexo, economia domstica e imperialismo. A trama na sala de aula interrompida duas vezes pelos dois nicos personagens quenosoestudantes.Aprimeira,pelosupervisordisciplinarembuscadoalunode apelidoPortuga,conhecidoporquebrartodasasjanelasdaescola.Asegunda,pelo diretor que irrompe na sala para por fim a uma briga entre Ferro e Bola, cujo confronto fora tensamente protelado ao longo da narrativa. Bola leva a pior no enfrentamento, mas 2 Os trechos citados foram extrados do Programa da pea, distribudo na sesso de 11 de maro de 2012, no Teatro So Pedro de Porto Alegre. Ele reproduz texto de Luciano Alabarse escrito para o Programa da primeira encenao de Inimigos de Classe, em julho de 1988, no Teatro de Cmara de Porto Alegre. 4 persistecomfirmezanointentodedarsuaaula,embatequesinterrompidocoma intervenododiretorquesepronunciacomumdiscursotovazio,retricoe estereotipadoapontodesoarridculoecausardesconfortonaprpriaplateia.Umdos alunos posta-se frequentemente prximo porta da sala de aula, e vez por outra entra e saiassumindoasfunesdeportavozdosacontecimentosparaalmdoslimitesdo mundoquetranscorredentrodaquelasquatroparedes.Elequebraporduasvezeso andamento dramtico e violento da trama com informaes sobre a aproximao de um professor.Naprimeira,atensaexpectativametamorfoseia-seemdecepodianteda descrio de um professor que muda o destino de seu deslocamento e dirige-se a outra sala. O segundo relato sobre esta aproximao acontece no final da trama e leva ao auge a tenso da expectativa. Expressa dramaticamente um misto de esperana e medo de que se reveste a possibilidade de um mestre, de fato, com livros nos braos, adentrar ou no naquela sala de aula.J havamos pensado sobre isso? O diretor, Alabarse, assim se refere trama. Abandonados na sala de aula de uma decadente escola perifrica, os alunos de InimigosdeClassenosonemmocinhosnembandidos.Aesperanaeodesespero aparecememtodosospersonagens.Nohsoluoacurtoprazo,nohmedidas eficientes e reguladoras. Todos eles sabem que o mundo uma surpresa que di, e que comotemposdi;todosremexemperigosamenteoriscodasituaoqueesto vivendo. Para eles, o risco consiste em assumir suas prprias responsabilidades quando faltamalternativasexternasparaumfuturomelhor.Nessesentido,nomundo globalizado do sculo XXI, a ao da pea pode acontecer em Porto Alegre, Berlim ou qualquer outra cidade onde impera nossa capenga democracia solidria e sua deturpada lgicadebenessesigualitrias.Todosospersonagensremetem,aomesmotempo,aos menores da FASE e aos vileiros da Vila Pinho, mas tambm aos adolescentes das bem equipadasescolasamericanaseeuropeias.Quemmesmoqueatiraemprofessorese queimamendigosnasruas?Quemvandalizaedestriprdiosemonumentos?Quem praticaobullyingnasescolas?Justamenteporissocorteitodasasmenes geograficamentelocalizadas,poisotemaessencialaperversidadedosistema econmico vigente, do abismo irracional gerado a partir dos pressupostos capitalistas da sociedade ocidental. No creio que a pea tenhaperdido com essa opo, sequer sob o cdigorealistaquenorteouaconstruodospersonagens.Todosospersonagensso excludosdealgumamaneira,estrangeirosemseuprpriomundo,aomesmotempo sujeitosevtimasdaHistria.Apobrezaevidente,avidafamiliarprecria,aslacunas psicolgicas desses adolescentes prescindem didatismos e teses. Comosepodeobservar,nohnadadesimples,bviooulinearsejana narrativa flmica seja na teatral. Pelo contrrio, desde a ambiguidade do ttulo original - Inimigos de Classe (Class Enemy), at hoje mantido nas encenaes em distintos pases, apeasuscitavriaspossibilidadesdeleitura,mantendoasplateiasemumaconstante ambiguidade diante das situaes que transcorrem no palco (ou nas telas dos cinemas). Alguns no admitem o linguajar, outros abominam o gestual obsceno e todos condenam a violncia e a depredao da escola; parte da plateia aplaude em p, outra se levanta e sai rapidamente dandoas costasao palco, outrapermanece perplexa.Uns e outros no suportamadoreaindignaoqueeclodemquandoficoerealidadesemesclam, confundemehabitamumaregiocinzentasemfronteirasvisveis.Comoafirma Alabarse,umapeaescritaparaocuparopalcocomamorefria,umtextopara perturbar a plateia com fora e contundncia 5 Inimigos de Classe di pela agressividade assim como pela singeleza do clamor queressoanosespaosdosteatrosatatingircadaumdosespectadoresemsuas poltronas. Aqueles seis jovens debatendo-se entre o amor e o dio, agarrados ao ltimo fio de esperana que a escola pode representar faz crescer em urgncia e importncia a necessidade de se tematizar a escola com outras linguagens e possibilidades de leitura. InimigosdeClassereformuloumeusngulosdeviso,aguouminhaslentes, mudou a moldura, desorganizou meu pensamento e tocou meu corao como no havia aindaacontecidonessesanosemquetenhoestudadoaescola.Estamostodos acostumadosarefletircomcertalinearidade,abuscarobomouomau,ocertoouo errado,aprisionadospolaridadeentreordemecaos,negligenciandoqualquer possibilidadedequeobemeomalpossamcoabitar,edesprezandoaambivalncia. ComodizBauman(1999),aobsessopelaordemeohorrormisturanonostm permitidoenxergaraangustiantedramaticidadedesevivernaambivalncia.Inimigos de Classe nos coloca face a face com ela. Referncias ALABARSE,Luciano.Quantovaleumcopodegeleia?ProgramadapeaInimigosdeClasse.Porto Alegre, Teatro So Pedro, 2012. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalncia. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ECO,Umberto.EntrevistaaLilaAzamZanganeh.Acessvelem http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-pauleacute-baacutertoacuten INIMIGOSDECLASSE.Peadeteatro.LivreadaptaodeLucianoAlabarseparatextodeNigel Williams, a partir de traduo do Grupo Mambembe (So Paulo). Porto Alegre, Teatro So Pedro, 2012. Marisa Vorraber Costa professora e pesquisadora nos programas de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil. Referncia desta publicao: COSTA, MarisaVorraber. O fim ou a reinveno da escola.Revista Nova Amrica. Rio de Janeiro, n 134, abr-junho, 2012.