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Atenção Primária à Saúde  575 16.  A TENÇÃO PRIMÁRIA   À  S  AÚDE  Lígia Giovanella Maria Helena Magalhães de Mendonça  Aten ção primári a refe re-s e a um con junt o de prá tica s em saúd e, individuais e coletivas, que no Brasil, durante o processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), passou a ser denominado de atenção básica à saúde. Nos dias atuais, a atenção primária à saúde é considerada internacionalmente a base para um novo modelo assistencial de sistemas de saúde que tenham em seu centro o usuário-cidadão. Este capítulo apresenta um panorama internacional e brasileiro da atenção primária à saúde. Na primeira parte, discutem-se conceitos e abordagens de atenção primária à saúde e suas transformações ao longo do tempo, destacando-se os atributos de uma atenção primária abrangente. Em seguida, apresentam-se, em perspectiva internacional, antecedentes históricos dos serviços de atenção primária e a experiência em países europeus com centralidade nos serviços prestados por médicos generalistas ou de família. Na seqüência, é analisada a trajetória histórica das políticas de atenção primária à saúde no Brasil, com realce para a Estratégia de Saúde da Família e a Política Nacional de Atenção Básica de 2006. Traça-se então um panorama da oferta e da prestação de serviços de atenção básica no Brasil e, no final, discutem-se os desafios para a consolidação do SUS como um sistema de saúde orientado pela atenção primária à saúde. Capitulo-16.pmd 27/11/2009, 10:24 575

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Capitulo do livro politicas e sistemas de saúde no brasil

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  • Ateno Primria Sade 575

    16. ATENO PRIMRIA SADE

    Lgia GiovanellaMaria Helena Magalhes de Mendona

    Ateno primria refere-se a um conjunto de prticas em sade,individuais e coletivas, que no Brasil, durante o processo de implementaodo Sistema nico de Sade (SUS), passou a ser denominado de atenobsica sade. Nos dias atuais, a ateno primria sade consideradainternacionalmente a base para um novo modelo assistencial de sistemasde sade que tenham em seu centro o usurio-cidado.

    Este captulo apresenta um panorama internacional e brasileiroda ateno primria sade. Na primeira parte, discutem-se conceitos eabordagens de ateno primria sade e suas transformaes ao longodo tempo, destacando-se os atributos de uma ateno primria abrangente.Em seguida, apresentam-se, em perspectiva internacional, antecedenteshistricos dos servios de ateno primria e a experincia em paseseuropeus com centralidade nos servios prestados por mdicosgeneralistas ou de famlia.

    Na seqncia, analisada a trajetria histrica das polticas deateno primria sade no Brasil, com realce para a Estratgiade Sade da Famlia e a Poltica Nacional de Ateno Bsica de 2006.Traa-se ento um panorama da oferta e da prestao de servios deateno bsica no Brasil e, no final, discutem-se os desafios para aconsolidao do SUS como um sistema de sade orientado pelaateno primria sade.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL576

    ATENO PRIMRIA SADE: CONCEITOS E ABORDAGENS

    A ateno ambulatorial de primeiro nvel, ou seja, os servios deprimeiro contato do paciente com o sistema de sade, direcionados acobrir as afeces e condies mais comuns e a resolver a maioria dosproblemas de sade de uma populao, em geral denominada de AtenoPrimria Sade (APS). No h, contudo, uniformidade no emprego daexpresso ateno primria sade (primary health care), identificando-setrs linhas principais de interpretao:

    1) programa focalizado e seletivo, com cesta restrita de servios;

    2) um dos nveis de ateno, que corresponde aos serviosambulatoriais mdicos no-especializados de primeiro contato,incluindo ou no amplo espectro de aes de sade pblica e deservios clnicos direcionados a toda a populao;

    3) de forma abrangente, uma concepo de modelo assistencial e deorganizao do sistema de sade.

    Nos pases europeus, a ateno primria refere-se, de modo geral,aos servios ambulatoriais de primeiro contato integrados a um sistemade sade de acesso universal, diferente do que se observa nos pasesperifricos, nos quais a ateno primria corresponde tambm, comfreqncia, a programas seletivos, focalizados e de baixa resolutividade.

    Essa concepo, denominada de seletiva, subentende programascom objetivos restritos, visando cobrir determinadas necessidadespreviamente definidas de grupos populacionais em extrema pobreza, comrecursos de baixa densidade tecnolgica e sem possibilidade de acessoaos nveis secundrio e tercirio, correspondendo a uma traduo restritados objetivos preconizados na Conferncia de Alma-Ata, em 1978, para aEstratgia de Sade para Todos no ano 2000.

    Na Conferncia de Alma-Ata, a ateno primria foi entendidacomo ateno sade essencial, fundada em tecnologias apropriadas ecusto-efetivas, primeiro componente de um processo permanente deassistncia sanitria, cujo acesso deveria ser garantido a todas as pessoase famlias da comunidade mediante sua plena participao.

    A Conferncia de Alma-Ata e as bases para uma APS abrangente

    Um marco histrico mundial da ateno primria sade aConferncia Internacional sobre Ateno Primria em Sade, organizadapela Organizao Mundial da Sade (OMS) e o Fundo das Naes Unidaspara a Infncia (Unicef), realizada em 1978 em Alma-Ata, cidade doCazaquisto, na poca uma das repblicas da Unio Sovitica. Essa

    Ateno primria sade(primary health care)Denominao geral paraateno ambulatorial deprimeiro contato quetem diferentesconcepes em suaimplementao.

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  • Ateno Primria Sade 577

    conferncia coroou o processo anterior de questionamento dos modelosverticais de interveno da OMS para o combate s endemias nos pasesem desenvolvimento, em especial na frica e na Amrica Latina, e domodelo mdico hegemnico cada vez mais especializado e intervencionista.

    Na primeira vertente de questionamento, aprofundava-se a crtica OMS no que se refere abordagem vertical dos programas de combatea doenas transmiss veis , como a malria, desenvolvidos comintervenes seletivas e descontextualizadas em diversos pases durantea dcada de 1960.

    Em contexto mundial favorvel, no qual predominavam os governossocialdemocratas em pases europeus, a OMS passou por uma renovaoe, em 1973, Halfdan Mahler, um mdico com senso de justia social eexperincia em sade pblica em pases em desenvolvimento, assumiu adireo da OMS, que comeou a desenvolver abordagens alternativaspara a interveno em sade. Considerava-se que essas intervenesverticais no respondiam s principais necessidades de sade daspopulaes e que seria preciso avanar desenvolvendo concepes maisabrangentes, dentre elas a de APS. Foi assim que Mahler props em 1976a meta: Sade para Todos no Ano 2000 (Cueto, 2004).

    Na segunda vertente de questionamento, desde o final da dcada de1960, o modelo biomdico de ateno sade recebia crticas de diversasorigens, destacando-se os determinantes sociais mais gerais dos processossade-enfermidade e a exigncia de nova abordagem em ateno sade.

    Paralelamente, com o fim das ditaduras de Franco, na Espanha, ede Salazar, em Portugal, na segunda metade da dcada de 1970, osmovimentos de libertao das colnias africanas se intensificaram, assimcomo se iniciaram movimentos para a democratizao dos pases daAmrica Latina. Em tais processos de independncia nacional defendia-se a modernizao com nfase nos valores locais, privilegiando-se aconstruo de um modelo de ateno sade distinto do modeloestadunidense hegemnico. Desse modo, criticava-se a especializaoprogressiva e o elitismo mdico, propondo-se a articulao de prticaspopulares e a democratizao do conhecimento mdico.

    A experincia dos mdicos descalos chineses, leigos quecombinavam cuidados preventivos e curativos, alopatia e medicinatradicional e atuavam em regies rurais, foi um modelo difundidomundialmente. Essa abordagem era compartilhada pela Comisso MdicaCrist do Conselho Mundial das Igrejas, que por meio da revista Contact,de circulao mundial e publicada em diversos idiomas, divulgavaexperincias de ateno primria dos missionrios cristos atuantes emprojetos de sade nos pases em desenvolvimento.

    As caractersticas domodelo mdicohegemnico sodiscutidas no captulo15, sobre modelos deateno sade noBrasil. Consulte.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL578

    Nos anos 70, o relatrio do Ministrio da Sade canadense quediscutia Uma Nova Perspectiva para Sade dos Canadenses mostrava aimportncia do objetivo de preveno de doenas e da promoo de boasade para a populao, alm da organizao de um sistema de sadeadequado, assumido como responsabilidade governamental. O RelatrioLalonde, como ficou conhecido, destacava estudos do epidemilogo inglsThomas McKeown que demonstram a relao da sade com as condiesde vida, em particular o saneamento ambiental e a nutrio(disponibilidade de alimentos), ao analisar retrospectivamente a evoluoda situao de sade na Inglaterra e no Pas de Gales ao longo dos sculosXVIII e XIX (Relatrio Lalonde; McKeown, 1976).

    Outra referncia no debate daquela poca foi o livro de Ivan Illich,socilogo austraco radicado no Mxico, lanado em 1975. Com o sugestivottulo Nmesis da Medicina: expropriao da sade, aluso ao nome da deusada vingana, o autor tecia profundas crticas ao modelo biomdico,desmascarava a iatrogenia produzida pela interveno mdica e analisavaa baixa relao entre a assistncia sade moderna e as melhorias nasituao de sade da populao (Illich, 1975).

    O contexto do final da dcada de 1970 propiciou a organizao deuma conferncia de ateno primria. A realizao da ConfernciaInternacional sobre Ateno Primria Sade foi proposta OMS pela China,para difundir novos modelos alternativos de ateno sade. AChina, contudo, no participou da conferncia em razo de disputaspolticas acerca dos modelos de ateno sade no interior do blocosocialista com a URSS, que implantara sistemas pblicos universais,centralizados e organizados por nveis hierrquicos, nos quaispredominavam o modelo biomdico e a centralidade na assistnciahospitalar. A Unio Sovitica se ops inicialmente temtica daconferncia, mas acabou por se oferecer para sediar o evento, contribuindocom apoio financeiro substancial, em virtude do avano do movimentoem defesa da APS em todo o mundo (Cueto, 2004).

    A conferncia realizada em Alma-Ata em 1978 foi um importanteevento que contou com representaes de 134 governos (o Brasil esteveausente) e recebeu mais de trs mil delegados. Na ocasio, o documentoDeclarao de Alma-Ata foi aprovado, tendo sido ratificado em 1979 pelaAssemblia-Geral da OMS, que lanou em mbito mundial a Estratgiade Sade para Todos no Ano 2000.

    A Declarao de Alma-Ata afirma a responsabilidade dos governossobre a sade de seus povos por meio de medidas sanitrias e sociais,reiterando a sade como direito humano fundamental e uma das maisimportantes metas sociais mundiais (Quadro 1). Destaca que a realizao

    Para saber mais sobreos determinantes sociaisdos processos sade-enfermidade, consulteo captulo 4.

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  • Ateno Primria Sade 579

    dessa meta demanda a ao de muitos outros setores sociais e econmicos,alm do setor sade. O texto denuncia a chocante desigualdade existenteno estado de sade dos povos e conclama as agncias internacionais e osgovernos ao esforo para a reduo da lacuna existente entre o estado desade nos pases desenvolvidos e naqueles em desenvolvimento, assimcomo para a meta Sade para Todos no Ano 2000: o alcance de um nvelde sade que permitisse vida social e economicamente produtiva.

    A concepo de ateno primria expressada na Declarao deAlma-Ata abrangente, pois considera a APS como funo central dosistema nacional de sade e como parte do processo mais geral dedesenvolvimento social e econmico das comunidades, o que envolve acooperao com outros setores de modo a promover o desenvolvimentosocial e enfrentar os determinantes de sade mais amplos de cartersocioeconmico. Destaca ainda a preocupao com os custos crescentesda assistncia mdica em decorrncia do uso de novas tecnologias, quepermanecem, em grande parte, sem a avaliao adequada de benefciospara a sade das populaes, razo pela qual se introduziu o termotecnologias apropriadas: tecnologias relevantes para as necessidades desade da populao, que fossem corretamente avaliadas e tivessem elevadarelao custo-benefcio.

    Na Declarao de Alma-Ata, a APS concebida como a ateno sade essencial, baseada em mtodos e tecnologias apropriadas,cientificamente comprovados e socialmente aceitveis, cujo acesso deveser garantido a todas as pessoas e famlias da comunidade mediante suaplena participao. Pressupe assim a participao comunitria e ademocratizao dos conhecimentos, incluindo praticantes tradicionais(curandeiros, parteiras) e agentes de sade da comunidade treinados paratarefas especficas, contrapondo-se ao elitismo mdico. Nessa concepo,a APS representa o primeiro nvel de contato com o sistema de sade,levando a ateno sade o mais prximo possvel de onde as pessoasresidem e trabalham. Contudo, no se restringe ao primeiro nvel,integrando um processo permanente de assistncia sanitria, que inclui apreveno, a promoo, a cura e a reabilitao.

    A Declarao de Alma-Ata enfatiza a necessidade de aes deoutros setores. Todavia, as aes de cuidados de sade mencionadasabarcam um conjunto mais restrito (aes educativas, tratamento dasdoenas mais comuns, medicamentos essenciais, nutrio e saneamentobsico) (Quadro 1).

    Tecnologias apropriadas

    Tecnologias relevantess necessidades de sadeda populao, avaliadasde maneira correta,socialmente aceitveis ecom elevada relaocusto-benefcio.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL580

    Quadro 1 Abordagem de Ateno Primria em Sade na Declarao daConferncia Internacional sobre Cuidados Primrios de Sade Alma-Ata.URSS, 6-12 de setembro de 1978

    A sade estado de completo bem-estar fsico, mental e social, no sim-plesmente a ausncia de doena ou enfermidade direito humano fundamental.

    O desenvolvimento econmico e social de importncia fundamentalpara a plena realizao da meta de Sade para Todos no Ano 2000.

    A ateno primria em sade:

    envolve, alm do setor sade, todos os setores e aspectos correlatos dodesenvolvimento nacional e comunitrio, entre estes a agricultura, a pe-curia, a produo de alimentos, a indstria, a educao, a habitao, asobras pblicas, as comunicaes e outros setores;

    engloba cuidados essenciais; baseada em mtodos e tecnologias apropria-das, cientificamente comprovadas e socialmente aceitveis;

    direciona-se aos principais problemas de sade da comunidade, proporci-onando servios de proteo, cura e reabilitao, conforme as necessidades;

    seu acesso deve ser garantido a todas as pessoas e famlias da comunidademediante sua plena participao, a um custo que a comunidade e o paspossam suportar;

    representa o primeiro nvel de contato de indivduos, da famlia e da co-munidade com o sistema de sade, levando a ateno sade o mais prximopossvel de onde as pessoas residem e trabalham;

    primeiro elemento de um processo permanente de assistncia sanitria, in-clui pelo menos: educao, no tocante a problemas prevalecentes de sade e aosmtodos para sua preveno e controle, promoo da distribuio de alimentose da nutrio apropriada, previso adequada de gua de boa qualidade e sane-amento bsico, cuidados de sade materno-infantil, inclusive planejamentofamiliar, imunizao contra as principais doenas infecciosas, preveno econtrole de doenas localmente endmicas, tratamento apropriado de doen-as e leses comuns e fornecimento de medicamentos essenciais;

    deve ser apoiada por sistemas de referncia integrados, levando pro-gressiva melhoria da ateno integral sade para todos, dando priorida-de aos que tm mais necessidade.

    Fonte: Declarao Alma-Ata, 1978.

    Ateno primria seletiva

    A Declarao de Alma-Ata foi criticada por agncias internacio-nais com o argumento de ser muito abrangente e pouco propositiva.

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  • Ateno Primria Sade 581

    Assim, em contexto internacional adverso de baixo crescimento econmicoe maior presena de governos conservadores, deu-se seqncia, nos anosposteriores, a um embate entre a concepo de ateno primria sadeintegral e abrangente e a concepo restrita de APS, prevalecendo a ltima.

    Um ano aps Alma-Ata, em 1979, a Fundao Rockefeller promo-veu uma reunio na Itlia com a colaborao de diversas agncias inter-nacionais, dentre elas o Banco Mundial, a Fundao Ford, a agncia ca-nadense Centro Internacional para a Pesquisa e o Desenvolvimento e aestadunidense Agncia Internacional para o Desenvolvimento. Nessa con-ferncia foi discutida uma nova perspectiva: ateno primria sadeseletiva, como estratgia para o controle de doenas em pases em desen-volvimento (Cueto, 2004).

    A ateno primria seletiva designa um pacote de intervenes debaixo custo para combater as principais doenas em pases pobres.Inicialmente proposta como estratgia interina e afirmada comocomplementar s proposies de Alma-Ata, a APS seletiva difundiu-se, apartir de ento destinada a controlar apenas algumas doenas em pasesem desenvolvimento.

    Nos anos seguintes, quatro intervenes conhecidas como GOBIpor suas iniciais em ingls passaram a ser difundidas entre os pasespobres, com especial suporte da Unicef: acompanhamento do crescimentoe desenvolvimento (growth monitoring), reidratao oral (oral rehydration),aleitamento materno (breast feeding) e imunizao (immunization). Agnciasinternacionais, como a Unicef, passaram a financiar essas intervenes,que eram consideradas como tendo objetivos claros, fceis para avaliar emedir o alcance de metas.

    A esse pacote restrito foram incorporadas, em alguns programas,as chamadas FFF: suplementao alimentar (food supplementation),alfabetizao feminina (female literacy) e planejamento familiar (familyplanning). A alfabetizao feminina e a elevao do nvel de escolaridadedas mulheres so tidas como a base de diversas aes em sade e estofortemente associadas reduo da mortalidade infantil.

    Ainda que se reconhecesse a efetividade dessas intervenes, aconcepo de APS difundida ento pela Unicef foi criticada pelotecnocratismo orientando-se por critrios estritamente tcnicos de custo-efetividade sem considerar questes polticas determinantes e,principalmente, por desconsiderar a exigncia de melhoriassocioeconmicas e a importncia da garantia das necessidades bsicas paraa melhoria da situao de sade das populaes. Por exemplo: o uso daterapia de reidratao oral tecnologia efetiva para tratamento de diar-

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL582

    rias no poderia substituir medidas especficas de saneamento, como oacesso rede geral de abastecimento de gua e de esgoto, efetivas na pro-moo da sade e na preveno de doenas de veiculao hdrica.

    Durante a dcada de 1980, a concepo de ateno primria comocesta restrita de servios bsicos selecionados, voltados populao emsituao de maior pobreza, passou a ser hegemnica para diversas agn-cias internacionais, como o Banco Mundial, e hoje conhecida como aten-o primria seletiva. Nesse contexto, pode-se dizer que, no Brasil, o usodo termo ateno bsica para designar a ateno primria no SUS bus-cou diferenciar as polticas propostas pelo movimento sanitrio, distanci-ando-as dos programas de APS seletivos e focalizados, difundidos pelasagncias internacionais.

    Para refletir

    As intervenes da APS seletiva so suficientes para a garantia do direito sade?

    Renovao do debate sobre ateno primria sade nas Amricas

    Aps Alma-Ata, o que imperou nos pases em desenvolvimento foi aimplementao de uma APS seletiva. Contudo, a discusso da sade seampliou. Movimentos sociais em mbito internacional passaram a enfatizara compreenso da sade como direito humano, a necessidade de abordaros determinantes sociais e polticos mais amplos da sade e tambm anecessidade de estabelecer polticas de desenvolvimento inclusivas,apoiadas por compromissos financeiros e de legislao, para reduzirdesigualdades e alcanar eqidade em sade.

    Recentemente, observa-se um movimento de renovao da atenoprimria, impulsionado pelas agncias internacionais de sade OrganizaoMundial da Sade (OMS) e Organizao Pan-Americana da Sade (Opas) ,como forma de alcanar os Objetivos do Milnio acordados nas Naes Unidas.

    Em 2003, seguindo iniciativa da OMS, a Opas aprovou uma resoluoque insta os Estados membros a adotarem uma srie de recomendaes parafortalecer a APS. Em 2005, divulgou o documento de posicionamento Renova-o da Ateno Primria em Sade nas Amricas (Opas/OMS, 2005), no qualdefende a necessidade de se alcanar ateno universal e abrangente por meiode uma abordagem integrada e horizontal para o desenvolvimento dos sistemasde sade, com cuidados orientados qualidade, nfase na promoo e preven-o, intersetorialidade, participao social e responsabilizao dos governos.

    A renovao proposta pela Opas subentende uma atualizao daconcepo abrangente de APS. Sua implementao, contudo, depender

    Os Objetivos do Milnioso apresentados nocaptulo 21. Confira.

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  • Ateno Primria Sade 583

    da adeso dos governos nacionais e da traduo dos princpios abrangen-tes enunciados em prticas concretas.

    Para desenhar novas polticas e reorientar os sistemas de sadepela APS, necessrio analisar os principais atributos de uma atenoprimria sade abrangente.

    Atributos caractersticos da APS

    Barbara Starfield (2002), mdica e pesquisadora estadunidense, de-senvolveu uma abordagem para caracterizar a ateno primria abrangentenos pases industrializados, definindo os atributos essenciais dos servios deateno primria. Essa abordagem, reconhecida por especialistas e difundi-da tambm no Brasil, considera como caractersticas especficas da APS: aprestao de servios de primeiro contato; a assuno de responsabilidadelongitudinal pelo paciente com continuidade da relao clnico-paciente aolongo da vida; a garantia de cuidado integral considerando-se os mbitosfsicos, psquicos e sociais da sade dentro dos limites de atuao do pessoalde sade; e a coordenao das diversas aes e servios indispensveis pararesolver necessidades menos freqentes e mais complexas (Quadro 2).

    Nessa concepo, os servios de ateno primria devem estar ori-entados para a comunidade, conhecendo suas necessidades de sade;centrar-se na famlia, para bem avaliar como responder s necessidadesde sade de seus membros; e ter competncia cultural para se comunicare reconhecer as diferentes necessidades dos diversos grupos populacionais(Starfield, 2002).

    O primeiro atributo da ateno primria constituir-se como serviode primeiro contato (Quadro 2), porta de entrada do sistema de sade,procurado regularmente a cada vez que o paciente precisa de ateno emcaso de adoecimento ou para acompanhamento rotineiro de sua sade.Para a constituio de um servio como porta de entrada do sistema desade, o primeiro requisito que este seja acessvel populao, eliminando-se barreiras financeiras, geogrficas, organizacionais e culturais, o quepossibilita a utilizao por parte dos usurios a cada novo episdio.

    Outro requisito a exigncia de encaminhamento por profissionaisde ateno primria para acesso ateno especializada. Desse modo, oservio de ateno primria torna-se o ponto de incio da ateno, portade entrada obrigatria, e exerce papel de filtro para acesso aos outrosnveis, isto , tem a funo que se denomina na lngua inglesa de gatekeeper.

    Sistemas integrados de sade em que o clnico geral atua como portade entrada obrigatria (gatekeeper) so reconhecidos como menos onerosos emais aptos para conter a progresso dos gastos ambulatoriais (Starfield, 2002).

    Para saber mais sobreacesso, consulte ocaptulo 6.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL584

    Para refletir

    Analise as possveis vantagens e desvantagens de definio de servios de atenoprimria no Brasil como porta de entrada preferencial.

    A definio de porta de entrada obrigatria ao sistema tambmusada por planos de seguros de sade privados nos EUA, porm comobarreira de acesso, com o objetivo de reduzir os gastos dos seguros e nocomo modo de garantir o acesso a servios especializados de formaestruturada, que o objetivo de sistemas baseados em uma ateno primriaabrangente. Na APS, esse mecanismo no isolado, e a garantia de acessoaos outros nveis fundamental para contemplar os demais atributos.

    Outro atributo da APS a longitudinalidade (Quadro 2): a assunode responsabilidade longitudinal pelo paciente com continuidade darelao profissional/equipe/unidade de sade-paciente ao longo da vida,independentemente da ausncia ou da presena de doena. Este atributo relacionado ao anterior pois, para que se estabelea um vnculo no cursoda vida, necessrio que exista fonte regular de ateno e seu uso aolongo do tempo.

    Para se estabelecer uma relao pessoal de longa durao entre osprofissionais de sade e os pacientes de suas unidades (Starfield, 2002), aunidade de sade deve ser capaz de identificar sua populao eletiva,definindo uma populao de referncia seja por meio da adscrioterritorial de clientela, seja por meio da inscrio voluntria dos pacientesem uma unidade de sade.

    Com a continuidade da relao ao longo do tempo, os profissionaispassam a conhecer os pacientes e os pacientes a conhecer os profissionais,permitindo uma relao humanizada e ateno mais integral, o queproporciona maior satisfao dos pacientes (Starfield, 2002). De todomodo, a presena do mdico generalista na equipe de ateno bsicacontribui para uma relao de longo prazo e a sustenta, pois umprofissional que atende a famlia em todos os ciclos de vida, desde agestao at a idade avanada.

    A abrangncia (comprehensiveness) ou integralidade (Quadro 2)implica o reconhecimento, pela equipe de sade, de amplo espectro denecessidades considerando-se os mbitos orgnicos, psquicos e sociaisda sade, dentro dos limites de atuao do pessoal de sade. Requer aoferta de servios preventivos e curativos e a garantia de todos os tipos deservios para todas as faixas etrias. Assim, a unidade deve contar comarranjos que garantam todos os servios necessitados pelos pacientes.Mesmo que no oferea diretamente, a unidade de APS deve assegurar,por meio de encaminhamento, o acesso a servios especializados para

    Na adscrio declientela, a unidadeatende somente apopulao residente emdeterminada reaterritorial. Para isso,delimita-se uma reageogrfica deabrangncia da unidadede sade; os residentesna rea so cadastradospela unidade, e aunidade de usoexclusivo dessesmoradores.Acolhimento implicabem receber, oferecerproteo e amparo,escutar e dar respostacapaz de resolver oproblema apresentadopelo usurio. O vnculose estabelece na relaoprofissional de sadeusurio ou equipe desadeusurio,construda ao longo dotempo com base naconfiana do usurio noprofissional e naresponsabilizao doprofissional ou equipepelo cuidado epromoo da sade dosusurios.

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  • Ateno Primria Sade 585

    consultas e internaes e para outros servios de suporte, como interna-es domiciliares e servios sociais.

    Para que uma ateno integral seja garantida, os servios de atenoprimria devem assumir a responsabilidade pela coordenao (Quadro 2)das diversas aes e servios necessrios para resolver necessidades me-nos freqentes e mais complexas. A coordenao, outro atributo essenci-al da ateno primria, implica a capacidade de garantir a continuidadeda ateno (ateno ininterrupta) no interior da rede de servios. Para oexerccio da coordenao pela equipe de APS, so necessrios: tecnologi-as de gesto clnica, mecanismos adequados de comunicao entre pro-fissionais e registro adequado de informaes.

    A essncia da coordenao a disponibilidade de informao acer-ca dos problemas prvios, o que requer a existncia de pronturio deacompanhamento longitudinal (ao longo da vida) do paciente e o seuretorno ao generalista aps o encaminhamento a profissional especializa-do, para apoio na elucidao diagnstica ou na deciso e no manejo tera-puticos.

    Para existir coordenao do cuidado deve ocorrer, portanto, a trans-ferncia de informaes sobre os problemas de sade dos pacientes, bemcomo da ateno recebida, de modo a assegurar uma seqncia ininter-rupta de visitas, garantindo-se a continuidade do contato. A coordenaoda ateno ao paciente pelo generalista proporciona melhor acompanha-mento de pacientes, em especial daqueles portadores de doenas crnicasou de morbidade mltipla, para os quais os sistemas de ateno sadeesto, em geral, ainda pouco preparados, inclusive em outros pases.

    Para refletir

    Com base em experincia que voc tenha tido com paciente crnico que necessitouacessar diferentes servios, avalie se os cuidados foram coordenados. Qual profis-sional assumiu essa funo? Como procedeu?

    A coordenao dos cuidados torna-se cada vez mais indispensvelem razo do envelhecimento populacional, das mudanas no perfilepidemiolgico, que evidencia crescente prevalncia de doenas crnicas,e da diversificao tecnolgica nas prticas assistenciais. O cuidado dedoentes crnicos resulta em interdependncia entre as unidades de sa-de, pois tais pacientes utilizam simultaneamente servios de diversas com-plexidades, o que demanda a coordenao entre servios, funo que deveser exercida pela equipe de ateno primria sade.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL586

    Quadro 2 Atributos da ateno primria sade

    Atri butos daateno primria

    sade

    Definio Perguntas norteadoras para avaliaodo atributo

    Primeiro contato Servios procurados regularmentecada vez que o paciente necessita deateno em caso de adoecimento oupara acompanhamento rotineiro desua sade. Porta de entrada do sistema desade: ponto de incio da ateno efiltro para acesso aos serviosespecializados.

    A equipe de APS acessvel aos usuriosna maior parte do tempo? As famlias percebem que tm acesso ateno primria adequada? Exige-se encaminhamento dosprofissionais de ateno primria paraacesso ateno especializada?

    Longitudinalidade Assuno de responsabilidadelongitudinal pelo paciente comcontinuidade da relao clnico-paciente, ao longo da vida,independentemente da ausncia ou dapresena de doena.

    Exige-se o cadastramento/registro depacientes a um profissional/equipe/servio? As famlias so atendidas pela mesmaequipe ao longo do tempo? H relao de mtua confiana econhecimento entre famlias e profissionaisdas equipes APS? Meu mdico me v para rotinaspreventivas?

    Abrangncia ouintegralidade

    Reconhecimento de amplo espectrode necessidades, considerando-se osmbitos orgnicos, psquicos e sociaisda sade, dentro dos limites deatuao do pessoal de sade. Implica oferecer servios preventivose curativos e garantir acesso a todos ostipos de servios para todas as faixasetrias por meio de encaminhamento,quando necessrio.

    A equipe de sade capaz de reconheceros problemas de sade dos indivduos e dacomunidade? Qual a abrangncia do pacote de serviosoferecidos? Os pacientes so referidos para oespecialista quando apropriado? Meu mdico cuida da maioria de meusproblemas de sade?

    Coordenao Coordenao das diversas aes eservios essenciais para resolvernecessidades menos freqentes e maiscomplexas.

    Se vrios mdicos esto envolvidos emmeu tratamento, meu mdico de APSorganiza-o. H reconhecimento de problemas quedemandam ateno constante? Existem diretrizes formais (protocolos)para a transferncia de informaes entremdicos de ateno primria eespecialistas? So utilizadas na prtica? H mecanismos de integrao da rede? Acontra-referncia ocorre?

    ?

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  • Ateno Primria Sade 587

    Quadro 2 Atributos da ateno primria sade (continuao)

    Atri butos daateno primria

    sade

    Definio Perguntas norteadoras para avaliaodo atributo

    Orientao para acomunidade

    Conhecimento das necessidades desade da populao adscrita em razodo contexto econmico e social em quevive. Conhecimento da distribuio dosproblemas de sade e dos recursosdisponveis na comunidade. Participao da comunidade nasdecises sobre sua sade.

    A equipe conhece os problemas dacomunidade? A equipe realiza diagnstico de sade dacomunidade? A equipe trabalha com outrasorganizaes para realizar aesintersetoriais? Representantes da comunidadeparticipam do conselho da unidade desade?

    Centralidade nafamlia

    Considerao do contexto edinmica familiar para bem avaliarcomo responder s necessidades decada membro. Conhecimento dos membros e deseus problemas de sade.

    Os pronturios so organizados porfamlia? Durante a consulta, os profissionaispedem informaes sobre a sade deoutros membros da famlia? Durante a consulta, os profissionaispedem informaes sobre as condiessocioeconmicas da famlia? Os profissionais conhecem os membrosda famlia?

    Competnciacultural

    Reconhecimento de diferentesnecessidades dos grupospopulacionais, suas caractersticastnicas, raciais e culturais, entendendosuas representaes dos processossade-enfermidade.

    A equipe reconhece necessidadesculturais especiais? A populao percebe suas necessidadesculturais especficas como sendo atendidas?

    Fonte: Elaborado com base em Starfield, 2002; Almeida & Macinko, 2006.

    Para refletir

    Quais as possveis contribuies da APS para a sade da populao?

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL588

    ANTECEDENTES HISTRICOS DE SERVIOS DE ATENO PRIMRIA

    A primeira proposta governamental formal de organizao de umprimeiro nvel de ateno data de 1920, na Gr-Bretanha, quando, poriniciat iva do Part ido Trabalhista, um conselho formado porrepresentantes do Ministrio da Sade e dos profissionais mdicosprivados props a prestao de servios de ateno primria por equipesde mdicos e pessoal auxiliar em centros de sade para cobertura detoda a populao. Nesse documento, conhecido como Relatrio Dawson(nome do presidente do conselho), o centro de sade uma instituioequipada para servios mdicos preventivos e curativos a serem prestadossob conduo dos mdicos generalistas (general practitioners GPs) do distritoem cooperao com servios de enfermagem eficientes e apoio deespecialistas (Roemer, 1985: 323).

    Alguns antecedentes histricos da ateno ambulatorial

    A criao de unidades de assistncia sade em nvel ambulatorial (para alm daatividade individual do mdico ou farmacutico) tem uma histria muito maisrecente do que os hospitais, as mais antigas unidades de sade para cuidado decasos graves em regime de internao. Hospitais foram criados nas cidades europiasno sculo XI pela Igreja crist para cuidado aos pobres, como ao de caridade,que envolvia garantir hospedagem, alimentao e cuidado para a alma e o corpo,contudo vrios sculos transcorreram at que se ofertassem cuidados de sadeefetivos, como discutido no captulo 18. No mundo muulmano, instituiessimilares surgiram no sculo XIII articuladas com grandes mesquitas para otratamento de fiis gravemente enfermos.Os primeiros cuidados ambulatoriais de forma mais coletiva foram fornecidos pormeio das corporaes de artesos a partir do sculo XIII, que criaram fundospara proteo de seus membros em caso de infortnios e passaram a contratarmdicos para atender a seus filiados. Como descrito no captulo 3, a partir dosculo XVIII, as sociedades de ajuda mtua de trabalhadores industriais passarama contratar mdicos individuais para atender a seus membros.As primeiras unidades de sade ambulatoriais separadas do hospital surgiram naFrana no sculo XVII. A primeira foi criada em 1630, com objetivos filantrpicos,por um mdico francs em Paris para atendimento gratuito a pobres, e o exemplofoi seguido por escolas de medicina que passaram a oferecer servios de consultasgrtis como campo de treinamento para seus alunos. Esses servios foramdenominados de dispensrios, pois tambm distribuam (dispensavam)medicamentos. Na Inglaterra, os dispensrios foram criados a partir do sculoXVII, sendo o primeiro deles uma iniciativa do Colgio Mdico Real de Londres(Royal College of Physicians), e difundidos no sculo XVIII, quando a idia dodispensrio como lugar para atendimento ambulatorial dos pobres urbanos tambmchegou aos EUA. Tais dispensrios, geralmente dependentes de doaes, ocupavamuma pessoa em tempo integral, mdico ou farmacutico, que realizava pequenascirurgias, aplicava vacina contra varola, distribua medicamentos e extraa dentes.

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  • Ateno Primria Sade 589

    No sculo XIX, os hospitais passaram a ser reconhecidos como lugar de tratamen-to mais seguro para todos e no mais apenas local de auxlio para pobres, e nasgrandes cidades criaram-se departamentos para assistncia ambulatorial.Paralelamente, servios de sade pblica foram criados para a vigilncia dedeterminadas doenas, como tuberculose, e para o acompanhamento de crianas eoutros grupos populacionais. No incio do sculo XX, os dispensrios foramsubstitudos por centros de sade, em geral por iniciativa de governos locais.Fonte: Roemer, 1985.

    A proposio do Relatrio Dawson inclua ainda a organizaoregionalizada dos servios de sade, hierarquizada em nvel primrio,secundrio e tercirio. Essas idias no foram imediatamenteimplementadas por presso da corporao mdica, mas fundamentaramposteriores iniciativas de organizao dos sistemas de sade. Os centrosde sade foram amplamente difundidos somente na dcada de 1960,quando muitas unidades foram construdas na Inglaterra. Os mdicosgeneralistas, ainda que permanecendo como profissionais autnomos,passaram a dar consultas nesses centros de sade, trabalhando ao lado deoutros profissionais de sade, empregados governamentais, comoenfermeiras, visitadoras domiciliares e assistentes sociais.

    Nos pases em desenvolvimento, como o Brasil, difundiu-se ummodelo diferente de centro de sade, limitado a servios preventivos.Experimentado inicialmente em uma das colnias britnicas (Sri Lanka),esse modelo separava funes clnicas e de sade pblica. O centro desade atuava com foco em servios prioritariamente preventivos, e ospacientes que necessitavam de tratamento eram encaminhados paraambulatrios de hospitais.

    A Fundao Rockefeller fomentou esse modelo de centro de sadecomo instituio exclusivamente de sade pblica nas dcadas de 1930 e1940, o que inspirou no Brasil, na poca, a criao de centros de sade eunidades do Servio de Sade Pblica (Sesp) com apoio da fundao.Exceto para certas doenas transmissveis como doenas venreas etuberculose, para as quais eram realizados tratamentos como medida paraprevenir contgio , esses centros de sade no prestavam atendimentoclnico nem para os pobres, os quais eram tratados nos ambulatrios dehospitais aps comprovarem sua indigncia. A idia de um centro de saderesponsvel pela prestao de servios abrangentes para a populaovoltou a ser revisitada nas Amricas tambm somente na dcada de 1960,com a expanso da medicina comunitria nos EUA.

    Nos pases socialistas, os centros de sade foram o modelo deateno ambulatorial predominante os pases socialistas da URSS e do

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL590

    Leste europeu comportavam um tero da populao mundial na dcadade 1970 e representaram o modelo de ateno ambulatorial maisinclusivo e integral, articulando servios clnicos e preventivos de acessouniversal gratuito, financiados predominantemente com recursosprovenientes de impostos gerais. A equipe bsica era constituda porclnico geral ou internista, pediatra, gineco-obstetra, odontlogo,enfermeiras e pessoal auxiliar. Com freqncia, esses servios eramchamados de policlnicas e situados em locais de trabalho (Roemer, 1985).

    ATENO PRIMRIA SADE: EXPERINCIA EUROPIA

    Diferentemente do que se observou em pases perifricos, nos pasesde industrializao avanada, principalmente os europeus, a atenoprimria continuou seu desenvolvimento como um dos nveis de atenodo sistema de sade. Nesses pases, os cuidados primrios correspondemaos servios ambulatoriais no especializados de primeiro contato, portade entrada no sistema de sade, incluindo diferentes profissionais e umleque abrangente de aes preventivas e de servios clnicos direcionadosa toda a populao.

    Os pases europeus destacam-se pela garantia do acesso universalaos servios de sade e pelo amplo espectro de servios ofertados. Assim,a nfase do primeiro nvel de assistncia est na clnica e nos cuidadosindividuais sejam estes preventivos, sejam curativos e no contemplaalguns aspectos da concepo abrangente da APS, mais voltada aosproblemas coletivos, atuao intersetorial e participao social nosservios de sade.

    Nos pases europeus, em geral, h acordo entre os dirigentessetoriais formuladores de polticas e os especialistas em organizao desistemas de sade, no sentido de que a ateno primria deve ser a basede um sistema de sade bem desenhado e capaz de orientar a organizaodo sistema como um todo. Nesses pases, durante os ltimos anos, a partirdo final da dcada de 1990, as reformas dos sistemas tm buscadofortalecer esse nvel de ateno em suas funes de coordenao e deporta de entrada do sistema de sade.

    A ateno ambulatorial de primeiro contato nos pases da UnioEuropia (UE) prestada com grande variao de configuraesinstitucionais, seja em sua estrutura, em termos de organizao efinanciamento, seja nas prticas realizadas. A seguir so apresentadasalgumas informaes sobre o primeiro nvel de ateno para os 15 pasesda Europa Ocidental que compunham a UE at 2004.

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  • Ateno Primria Sade 591

    As modalidades de financiamento da APS so indissociveis das mo-dalidades de sistemas de sade. Por conseguinte, necessrio recordar queos sistemas de sade europeus selecionados diferem em suas modalidadesde financiamento e podem ser agrupados em dois modelos de proteoprincipais: o bismarckiano, com base em seguros sociais de sade (SocialHealth Insurance SHI) de contratao compulsria, financiados porcontribuies vinculadas ao trabalho assalariado (sete pases); e o beveridgiano,de servios nacionais de sade (National Health Service NHS) ordenadospor autoridades estatais e financiados com recursos fiscais (oito pases).

    Nos servios nacionais de sade, o acesso universal, nodependendo da posio na ocupao, pois se entende a assistncia sadecomo direito de cidadania, e o acesso garantido sem necessidade decontribuio prvia direta, obtendo-se o financiamento por meio de recursosfiscais. No Reino Unido, por exemplo, mais de 80% dos gastos em sadeso pblicos e financiados em cerca de 90% com receitas de impostos. Nosservios nacionais de sade, a ateno primria , portanto, financiada comrecursos fiscais provenientes de impostos gerais (Dixon & Mossialos, 2002).

    J nos pases com seguros sociais de sade, a ateno ambulatorial deprimeiro nvel financiada do mesmo modo que o conjunto das prestaes por contribuies de empregadores e trabalhadores proporcionais aossalrios, pelo que se destina apenas aos segurados. Na Alemanha, por exemplo,cerca de 70% dos gastos com sade so pblicos, e destes mais de 90% provmde receitas de contribuies sociais sobre salrios (Giovanella, 2001).

    O ator principal da ateno primria o general practitioner (GP)ou family doctor ou Hausarz, ou mdico de medicina geral, mdicogeneralista, que acompanha as famlias, independentemente de sexo ouidade de seus membros (Saltman, 2005). O GP o principal profissionalmdico de primeiro contato na maioria dos pases europeus; todavia, aposio dos profissionais de ateno primria e a organizao do sistemade sade diferem entre pases, observando-se variao quanto ao tipo deservio responsvel pelo primeiro contato e ao papel que o profissionalexerce como porta de entrada e filtro para a ateno especializada.

    Nos pases em que vigoram sistemas nacionais de sade, maisfreqente que a ateno ambulatorial esteja organizada em nveis deateno a partir da oferta de um generalista para a maioria dos problemasde sade. O generalista exerce a funo de servios de primeiro contato e responsvel pelos encaminhamentos necessrios a um segundo nvel deateno especializado. A responsabilidade pelo primeiro contato compartilhada, em alguns pases, por outros profissionais de atenoprimria, como ginecologistas e pediatras, no atendimento doscorrespondentes grupos populacionais (Quadro 3).

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL592

    De modo diferente, na maior parte dos pases com esquemas deseguro social (cinco em sete pases) no h separao da ateno ambulatorialem nveis entre a ateno prestada por clnicos gerais e aquela prestadapor especialistas , permitindo-se aos segurados a livre escolha entre aprocura direta ao clnico geral ou ao especialista, o que dificulta acoordenao dos cuidados (Giovanella, 2006; Boerma & Dubois, 2006).

    Porta de entrada obrigatria

    Um aspecto crucial para a caracterizao da ateno primria aanlise da posio desse servio na rede assistencial como servio deprimeiro contato com instituio de porta de entrada obrigatria(mecanismo de gatekeeper), considerada instrumento fundamental parapermitir a coordenao dos cuidados pelo generalista.

    Mecanismos de coordenao hierrquica do tipo gatekeeper, pormeio do qual se delega ao GP poder sobre outros nveis de ateno, foramestabelecidos em pases com servios nacionais de sade j na dcada de1960, definindo-se clara separao de papis entre mdicos generalistase especialistas. Nos pases com porta de entrada obrigatria, os GPs, almde controlar amplamente as referncias para especialistas, funcionam maisfreqentemente como servio de primeiro contato para um maior elencode situaes, atendendo homens e mulheres em todas as fases da vida(Rico, Saltman & Boerma, 2003).

    O exerccio da funo de porta de entrada obrigatria implica aobrigatoriedade de inscrio dos pacientes em um consultrio de GP ou emunidade primria de sade. Assim, pases com porta de entrada obrigatriatambm dispem de sistema de inscrio de pacientes (Quadro 3). A inscrionos servios efetuada por iniciativa do cidado/segurado, que desfrutade certa liberdade de escolha e possibilidade posterior de troca entreprofissionais de sade ou servios atuantes em determinado espaogeogrfico. Trata-se de situao diferente do que ocorre no Brasil, ondeo acesso ao programa decorre de adscrio compulsria, ou seja,cadastramento da populao de determinada rea geogrfica por partedos agentes comunitrios de sade.

    A extenso das listagens de cidados inscritos por GP apresentaimportante variao entre pases europeus: de 1.030, na Itlia, at nomximo 2.500, na Espanha.

    Para refletir

    Observe a situao dos pases europeus no Quadro 3 e compare com a organizaodos servios do SUS em sua cidade.

    Porta de entradaobrigatria (gatekeeper)

    O profissional mdicoou o servio de atenoprimria deve serprocurado a cada novanecessidade de ateno,constituindo-se noservio de primeirocontato e responsvelpela referncia a serviosespecializados conformeas necessidades. A portade entrada obrigatriafunciona como uminstrumento que facilitaa coordenao doscuidados pelogeneralista e delega aoprofissional de atenoprimria poder sobre osoutros servios.

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  • Ateno Primria Sade 593

    O Quadro 3 sintetiza a posio dos servios de ateno primriano sistema de sade em pases europeus selecionados. Com base nasmodalidades de sistemas de sade, indicam-se algumas caractersticas dosservios de primeiro contato, tais como: os profissionais mdicosresponsveis pelo primeiro contato; os tipos de unidade de sade deateno primria; o exerccio da funo de porta de entrada obrigatria;a exigncia de inscrio de pacientes no GP ou unidade de sade e onmero mdio de pacientes inscritos por GP.

    Quadro 3 Caractersticas dos servios de primeiro contato em 15 pases selecionados daUnio Europia 2006

    Pases pormodalidade do

    sistema desade

    Profissionalmdico de

    primeiro contato

    Tipo deunidade de

    sade deAPS

    Papel deporta deentrada

    obrigatria

    Inscriode

    pacientes

    Nmeromdio de

    pacientes nalista doGP***

    SERVIO NACIONAL DE SADE

    Dinamarca GP Consultrio grupo X X 1.600

    Espanha GP, pediatra Centro sade X X 2.500

    Finlndia GP Centro sade no no -

    Grcia GP Centro sade no no -

    Itlia GP, pediatra Consultrio ind. X X 1.030

    Portugal GP Centro sade X X 1.500

    Reino Unido GP Consultrio grupo X X 1.850

    Sucia GP* Centro sade no no -

    SEGURO SOCIAL

    Alemanha Especialista ou GP Consultrio ind. no no -

    ustria Especialista ou GP Consultrio ind. no no -

    Blgica GP Consultrio ind. no no -

    Frana Especialista ou GP Consultrio ind. no no -

    Holanda GP Consultrio grupo X X 2.350

    Irlanda GP Consultrio ind. X X** -

    Luxemburgo Especialista ou GP Consultrio ind. no no no

    * Na Sucia, parte das crianas atendida por pediatras, e em alguns centros de sade trabalham ginecologistas.

    ** Inscrio somente para pacientes de baixa renda.

    *** Para Espanha e Holanda, nmero mximo de pacientes inscritos por GP.

    Fonte: Adaptado de Giovanella, 2006.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL594

    Estudos mostram que os sistemas de sade orientados por APS re-solutiva esto associados a melhores resultados e maior eficincia. Compa-raes internacionais evidenciam melhores resultados nos pases que con-tam com uma estrutura de ateno primria robusta, exibindo impactospositivos sobre alguns indicadores da situao de sade, havendo reduode mortalidade por todas as causas e de mortalidade precoce por doen-as respiratrias e cardacas (Macinko, Starfield & Shi, 2003).

    Uma boa organizao dos servios de ateno primria contribuiem geral para maior eficincia do sistema. Pesquisas demonstram que umsistema de porta de entrada obrigatria reduz custos, em especial seoperado por um setor de ateno primria que disponha de recursosadequados, pois a ateno realizada pelo GP demanda custos menores(Rico, Saltman & Boerma, 2003) e resulta em menor uso de medicamentos.

    Quando o especialista est restrito ao hospital, como nos serviosnacionais de sade, ocorre melhor integrao da ateno hospitalar coma especializada e o uso mais racional de equipamentos mdicos (usocompartilhado para pacientes internados e para especialistas), realizando-se menor nmero de procedimentos especializados, como tomografiascomputadorizadas, por exemplo. Na Dinamarca, existem 14,6 tomgrafospor um milho de habitantes e so realizadas 0,9 tomografias/cem milhabitantes; na ustria, existem 29,2 tomgrafos por um milho de habi-tantes e so realizados 2,5 exames/cem mil habitantes ao ano, sem prejuzopara os resultados em sade, tanto que a situao de sade da populaodinamarquesa bem melhor que a da austraca (Wendt & Thompson,2004; OECD, 2007).

    POLTICAS DE ATENO PRIMRIA SADE NO BRASIL

    No Brasil, a adeso a proposies de ateno primria sadeentrou no debate da agenda de reforma setorial em meados da dcada de1970, acompanhando o movimento internacional. Contudo, seusantecedentes so mais remotos: desde a dcada de 1920 foram implantadosservios que hoje poderiam ser chamados de ateno primria.

    Antecedentes histricos

    A sade pblica no Brasil tornou-se uma funo estatal na dcadade 1930, tendo por base prticas normativas de preveno de doenas apartir de campanhas sanitrias de sade pblica e da organizao de serviosrurais de profilaxia. A organizao das aes e dos servios de sade para aateno de carter curativo e individual realizava-se pela assistncia mdica

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  • Ateno Primria Sade 595

    urbana, com base em especialidades mdicas, por meio de Caixas e de Ins-titutos de Aposentadoria e Penses (IAP), criados na dcada de 1920 e 1930,no campo do seguro social (Hochman & Fonseca, 1999).

    Na dcada de 1940, as reformas administrativas do Ministrio daEducao e da Sade Pblica aprofundaram a centralizao e averticalizao das aes de sade pblica a partir da criao dos ServiosNacionais de Sade, voltados para doenas especficas, como malria,hansenase, tuberculose etc., e do Servio Especial de Sade Pblica (Sesp).

    O modelo Sesp das dcadas de 1940 e 1950 para unidades primriasde sade adotou carter mais abrangente, articulando aes coletivas epreventivas assistncia mdica curativa, respaldadas em desenvolvimentocientfico e tecnolgico limitado, sob a influncia da medicina preventivanorte-americana por meio de convnios com a Fundao Rockefeller.Caracterizou-se pela centralizao normativa e ressaltou a articulaoentre diferentes nveis de interveno em favor da sade como elementoestrutural ao desenvolvimento regional; foi aplicado no Norte e noNordeste do pas, onde se implantou em reas estratgicas da produode matrias-primas (como borracha e mangans).

    A criao do Ministrio da Sade, em 1953, no alterou a dualidadeentre servios de sade pblica e assistncia mdica, a qual foi debatidaem 1963, na 3 Conferncia Nacional de Sade, quando se confrontaramduas perspectivas: uma era unificadora, estruturada em torno de umconjunto de idias designadas como sanitarismo desenvolvimentista, queapresentava propostas de descentralizao do sistema e solues mdicase sanitrias mais prximas dos problemas de sade e da populao; eoutra era oriunda do setor securitrio, que propunha a ampliao dacobertura populacional da previdncia social.

    A ltima perspectiva consolidou-se mediante a unificao dos institutosprevidencirios no Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS) em 1966,j no regime autoritrio, poca em que se acelerou o crescimento da prticaprivada e empresarial da medicina na organizao da ateno sade dentroda previdncia social, ao mesmo tempo que se preservavam as prticascampanhistas isoladas no Ministrio da Sade e suas parcerias com assecretarias estaduais e municipais de Sade (Oliveira & Teixeira, 1986).

    Durante a dcada de 1970, a crise econmica se aprofundou,expondo os percalos da assistncia mdica previdenciria para garantirrecursos financeiros e as mazelas dos sistemas social e de sade situaode pobreza nas reas urbanas e rurais que, sem facultar acesso a benspblicos, se expressava em padres de sade precrios, com taxas demorbidade e mortalidade elevadas.

    Para conhecer emdetalhe o processohistrico das polticas desade no Brasil nosculo XX, consulte oscaptulos 10 e 11, queabordam a histriadessas polticas de 1822a 1990.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL596

    Emergiram, nessa fase, algumas experincias sanitrias que difun-diam, a longo prazo, um projeto de reforma da estrutura de assistnciamdica em confronto com o modelo assistencial vigente, conformado porum padro de consumo e de produo de servios de elevado grau dedesenvolvimento tecnolgico, controlado pelo setor privado e altamenteconcentrado nas regies metropolitanas.

    As experincias mencionadas resultaram de um esforo dos de-partamentos de medicina preventiva das escolas mdicas, que desenvol-veram programas de integrao docente assistencial para implementarprticas de medicina comunitria. Esses departamentos recebiam apoiofinanceiro de organismos internacionais em articulao com secretariasestaduais e municipais de Sade, desmascarando a precariedade da ofer-ta pblica de cuidados mdicos.

    A trajetria desses experimentos no foi homognea nem consen-sual, mas trouxe novas bases para o debate sobre o modelo de atenovigente e suas alternativas, indicando a urgncia de uma reforma setorialno plano nacional. O xito de algumas experincias fez com que, em 1974,a previdncia social brasileira modificasse seu relacionamento com oshospitais de ensino, revendo os convnios entre o Ministrio da Educa-o e Cultura e o da Previdncia Social quanto lgica do financiamentoe permitindo s escolas mdicas contar com aporte maior de recursos,corrigindo ainda distores assistenciais j detectadas.

    As escolas mdicas, em especial as cadeiras de medicina integral,preventiva e comunitria, mediante esses novos convnios, projetaram oatendimento mdico em comunidades, realizando atividades de atenoprimria. Assim desenvolveram propostas de reforma da sade, comopoltica social, por meio de atividades de extenso acadmica, ou seja, daprestao de servios de sade em comunidades urbanas e rurais, nasquais as condies de vida eram precrias, atingindo grupos populacionaissem acesso ao consumo direto ou indireto (via seguro social) de cuidadosmdicos ou de outros servios sociais (Donnangelo & Pereira, 1976;Oliveira & Teixeira, 1986).

    A participao da universidade foi fundamental no desenvolvimentodessas experincias e de sua difuso no setor sade. O projeto postulavauma medicina com base na ateno integral, o que no significavasubordinar as aes ao campo biolgico, mas pensar a dimenso social emque se desencadeava o processo sade-doena, alm de enfocar os efeitoscoletivos da ateno prestada nesse processo e no apenas o resultado(cura) sobre o indivduo. Sua ao no poderia se limitar ao ato isoladode um agente o mdico , mas deveria buscar a cooperao entre as

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  • Ateno Primria Sade 597

    diversas agncias e prticas ligadas vida da comunidade, de modo aminorar sua precria condio social: escola, postos de sade, centros detreinamento profissional, servio social, creches etc.

    No caso da ateno sade, as experincias tenderam a estimulara participao de membros da populao nas atividades do programa apartir do treinamento em atividades de sade, os quais assim seconstituram em agentes, para atender a comunidade e oferecer soluespara as suas dificuldades, reorganizando-a e transformando-a comoestrutura social. Essas prticas, ao intervir sobre a populao no integradaao processo produtivo, promoveram nova diferenciao no campo mdico-social, que se caracterizou pela extenso dos servios mdicos por meiode tcnicas simplificadas e massificadas, as quais ampliavam o consumo ese compatibilizavam com a necessidade de reduzir custos.

    As formas como tais prticas se efetivaram no Brasil responderama distintas demandas ainda marginais na dcada de 1970 do ponto devista da cobertura populacional e da reorientao dos gastos pblicos interiorizao dos servios de sade, hierarquizao e regionalizao deateno mdica. Ademais, abriram o debate nacional para a atenoprimria sade, quando esta recebia suporte da deciso poltica traadana Conferncia Internacional sobre Ateno Primria em Sade em Alma-Ata, referida anteriormente.

    Desse modo, a adeso a proposies de ateno primria sadeentrou na pauta da agenda brasileira na dcada de 1970 com base nasexperincias relatadas e com a criao do Programa de Interiorizaodas Aes de Sade e Saneamento (Piass). O Piass, financiado com recursosdo Fundo de Apoio Social administrados pela Caixa Econmica Federal,destinava recursos tanto construo de unidades bsicas de sade quantoa convnios entre o Ministrio da Sade e o da Previdncia Social, nombito federal, e as secretarias municipais de Sade, visando implantarservios de primeiro nvel em cidades de pequeno porte. Tais serviosforam organizados em lgica similar estratgia da APS nas regiesNordeste e Sudeste com vistas expanso da cobertura.

    O debate pblico em torno da formulao de alternativas ao modelode proteo social ento vigente cresceu diante da contestao dostrabalhadores contra as filas para atendimento nos postos de assistnciamdica previdenciria (Oliveira & Teixeira, 1986). O modelo deassistncia mdica curativa, centrado no indivduo, alm de oferecercobertura restrita aos segurados da previdncia social, era oneroso e viusua conduo se deteriorar por gesto fraudulenta do Instituto Nacionalde Assistncia Mdica da Previdncia Social (Inamps).

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL598

    Em 1980, a partir de uma articulao entre setores do Ministrioda Sade e da assistncia mdica previdenciria, foi proposto o ProgramaNacional de Servios Bsicos de Sade (Prevsade), que pretendia estenderos benefcios experimentados aos centros urbanos de maior porte eminimizar o efeito da crise previdenciria. Essa medida aprofundou odebate poltico dentro do setor em favor da efetiva universalizao daassistncia mdica, embora no se tivesse alcanado sua aprovao.

    Em 1982, o Plano do Conselho Consultivo da Administrao deSade Previdenciria (Conasp) teve maior xito ao contemplar demandasde setores sociais emergentes e incorporar novos atores com representaono conselho. Para alguns analistas desse perodo, o Plano Conasp rompeua tendncia altamente centralizadora na formulao de polticas a partirdo nvel federal ao abrir espaos para experincias localizadas, em especialo programa de Aes Integradas de Sade (AIS), proposta de organizaode servios bsicos nos municpios com base em convnios entre as trsesferas de governo (Mendona, 1992).

    O Plano Conasp props uma racionalizao da ateno mdicaprevidenciria respaldada em orientaes tcnicas de organismosinternacionais (como a Organizao Pan-Americana da Sade) e noacmulo de conhecimento terico-cientfico produzido internamente noBrasil que foi consolidada com a expanso das AIS. Contudo, suaimplementao esteve condicionada pelo assistencialismo do modelo deprevidncia social desenvolvido, o qual se caracterizava pela extenso decobertura de baixa qualidade, seja de servios em ateno de sadeprimria, seja de benefcios de programas focais de assistncia social, deprestao de renda direta a famlias carentes em comunidades de baixarenda (Mendona, 1992).

    As Aes Integradas de Sade tomadas como estratgia em 1985,no primeiro governo da Nova Repblica, estimularam a integrao dasinstituies de ateno sade (MS, Inamps, secretarias estaduais emunicipais de Sade) na definio de uma ao unificada em nvel local.A organizao de um primeiro nvel de ateno, no qual as unidades bsicasde nvel local eram responsveis por aes de carter preventivo eassistncia mdica, deveria integrar o sistema de sade pblica e deassistncia sade previdencirio, de forma a prestar ateno integral atoda a populao independentemente de contribuio financeira previdncia social. A implementao das AIS propiciou importanteampliao da cobertura de servios bsicos de sade com a criao deunidades municipais de sade em grande parte dos municpios brasileiros.

    Outros programas de ateno primria direcionados a gruposespecficos, como os Programas de Ateno Integral Sade da Mulher

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  • Ateno Primria Sade 599

    (PAISM) e da Criana (PAISC), foram lanados paralelamente ao pro-cesso de implantao das Aes Integradas de Sade, entre 1984 e 1987,como parte da estratgia para consolidar a rede de servios bsicos desade. Eles serviram de modelo para os demais programas de atenointegral criados posteriormente, voltados a grupos de risco: idosos,adolescentes, portadores de doenas crnicas, como hipertenso e di-abetes, etc.

    Sistema nico de Sade e redefinio do modelo de ateno sade

    A reorganizao dos servios bsicos se inscreveu no projeto deReforma Sanitria brasileira desde a dcada de 1970, quando, no processode democratizao do pas, um movimento sanitrio envolvendoestudantes, profissionais de sade, residentes, professores dedepartamentos de medicina preventiva e social, alm de tcnicos engajadosdos ministrios setoriais, defendeu a unificao do sistema de sade evalorizou o primeiro nvel de ateno (Escorel, 1999).

    A Reforma Sanitria foi contempornea reestruturao dapoltica social brasileira, que apontou para um modelo de proteosocial abrangente, justo, equnime e democrtico. A definioconstitucional da sade como um direito social e um dever do Estadogarantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduodo risco de doena e outros agravos e ao acesso universal e igualitrios aes e serv ios para promoo, proteo e recuperao(Constituio Federativa de 1988, art. 196) reconheceu nova correlaode foras no plano da sociedade e no cenrio poltico de luta porampliao da cidadania (Fleury, 1994).

    As bases legais para a organizao do Sistema nico de Sade (SUS)tambm foram fixadas na Constituio de 1988, seguindo os princpios ediretrizes de universalidade, descentralizao, integralidade da ateno,resolutividade, humanizao do atendimento e participao social. Foramcomplementadas na aprovao das Leis Orgnicas da Sade (I e II), de1990, que criaram o Fundo Nacional de Sade, composto por recursosfiscais, e o Conselho Nacional de Sade, que garante a participao social como analisado no captulo 12.

    Formou-se ento novo aparato institucional de gesto da polticade sade que consolidou a esfera pblica no Brasil, apoiado na concepode relevncia pblica das aes e dos servios de sade. O papel do Estadona regulamentao, na fiscalizao e no controle da execuo de aes eservios de sade, quando complementares ao setor pblico, foi tambmpreservado.

    O movimento sanitrioem suas trs vertentes analisado no captulo 11.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL600

    Um programa de ateno primria seletiva: Programa de Agentes

    Comunitrios de Sade

    O princpio da eqidade em sade, um valor fundamental da Re-forma Sanitria, permitiu que na construo do SUS se buscasse rees-truturar os servios para oferecer ateno integral e garantir que asaes bsicas fossem acompanhadas pelo acesso universal rede de ser-vios mais complexos conforme as necessidades. Todavia, na dcada de1990, a tenso entre o avano do projeto neoliberal ou contra-refor-ma, por propugnar a reduo dos gastos pblicos e a cobertura de as-sistncia sade via mercado e a preservao do SUS e suas diretrizesfez o Ministrio da Sade ao qual foram incorporados estruturas,servios e profissionais da assistncia mdica previdenciria em 1990 adotar mecanismos indutores do processo de descentralizao da gesto.Tais mecanismos transferiam a responsabilidade da ateno para ogoverno municipal, o que exigiu rever a lgica da assistncia bsica,organizando-a e expandindo-a como primeiro nvel de ateno, segundoas necessidades da populao.

    Em 1991, o Programa de Agentes Comunitrios de Sade (Pacs),implantado pela Fundao Nacional de Sade (FNS), inicialmente nasregies Norte e Nordeste, em reas rurais e periurbanas, atendeu sdemandas de combate e controle da epidemia do clera e das demaisformas de diarria com foco na reidratao oral e na orientao vacina-o. Os ACS eram supervisionados por enfermeiros e se subordina-vam s unidades bsicas administradas pela FNS. A implementaodo Pacs teve carter emergencial e visou dar suporte assistnciabsica onde no houvesse condies de interiorizao da assistn-cia mdica.

    Contudo, diante da incipiente cobertura mdico-sanitria naque-las regies, os agentes foram gradualmente capacitados para outras atri-buies, como cadastramento da populao, diagnstico comunitrio,identificao de reas de risco e promoo das aes de proteo sadeda criana e da mulher com prioridade, em face da vulnerabilidadedesses grupos. Com atuao de leigos sem formao prvia na rea desade e elenco restrito de aes, o Pacs correspondia assim a um programade ateno primria seletiva.

    Outro objetivo foi atender demanda poltica das secretariasmunicipais de Sade por apoio financeiro para a operacionalizao darede bsica. A institucionalizao dos agentes comunitrios de sadeenvolveu o entendimento de que suas aes no so alheias aos serviosde sade, embora executadas fora das unidades de sade. Implicoutambm a ruptura do preconceito quanto realizao de servios de

    A expanso do modeloPacs para outras regiesdo pas a partir de 1993-94 respondeu a novosobjetivos polticos dogoverno federal. Umdeles foi priorizar asreas perifricas dasgrandes cidadesidentificadas comobolses de pobreza peloMapa da Fome,aproveitando-se oimpacto positivo nosindicadores de sade ea possibilidade de sechegar a uma formadescentralizada deoperao da poltica desade, observada nofuncionamento doprograma no Nordeste.

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  • Ateno Primria Sade 601

    ateno sade por pessoal da comunidade, sem formao profissionalespecfica, desde que habilitado por seleo pblica e com posterior ca-pacitao em processo de educao permanente, a princpio sob a res-ponsabilidade de um supervisor.

    Para refletir

    Compare a atuao dos ACS com a experincia dos mdicos de ps descalos chi-neses, mencionada na primeira parte deste captulo (no item A Conferncia deAlma-Ata e as bases para uma APS abrangente). Quais deveriam ser as atribuiesdos ACS no Brasil?

    Tal fato exigiu a definio do perfil do ACS e de suas atribuies,alm de superviso especializada, o que condicionou a presena de umprofissional de sade de nvel superior, o enfermeiro, na base operacionalde todo o processo de trabalho dos agentes. Desse modo, promoveu-seinicialmente uma mudana das prticas/aes de sade, espacial e tcnico-administrativa, ao se desenvolverem aes de sade extramuros, no maiscentradas na figura do mdico. A posterior incorporao das atividadesdesenvolvidas pelos agentes tabela de procedimentos ambulatoriais doSUS garantiu o seu pagamento com algum controle e possibilidade deavaliao dos resultados.

    A avaliao contnua do Pacs indicou a necessidade de maiorarticulao entre esse modelo e os servios de sade para evitar oesgotamento e o desgaste da atuao dos agentes. O Pacs, integrado aosistema municipal de sade, poderia garantir maior efetividade em seutrabalho com as comunidades, facilitando tambm a articulao com rgose instituies no setoriais, ampliando o leque de intervenes emelhorando seu desempenho (Heiman & Mendona, 2005).

    O Programa e a posterior Estratgia de Sade da Famlia

    Durante a dcada de 1990, o Ministrio da Sade fortaleceu asaes de carter preventivo com investimentos em programas de aesbsicas como parte da estratgia de reorganizao do prprio modelo deateno, visando especialmente promoo da sade.

    A formulao do Programa Sade da Famlia foi estimuladapor esses antecedentes e se materializou com a Portaria MS n. 692,de dezembro de 1993 . Na pr ime i ra f a se , o programa fo iimplementado principalmente em pequenos municpios e guardouo carter restrito de APS, com condies de absorver a demandareprimida de ateno primria, mas com baixa capacidade paragarantir a continuidade da ateno.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL602

    Como estratgia, a Sade da Famlia foi explicitada na Norma Ope-racional Bsica do SUS de 1996 (NOB SUS 01/96), apoiada em delibera-o do Conselho Nacional de Sade, que indicava a retomada da discus-so em torno do modelo de ateno a ser construdo. Tal ato normativodisciplinou o processo de organizao dos servios segundo campos deateno assistenciais, de intervenes ambientais e de polticas extra-se-toriais, em uma concepo ampliada de ateno sade e de integralida-de das aes.

    A partir da NOB 96, a ateno bsica em sade assumiu a caracte-rizao de primeiro nvel de ateno, ou seja, um conjunto de aes, decarter individual e coletivo, situadas no primeiro nvel de ateno dossistemas de sade, voltadas para a promoo da sade, a preveno deagravos, o tratamento e a reabilitao (Brasil, 1998). Tambm apontavapara a incorporao de novas tecnologias e para a mudana nos mtodosde programar e planejar essas aes.

    A NOB 96 teve entre suas principais determinaes: 1) substituiro modelo de alocao de recursos financeiros federais para estados emunicpios at ento com base em convnios e no pagamento porproduo de servios por nova modalidade de transferncias diretas doFundo Nacional de Sade para os fundos municipais e estaduais;2) fortalecer a capacidade gestora do Estado em nvel local, incentivandomudanas no modelo de ateno bsica (para reduzir desigualdades doacesso), avanando para alm da seletividade (que focaliza a ateno emrazo do risco) e propondo a Sade da Famlia como estratgia; 3) definirindicadores de produo e de impacto epidemiolgico (Levcovitz, Lima &Machado, 2001).

    A NOB 96 estabeleceu um novo modelo de transferncia de recursosfinanceiros federais para estados e municpios: o Piso de Ateno Bsica(PAB), com duas variantes fixo e varivel.

    O PAB fixo constitui-se em uma transferncia em base per capitapara cobertura de ateno bsica pelos municpios, isto : nestamodalidade de repasse, define-se um valor fixo por habitante ao ano. Cadamunicpio recebe recursos financeiros correspondentes ao nmero deseus habitantes por meio de transferncia do Fundo Nacional de Sadepara o Fundo Municipal de Sade (fundo a fundo), para alocar na atenobsica de seus muncipes.

    O PAB varivel composto por incentivos financeiros para a adoodos programas estratgicos, que em 1998 eram o PSF/Pacs, sade bucal,assistncia farmacutica bsica, combate s carncias nutricionais, combatea endemias e vigilncia sanitria. Os recursos recebidos pelos municpios

    Uma sntese da NOB 96voc encontra nocaptulo 12. Consulte.

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  • Ateno Primria Sade 603

    por meio do PAB varivel, portanto, variam conforme a adoo ou nodesses programas pelo municpio.

    Essas medidas estimularam debates no espao local/municipal emtorno da necessidade de esse nvel do governo organizar e gerenciar seusprprios servios, intensificando o processo de municipalizao da ateno sade no s no nvel primrio de ateno. A produo descentralizadade servios bsicos de sade empurrou a demanda de servios por outrosnveis de ateno, cuja regulao estava fora do domnio municipal, apesardo interesse dos secretrios municipais em discuti-la.

    Se a ateno bsica confere prestgio poltico ao prefeito por parteda populao, a regulao dos servios contratados pelo SUS implicaefetivo instrumento de poder em face dos provedores pblicos e privadosde sade. Assim, a efetivao de adequada regulao um permanentedesafio para a gesto do SUS e para a garantia de ateno integral eintegrada (Heiman & Mendona, 2005).

    O estmulo ao PSF e sua adequada implementao passou a serelemento estratgico permanente para a consolidao do SUS. Aarticulao entre comunidade e servios de sade desenvolvida no PSFrespaldava a participao popular e cooperava para a expresso dasnecessidades de sade da populao, construindo um marco de refernciapara o exerccio do controle social como direito de cidadania.

    Segundo Viana e Dal Poz (1998), um dos propsitos do PSF foicolaborar na organizao do SUS em seu processo de municipalizao,promovendo a integralidade do atendimento e estimulando a participaoda comunidade por meio da reorganizao das prticas de trabalho. Suaimplementao justificava-se pela necessidade de se formarem equipesmnimas de sade nos municpios em consonncia com a prioridade deinteriorizao do SUS.

    Muitos aspectos de sua estruturao foram facilitados pelaexistncia prvia do Pacs: diagnstico da sade da comunidade;planejamento e programao local; complementaridade entre aes desade pblica e ateno mdica individual; estmulo ao intersetorial;acompanhamento e avaliao. A organizao em unidades de Sade daFamlia, como modelo de assistncia, vai alm da prestao de assistnciamdica individual e deve variar segundo os problemas identificados narea de implantao, agindo na proteo e na promoo da sade dosindivduos, dos membros de uma famlia, sadios ou doentes, de formaintegral e contnua.

    Em tese, dando prioridade aos grupos mais expostos aos riscos deadoecer e morrer, o Ministrio da Sade, com a experincia do Pacs/PSF,

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL604

    props-se a atuar na esfera da eqidade e, promovendo a ateno prim-ria, contribuir para a construo de um sistema de sade voltado para aqualidade de vida dos grupos excludos, permitindo-lhes o acesso aosservios de sade locais. Ainda assim, mantinha caractersticas de uma APSseletiva, pois o PSF inicialmente foi implantado como programa focalizadoem populaes muito pobres com cesta restrita de servios e baixaarticulao com o restante da rede assistencial. Posteriormente, a adooda Sade da Famlia como estratgia deu APS, no Brasil, um cartermais abrangente, como modelo para a ateno bsica do SUS, que deveestar articulada aos demais nveis e orientar a reestruturao do sistema.

    Na trajetria desses programas de estruturao da ateno primriade carter abrangente no pas, observa-se forte associao entre suaexperimentao e o processo de descentralizao em diferentes dimenses,como na reorientao do modelo mdico-assistencial e na reviso daconduo da ateno primria. Assim, tais programas possibilitaram sexperincias municipais ampliar a cobertura e melhorar os indicadoresde sade, ao valorizar as aes de promoo e proteo integral e contnuada sade, as quais transformam gradualmente as prticas sociais em sade.

    A concepo de ateno primria da Estratgia de Sade da Famliapreconiza equipe de carter multiprofissional que trabalha com definiode territrio de abrangncia, adscrio de clientela, cadastramento eacompanhamento da populao residente na rea.

    Pretende-se que a Unidade de Sade da Famlia (USF) constitua aporta de entrada ao sistema local e o primeiro nvel de ateno, o quesupe a integrao rede de servios mais complexos. Recomenda-seque cada equipe fique responsvel por seiscentas a mil famlias residentesem rea geogrfica delimitada. Essa equipe deve conhecer as famlias doseu territrio de abrangncia, identificar os problemas de sade e assituaes de risco existentes na comunidade, elaborar programao deatividades para enfrentar os determinantes do processo sade/doena,desenvolver aes educativas e intersetoriais relacionadas aos problemasde sade identificados e prestar assistncia integral s famlias sob suaresponsabilidade no mbito da ateno bsica (Brasil, 2006).

    A Estratgia de Sade da Famlia encerra em sua concepomudanas na dimenso organizacional do modelo assistencial ao: constituira Equipe de Sade da Famlia, multiprofissional e responsvel pela ateno sade da populao de determinado territrio; definir o generalistacomo o profissional mdico da ateno bsica; e instituir novosprofissionais, os ACS, voltados para a atuao comunitria, ampliandoassim a atuao da equipe sobre os determinantes mais gerais do processosade-enfermidade. Todavia, sua implementao ocorre de diferentes

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  • Ateno Primria Sade 605

    modos, e ainda so poucos os estudos que permitem saber se mudanassubstanciais foram efetivamente implementadas no modelo assistencial.Estudos recentes indicam alguns resultados de desempenhos maispositivos dos servios de Sade da Famlia em comparao com aquelesde ateno bsica tradicional (Elias et al., 2006; Facchini et al., 2006).

    A Equipe de Sade da Famlia (ESF) multiprofissional, composta por ummdico generalista, um enfermeiro, um ou dois auxiliares de enfermagem ecinco a seis agentes comunitrios de sade. responsvel pelo acompanhamen-to da sade de seiscentas a mil famlias (mdia recomendada de trs mil pessoas,no mximo quatro mil).

    A equipe de sade bucal (ESB) tipo I composta por cirurgio dentista e auxiliarde consultrio dentrio, e nas ESB tipo II tambm por tcnico de higiene dentalcom trabalho integrado a uma ou duas ESF.Fonte: Brasil, 2006.

    O PSF expandiu-se ao longo da dcada de 1990 por todo o passob induo do Ministrio da Sade por meio dos incentivos financeirosdo PAB varivel, que prev pagamentos adicionais por equipe emfuncionamento , atingindo em 2007 mais de 90% dos municpiosbrasileiros, com 27 mil equipes, e cobertura populacional de 46% (cercade 87 milhes de habitantes). Um olhar sobre as experincias em cursodemonstra grande diversidade vis--vis s imensas disparidades inter eintra-regionais e s enormes desigualdades sociais que marcam arealidade brasileira.

    Ao se dirigir s famlias e ao seu meio ambiente (populao que residena rea de abrangncia de suas unidades de sade), as equipes de Sade daFamlia devem, segundo o Ministrio da Sade, projetar uma ao contnua,personalizada e ativa com base no estabelecimento de vnculos e criaode compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de sade ea populao, alm de nfase na ateno integral (Brasil, 1998).

    Em sua trajetria, o PSF contribuiu para a preservao do papeldo Estado brasileiro na organizao dos servios de sade, ordenando ademanda, direcionando o financiamento e conciliando os interessesorganizados em torno da sade, como j mencionado.

    Os servios bsicos de sade permanecem caracterizados pelapresena quase absoluta do setor pblico e pela dependncia de suaintegrao em rede mais ampla, que tenha resolutividade para possibilitara incluso da populao inserida marginalmente no sistema de produoeconmica dada a localizao geogrfica desses servios em pequenaslocalidades nas zonas rurais ou em periferias de grandes cidades,principalmente em sua fase inicial de implantao.

    Para conhecer acobertura atual doPrograma Sade daFamlia, consulte:.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL606

    O processo de construo do SUS, pontuado por descontinuida-des, acertos e desacertos em relao a suas principais diretrizes, no estconsolidado. Algumas experincias na esfera municipal representamformas de aproximao ao que pode ser um sistema pblico de sadepara a populao que atende s suas necessidades de sade. Outrasexperincias revelam a heterogeneidade de redes e condies de acesso,bastante distintas dos padres alcanados pelos sistemas de proteo socialem sade de pases desenvolvidos.

    A implantao do PSF foi acelerada nos municpios de pequenoporte com baixa ou nenhuma capacidade instalada. Todavia, sua imple-mentao foi lenta nos grandes centros urbanos, pois deparou-se comquestes de maior complexidade, relacionadas concentrao demo-grfica, ao elevado grau de excluso do acesso aos servios de sade, aagravos de sade caractersticos das grandes cidades e metrpoles e oferta consolidada em rede assistencial desarticulada e mal distribuda(Escorel et al., 2007).

    Para refletir

    Voc conhece uma Unidade de Sade da Famlia? De acordo com sua experincia,essa unidade atua de fato como servio de primeiro contato de procura regular egarante a continuidade dos cuidados, quando h necessidade de referncia paraservios especializados?

    A partir de 2003, a ampliao da Estratgia de Sade da Famliapassou a ser apoiada pelo Projeto de Expanso e Consolidao da Sadeda Famlia (Proesf), estratgia negociada pelo Ministrio da Sade, paravigncia de sete anos com financiamento internacional, visando organizao e ao fortalecimento da ateno bsica nos grandes centrosurbanos do pas (municpios com mais de cem mil habitantes).

    Pesquisas realizadas na poca observaram a tendncia de que o PSFse apresentava como um programa focalizado para as populaes maiscarentes nos municpios de maior porte com maior rede e complexidadede servios instalados, mantendo-se paralelamente o modelo de atenobsica tradicional, organizado para atender demanda espontnea e/ouprogramas assistenciais especficos. Em outros exemplos de municpioscom mais de cem mil habitantes em que o PSF alcanava maior coberturapopulacional, sua implementao levara a mudanas expressivas naorganizao do sistema municipal de sade e no modelo de ateno(Escorel et al., 2002).

    Em 2006, o Ministrio da Sade, levando em considerao essasevidncias, editou a Poltica Nacional de Ateno Bsica pela portaria mi-

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  • Ateno Primria Sade 607

    nisterial n. 648/GM, de 28 de maro, mediante a qual ampliou o escopo e aconcepo da ateno bsica ao incorporar os atributos da ateno prim-ria sade abrangente, colocando-a como porta de entrada preferencialdo SUS e ponto de partida para estruturao dos sistemas locais de sade.Com isso, reviu as funes das unidades bsicas de sade (UBS), conside-rando diferentes modalidades segundo o modelo de ateno predominan-te UBS com ou sem PSF , assim como props uniformizar o processo detrabalho da equipe multiprofissional e legitimar a expanso do processo deeducao permanente dos profissionais da ateno bsica.

    A Poltica Nacional de Ateno Bsica (PNAB) reconhece a Sadeda Famlia como modelo substitutivo e de reorganizao da ateno bsica.Refora a necessidade de que a expanso desse modelo garanta a suaintegrao rede de servios de sade municipal no sentido de organizaro sistema local de sade, detalhando modalidades de implantao eincentivos financeiros para as equipes de Sade da Famlia, sade bucal eo programa de agentes comunitrios de sade.

    A ateno bsica designada, ento, como

    um conjunto de aes de sade, no mbito individual e coletivo, que abrangema promoo e proteo da sade, a preveno de agravos, o diagnstico, otratamento, a reabilitao e manuteno da sade. (...) realizada sob a formade trabalho em equipe, dirigida a populaes de territrios delimitados,pelos quais assume a responsabilidade sanitria, considerando a dinamicidadeexistente no territrio em que vivem essas populaes. Utiliza tecnologia deelevada complexidade e baixa densidade, que deve resolver os problemasmais freqentes (...) e orienta-se pelos princpios de universalidade, daacessibilidade e coordenao do cuidado, do vnculo e continuidade, daintegralidade e responsabilizao. (Brasil, 2006: 10)

    Essa proposio da Poltica Nacional de Ateno Bsica incorporouos princpios e atributos de uma concepo de ateno primria sadeabrangente, que coerente com o processo da renovao de APS nasAmricas, tal como preconizado pela Opas (Opas/OMS, 2005), como sepode observar no Quadro 4.

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL608

    Quadro 4 Fundamentos da Ateno Bsica Poltica Nacional de AtenoBsica. Brasil 2006

    Acesso universal e contnuo a servios de sade de qualidade e resolutivos,caracterizados como porta de entrada preferencial do sistema de sade. Efetivao da integralidade em suas vrias dimenses, articulando aes pro-gramticas e de atendimento demanda espontnea, integrando aes de pro-moo da sade, preveno de agravos, vigilncia sade, tratamento e reabili-tao e coordenando o cuidado na rede de servios. Desenvolvimento de relaes de vnculo e responsabilizao entre as equipes ea populao, garantindo a longitudinalidade. Valorizao dos profissionais de sade por meio de formao e capacitao. Realizao de avaliao e monitoramento sistemtico dos resultados.

    Estmulo participao popular e controle social.

    Fonte: Brasil, 2006.

    ESTRUTURA DA OFERTA E PRODUO DE SERVIOS DE ATENO PRIMRIA

    A Poltica Nacional de Ateno Bsica se implementa por meio deum conjunto de unidades de sade que prestam servios assistenciais.Nesta seo, so descritos a estrutura dessa oferta, a organizao da redeassistencial e os servios produzidos no Brasil.

    A estrutura da oferta do setor ambulatorial brasileiro heterog-nea, composta por servios pblicos e privados de diversos tipos. No SUS,so ofertados servios ambulatoriais por postos e centros de sade, poli-clnicas de especialidades e ambulatrios de hospitais. A oferta do setorprivado composta por consultrios privados de mdicos profissionaisautnomos e por clnicas, cujos mdicos so empregados assalariados.No setor privado, o acesso ocorre mediante desembolso direto ou porplanos de sade, uma vez que a maioria das clnicas privadas estabelececontratos com planos de sade.

    Do conjunto de unidades ambulatoriais do SUS, apenas umaparte refere-se ateno de primeiro nvel, correspondendo a serviosde ateno primria. Em geral, ambulatrios de hospitais e policlnicasoferecem servios de especialidades e so considerados serviossecundrios. As principais unidades de ateno primria so os postose centros de sade, em parte atualmente chamados de Unidades deSade da Famlia.

    Ainda que no haja definio oficial, denomina-se posto de sade aunidade de menor complexidade com atendimento por apenas um mdicoou, na sua origem, como definido no Piass, na dcada de 1970, apenascom atuao de pessoal auxiliar.

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  • Ateno Primria Sade 609

    Centros de sade so tradicionalmente unidades que prestam aten-dimento nas especialidades bsicas e nos programas de sade pblica,oferecendo servios de acompanhamento infantil, imunizao, atenopr-natal, controle e tratamento de doenas sexualmente transmissveis,tuberculose, hansenase, acompanhamento de hipertenso e diabetes.Realizam ainda atividades de vigilncia epidemiolgica, com notificao einvestigao de casos. A partir da implantao do Programa Sade daFamlia, alguns postos e centros de sade foram transformados em uni-dades de Sade da Famlia, com a reorganizao interna dos servios.

    No SUS, a garantia de ateno bsica em sade de responsabili-dade da administrao municipal. Os gestores dos sistemas locais de sa-de so responsveis em seu territrio pela organizao e execuo dasaes de sade em unidades de sade prprias.

    Servios de primeiro contato

    Tradicionalmente, no foi definida uma unidade de sade comoporta de entrada obrigatria do sistema no pas. Contudo, o Ministrioda Sade pretende que os servios de ateno bsica sejam a porta de entradapreferencial. Como no h definio clara, os servios de primeiro contato podemser tanto postos e centros de sade quanto servios especializadosprestados em ambulatrios de hospitais e policlnicas. A procura por serviosde emergncia para primeiro contato tambm freqente.

    A maior parte dos brasileiros afirma dispor de um servio deprocura regular que busca, a cada nova necessidade de ateno, umindicativo da disponibilidade de servios e do que facilita o acesso. Opercentual desse segmento da populao aumentou a partir de 2000,sinalizando melhoria de acesso aos servios de sade para a populaobrasileira aps a definio do Piso de Ateno Bsica em 1998.

    A Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad), comenfoque no acesso e na utilizao de servios de sade e realizada peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) em 2003, mostrouque 79% da populao brasileira faz uso regular de algum tipo de serviode sade, percentual que correspondia a 71% em 1998 (IBGE, 1998, 2003).Os trs tipos de servios mais procurados so: postos ou centros de sade,ambulatrios de hospitais e consultrios particulares.

    O posto ou centro de sade a modalidade mais procurada,constituindo servio de procura regular para 52% dos entrevistados,principalmente entre a populao nas menores faixas de renda mdiafamiliar. Consultrios mdicos particulares so servios de procura regularde 18% da populao, ao passo que ambulatrios de hospitais so utilizados

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  • POLTICAS E SISTEMA DE SADE NO BRASIL610

    por, aproximadamente, 17% da populao. Outros 6% citaram pronto-so-corro e emergncia como seu servio de primeiro contato regular, o queno seria indicado, pois no permite acompanhamento (IBGE, 2003).

    Nesse inqurito, a disponibilidade de um servio de procura regularno apresentou variao conforme a renda. Todavia, o tipo de servioprocurado varia com a renda. Postos, centros de sade e ambulatrios dehospitais so procurados por populao de menor renda. Co