belo monte e a questao indigena - joao pacheco de oliveira & clarice cohn
TRANSCRIPT
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JOO PACHECO DE OLIVEIRA CLARICE COHN (ORGS.)
BELO MONTE E A QUESTO INDGENA
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2COMISSO DE PROJETO EDITORIAL
Coordenador
Antnio Motta (UFPE)
Cornelia Eckert (UFRGS)
Peter Fry (UFRJ)
Igor Jos Ren Machado (UFSCAR)
Coordenador da coleo de e-books
Igor Jos Ren Machado
Conselho Editorial
Alfredo Wagner B. de Almeida (UFAM)
Antonio Augusto Arantes (Unicamp)
Bela Feldman-Bianco (Unicamp)
Carmen Rial (UFSC)
Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)
Cynthia Sarti (Unifesp)
Gilberto Velho (UFRJ) - in memoriam
Gilton Mendes (UFAM)
Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ)
Julie Cavignac (UFRN)
Laura Graziela Gomes (UFF)
Llian Schwarcz (USP)
Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ)
Mriam Grossi (UFSC)
Ruben Oliven (UFRGS)
Wilson Trajano (UnB)
ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA
Diretoria
Presidente
Carmen Silvia Rial (UFSC)
Vice-Presidente
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Secretrio Geral
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Secretrio Adjunto
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Tesoureira Geral
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Tesoureira Adjunta
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Diretor
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Diretora
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Diagramao e produo de e-book
Mauro Roberto Fernandes
RevisoPaula Sayuri Yanagiwara
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3BELO MONTE
E A QUESTO INDGENA
JOO PACHECO DE OLIVEIRA CLARICE COHN (ORGS.)
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O482b
Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.
6 MB ; pdf
ISBN 978-85-87942-18-0
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.
CDU 304CDD 300
O482b
Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.
5.5 MB ; epub
ISBN 978-85-87942-19-7
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.
CDU 304CDD 300
O482b
Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.
5.5 MB ; mobi
ISBN 978-85-87942-20-3
1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.
CDU 304CDD 300
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5SumrioBelo monte e a questo indgena: reflexes crticas sobre
um caso emblemtico de desenvolvimentismo
brasileira.............................................................................. 9
Bela Feldman-Bianco
Introduo: a ABA e a questo de Belo Monte ........................ 12
Joo Pacheco de Oliveira
A produo de um dossi sobre um processo em curso ......... 27
Clarice Cohn
PARTE 1: UMA VISO GERAL ...................................................... 32
Planejamento s avessas: os descompassos da Avaliao
de Impactos Sociais no Brasil .................................................. 33
Marcelo Montao
Quanto maior melhor? Projetos de grande escala: uma forma
de produo vinculada expanso de sistemas econmicos .. 50
Gustavo Lins Ribeiro
Significados do direito consulta: povos indgenas versus
UHE Belo Monte ..................................................................... 70
Jane Felipe Beltro
Assis da Costa Oliveira
Felcio Pontes Jr.
(Des)cumprimento das condicionantes socioambientais
de Belo Monte ........................................................................ 102
Biviany Rojas
Na luta pelos direitos indgenas: a ao do Ministrio Pblico
Federal em documentos selecionados .................................... 121
Jane Felipe Beltro
Helena Palmquist
Paulo Csar Beltro Rabelo
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6O contexto institucional da resistncia indgena
a megaprojetos amaznicos ................................................... 128
William H. Fisher
Pescadores, ribeirinhos e indgenas: mobilizaes tnicas
na regio do rio Xingu: resoluo no negociada dos
conflitos na usina hidreltrica de Belo Monte ......................... 138
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Profanao hidreltrica de Btyre/Xingu: fios condutores
e armadilhas (at setembro de 2012) ..................................... 165
A. Oswaldo Sev Filho
PARTE 2: BELO MONTE E A QUESTO INDGENA ......................... 201
ndios Citadinos de Altamira: lutas, conquistas e dilemas ....... 202
Mayra Pascuet
Mariana Favero
Reflexes em torno da vida sociocultural dos Arara da
Volta Grande do Xingu frente ao megaempreendimento
da usina hidreltrica de Belo Monte,
Altamira-Par ........................................................................ 215
Marlinda Melo Patrcio
Os Juruna no contexto da usina hidreltrica Belo Monte ......... 234
Maria Elisa Guedes Vieira
O fim do mundo como o conhecemos: os Xikrin do Bacaj
e a barragem de Belo Monte ................................................... 248
Clarice Cohn UFSCar
Os Arara do Laranjal: uma viso a partir do Iriri, do outro
lado da barragem ................................................................... 272
Eduardo Henrique Capeli Belezini
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7PARTE 3: COM A PALAVRA, OS INDGENAS ................................. 287
COM A PALAVRA, OS INDGENAS: apresentao aos textos ....... 288
Clarice Cohn
Entrevista com militante das organizaes dos indgenas
citadinos de Altamira-PA ....................................................... 294
Mayra Pascuet
Desabafo de uma liderana da Terra Wang-Arara da
Volta Grande do Xingu Altamira-Par .................................. 302
Jos Carlos Arara
Belo Monte de violaes... ...................................................... 307
Sheyla Juruna
Um grande desastre, principalmente para a cultura ............... 311
Ozimar Juruna
O processo de construo de Belo Monte na fala de
uma jovem Xikrin ................................................................... 316
Ngrenhdjam Xikrin
Carta produzida e assinada pelos homens da aldeia
Bacaj, Terra Indgena Trincheira-Bacaj,
segundo fac-smile ................................................................ 320
SOBRE OS AUTORES ................................................................. 322
ANEXOS .................................................................................. 326
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8
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9BELO MONTE E A QUESTO INDGENA: REFLEXES CRTICAS SOBRE UM CASO EMBLEMTICO DE DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRA
Tenho o maior prazer em oferecer Belo Monte e a Questo
Indgena comunidade antropolgica e ao pblico em geral. Em seu
conjunto, esta coletnea de textos reflete o empenho da Comisso
de Assuntos Indgenas (CAI) da ABA em apresentar um dossi
completo sobre a construo da hidroeltrica de Belo Monte e suas
repercusses para as populaes indgenas que vivem naquela regio
amaznica. Conjugando reflexes crticas baseadas em pesquisas e
ao poltica, este dossi discerne a conjuntura atual brasileira de
embates entre, de um lado, polticas desenvolvimentistas baseadas
ainda em antigas teorias de modernizao que privilegiam grandes
projetos de hidroeltricas s expensas do saber tradicional, como o
caso da UHE Belo Monte, e, de outro, a situao e mobilizao social
de povos indgenas afetados por esses projetos em defesa de seus
direitos territoriais. A partir desse cenrio, estes textos, de autoria
de estudiosos e especialistas de diferentes formaes, incluindo
representantes de povos indgenas, expem, com base na anlise de
mltiplos aspectos da UHE Belo Monte, as implicaes das polticas,
aes e decises oficiais adotadas. Ao mesmo tempo, apresentam
subsdios para se pensar outras opes para o Brasil e a Amaznia
em especial. Trata-se, portanto, de um dossi indispensvel para a
compreenso das consequncias dos processos desenvolvimentistas
em curso, bem como para se refletir sobre alternativas mais
adequadas de ocupao e administrao da Amaznia, tanto em
termos de seu ecossistema quanto dos direitos e projetos de vida das
populaes que ali vivem.
A ABA, enquanto sociedade cientfica, tem historicamente
promovido discusses, reflexes propositivas e aes polticas
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sobre temticas que esto na ordem do dia. Com esse intuito,
no binio 2011-2012, sob a chancela Desafios Antropolgicos no
Sculo XXI, procuramos mapear e confrontar, por meio de anlises
crticas e propositivas, os dilemas, desafios e perspectivas que
ocorrem no contexto de processos de expanso e transformao
da antropologia no Brasil, seja em relao s transformaes e
reconfiguraes da antropologia como disciplina acadmica per se,
no tocante s relaes entre essas transformaes e as polticas
cientficas, seja ainda entre formao de antroplogos e o mercado
de trabalho, assim como entre pesquisa antropolgica e ao
poltica, e, nesse contexto, a poltica da antropologia, inclusive no
que concerne crescente relao entre a antropologia e as polticas
pblicas, e, ainda, o papel dos antroplogos e antroplogas na
intermediao poltica no contexto brasileiro contemporneo.
Belo Monte e a Questo Indgena retrata uma situao
emblemtica tanto das polticas desenvolvimentistas e das
mobilizaes dos povos indgenas em defesa de seus territrios
quanto da prpria atuao da ABA. Vale notar que a CAI comeou
a se manifestar criticamente em relao ao descumprimento
da Conveno 169 ainda em 2009, exigindo que as populaes
afetadas fossem antecipadamente informadas e consultadas sobre
a construo da UHE Belo Monte e suas consequncias. Durante o
binio 2011-2012, as anlises e aes sobre as formas e as polticas
relativas a esse megaprojeto hidroeltrico se intensificaram,
passando a pautar o cotidiano da ABA. Lembro que praticamente
iniciamos nossa gesto com a realizao, em 7 de fevereiro de 2011,
do simpsio A hidroeltrica de Belo Monte e a Questo Indgena,
em parceria com a UnB. Organizado conjuntamente pelo GT Povos
Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e a Comisso de
Assuntos Indgenas, esse evento reuniu antroplogos, populaes
tradicionais e alguns representantes governamentais com o objetivo
de propiciar dilogos sobre os direitos territoriais e humanos dessas
populaes. Posteriormente, ocorreram sucessivas manifestaes
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pblicas, inclusive uma petio da ABA em parceria com a SBPC
dirigida presidenta Dilma Rousseff, subscrita por cerca de 20
associaes cientficas em defesa dos direitos territoriais das
populaes que vivem na regio de Belo Monte e para a qual sequer
recebemos resposta do gabinete presidencial.
Tambm investimos em sequncias de atividades em
encontros anuais da Anpocs e da SBPC, na Reunio da Antropologia
do Mercosul (RAM) e Reunio de Antropologia Equatorial (REA/
Norte Nordeste), ambas realizadas em 2011, assim como na 28
Reunio Brasileira de Antropologia de 2012, organizadas quer seja
pela CAI ou pelo GT Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes
Projetos. Ademais, o caso da UHE Belo Monte, juntamente s
remoes urbanas em curso, culminou na formao de um frum
de desenvolvimento no mbito da ABA, como forma de motivar
reflexes crticas sobre os processos em curso. Finalmente,
enquanto estudiosa de migraes internacionais, percebi que
os processos que estvamos acompanhando deveriam ser
examinados a partir de uma noo mais ampla de deslocamentos,
como parte de uma lgica integrada de produo de desigualdades
na corrente conjuntura da acumulao do capital, seja do ponto de
vista das migraes transnacionais, refgio poltico ou ambiental,
remoes de populaes de seus territrios, ou trfico humano.
Subjacentes a essa temtica esto questes centrais relacionadas
s atuais polticas desenvolvimentistas e/ou neoliberais.
Nesse contexto, o lanamento deste dossi completo sobre Belo
Monte e a questo indgena, organizado por Joo Pacheco de Oliveira
e Clarice Cohn, reunindo depoimentos e anlises crticas, ajuda-nos
a compreender e desconstruir, a partir de diferentes prismas, esses
processos capitalistas e a refletir sobre alternativas concretas que
valorizam a vida, os direitos humanos e os saberes tradicionais.
Bela Feldman-Bianco
Presidente da ABA (binio 2011-2012)
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INTRODUO: A ABA E A QUESTO DE BELO MONTE
Joo Pacheco de Oliveira1
Possuindo j trs dcadas de atuao, a Comisso de
Assuntos Indgenas foi criada com a inteno de assessorar a
presidncia da ABA no que toca as manifestaes oficiais da
entidade relativas chamada questo indgena. Ao longo desse
perodo a ABA veio a ser reconhecida no campo indigenista como
uma voz presente nos mais graves problemas que envolveram (e
envolvem) a viabilizao dos direitos indgenas, bem como nas
polticas pblicas dirigidas a estes povos.
Por suas anlises fundamentadas em pesquisa cientfica
e suas recomendaes sempre pautadas no esprito do livre
e pleno exerccio da cidadania, bem como da necessria
contribuio das instituies a este processo, a ABA tornou-se
uma referncia importante para organismos governamentais e
no governamentais, assim como para instncias parlamentares,
jurdicas, representativas da opinio pblica e dos prprios
indgenas. Dada visibilidade que as questes indgenas
assumiram na mdia nacional, mesmo os associados que no
lidam com a temtica indgena frequentemente expressam suas
expectativas quanto manifestao da entidade em assuntos
que integram a pauta das notcias cotidianas.
diferena de outras comisses e grupos de trabalho criados
pela ABA, muitas vezes voltados para a abertura e consolidao
de um dilogo entre os prprios antroplogos sobre um tema
1 Coordenador da Comisso de Assuntos Indgenas/ABA.
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13
especfico, a atuao da CAI est sobretudo voltada para fora,
para a opinio pblica e para as esferas de deciso, trazendo para
a ateno e cogitao destas instncias os conhecimentos que
os antroplogos, em suas redes de interlocuo (frequentemente
interdisciplinares e sensveis aos problemas vivenciados pelas
coletividades pesquisadas), acumularam nos seus trabalhos de
campo junto a povos indgenas especficos e nos seus estudos
sobre legislao, prticas jurdicas e administrativas.
Nesse sentido a CAI integrada atualmente por mais de uma
dezena de antroplogos de diferentes regies do pas, que em
sua diversidade refletem a dinmica da produo cientfica e das
redes de articulaes relacionadas aos direitos e reivindicaes
indgenas. A heterogeneidade caracterstica de suas aes
expressa com nitidez os desafios e a complexidade da pesquisa
em antropologia indgena no pas.
Em uma perspectiva histrica possvel observar como
a CAI/ABA ampliou o seu raio de atuao, vindo inicialmente de
uma funo exclusivamente crtica e de denncia, junto opinio
pblica, de atos e polticas governamentais que contrariavam
os interesses dos cidados. Agia assim, sobretudo durante
os governos militares, semelhana de outras entidades da
sociedade civil (como SBPC, OAB, ABI, etc), como uma qualificada
caixa de ressonncia, desse modo muito contribuindo para a
retomada democrtica ocorrida no pas.
Nas ltimas dcadas, porm, com o processo de retomada das
rotinas democrticas na sociedade brasileira, a CAI veio a estabelecer
uma pauta mais positiva de interlocuo com organismos nacionais e
internacionais, inclusive colaborando em iniciativas governamentais
de superior interesse pblico (como o caso do convnio com
a Procuradoria Geral da Repblica (PGR) e a participao de
antroplogos no processo de reconhecimento das terras indgenas).
Dentro desse quadro assume grande importncia o debate
sobre a construo da UHE de Belo Monte e suas repercusses
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para as populaes indgenas e ribeirinhas que vivem naquela
regio. importante destacar as gestes e contatos realizados
pela ABA junto Funai, ao Congresso Nacional e Secretaria Geral
da Presidncia da Repblica.
Lamentavelmente, porm, o governo brasileiro, tendo
como seu nico articulador e porta-voz o Ministrio de Minas e
Energia, operou em total sintonia com os interesses do consrcio
de empresas contratadas para a execuo do empreendimento,
impondo um cronograma acelerado de trabalhos, inteiramente
avesso discusso das dimenses sociais e ecolgicas, cruciais
em um projeto de tal envergadura.
A pouca receptividade dos escales superiores diretamente
encarregados do assunto UHE Belo Monte levou a que a CAI
continuasse a fomentar o debate exclusivamente atravs de foros
em congressos e reunies cientficas, como ocorreu na SBPC, na
Anpocs e na RBA (este ltimo evento registrado inteiramente em
vdeo e disponibilizado amplamente por meio do site da ABA),
manifestando-se oficialmente atravs de notas e uma grande
quantidade de entrevistas concedidas ao longo dos anos de 2011 e
2012 pelo Coordenador e por membros da CAI a rdios, televises
e jornais sobre este assunto. No site da ABA foi criada desde ento
e est sendo permanentemente realimentada uma sesso com
notcias relativas ao empreendimento de Belo Monte. No foi
registrada, porm, qualquer resposta ou abertura ao dilogo por
parte das autoridades governamentais.
....
Alguns documentos transcritos a seguir, todos eles
disponveis no site da ABA, permitem delinear uma breve
cronologia das aes e disputas relacionadas construo de
Belo Monte, dando conta do cuidadoso acompanhamento que a
CAI deu a esta questo.
J em 01 de novembro de 2009, a Comisso de Assuntos
Indgenas da ABA emitira, ainda na gesto presidida pelo
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antroplogo Carlos Caroso, uma nota pblica sobre a Hidreltrica
de Belo Monte, na qual alertava a opinio pblica e as autoridades
mximas do governo brasileiro para a precipitao com que tem
sido conduzida a aprovao do projeto, dentro de uma estratgia
equivocada e que no d a devida ateno aos dispositivos legais.
A prosseguir assim, pondera o documento, o governo estar
permitindo que seja configurada uma situao social explosiva
e de difcil controle, o empreendimento podendo acarretar em
consequncias ecolgicas e culturais nefastas e irreversveis.
Nesta ocasio j a nota chamava a ateno para trs aspectos
fundamentais:
1. estudos realizados por uma Comisso de Especialistas
alertavam que os impactos sobre os povos indgenas da
regio no se limitavam de maneira alguma chamada rea
diretamente afetada, mas iriam atingir seriamente os recursos
ambientais e as condies de vida e bem-estar de outras
terras indgenas, situadas fora daquela faixa estrita. Nas terras
indgenas Paquiamba, Arara da Volta Grande/Maia, Juruna Km
17, Apyterewa, Arawet, Koatinemo, Karara, Arara, Cachoeira
Seca e Trincheira Bacaj habitam diversas coletividades cujos
modos de vida e culturas podero receber impactos negativos,
sem mencionar os indgenas que esto nas cidades e o registro
tambm da presena de ndios isolados. At aquele momento
e pior, at hoje! sequer tais impactos foram adequadamente
dimensionados.
2. estudos tcnicos conduzidos por especialistas contratados
pela prpria Funai resultaram em um parecer que atrelava a
viabilidade da obra ao cumprimento, entre outras, de trs
condicionantes bsicas: a) definio de uma vazo mnima
(hidrograma ecolgico) que garanta a sobrevivncia dos
peixes e quelnios e a navegabilidade das embarcaes dos
povos indgenas que ali vivem; 2) que sejam apresentados
estudos sobre os impactos previstos no rio Bacaj, beira
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do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente sofrer graves
alteraes (que deveriam ser mais bem analisadas); 3) que
sejam estabelecidas garantias efetivas de que os impactos
decorrentes da presso antrpica sobre as terras indgenas
sero devidamente controlados.
3. segundo o Parecer Tcnico no 21/CMAM/CGPIMA/FUNAI Anlise
do Componente Indgena dos Estudos de Impacto Ambiental,
de 30 de setembro de 2009, sero atradas para a regio pelo
menos 96 mil pessoas, o que agravar em muito a presso sobre
os recursos naturais das Terras Indgenas (TIs), os quais, diga-
se de passagem, j so crticos na regio por conta de outras
obras previstas, como a pavimentao da Transamaznica
BR-163 e a construo da linha de transmisso de Tucuru
a Jurupari. O aumento populacional que o empreendimento
provocar tambm afetar as comunidades indgenas porque
vai incentivar um consequente aumento da pesca e caa ilegal,
da explorao madeireira e garimpeira, de invaso s TIs e de
transmisso de doenas.
....
Durante o ano de 2010, novos fatos vieram agravar ainda mais
o quadro geral de perspectivas para a regio. Em 01 de fevereiro
de 2010, o Presidente do Ibama emitiu uma licena ambiental
parcial, subordinada ao cumprimento de 40 condicionantes,
dentre as quais a apresentao de manifestao da Funai,
atestando a aprovao dos programas voltados aos indgenas e
demais condies elencadas no parecer tcnico acima citado.
Apesar dessas recomendaes, at o presente momento no se
configurou o atendimento destas condicionantes.
Em abril de 2010, a Relatoria Nacional de Direitos Humanos
e Meio Ambiente, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos,
Econmicos, Sociais e Ambientais (Plataforma DHESCA), observou
que o projeto atual da usina de Belo Monte contm graves falhas
e impactos irreversveis sobre a populao que vive s margens do
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17
rio Xingu, particularmente os ribeirinhos e indgenas. A mais grave
violao aos direitos humanos detectada durante a Misso foi a
no realizao das Oitivas Indgenas, obrigatrias pela legislao
brasileira e pela Conveno 169 da OIT, ratificada pelo Brasil
em 2002 [...]. Apesar de os milhares de indgenas e 24 grupos
tnicos da Bacia do Xingu afirmarem publicamente que no
foram, em nenhum momento, ouvidos durante o licenciamento
de Belo Monte, a Funai atestou previamente a viabilidade da
usina hidreltrica mesmo havendo necessidade de estudos
complementares, que poderiam vir a concluir o contrrio, e insiste
que estes grupos teriam sido ouvidos. O direito constitucional de
realizao de Oitivas Indgenas foi sumariamente violado (p. 2).
Em abril de 2010, o Ministrio Pblico Federal ajuizou Ao
Civil Pblica na 9a Vara da Justia Federal no Estado do Par,
arguindo a falta de regulamentao do artigo 176 da Constituio
Federal: 1o A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste
artigo somente podero ser efetuados mediante autorizao ou
concesso da Unio, no interesse nacional, por brasileiros ou
empresa constituda sob as leis brasileiras e que tenha sua sede
e administrao no Pas, na forma da lei, que estabelecer as
condies especficas quando essas atividades se desenvolverem
em faixa de fronteira ou terras indgenas. (Constituio Brasileira,
Art. 176). Em direo semelhante, h uma outra Ao Pblica que
denunciava irregularidades graves na emisso da licena prvia,
constatadas no Parecer Tcnico emitido pelo Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama) (no
114/2009 COHID/CGENE/DILIC/IBAMA.23/11/2009), dentre as quais
a ausncia de anlises aprofundadas das questes indgenas.
Em 15 de setembro de 2010, o Relator Especial da Organizao
das Naes Unidas sobre a situao dos direitos humanos e
liberdades fundamentais dos povos indgenas, James Anaya,
observou que dada a magnitude do projeto Belo Monte e seus
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potenciais efeitos sobre as populaes indgenas, necessria
a realizao de consulta adequada a estes povos para obter um
consenso sobre todos os aspectos que os atingem (Human
Rights Council Fifteenth Session. Report by the Special Rapporteur
on the situation of human rights and fundamental
freedom of indigenous people, James Anaya, A/HRC/15/37/Add.1,
p. 35, pargrafo 53).
Em 03 de dezembro de 2010, durante o Encontro de Cincias
Sociais e Barragens, realizado na Universidade Federal do Par, em
Belm, caciques e lideranas dos Povos Indgenas Arara e Juruna
da Volta Grande do Xingu, Kayap Metuktire, Txukarrame do
Parque Indgena do Xingu e Gavio da Montanha divulgaram uma
nota pblica reafirmando a posio contrria construo de Belo
Monte e solicitando ao Presidente da Repblica do Brasil respeito
pelos Povos Indgenas e pelas leis brasileiras que os amparam.
Josinei Arara, presente no Encontro, ratificou a disposio do seu
Povo para ir guerra e se necessrio morrer para impedir esta
barragem. Nesta ocasio, o Cacique Raoni pediu que, em nome da
paz, no seja construda a barragem de Belo Monte
Em 20 de dezembro de 2010, em vdeo gravado, Jos Carlos e
Josinei Arara informaram que jamais foram ouvidos e consultados
pela Funai quanto aos chamados condicionantes indgenas
includos na Licena Prvia de Belo Monte. Ambos ratificam a
falta de conhecimento de aes relativas ao cumprimento das
condicionantes e reiteram a absoluta falta de participao dos
indgenas nos processos relativos ao licenciamento da obra.
Em 11 de janeiro de 2011, a Funai, em cumprimento de sua
misso de proteo aos ndios isolados, veio a emitir portaria de
interdio de uma rea, denominada Ituna/Itat, entre os rios
Xingu e Bacaj, a 50 km da rea do projeto da Usina Hidreltrica
Belo Monte. L foram confirmadas notcias sobre a presena
de ndios sem contatos pacficos e regulares com os regionais,
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19
bem como sem a proteo de equipes tcnicas da Funai. O que
evidencia claramente o grau de desconhecimento das autoridades
(e inclusive dos organismos tcnicos) sobre a regio e confere
s iniciativas de acelerao do empreendimento um carter
particularmente nocivo e dramtico.
Poucos dias depois, o Ibama, atravs de um ato administrativo
aparentemente rotineiro, veio a conceder permisso para o
desmatamento de 238,1 hectares destinados instalao do
canteiro de obras, de alojamentos de trabalhadores e abertura de
estradas (Autorizao de Supresso de Vegetao no 501/2011).
Em 20 de janeiro de 2011, a Funai, em lacnicos dois
pargrafos, afirmou no haver bice para emisso da Licena
Instalao-LI das obras iniciais do canteiro de obras da UHE
Belo Monte, considerando a garantia de cumprimento das
condicionantes.
Tal pudica ressalva, aqui grifada, e que jamais foi cumprida
(fato que a Funai, alis, no poderia desconhecer!), vem a tomar
uma outra forma no pargrafo seguinte. A o Ibama, caracterizado
como rgo licenciador, solicitado a colaborar com a Funai nas
aes de comunicao e proteo da Terra Indgena Paquiamba,
observada a situao de vulnerabilidade que esta poder ser
submetida (Ofcio no 013/2011/GAB-FUNAI). Que extraordinria
cautela e leveza para lembrar que a TI Paquiamba est situada
no limite da rea de instalao do mencionado canteiro!
Em 26 de janeiro de 2011, o presidente substituto do Ibama
concedeu a Licena de Instalao (no 770/2011), autorizando a
instalao do canteiro, alojamentos para trabalhadores, abertura de
estradas e outras obras de infraestrutura da construo, novamente
acompanhada de condicionantes. E, mais grave, apoiado na
inexistncia de bice da Funai, no faz qualquer meno especfica
s condicionantes referentes aos Povos Indgenas.
Por outro lado, a Associao dos Povos Indgenas Juruna
do Xingu km 17 (APIJUX Km 17), a Associao do Povo Indgena
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20
Arara do Meia (ARIAM), juntamente a dezenas de organizaes e
associaes da sociedade civil, em 27 de janeiro de 2011, assinaram
uma nota de repdio concesso da Licena de Instalao, na
qual responsabilizam o Governo Brasileiro por qualquer gota de
sangue que venha a ser derramada nesta luta.
Em 28 de janeiro de 2011, a Coordenao das Organizaes
Indgenas da Amaznia Brasileira enviou carta Presidente do
Brasil, denunciando a postura negligente e desrespeitosa do
Governo brasileiro, a cooptao de indgenas e reafirmando a
disposio de lutar ao lado dos Povos Indgenas do Xingu.
....
Em 07 de fevereiro de 2011, a ABA, j tendo como presidente
a antroploga Bela Feldman-Bianco, promoveu em articulao
com a Universidade de Braslia o seminrio A hidroeltrica de
Belo Monte e a questo indgena. Ao final da reunio, a Comisso
de Assuntos Indgenas da ABA elaborou uma nota pblica cuja
concluso julgamos pertinente colocar aqui.
A compreensvel resistncia dos indgenas, que foram
at agora desconsiderados enquanto parte do planejamento
e do processo decisrio, poder deflagrar conflitos de grande
monta, onde a vida dos prprios indgenas e de funcionrios
governamentais estaro em risco, bem como o patrimnio
e a segurana de terceiros podero ser tambm duramente
atingidos. Novas campanhas difamatrias contra os direitos
indgenas podero alimentar-se de acontecimentos deplorveis
que resultam do aodamento, omisso e descumprimento das
normas legais cabveis.
Devemos aqui reiterar dois pontos essenciais abordados
naquele documento. Primeiro, fundamental observar que os
encaminhamentos e decises relativas UHE de Belo Monte
esto descumprindo uma disposio legal, a Conveno 169,
amplamente acatada no plano internacional e j incorporada
pela legislao brasileira a de que as populaes afetadas
-
21
sejam adequadamente informadas sobre o empreendimento
e todas as suas consequncias, exigindo-se que sejam
antecipadamente consultadas e segundo procedimentos
legtimos e probos.
Segundo, as condicionantes estabelecidas pelos pareceres
tcnicos da Funai e do prprio Ibama precisam ser rigorosa e
imediatamente atendidas, antes que o empreendimento venha
a passar a fases mais avanadas de viabilizao. Isto deveria ser
verificado por avaliadores autnomos.
Cabe voltar assim a alertar a opinio pblica e as autoridades
mximas do governo brasileiro para o descaso e a precipitao
com que tem sido conduzida a aprovao e implementao do
projeto, dentro de uma estratgia equivocada e perigosa de criar
supostos fatos consumados sem levar em conta os dispositivos
legais e as ponderaes tcnicas.
A prosseguir desta maneira, o empreendimento poder trazer
consequncias ecolgicas e culturais nefastas e irreversveis,
configurando para o Governo Federal uma situao social
explosiva e de difcil controle. Alm de, no cenrio internacional,
colocar o pas na contra mo do respeito aos direitos das
populaes indgenas, como tambm de outros segmentos
afetados igualmente por grandes projetos.
....
Ao longo deste mesmo ano de 2011, em uma outra nota
pblica divulgada pela Comisso de Assuntos Indgenas atravs
do Informativo da ABA no 07/2011 (vide http://www.abant.org.
br/news/show/id/130), o tema da consulta prvia foi retomado e
aprofundado:
H uma grande distncia entre ser informado e consentir,
bem como no se pode confundir um procedimento de oitiva com
uma simples comunicao aos indgenas sobre os resultados de
um estudo de impacto ambiental conduzido anteriormente.
-
22
Est fora de questo, evidentemente, o trabalho desenvolvido
pelas equipes de tcnicos da Funai e especialistas por ela
convidados, que estiveram na regio participando de reunies com
os indgenas com o propsito de informar-lhes sobre a UHE de Belo
Monte e seus impactos por ora dimensionados. Cabe igualmente
destacar a importncia e seriedade dos levantamentos e estudos
realizados com vistas ao estabelecimento de mecanismos
compensatrios e de mitigao dos impactos e da formulao de
um Plano Bsico Ambiental tendo em vista estas populaes e que
respondam a suas reais necessidades e dimenso dos impactos
previstos. Isto faz parte indiscutivelmente das atribuies legais
do rgo indigenista e est definido por normas vigentes.
Contudo, imagens amplamente divulgadas pela internet (vide
http://www.youtube.com/watch?gl=BR&v=zdLboQmTAGE) e
no desmentidas pela Funai nem pelos tcnicos que ali aparecem
deixam claro que as comunidades indgenas continuam a
sentir-se ameaadas e pouco esclarecidas, formulando dvidas
e questes que os tcnicos no tm condies de responder nem
possuem legitimidade para dar garantias em nome do governo ou
dos empreendedores. Em todos os registros vistos reiterada a
preocupao dos indgenas em afirmar que no esto concordando
com o empreendimento. Insistem ademais na necessidade de
realizao de uma oitiva no Congresso Nacional (e no em audincias
pblicas realizadas na regio) e destacam a importncia de
receberem em suas aldeias a visita de autoridades com efetivo poder
de mando, entre estas uma comisso oficial de parlamentares.
Na perspectiva de tais comunidades, no resta dvida de que elas
no se sentem adequadamente informadas, muito menos ouvidas. A
simples presena de equipes tcnicas da Funai nas aldeias, informando
as comunidades indgenas sobre os estudos precedentes de impacto
ambiental, no pode ser equiparada ao exerccio de oitivas.
Considerando a barreira lingustica, a peculiaridade de sua
organizao poltica e a existncia de fortes conflitos intertnicos,
-
23
as audincias pblicas no se configuraram de modo algum em
espaos que permitissem a livre manifestao dos indgenas e
que lhes propiciassem os esclarecimentos especficos de que eles
se ressentem. A demanda dos indgenas quanto a uma oitiva por
parte do Congresso Nacional ou um dilogo com as autoridades
superiores no foi nem sequer considerada.
Em diversas ocasies, a ABA tem manifestado sua posio de
que o cumprimento do cronograma das obras no pode sobrepor-
se s obrigaes que o Estado tem quanto ao respeito aos direitos
de pessoas e coletividades que l habitam (algumas desde pocas
imemoriais) nem pode transformar em letra morta as normas de
proteo ao meio ambiente (que embasaram o estabelecimento
dos 40 condicionantes formulados pelo Ibama, a grande maioria
dos quais se encontra ainda muito longe de ser atendida).
Para corrigir esta defasagem que poder ser letal para as
comunidades afetadas que a Comisso Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), da Organizao dos Estados Americanos,
solicitou ao governo brasileiro a paralisao temporria do
empreendimento, para que os direitos indgenas sejam respeitados
e as condicionantes transformadas em realidade, e para que estas
populaes sejam devidamente informadas e consultadas.
....
Um outro aspecto bastante preocupante de Belo Monte
decorre da entrega de funes assistenciais ao consrcio
responsvel pela construo do empreendimento (UHE),
correspondendo a uma distorcida privatizao de atribuies
pblicas que inviabiliza o livre exerccio de cidadania pelas
populaes ali residentes.
Em relatrio resultante de visita feita regio em 2011,
apresentado pelo conselheiro Perclio de Sousa Lima Neto,
vice-presidente do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana (CDDPH), da Secretaria de Direitos Humanos,
ficou claramente constatada a ausncia absoluta do Estado, o
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consrcio vindo a desempenhar at mesmo funes assistenciais e
de interesse pblico. O flagrante desequilbrio entre o consrcio, as
populaes ribeirinhas e as etnias indgenas s poder constituir-
se em fator de agravamento dos problemas sociais locais.
A concesso de um poder e domnio quase absolutos sobre
partes do territrio nacional a empreendimentos privados,
sem uma adequada fiscalizao por parte das autoridades
governamentais, que possam assegurar o cumprimento das
leis e o respeito aos direitos dos cidados ali estabelecidos,
uma prtica injustificada e condenvel. Os encarregados da
execuo fsica das obras no podero jamais por eles mesmos
assumir responsabilidades pblicas e dar solues legtimas
aos conflitos acarretados pelo prprio empreendimento, uma
vez que no objetivam o cumprimento das leis e de polticas
pblicas nem muito menos assegurar os direitos das populaes
subalternizadas.
A estratgia de atuar como um rolo compressor, impondo
estratgias de fatos consumados, reflete nitidamente isso,
vindo a combinar-se com o fechamento de quaisquer canais de
consulta aos interessados diretos e de debate com os estudiosos
e a opinio pblica sobre os rumos do empreendimento.
....
No ano seguinte, em 2012, a CAI promoveu ainda outras
atividades e discusses pblicas, organizando fruns de
debates sobre Belo Monte durante a XXVIII Reunio Brasileira de
Antropologia, ocorrida em So Paulo, em julho de 2012; na Reunio
Anual da SBPC, em Goinia, em julho de 2012; no Encontro da
Anpocs, em Caxambu, em outubro de 2012.
O investimento de maior flego, no entanto, foi a organizao
de um volumoso e completo Dossi sobre Belo Monte, integrado
por 18 textos escritos por estudiosos e especialistas de diferentes
formaes, que analisam sob mltiplos aspectos os impactos
das obras sobre as populaes indgenas da regio. Tal material,
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25
que compe este livro, ser divulgado atravs de um e-book, em
coleo editada pela ABA.
Embora alguns dos textos sejam inditos (pelo menos
na verso ora divulgada), a preocupao principal no foi em
produzir trabalhos novos, mas sim em reunir artigos e estudos
que possibilitassem uma compreenso mais abrangente e
aprofundada do empreendimento, frequentemente transformado
pela mdia em um caricatural confronto entre aqueles que
promovem o desenvolvimento do pas e aqueles que, teimosa e
ingenuamente, apenas priorizam a proteo ao meio ambiente.
Os textos que compem este livro vo muito alm dessa
polaridade simplificadora, constituindo um esforo original e
pioneiro de reflexo e interpretao sobre os mltiplos aspectos
da UHE Belo Monte.
Ao tomar como foco uma questo crucial na vida do Brasil
contemporneo, a Comisso de Assuntos Indgenas da ABA
pretende contribuir para a compreenso da histria recente
deste pas e a reflexo crtica sobre as escolhas realizadas pelos
tomadores de decises oficiais, as consequncias da resultantes,
bem como sobre as outras possibilidades e alternativas a
rigorosamente silenciadas e ignoradas.
Contrariamente s expectativas dos poderes coloniais,
da elite nacional dominante e dos tecnocratas que servem a
diferentes senhores e operam em diversas escalas, os povos
indgenas continuam a resistir, lutando pela preservao de seus
territrios, pela autonomia de suas formas socioculturais e pelo
fortalecimento de suas identidades.
Apesar da enorme desigualdade de foras, em duas ocasies
precisas, em julho de 2012 e em abril de 2013, os indgenas
chegaram a ocupar o canteiro de obras da empresa e paralisar
temporariamente a construo da hidroeltrica, demonstrando
uma incrvel capacidade de organizao poltica e engendrando
para si mesmos um poder de barganha inteiramente indito.
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26
No primeiro caso, isso implicou na construo de um amplo
arco de alianas entre povos da regio do rio Xingu, algo que
antes parecia completamente impossvel, uma vez que ainda se
mantm muito vivas as memrias sobre guerras e conflitos que
os opunham uns aos outros no passado. Na segunda ocupao,
realizada pelos Mundurucu do rio Tapajs, estes se deslocaram
por centenas de quilmetros de suas terras at Belo Monte,
visando criar com o governo alguma forma de interlocuo quanto
construo de hidroeltricas projetadas em sua prpria regio.
Neste sentido, este Dossi, alm de sua importncia
enquanto anlises e depoimentos sobre um momento histrico
de antagonismo entre os grandes projetos de hidroeltricas e
os povos indgenas ali residentes, levanta tambm subsdios
importantes para duas grandes questes que ocuparo nos
prximos anos a ateno da opinio pblica.
O primeiro relativo conceituao e operacionalizao da
consulta prvia e esclarecida, um debate ainda em seu comeo no
Brasil e em diversos pases da Amrica (como Bolvia, Colmbia e
Mxico, para citar apenas alguns). O segundo o debate pblico,
democrtico e transparente, embasado em dados e anlises
qualificadas e apoiadas em pesquisas cientficas, sobre as formas
mais adequadas de manejo e ocupao da Amaznia, levando em
considerao as peculiaridades de seu ecossistema e os direitos e
projetos de futuro das populaes ali residentes.
Antes de encerrar esta Introduo, gostaria de agradecer
imensamente aos autores dos artigos aqui reunidos, que embarcaram
conosco na construo deste livro, bem como antroploga Clarice
Cohn, que juntamente comigo assumiu a tarefa de organizar este
Dossi. Por fim, agradeo tambm s antroplogas Bela Feldman-
Bianco, presidente da ABA na gesto 2011/2012, perodo no qual,
contando com seu permanente estmulo, este trabalho foi iniciado
e em grande parte realizado, e Carmen Rial, presidente da ABA no
binio 2013/2014, que deu total apoio a continuidade dessa iniciativa.
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27
A PRODUO DE UM DOSSI SOBRE UM PROCESSO EM CURSO
Clarice Cohn
Este dossi esta sendo montado desde 2010, quando foi
realizado o leilo para a construo da usina hidreltrica de Belo
Monte. Nesta ocasio, foram convidados especialistas em grandes
obras e processos de licenciamentos; antroplogos que trabalhavam
com povos indgenas que sofrem impacto da usina, muitos deles j
envolvidos com os Estudos de Impacto Ambiental Componente
Indgena para estes povos; servidores da FUNAI local; as especialistas
que elaboravam o Plano Bsico Ambiental Componente Indgena;
e representantes dos povos indgenas. O dossi rene os textos
daqueles que responderam nossa chamada inicial; a FUNAI local
entendeu fazer parte do processo e por isso estar impossibilitada
de apresentar uma reflexo analtica sobre ele, e as especialistas
que estavam formulavam o Plano Bsico Ambiental Componente
Indgena PBA, depois batizado de Plano Mdio Xingu PMX
durante 2010 entenderam que, sendo este um documento publico,
no seria necessrio um artigo especfico sobre ele, sugerindo
alternativamente a publicao de um resumo do documento feito
por terceiros, o que acabou no sendo feito, sendo aqui publicado
apenas textos autorais, e no compilaes ou resumos.
O dossi conta a histria recente do processo de licenciamento
e dos impactos da UHE Belo Monte na questo indgena, inclusive
pelo lapso de tempo de preparao de cerca de trs anos. No
foi fcil para ningum escrever algo em curso, e o dossi sempre
parecia ter um tom de algo ultrapassado; mas achamos que,
sabendo-se uma histria em curso, ela era tambm uma histria
que precisava ser contada, e que o momento era este.
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28
Belo Monte no novidade s o o projeto de engenharia
e o processo poltico que possibilita hoje sua realizao. Ele
continuidade de um projeto da poca da ditadura, conhecido
por Karara, que foi abortado pela presso internacional e pelo
grande encontro dos povos indgenas em Altamira em 1989.
A definio dos povos indgenas como impactados foi sendo
negociada durante todo o processo de licenciamento, e continua
sendo. O projeto de Karara impactaria a montante da barragem,
mas a impossibilidade poltica de aprovar o projeto tornou-o uma
hidreltrica por fio dgua. Isso mudou toda a geopoltica dos
impactos: ao invs de construir um reservatrio, planejou-se a
mudana do curso do rio, desviando suas guas desde a barragem
do Stio Pimental at o municpio de Belo Monte, onde ficaro as
turbinas principais, o que d o potico nome ao empreendimento.
Com isto, povos que no seriam antes diretamente impactados
passaram a s-lo, e o impacto maior passou a ser no mais a
inundao, mas a seca dos rios que banham as terras indgenas.
Assim, os estudos que haviam se voltado montante da barragem
teriam que ser refeitos na sua jusante na Volta Grande do Xingu.
Estes tiveram inicio em 2006 para os Juruna e os Arara da Volta
Grande do Xingu. No, porm, para os Xikrin cuja Terra Indgena
banhada pelo Rio Bacaj, porque se considerou que os impactos
no Xingu j definiria a situao deste afluente. Foi s em 2009
que se pde fazer o estudo de impacto com os Xikrin, com dados
primrios, que foi nomeado Estudos Complementares do Rio Bacaj,
uma condicionante da obra definida pela FUNAI. Neste momento
os Estudos de Impacto para os povos indgenas considerados no
diretamente impactados foram realizados com dados secundrios.
Isto valia para os Xikrin do Bacaj, os Parakan, Arawet e Asurini
no rio Xingu, os Karara, Arara do Laranjal e Arara da Cachoeira Seca
no rio Iriri. O mximo que se conseguiu na poca foi a passagem de
coordenadores de membros das equipes de estudos pelas aldeias
desses povos para colher seus depoimentos e vises dos impactos.
-
29
Enquanto na Volta Grande do Xingu os estudos transcorreram
por quatro anos, contando com diversos encontros dos indgenas
com as equipes e uma metodologia participativa, o primeiro Estudo
de Impacto do rio Bacaj foi feito apenas em 2009, contando com
rpidas visitas s aldeias em 2010. Os Estudos Complementares do
Rio Bacaja foram realizados em apenas um ciclo hidrogrfico, o que
mantm os Xikrin insatisfeitos com o resultado.
Neste percurso, tambm o Plano Bsico Ambiental
Componente Indgena estava sendo elaborado sob a coordenao
de importantes antroplogos e indigenistas e por grupos de
especialistas em 10 eixos de atuao. Em fevereiro de 2010, foi
feita uma primeira apresentao das atividades propostas a
representantes das etnias impactadas. As coordenadoras do
PBA fizeram, ento, em companhia da Norte Energia S/A e Funai/
CGGAM, visitas s aldeias explicando as propostas do PBA. O que
ocorreu depois pegou, acho, muitos de surpresa os indgenas no
reconheceram o PBA e no se sentiram devidamente representados
e consultados sobre ele. Nesse meio tempo, um agravante: o Plano
Emergencial, que instituiu uma soma de R$ 30.000,00 mensais
por aldeia em forma de uma lista de compras que era revista pela
FUNAI e adquirida pela Norte Energia S.A., sendo o transporte das
mercadorias de responsabilidade das lideranas das aldeias. Este
Plano, convnio firmado entre a Norte Energia S/A e a FUNAI,
valeu at dezembro de 2012, tendo inmeras consequncias,
como a extenso da estadia na cidade por mais tempo, o maior
trnsito aldeia-cidade, o aumento de consumo de produtos
industrializados, o acirramento do alcoolismo, e conflitos intra e
interaldeias, levando abertura de novas aldeias e a conflitos e
desconfianas intertnicas. Havia ainda o conflito entre o PBA
proposto em forma de projetos nos 10 eixos, tal como educao,
sade, gesto territorial, atividades produtivas, saneamento, etc.
e o Plano Emergencial, que fornecia recursos s aldeias, mesmo
que indiretamente, j que as lideranas reclamavam tanto da
burocracia para conseguir comprar o que queriam as listas de
-
30
compras realizadas nas aldeias, revistas pela FUNAI e repassadas
para o escritrio local da Norte Energia S.A. por meio de radiogramas
e ofcios, a falta de prestao de contas quanto, e principalmente,
de que este repasse de dinheiro, mesmo que indireto, tinha um fim
previsto, e que a FUNAI insistia mesmo enquanto repassando
estes recursos que as compensaes e mitigaes pelo impacto
no podiam ser feitas por meio de indenizaes e no poderia ser
monetria, quando o que praticavam era uma verso viciada disto.
No primeiro semestre de 2011, equipes foram contratadas para
acompanhar as compras pela FUNAI, e para transformar a lista
de compras em projetos culturais e de atividades produtivas, um
processo difcil e que acabou praticamente fracassando.
Os indgenas interromperam as obras diversas vezes nestes dois
anos em que elaboramos esta publicao, sempre pedindo melhor
conhecimento do PBA Indgena e as oitivas indgenas, que nunca
foram feitas. O PBA acabou sendo aprovado pela FUNAI em agosto
de 2012, fruto da negociao da desocupao do canteiro de obras
por nove etnias locais. Hoje se desdobra em Planos Operacionais, e o
excelente trabalho tcnico desenvolvido por profissionais altamente
capacitados corre o risco de ser perdido na pressa da construo
e pelo descompromisso dos responsveis pelo empreendimento.
Assim, a tardia aprovao pela FUNAI corre o risco de ser apenas
nominal, e os dez eixos de propostas que correspondiam as
condicionantes da obra, o risco de nunca sarem do papel.
Os antroplogos tambm se engajaram neste processo. Alguns
colaboram com os estudos de impacto ambiental, mesmo se vendo
com questes ticas importantes, e apresentam aqui os resumos de
seus estudos e anlises de sua elaborao e da recepo pelos povos
indgenas. Colaboraram tambm na elaborao do PBA Componente
Indgena, seja compondo equipes de formulao de propostas,
seja acompanhando os povos indgenas com quem trabalham nas
reunies em que estas eram apresentadas e discutidas, a convite da
coordenao das equipes de elaborao do documento. Em outros
-
31
contextos, em reunies com a Reunio Brasileira de Antropologia,
realizada bianualmente pela Associao Brasilciera de Antropologia,
e os Encontros Anuais da Associao Nacional de Ps-Graduao
em Cincias Sociais ANPOCS, reuniram-se para a redao de
moes aprovadas nas assembleias, e em Grupos de Trabalho,
Fruns e Mesas discutindo os laudos periciais antropolgicos, o
oficio dos antroplogos, as polticas indigenistas e os processos de
licenciamento ambiental. A Comisso de Assuntos Indgenas da ABA
CAI/ABA redigiu, debateu e aprovou moes, manteve um fluxo
de informaes pela pgina da ABA, organizou um Frum sobre Belo
Monte e a Questo Indgena na Reunio Brasileira de Antropologia de
2012, disponibilizado em vdeo no site da ABA, e escreveu uma srie
de documentaes, alm de organizar e publicar este dossi.
Durante algum tempo, muitos de ns embalou sonhos de
parar Belo Monte, deixar a gua fluir pela Volta Grande do Xingu e
pelo Rio Bacaj, manter fauna, flora, cheias, vazantes, ribeirinhos,
indgenas e o povo do Xingu em geral livres desse pesadelo, mas
esta a maior obra do Processo de Acelerao do Crescimento
PAC e, portanto, muito difcil de combater. uma pena que ela
esteja sendo realizada afrontando, violando e revogando todos os
direitos indgenas que este pas se orgulha de ter conquistado no
processo de redemocratizao.
Oferecemos aos leitores interessados uma parte dessa
histria, que ainda no chegou ao fim e esperamos que nossos
piores pesadelos no se realizem.
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PARTE 1: UMA VISO GERAL
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PLANEJAMENTO S AVESSAS: OS DESCOMPASSOS DA AVALIAO DE IMPACTOS SOCIAIS NO BRASIL
Marcelo Montao
INTRODUO: DEFICINCIAS ESTRUTURAIS NA APLICAO DOS INSTRUMENTOS DE POLTICA AMBIENTAL
O quadro geral de aplicao da poltica ambiental brasileira,
estabelecido formalmente h 30 anos com a Poltica Nacional
do Meio Ambiente (Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981), indica
claramente a opo efetuada pelo Estado brasileiro em compor um
sistema articulado de instrumentos e agentes institucionais que
atuam orientados pelos objetivos estabelecidos notadamente,
em busca da compatibilizao do desenvolvimento econmico
com a qualidade ambiental no pas.
Sendo assim, empregando terminologia utilizada por Souza
(2000), uma srie de instrumentos de apoio deve fornecer suporte
e subsdios aos instrumentos de ao, que por sua vez trariam
materialidade prpria poltica ambiental brasileira justamente
por viabilizarem a concretizao daquilo que se deseja em termos
ambientais em nosso pas.
Devido natureza de bem comum (na concepo
consolidada por Hardin (1968)) daquilo que se costuma referenciar
como a questo ambiental (RIBEIRO, 2001) e nos moldes do que
preconiza uma leitura terica da sustentabilidade em seu sentido
amplo, a insero de aspectos ambientais e sociais em processos
de tomada de deciso demanda a necessidade de trocas e balanos
entre objetivos de naturezas distintas, buscando o equilbrio entre
beneficiados e atingidos.
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34
Tendo em vista seu objeto especfico, as decises associadas
poltica ambiental trazem consigo uma srie de efeitos prticos
que, mediados pela ao do Estado, afetam a implementao
de polticas de desenvolvimento. Para determinados grupos,
a interveno do Estado notadamente aquela associada ao
disciplinamento dos impactos causados por empreendimentos
e atividades compreendida como desnecessria uma vez
que os impactos negativos causados seriam compensados pelos
benefcios da implantao dos empreendimentos.
Verifica-se, portanto, um embate entre foras que se posicio-
nam como adversrias em torno da conduo do modelo de de-
senvolvimento implementado no pas, desequilibrado pelo discurso
acomodativo que orienta a prtica do desenvolvimento sustent-
vel nos dias atuais. No caso brasileiro, esse embate tem colocado
em evidncia a existncia de um abismo entre os to propagados
pilares da sustentabilidade (de ordem ambiental, social e econ-
mica) no que diz respeito capacidade de influncia que cada um
exerce sobre as decises tomadas. Afinal, as alteraes ambientais
e sociais provocadas pelas atividades humanas so ponderadas
como trade-offs diante da perspectiva de crescimento econmico,
legitimando deste modo a prevalncia do vis econmico nas deci-
ses associadas implantao de empreendimentos.
Entre outros exemplos vale citar as aprovaes, sob
protestos da sociedade civil organizada, comunidade cientfica
e instituies de meio ambiente, das construes das barragens
para as usinas hidreltricas de Trs Gargantas (China) e Belo
Monte (Brasil). Recentemente, em funo de sucessivas crises
econmicas, muitos pases desenvolvidos adotaram medidas
semelhantes para a flexibilizao dos critrios ambientais a serem
aplicados na avaliao de projetos de desenvolvimento.
Ao lado do desmantelamento da legislao ambiental
brasileira, tristemente retratada nas recentes alteraes do
Cdigo Florestal brasileiro, a constatao da ineficincia da
Avaliao de Impactos Ambientais (AIA) como fruto da viso
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35
cartorial que se insiste em aplicar ao instrumento em nosso pas
causa extrema preocupao, sobretudo quando se verifica a
semelhana com modelos de governana que tm como diretriz
a diminuio dos entraves ao desenvolvimento,1 procurando-se
eliminar qualquer tipo de conflito relacionado ao aproveitamento
das oportunidades de crescimento econmico (ou a recuperao
econmica, em tempos de crise).
Reflexo imediato deste modelo, os impactos ambientais
(dos quais derivam boa parte dos impactos sociais) passam
a ser analisados precariamente, reduzidos ao seu potencial
para mitigao (ou compensao), o que limita sobremaneira a
efetividade da avaliao de impacto naquilo que apresentado
como a sua principal contribuio ao processo decisrio
estimular a incorporao de aspectos ambientais na concepo
de projetos de empreendimentos ou atividades. A partir da,
instrumentos importantes no contexto da poltica ambiental
brasileira, como o caso do licenciamento ambiental e dos
padres de qualidade ambiental, tornam-se vtimas frequentes de
melhorias implementadas no sentido de flexibilizar o processo
decisrio, agilizando as decises em torno das autorizaes
para implantao e operao dos projetos de desenvolvimento.
O licenciamento ambiental tem sido apontado como o vilo do
crescimento econmico, por se tratar de um instrumento lento,
oneroso e ineficaz.2 Aos poucos, a soluo para este problema
1 Nesse sentido, emblemtica a declarao do ex-presidente Lula efetuada em novembro de 2006, durante evento de inaugurao de usina de biodiesel em Barra do Bugres (MT), de que o meio ambiente, quilombolas e ndios, o Ministrio Pblico e as ONGs seriam entraves ao crescimento econmico do pas, numa aluso demora na emisso de licenas ambientais por parte dos rgos de meio ambiente (ONGs... 2006).
2 Tambm emblemtica, se compreendida luz da nota anterior, a nomenclatura utilizada pelo Ministrio do Meio Ambiente, para programas de otimizao dos procedimentos de licenciamento implementados no incio das aes ligadas ao Programa de Acelerao do Crescimento Destrava Ibama e Destrava II.
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36
associada simplificao dos procedimentos de avaliao de
solicitaes de licena ambiental. A eficcia do instrumento passa a
ser avaliada pelo tempo de emisso de licenas, e os rgos de meio
ambiente assumem metas a serem cumpridas um determinado
nmero de licenas a serem expedidas ao longo do ano.
A AVALIAO DOS IMPACTOS SOCIAIS NO BRASILDesde a aprovao da US National Environmental Policy Act
(Nepa) em 1969, marco legal para a aplicao da Avaliao de
Impacto Ambiental (AIA) nos EUA e que se tornou referncia para
boa parte da legislao em outros pases, encontra-se institudo
um referencial instrumental para avaliao de impactos que inclui
o estudo do ambiente humano. H uma controvrsia, porm, com
relao ao alcance de suas regulamentaes posteriores para a
incluso de impactos sociais provocados por empreendimentos nas
avaliaes dos pedidos de autorizao (por exemplo, as diretrizes
preliminares emitidas em 1973, pelo Conselho de Qualidade
Ambiental dos Estados Unidos, para elaborao dos estudos de
impacto ambiental, bem como as diretrizes finais emitidas em
1978, no mencionam formalmente o termo avaliao de impacto
social; tal fato veio a ocorrer apenas em 1986 com a reviso das
diretrizes para a avaliao de impacto ambiental, que passam a
empregar o termo impactos socioeconmicos).
Segundo Burdge (2002), a ausncia de uma demanda
explcita fez com que, no incio da aplicao da Nepa, os impactos
sociais fossem includos de modo superficial nos estudos
elaborados por firmas e consultorias contratadas pelas agncias
federais norte-americanas os engenheiros e arquitetos que
trabalhavam na elaborao dos estudos ambientais reduziam
todo o universo social descrio de indicadores demogrficos
e socioeconmicos, sem muita preocupao com a previso
dos impactos sobre as populaes e comunidades. Para piorar,
nenhum recurso estava disponvel [para o financiamento de
pesquisas] para a organizao das descobertas sobre os impactos
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37
sociais reveladas pelas avaliaes iniciais (BURDGE, 2002, p. 7), o
que contribuiu para o baixo prestgio da Avaliao de Impactos
Sociais (AIS) dentre os instrumentos de avaliao de impacto.
Basicamente, os impactos sociais associados a projetos de
desenvolvimento tm sido descritos por meio de indicadores
demogrficos e socioeconmicos, sem efeito substancial para
a tomada de deciso. Sendo assim, no se utiliza plenamente
do potencial da avaliao de impactos sociais, como destacado
por Barrow (2010, p. 293), para identificar e esclarecer as
causas dos conflitos ambientais pelo uso de recursos naturais
e para estabelecer alguma medida para evitar ou mitigar
antecipadamente tais efeitos. Tal fato sugere que as avaliaes
de impacto voltadas para aes estratgicas e para projetos de
desenvolvimento no tm se beneficiado da capacidade da AIS
de antecipar e evitar impactos negativos e, por conseguinte,
antecipar e evitar conflitos com certos grupos de interesse que,
num limite, poderiam inviabilizar a deciso tomada.
Um efeito decorrente dessa situao pode ser ilustrado pela
ocorrncia regular de conflitos e decises judiciais em torno de
projetos submetidos AIA,3 especialmente quando envolvem, por
um lado, demandas (legtimas) por desenvolvimento econmico
e, por outro, demandas (tambm legtimas) pela manuteno de
elementos tradicionais (simblicos), laos culturais e uma srie de
valores associados a questes identitrias e de comunidades.
De acordo com Carpenter (1999), no havia na Nepa e,
para alguns, ainda no h o compromisso de incluir o meio
socioeconmico nos estudos de impacto, sendo o foco nos meios
fsico e bitico. A varivel social teria sido includa a partir de uma
srie de decises judiciais, que exigiam o balanceamento dos
impactos ambientais em relao a fatores econmicos e sociais
por meio de uma anlise sistemtica.
3 A legislao brasileira estabelece que empreendimentos com potencial para causar significativa degradao ambiental devem ser licenciados com base na aplicao dos mtodos e procedimentos da AIA, da qual os Estudos de Impacto Ambiental constituem um de seus elementos principais.
-
38
As definies atualmente aceitas para a avaliao dos
impactos sociais apontam para uma forte correlao com outros
instrumentos de avaliao de impactos, embora o instrumento em
si no esteja limitado a este universo de aplicao. De acordo com
Vanclay (2003, p. 6), a AIS no deveria ser compreendida apenas
como sendo a tarefa de previso de impactos sociais dentro de
um processo de avaliao de impactos. Ela incluiria os processos
de anlise, monitoramento e gesto das consequncias sociais,
propositais ou no, decorrentes de intervenes planejadas,
bem como as alteraes sociais derivadas, com o propsito de
se alcanar um meio ambiente mais sustentvel e equilibrado em
termos biofsicos e humanos.
A experincia recente em torno da avaliao de impactos
relacionada a projetos de desenvolvimento (e especialmente ao
que o governo federal tem chamado de projetos estruturantes
como grandes obras de infraestrutura para gerao de energia,
transportes, habitao e saneamento) tem demonstrado
uma deficincia crnica na AIA e no licenciamento ambiental
praticados no pas, em que o tempo para a tomada de deciso
alongado pela ocorrncia de conflitos intensos e demandas
judiciais. No incorreto afirmar que os efeitos negativos dessa
deficincia so agravados, sobretudo, pelas dificuldades de
incorporar adequadamente a anlise dos impactos sociais no
processo decisrio referente aprovao de empreendimentos.
No caso brasileiro, avaliaes efetuadas por Montao,
Utsunomiya e Souza (no prelo) para a verificao dos modos
como as variveis sociais so integradas aos estudos de impacto
ambiental demonstram que estas se mantm restritas ao
escopo definido pela legislao federal (ainda que, de fato, a
legislao apenas indique uma diretriz bsica para a realizao
de diagnsticos para o meio socioeconmico, que deve ser
complementada em funo das especificidades de cada caso).
Alm disso, para um universo amostral de 27 processos de
licenciamento, no fica evidente uma convergncia entre as
variveis empregadas nos diferentes estudos de impacto,
sugerindo uma baixa aprendizagem entre eles.
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39
Tais resultados permitiram aos autores apontar uma
deficincia importante nas avaliaes de impacto, relacionada
fraca relao entre os estudos de diagnstico e os impactos
avaliados. Essa deficincia fica ainda mais evidente ao se verificar
que a anlise dos impactos sobre o meio antrpico no Brasil no
realizada de modo estruturado, o que implica em avaliaes
dispersas e superficiais, basicamente associadas a variveis
socioeconmicas e demogrficas, o que raramente se constitui
como as questes centrais que deveriam ser investigadas.
Trata-se, portanto, de um problema significativo por
um lado, a baixa capacidade dos profissionais responsveis
pela elaborao e anlise dos estudos de impacto ambiental de
identificar e incorporar a real dimenso dos aspectos sociais e
culturais e, de outro, institucionalmente, a baixa capacidade,
ao longo das etapas subsequentes da Avaliao de Impacto
Ambiental, de identificar as deficincias apresentadas para os
impactos sociais e de solicitar estudos mais consistentes, o que
faz com que os impactos sociais dos projetos de desenvolvimento
sejam, via de regra, avaliados de modo parcial e insatisfatrio ,
contribuindo para o surgimento de conflitos e demandas judiciais
em torno da aprovao dos projetos.
Assim como descrito por Burdge (2002), pode-se dizer
que a AIS no Brasil tambm padece do fenmeno descrito como
substituio pelo envolvimento do pblico, ou seja, em processos
que se apresentam como participativos, a avaliao dos impactos
sociais termina por ser relegada a um segundo plano, alegando-
se que a participao do pblico em discusses relacionadas
aos empreendimentos possa suprir a necessidade de estudos
estruturados e metodologicamente consistentes voltados para
a identificao de alteraes em processos sociais e culturais
provocadas pela implantao de empreendimentos e anlise de
suas consequncias. No caso brasileiro, a situao ainda mais
drstica, considerando-se que a insero da participao pblica
no planejamento das polticas e projetos de desenvolvimento algo
incipiente ficando restrita participao coletiva em audincias
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pblicas para discusso dos resultados dos estudos ambientais,
ou por meio de outros canais formalmente institudos (mas que
normalmente carecem de representatividade e legitimidade,
como os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente e a
atuao da sociedade civil organizada).
Ainda que seja possvel reconhecer avanos substantivos em
um nmero expressivo de projetos de desenvolvimento a partir da
contribuio do pblico em processos participativos, a inexistncia
de um caminho formalmente estruturado requisitos legais e
diretrizes para a sua elaborao para a aplicao sistemtica
da AIS nas avaliaes de impacto no permite compreender como
razovel a opo de se utilizar a participao social como um
mecanismo de incorporao dos impactos sociais, sobretudo por
estar sujeita a uma srie de acasos.
Os processos de avaliao de impacto ambiental tm sido
duramente criticados quando ameaam (ainda que tecnicamente
fundamentados) estender o cronograma de aprovao de
empreendimentos considerados estratgicos (ou estruturantes)
para as polticas governamentais de desenvolvimento. Vide,
por exemplo, as recentes polmicas em torno das avaliaes
de impacto de projetos associados ao Programa de Acelerao
do Crescimento, notadamente com relao construo de
hidreltricas e projetos de infraestrutura (rodovias, aeroportos,
saneamento, habitaes) e a espantosa movimentao dos
ltimos anos para o incremento da produo de etanol no pas.
A trajetria da AIS no Brasil segue o processo descrito por
Burdge (2002, 2003), com sua insero no quadro formal da
Avaliao de Impacto Ambiental, ausncia de elementos efetivos para
regulamentao de aspectos metodolgicos e aplicados, consolidao
de uma viso instrumental do processo de avaliao de impactos
(fundamentada em aspectos descritivos de dados demogrficos
e socioeconmicos), no observncia de conceitos e princpios
internacionais, e baixa expressividade da pesquisa acadmica.
O Brasil inclui a varivel social em suas AIAs, mas no aplica
de modo sistemtico a AIS pela ausncia de diretrizes formais. O
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alto nvel de conflitos e demandas judiciais em torno de decises
favorveis a empreendimentos indica ser este um problema a
ser enfrentado, procurando-se melhorara insero da dimenso
social nas avaliaes de impacto voltadas para empreendimentos,
mediante o fortalecimento da AIS como elemento de suporte s
decises, amparada por princpios e diretrizes que orientem sua
aplicao e lhes assegure efetividade.
PLANEJAMENTO S AVESSAS: O EXEMPLO DE BELO MONTEDurante a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (do ingls United Nations
Conference on Environment and Development Unced) realizada
no Rio de Janeiro, em 1992, 191 pases se comprometeram a
preparar estratgias nacionais para alcanar o desenvolvimento
sustentvel (UNCED, 1992). Dez anos depois, na Cpula Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentvel, realizada no ano de 2002
em Johanesburgo, o compromisso foi reafirmado e a busca pela
implementao plena do desenvolvimento sustentvel se tornou
foco de prioridade internacional de forma oficial por meio dos
protocolos resultantes (LITTLE, 2003).
Nessa ocasio foi enfatizado o papel de processos efetivos
de planejamento e de formulao de polticas, que possibilitem a
integrao dos objetivos das diferentes dimenses das polticas
existentes como condio crucial para o cumprimento do acordo
internacional em se buscar o desenvolvimento sustentvel. Essa
necessidade ficou evidente a partir da comprovao de que o
tratamento desarticulado da questo ambiental no significava
apenas um obstculo para a manuteno da qualidade ambiental,
como, ao contrrio, deixava o estado do meio seriamente afetado
pelos efeitos derivados das polticas setoriais (ALAHUHTA et al., 2010).
A partir dessas constataes, a agenda poltica de vrios
pases se voltou para a reformulao de seus sistemas de
planejamento com vistas integrao, tanto horizontal (entre
os diferentes setores e domnios polticos) quanto vertical (entre
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atores polticos e diferentes escalas de governana) (COUNSELL et
al., 2006; STEAD; MEIJERS, 2009).
No caso do Brasil, cuja tradio de planejamento voltado
para polticas de desenvolvimento remete a uma profunda
setorializao de temas e instncias decisrias, tal integrao
se coloca como uma realidade distante, ainda que reconhecida
como necessria. No plano ambiental, sobretudo, a constatao
da baixa capacidade de integrao, pela via do planejamento,
de objetivos e metas estabelecidos para diferentes planos e
programas de desenvolvimento deve ser compreendida com
preocupao, uma vez que constitui barreiras absolutamente
impermeveis penetrao de aspectos ambientais e sociais
como elementos norteadores de polticas pblicas.
O quadro apresentado pelo Brasil, sintetizado na Figura 1,
pode ser descrito como a seguir.
Avaliao desarticulada entre polticas, planos e programas e os projetos de desenvolvimento: a falta de alinhamento
e integrao no planejamento tem como desdobramento
imediato a desassociao entre os objetivos das diferentes
aes estratgicas, dificultando a insero da varivel
ambiental de modo compatvel com o nvel estratgico, o que
resulta muitas vezes em repeties de avaliaes ambientais e
acmulo de questes a serem respondidas quando da anlise
de projetos de empreendimentos;
Dificuldades para avaliar impactos cumulativos/sinrgicos: a falta de avaliaes de impacto para os nveis superiores de
deciso (por exemplo, na esfera de planos ou programas)
mascara a existncia de impactos provocados por intervenes
anteriores, que se acumulam ou interagem entre si;
Anlise limitada de temas e alternativas: a inexistncia de uma cadeia estruturada de planejamento que antecipe a insero
da varivel ambiental no processo decisrio implica no
estabelecimento de objetivos que podem se mostrar conflitantes
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com outros planos e programas, ainda que aparentemente
estejam de acordo com a demanda do setor, fazendo com que a
disposio para identificao e anlise de alternativas por parte
dos planejadores seja drasticamente diminuda;
Conflitos e interrupo do fluxo decisrio, como consequncia dos itens anteriores.
Figura 1 Desarticulao entre nveis estratgicos de deciso e a aplicao
dos instrumentos de poltica ambiental no Brasil (SI Sistemas de
Informao; PQ Padres de Qualidade; UC Unidades de Conservao;
AIA Avaliao de Impacto Ambiental; ZEE Zoneamento
Ecolgico-Econmico; LA Licenciamento Ambiental).
Compreendem-se, portanto, as origens do que chamamos
de planejamento s avessas no Brasil. Trata-se de um processo
de planejamento voltado para objetivos imediatos e que atendem
a um setor/segmento especfico, sem integrao com os demais
setores e muito menos com variveis de outra natureza que no
as econmicas. Em decorrncia, e tendo em vista a necessidade
de fornecer respostas ambientais a uma srie de instrumentos
que (ainda) insistem em existir, eis que o aspecto acomodativo
do desenvolvimento sustentvel convocado para validar os
projetos de empreendimentos (sobretudo quando associados a
elementos estruturantes do crescimento econmico do pas).
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Em outras palavras, o que se tem como referncia a
sensao de permissividade em termos ambientais e sociais
quando da implantao de projetos de desenvolvimento. A meta,
portanto, deixa de ser a preveno e antecipao dos efeitos
causados pelos empreendimentos, por meio da modificao e
aperfeioamento dos projetos, e passa a ser a correo, por meio
da mitigao e compensao, daqueles efeitos que tenham sido
identificados nos estudos ambientais. Mesmo nos casos em que o
conflito passa a ser mediado na esfera pblica, aps a interveno
dos atingidos, a soluo tipicamente encaminhada no implica em
alteraes substanciais nos projetos de empreendimento (afinal,
considerando toda a cadeia de decises j tomadas anteriormente,
compreende-se no haver disposio por parte dos tomadores de
deciso para revises e modificaes em seus projetos).
Tome-se como exemplo o caso do licenciamento
ambiental da usina hidreltrica de Belo Monte, localizada no
estado do Par, s margens do rio Xingu, considerado bastante
singular como elemento ilustrativo das discusses efetuadas
no presente texto. A despeito de toda a magnitude e inegvel
relevncia no quadro estratgico para o setor eltrico do pas, a
desarticulao demonstrada pelos planejadores responsveis
por sua implantao e o descaso com que foram tratadas as
questes ambientais e sociais chegam a ser inacreditveis, dada
a quantidade de decises desencontradas que cercam o histrico
deste empreendimento.
No que diz respeito ao escopo do presente texto, vale
destacar a falta de planejamento verificada em elementos
essenciais ao projeto. A comear pelos custos e capacidade de
gerao de energia estimados para o empreendimento, tomem-
se dois extratos de notcias veiculadas pela imprensa ao longo do
ano de 2010, s vsperas do encerramento da primeira licitao
para definio dos consrcios responsveis pela construo e
operao da usina.
Custos: No se sabe ao certo quanto custar. O governo fala em R$ 19,6 bilhes; investidores estimam que os custos sero
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de at R$30 bi (fonte: MAGALHES, 2010);
Potncia: A capacidade de gerao de energia a partir do potencial instalado muito mais baixa do que a mdia das
hidreltricas. [...] Nas pocas de seca, Belo Monte tem como
garantir apenas 40% de sua capacidade (MAGALHES, 2010).
Como se verifica, a baixa capacidade de planejamento no
afeita apenas s questes ambientais e sociais. Eis que o modelo
de planejamento s avessas tem se mostrado eficiente, no sentido
de assegurar a continuidade do processo mesmo sem que se
tenham definidos os elementos fundamentais para a implantao
do projeto. Segundo esse modelo, depositam-se as fichas na
viabilizao a posteriori de tudo aquilo que se mostrar essencial
para o convencimento dos atores envolvidos com a deciso
tomada: aos investidores, declaraes de confiana e artifcios
empregados para assegurar a viabilidade dos investimentos; aos
rgos ambientais, elaborao de planos e programas de mitigao
e compensao para os impactos a serem causados; sociedade e
aos atingidos, o discurso do desenvolvimento sustentvel.
Belo Monte est fora dos padres do investimento privado, diz EPE.
O presidente da estatal EPE (Empresa de Pesquisa Energtica), Maurcio Tolmasquim, reconheceu hoje que a usina de Belo Monte, licitada neste ano, est fora do padro do investimento privado, justificando a pesada participao de estatais e fundos de penso no projeto. uma usina que se voc [Estado] largar no vai sair, disse Tolmasquim, em referncia ao gigantismo do projeto. A usina ter capacidade de gerao de 11.000 MW e ser a segunda maior do pas (SOARES, 2010).
Eletrobras compra energia livre de Belo Monte para garantir financiamento.
Eletrobras confirmou nesta tera-feira que garantiu a compra da energia destinada ao mercado livre da usina hidreltrica de Belo Monte como forma de garantir que sejam
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fechados os contratos de financiamento para a obra. [...] Segundo o diretor financeiro e de relaes com investidores da Eletrobras, Armando Casado, a gente realmente j garantiu a compra de energia... uma operao normal e pretendemos colocar essa energia no mercado, afirmou o executivo em teleconferncia com analistas sobre o resultado da Eletrobras do segundo trimestre de 2010 (REUTERS, 2010).
Governo monta plano sustentvel para regio de Belo Monte
A regio de integrao do Xingu, que abrange dez municpios do Par, onde ser construda a usina hidreltrica de Belo Monte, ter um plano de desenvolvimento sustentvel, que vai incluir aes na rea de regularizao fundiria, licenciamento ambiental, capacitao da populao local, ampliao de escolas e universidades pblicas, universalizao do acesso energia eltrica e melhoria dos transportes rodovirio e hidrovirio. O objetivo do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentvel do Xingu preparar a regio para os grandes impactos das obras de infraestrutura que esto sendo feitas, especialmente da usina de Belo Monte. um conjunto de polticas pblicas para dar conta do crescimento populacional que a regio vai ter, explica o subchefe adjunto de Anlise e Acompanhamento de Polticas Governamentais da Casa Civil, JohanessEck (CRAIDE, 2010).
Em termos do licenciamento ambiental, surgem manifestaes
de exigncias de novos estudos (complementares, como estudos
etnogrficos para caracterizao das populaes indgenas sujeitas
aos efeitos do empreendimento; novos estudos hidrolgicos para de-
terminao da vazo histrica do rio Xingu; estudos geomorfolgicos
para identificao das alteraes sobre a dinmica de transporte de
sedimentos etc.), manifestaes da sociedade e comunidade cient-
fica contestando determinados pontos do projeto, questionando at
mesmo sua viabilidade tcnica, demandas judiciais solicitando a in-
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terrupo do processo. Por sua vez, a estrutura institucional pres-
sionada a dar o respaldo necessrio, e o faz com singular desfaatez:
Minc afirma que licenciamento no atrapalha PACO ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou
hoje que o licenciamento ambiental no problema para o andamento do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). No h nada significativo do PAC parado por causa de licenciamento ambiental. Ele acrescentou que em matria de licenciamento do PAC, licenciamento ambiental deixou de ser o problema. Minc disse, desde que assumiu o ministrio, h um ano, a principal preocupao tem sido agilizar e simplificar o processo de licenciamento ambiental, mas aumentando o rigor. (MINC..., 2009).
Lula quer agilizar licenciamento ambiental [...]Em reunio ministerial na manh desta tera-feira, o
presidente Luiz Incio Lula da Silva pediu aos seus ministros que simplifiquem as regras de licenciamento ambiental para dar agilidade realizao de obras de infraestrutura. [...] O ministro Alexandre Padilha (Relaes Institucionais) no deu detalhes desses projetos e disse que esto ainda sendo trabalhados pelo governo. Quanto s licenas ambientais, afirmou que as regras em cada ministrio so diferentes, o que atrasa sua concesso. A proposta que os ministros apresentem at setembro propostas. Vamos fazer reviso de procedimentos internos para que se acelere o licenciamento ambiental, disse (IGLESIAS, 2010).
CONSIDERAES FINAISO presente texto buscou discorrer sobre as bases para
a ineficincia da avaliao de impactos ambientais e sociais
como instrumentos de mediao das decises relacionadas
implantao de empreendimentos e atividades no pas, tomando
como ponto de partida a realizao de algumas reflexes
amparadas em elementos conceituais que descrevem o campo
de atuao da poltica ambiental brasileira.
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Procurou-se evidenciar a existncia de uma questo
estrutural por trs dos embates vivenciados cotidianamente no
universo de aplicao dos instrumentos de poltica ambiental,
relacionada ao tratamento absolutamente desbalanceado
que dado aos aspectos econmicos, ambientais e sociais
como variveis intervenientes no planejamento de projetos de
desenvolvimento.
Tal questo ilustrada de modo claro pela observao do
quadro geral do licenciamento ambiental no pas em que atuam,
por um lado, os instrumentos de apoio ao processo decisrio
orientados para o disciplinamento do uso do territrio e seus
recursos naturais, voltados para interesses difusos e objetivos
de longo prazo, construdos com base em princpios como
descentralizao e participao da sociedade e, por outro, a
legitimao da supremacia do aspecto econmico no processo
decisrio a partir do discurso acomodativo que orienta o
paradigma do desenvolvimento sustentvel nos dias atuais.
No caso brasileiro, a situao assume ares mais dramticos,
dada a vulnerabilidade demonstrada pelas instituies que
integram o processo decisrio em relao a artifcios que venham
legitimar um modelo de planejamento focado na viabilizao
a posteriori das decises tomadas. Em outras palavras, com o
desmantelamento da estrutura ambiental no Brasil, assistimos
precarizao daquilo que um dia foi comemorado como uma
conquista de toda a sociedade e que, agora, a torna refm de um
malfadado jogo de soma negativa.
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