belo monte e a questao indigena - joao pacheco de oliveira & clarice cohn

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  • JOO PACHECO DE OLIVEIRA CLARICE COHN (ORGS.)

    BELO MONTE E A QUESTO INDGENA

  • 2COMISSO DE PROJETO EDITORIAL

    Coordenador

    Antnio Motta (UFPE)

    Cornelia Eckert (UFRGS)

    Peter Fry (UFRJ)

    Igor Jos Ren Machado (UFSCAR)

    Coordenador da coleo de e-books

    Igor Jos Ren Machado

    Conselho Editorial

    Alfredo Wagner B. de Almeida (UFAM)

    Antonio Augusto Arantes (Unicamp)

    Bela Feldman-Bianco (Unicamp)

    Carmen Rial (UFSC)

    Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)

    Cynthia Sarti (Unifesp)

    Gilberto Velho (UFRJ) - in memoriam

    Gilton Mendes (UFAM)

    Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ)

    Julie Cavignac (UFRN)

    Laura Graziela Gomes (UFF)

    Llian Schwarcz (USP)

    Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ)

    Mriam Grossi (UFSC)

    Ruben Oliven (UFRGS)

    Wilson Trajano (UnB)

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

    Diretoria

    Presidente

    Carmen Silvia Rial (UFSC)

    Vice-Presidente

    Ellen Fensterseifer Woortmann (UnB)

    Secretrio Geral

    Renato Monteiro Athias (UFPE)

    Secretrio Adjunto

    Manuel Ferreira Lima Filho (UFG)

    Tesoureira Geral

    Maria Amlia S. Dickie (UFSC)

    Tesoureira Adjunta

    Andrea de Souza Lobo (UNB)

    Diretor

    Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ)

    Diretora

    Marcia Regina Calderipe Farias Rufino (UFAM)

    Diretora

    Heloisa Buarque de Almeida (USP)

    Diretor

    Carlos Alberto Steil (UFRGS)

    www.abant.org.br

    Universidade de Braslia. Campus Universitrio Darcy Ribeiro - Asa Norte. Prdio Multiuso II (Instituto de Cincias Sociais) Trreo - Sala BT-61/8.

    Braslia - DF Cep: 70910-900. Caixa Postal no: 04491. Braslia DF Cep: 70.904-970. Telefax: 61 3307-3754.

    Diagramao e produo de e-book

    Mauro Roberto Fernandes

    RevisoPaula Sayuri Yanagiwara

  • 3BELO MONTE

    E A QUESTO INDGENA

    JOO PACHECO DE OLIVEIRA CLARICE COHN (ORGS.)

  • O482b

    Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.

    6 MB ; pdf

    ISBN 978-85-87942-18-0

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.

    CDU 304CDD 300

    O482b

    Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.

    5.5 MB ; epub

    ISBN 978-85-87942-19-7

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.

    CDU 304CDD 300

    O482b

    Oliveira, Joo Pacheco de; Cohn, ClariceJoo Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (Orgs.). Belo Monte e a questo indgena; Braslia - DF: ABA, 2014.

    5.5 MB ; mobi

    ISBN 978-85-87942-20-3

    1. Cincias Sociais. 2.Antropologia. 3.Questo indgena. 4.Belo Monte.

    CDU 304CDD 300

  • 5SumrioBelo monte e a questo indgena: reflexes crticas sobre

    um caso emblemtico de desenvolvimentismo

    brasileira.............................................................................. 9

    Bela Feldman-Bianco

    Introduo: a ABA e a questo de Belo Monte ........................ 12

    Joo Pacheco de Oliveira

    A produo de um dossi sobre um processo em curso ......... 27

    Clarice Cohn

    PARTE 1: UMA VISO GERAL ...................................................... 32

    Planejamento s avessas: os descompassos da Avaliao

    de Impactos Sociais no Brasil .................................................. 33

    Marcelo Montao

    Quanto maior melhor? Projetos de grande escala: uma forma

    de produo vinculada expanso de sistemas econmicos .. 50

    Gustavo Lins Ribeiro

    Significados do direito consulta: povos indgenas versus

    UHE Belo Monte ..................................................................... 70

    Jane Felipe Beltro

    Assis da Costa Oliveira

    Felcio Pontes Jr.

    (Des)cumprimento das condicionantes socioambientais

    de Belo Monte ........................................................................ 102

    Biviany Rojas

    Na luta pelos direitos indgenas: a ao do Ministrio Pblico

    Federal em documentos selecionados .................................... 121

    Jane Felipe Beltro

    Helena Palmquist

    Paulo Csar Beltro Rabelo

  • 6O contexto institucional da resistncia indgena

    a megaprojetos amaznicos ................................................... 128

    William H. Fisher

    Pescadores, ribeirinhos e indgenas: mobilizaes tnicas

    na regio do rio Xingu: resoluo no negociada dos

    conflitos na usina hidreltrica de Belo Monte ......................... 138

    Alfredo Wagner Berno de Almeida

    Rosa Elizabeth Acevedo Marin

    Profanao hidreltrica de Btyre/Xingu: fios condutores

    e armadilhas (at setembro de 2012) ..................................... 165

    A. Oswaldo Sev Filho

    PARTE 2: BELO MONTE E A QUESTO INDGENA ......................... 201

    ndios Citadinos de Altamira: lutas, conquistas e dilemas ....... 202

    Mayra Pascuet

    Mariana Favero

    Reflexes em torno da vida sociocultural dos Arara da

    Volta Grande do Xingu frente ao megaempreendimento

    da usina hidreltrica de Belo Monte,

    Altamira-Par ........................................................................ 215

    Marlinda Melo Patrcio

    Os Juruna no contexto da usina hidreltrica Belo Monte ......... 234

    Maria Elisa Guedes Vieira

    O fim do mundo como o conhecemos: os Xikrin do Bacaj

    e a barragem de Belo Monte ................................................... 248

    Clarice Cohn UFSCar

    Os Arara do Laranjal: uma viso a partir do Iriri, do outro

    lado da barragem ................................................................... 272

    Eduardo Henrique Capeli Belezini

  • 7PARTE 3: COM A PALAVRA, OS INDGENAS ................................. 287

    COM A PALAVRA, OS INDGENAS: apresentao aos textos ....... 288

    Clarice Cohn

    Entrevista com militante das organizaes dos indgenas

    citadinos de Altamira-PA ....................................................... 294

    Mayra Pascuet

    Desabafo de uma liderana da Terra Wang-Arara da

    Volta Grande do Xingu Altamira-Par .................................. 302

    Jos Carlos Arara

    Belo Monte de violaes... ...................................................... 307

    Sheyla Juruna

    Um grande desastre, principalmente para a cultura ............... 311

    Ozimar Juruna

    O processo de construo de Belo Monte na fala de

    uma jovem Xikrin ................................................................... 316

    Ngrenhdjam Xikrin

    Carta produzida e assinada pelos homens da aldeia

    Bacaj, Terra Indgena Trincheira-Bacaj,

    segundo fac-smile ................................................................ 320

    SOBRE OS AUTORES ................................................................. 322

    ANEXOS .................................................................................. 326

  • 8

  • 9BELO MONTE E A QUESTO INDGENA: REFLEXES CRTICAS SOBRE UM CASO EMBLEMTICO DE DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRA

    Tenho o maior prazer em oferecer Belo Monte e a Questo

    Indgena comunidade antropolgica e ao pblico em geral. Em seu

    conjunto, esta coletnea de textos reflete o empenho da Comisso

    de Assuntos Indgenas (CAI) da ABA em apresentar um dossi

    completo sobre a construo da hidroeltrica de Belo Monte e suas

    repercusses para as populaes indgenas que vivem naquela regio

    amaznica. Conjugando reflexes crticas baseadas em pesquisas e

    ao poltica, este dossi discerne a conjuntura atual brasileira de

    embates entre, de um lado, polticas desenvolvimentistas baseadas

    ainda em antigas teorias de modernizao que privilegiam grandes

    projetos de hidroeltricas s expensas do saber tradicional, como o

    caso da UHE Belo Monte, e, de outro, a situao e mobilizao social

    de povos indgenas afetados por esses projetos em defesa de seus

    direitos territoriais. A partir desse cenrio, estes textos, de autoria

    de estudiosos e especialistas de diferentes formaes, incluindo

    representantes de povos indgenas, expem, com base na anlise de

    mltiplos aspectos da UHE Belo Monte, as implicaes das polticas,

    aes e decises oficiais adotadas. Ao mesmo tempo, apresentam

    subsdios para se pensar outras opes para o Brasil e a Amaznia

    em especial. Trata-se, portanto, de um dossi indispensvel para a

    compreenso das consequncias dos processos desenvolvimentistas

    em curso, bem como para se refletir sobre alternativas mais

    adequadas de ocupao e administrao da Amaznia, tanto em

    termos de seu ecossistema quanto dos direitos e projetos de vida das

    populaes que ali vivem.

    A ABA, enquanto sociedade cientfica, tem historicamente

    promovido discusses, reflexes propositivas e aes polticas

  • 10

    sobre temticas que esto na ordem do dia. Com esse intuito,

    no binio 2011-2012, sob a chancela Desafios Antropolgicos no

    Sculo XXI, procuramos mapear e confrontar, por meio de anlises

    crticas e propositivas, os dilemas, desafios e perspectivas que

    ocorrem no contexto de processos de expanso e transformao

    da antropologia no Brasil, seja em relao s transformaes e

    reconfiguraes da antropologia como disciplina acadmica per se,

    no tocante s relaes entre essas transformaes e as polticas

    cientficas, seja ainda entre formao de antroplogos e o mercado

    de trabalho, assim como entre pesquisa antropolgica e ao

    poltica, e, nesse contexto, a poltica da antropologia, inclusive no

    que concerne crescente relao entre a antropologia e as polticas

    pblicas, e, ainda, o papel dos antroplogos e antroplogas na

    intermediao poltica no contexto brasileiro contemporneo.

    Belo Monte e a Questo Indgena retrata uma situao

    emblemtica tanto das polticas desenvolvimentistas e das

    mobilizaes dos povos indgenas em defesa de seus territrios

    quanto da prpria atuao da ABA. Vale notar que a CAI comeou

    a se manifestar criticamente em relao ao descumprimento

    da Conveno 169 ainda em 2009, exigindo que as populaes

    afetadas fossem antecipadamente informadas e consultadas sobre

    a construo da UHE Belo Monte e suas consequncias. Durante o

    binio 2011-2012, as anlises e aes sobre as formas e as polticas

    relativas a esse megaprojeto hidroeltrico se intensificaram,

    passando a pautar o cotidiano da ABA. Lembro que praticamente

    iniciamos nossa gesto com a realizao, em 7 de fevereiro de 2011,

    do simpsio A hidroeltrica de Belo Monte e a Questo Indgena,

    em parceria com a UnB. Organizado conjuntamente pelo GT Povos

    Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e a Comisso de

    Assuntos Indgenas, esse evento reuniu antroplogos, populaes

    tradicionais e alguns representantes governamentais com o objetivo

    de propiciar dilogos sobre os direitos territoriais e humanos dessas

    populaes. Posteriormente, ocorreram sucessivas manifestaes

  • 11

    pblicas, inclusive uma petio da ABA em parceria com a SBPC

    dirigida presidenta Dilma Rousseff, subscrita por cerca de 20

    associaes cientficas em defesa dos direitos territoriais das

    populaes que vivem na regio de Belo Monte e para a qual sequer

    recebemos resposta do gabinete presidencial.

    Tambm investimos em sequncias de atividades em

    encontros anuais da Anpocs e da SBPC, na Reunio da Antropologia

    do Mercosul (RAM) e Reunio de Antropologia Equatorial (REA/

    Norte Nordeste), ambas realizadas em 2011, assim como na 28

    Reunio Brasileira de Antropologia de 2012, organizadas quer seja

    pela CAI ou pelo GT Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes

    Projetos. Ademais, o caso da UHE Belo Monte, juntamente s

    remoes urbanas em curso, culminou na formao de um frum

    de desenvolvimento no mbito da ABA, como forma de motivar

    reflexes crticas sobre os processos em curso. Finalmente,

    enquanto estudiosa de migraes internacionais, percebi que

    os processos que estvamos acompanhando deveriam ser

    examinados a partir de uma noo mais ampla de deslocamentos,

    como parte de uma lgica integrada de produo de desigualdades

    na corrente conjuntura da acumulao do capital, seja do ponto de

    vista das migraes transnacionais, refgio poltico ou ambiental,

    remoes de populaes de seus territrios, ou trfico humano.

    Subjacentes a essa temtica esto questes centrais relacionadas

    s atuais polticas desenvolvimentistas e/ou neoliberais.

    Nesse contexto, o lanamento deste dossi completo sobre Belo

    Monte e a questo indgena, organizado por Joo Pacheco de Oliveira

    e Clarice Cohn, reunindo depoimentos e anlises crticas, ajuda-nos

    a compreender e desconstruir, a partir de diferentes prismas, esses

    processos capitalistas e a refletir sobre alternativas concretas que

    valorizam a vida, os direitos humanos e os saberes tradicionais.

    Bela Feldman-Bianco

    Presidente da ABA (binio 2011-2012)

  • 12

    INTRODUO: A ABA E A QUESTO DE BELO MONTE

    Joo Pacheco de Oliveira1

    Possuindo j trs dcadas de atuao, a Comisso de

    Assuntos Indgenas foi criada com a inteno de assessorar a

    presidncia da ABA no que toca as manifestaes oficiais da

    entidade relativas chamada questo indgena. Ao longo desse

    perodo a ABA veio a ser reconhecida no campo indigenista como

    uma voz presente nos mais graves problemas que envolveram (e

    envolvem) a viabilizao dos direitos indgenas, bem como nas

    polticas pblicas dirigidas a estes povos.

    Por suas anlises fundamentadas em pesquisa cientfica

    e suas recomendaes sempre pautadas no esprito do livre

    e pleno exerccio da cidadania, bem como da necessria

    contribuio das instituies a este processo, a ABA tornou-se

    uma referncia importante para organismos governamentais e

    no governamentais, assim como para instncias parlamentares,

    jurdicas, representativas da opinio pblica e dos prprios

    indgenas. Dada visibilidade que as questes indgenas

    assumiram na mdia nacional, mesmo os associados que no

    lidam com a temtica indgena frequentemente expressam suas

    expectativas quanto manifestao da entidade em assuntos

    que integram a pauta das notcias cotidianas.

    diferena de outras comisses e grupos de trabalho criados

    pela ABA, muitas vezes voltados para a abertura e consolidao

    de um dilogo entre os prprios antroplogos sobre um tema

    1 Coordenador da Comisso de Assuntos Indgenas/ABA.

  • 13

    especfico, a atuao da CAI est sobretudo voltada para fora,

    para a opinio pblica e para as esferas de deciso, trazendo para

    a ateno e cogitao destas instncias os conhecimentos que

    os antroplogos, em suas redes de interlocuo (frequentemente

    interdisciplinares e sensveis aos problemas vivenciados pelas

    coletividades pesquisadas), acumularam nos seus trabalhos de

    campo junto a povos indgenas especficos e nos seus estudos

    sobre legislao, prticas jurdicas e administrativas.

    Nesse sentido a CAI integrada atualmente por mais de uma

    dezena de antroplogos de diferentes regies do pas, que em

    sua diversidade refletem a dinmica da produo cientfica e das

    redes de articulaes relacionadas aos direitos e reivindicaes

    indgenas. A heterogeneidade caracterstica de suas aes

    expressa com nitidez os desafios e a complexidade da pesquisa

    em antropologia indgena no pas.

    Em uma perspectiva histrica possvel observar como

    a CAI/ABA ampliou o seu raio de atuao, vindo inicialmente de

    uma funo exclusivamente crtica e de denncia, junto opinio

    pblica, de atos e polticas governamentais que contrariavam

    os interesses dos cidados. Agia assim, sobretudo durante

    os governos militares, semelhana de outras entidades da

    sociedade civil (como SBPC, OAB, ABI, etc), como uma qualificada

    caixa de ressonncia, desse modo muito contribuindo para a

    retomada democrtica ocorrida no pas.

    Nas ltimas dcadas, porm, com o processo de retomada das

    rotinas democrticas na sociedade brasileira, a CAI veio a estabelecer

    uma pauta mais positiva de interlocuo com organismos nacionais e

    internacionais, inclusive colaborando em iniciativas governamentais

    de superior interesse pblico (como o caso do convnio com

    a Procuradoria Geral da Repblica (PGR) e a participao de

    antroplogos no processo de reconhecimento das terras indgenas).

    Dentro desse quadro assume grande importncia o debate

    sobre a construo da UHE de Belo Monte e suas repercusses

  • 14

    para as populaes indgenas e ribeirinhas que vivem naquela

    regio. importante destacar as gestes e contatos realizados

    pela ABA junto Funai, ao Congresso Nacional e Secretaria Geral

    da Presidncia da Repblica.

    Lamentavelmente, porm, o governo brasileiro, tendo

    como seu nico articulador e porta-voz o Ministrio de Minas e

    Energia, operou em total sintonia com os interesses do consrcio

    de empresas contratadas para a execuo do empreendimento,

    impondo um cronograma acelerado de trabalhos, inteiramente

    avesso discusso das dimenses sociais e ecolgicas, cruciais

    em um projeto de tal envergadura.

    A pouca receptividade dos escales superiores diretamente

    encarregados do assunto UHE Belo Monte levou a que a CAI

    continuasse a fomentar o debate exclusivamente atravs de foros

    em congressos e reunies cientficas, como ocorreu na SBPC, na

    Anpocs e na RBA (este ltimo evento registrado inteiramente em

    vdeo e disponibilizado amplamente por meio do site da ABA),

    manifestando-se oficialmente atravs de notas e uma grande

    quantidade de entrevistas concedidas ao longo dos anos de 2011 e

    2012 pelo Coordenador e por membros da CAI a rdios, televises

    e jornais sobre este assunto. No site da ABA foi criada desde ento

    e est sendo permanentemente realimentada uma sesso com

    notcias relativas ao empreendimento de Belo Monte. No foi

    registrada, porm, qualquer resposta ou abertura ao dilogo por

    parte das autoridades governamentais.

    ....

    Alguns documentos transcritos a seguir, todos eles

    disponveis no site da ABA, permitem delinear uma breve

    cronologia das aes e disputas relacionadas construo de

    Belo Monte, dando conta do cuidadoso acompanhamento que a

    CAI deu a esta questo.

    J em 01 de novembro de 2009, a Comisso de Assuntos

    Indgenas da ABA emitira, ainda na gesto presidida pelo

  • 15

    antroplogo Carlos Caroso, uma nota pblica sobre a Hidreltrica

    de Belo Monte, na qual alertava a opinio pblica e as autoridades

    mximas do governo brasileiro para a precipitao com que tem

    sido conduzida a aprovao do projeto, dentro de uma estratgia

    equivocada e que no d a devida ateno aos dispositivos legais.

    A prosseguir assim, pondera o documento, o governo estar

    permitindo que seja configurada uma situao social explosiva

    e de difcil controle, o empreendimento podendo acarretar em

    consequncias ecolgicas e culturais nefastas e irreversveis.

    Nesta ocasio j a nota chamava a ateno para trs aspectos

    fundamentais:

    1. estudos realizados por uma Comisso de Especialistas

    alertavam que os impactos sobre os povos indgenas da

    regio no se limitavam de maneira alguma chamada rea

    diretamente afetada, mas iriam atingir seriamente os recursos

    ambientais e as condies de vida e bem-estar de outras

    terras indgenas, situadas fora daquela faixa estrita. Nas terras

    indgenas Paquiamba, Arara da Volta Grande/Maia, Juruna Km

    17, Apyterewa, Arawet, Koatinemo, Karara, Arara, Cachoeira

    Seca e Trincheira Bacaj habitam diversas coletividades cujos

    modos de vida e culturas podero receber impactos negativos,

    sem mencionar os indgenas que esto nas cidades e o registro

    tambm da presena de ndios isolados. At aquele momento

    e pior, at hoje! sequer tais impactos foram adequadamente

    dimensionados.

    2. estudos tcnicos conduzidos por especialistas contratados

    pela prpria Funai resultaram em um parecer que atrelava a

    viabilidade da obra ao cumprimento, entre outras, de trs

    condicionantes bsicas: a) definio de uma vazo mnima

    (hidrograma ecolgico) que garanta a sobrevivncia dos

    peixes e quelnios e a navegabilidade das embarcaes dos

    povos indgenas que ali vivem; 2) que sejam apresentados

    estudos sobre os impactos previstos no rio Bacaj, beira

  • 16

    do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente sofrer graves

    alteraes (que deveriam ser mais bem analisadas); 3) que

    sejam estabelecidas garantias efetivas de que os impactos

    decorrentes da presso antrpica sobre as terras indgenas

    sero devidamente controlados.

    3. segundo o Parecer Tcnico no 21/CMAM/CGPIMA/FUNAI Anlise

    do Componente Indgena dos Estudos de Impacto Ambiental,

    de 30 de setembro de 2009, sero atradas para a regio pelo

    menos 96 mil pessoas, o que agravar em muito a presso sobre

    os recursos naturais das Terras Indgenas (TIs), os quais, diga-

    se de passagem, j so crticos na regio por conta de outras

    obras previstas, como a pavimentao da Transamaznica

    BR-163 e a construo da linha de transmisso de Tucuru

    a Jurupari. O aumento populacional que o empreendimento

    provocar tambm afetar as comunidades indgenas porque

    vai incentivar um consequente aumento da pesca e caa ilegal,

    da explorao madeireira e garimpeira, de invaso s TIs e de

    transmisso de doenas.

    ....

    Durante o ano de 2010, novos fatos vieram agravar ainda mais

    o quadro geral de perspectivas para a regio. Em 01 de fevereiro

    de 2010, o Presidente do Ibama emitiu uma licena ambiental

    parcial, subordinada ao cumprimento de 40 condicionantes,

    dentre as quais a apresentao de manifestao da Funai,

    atestando a aprovao dos programas voltados aos indgenas e

    demais condies elencadas no parecer tcnico acima citado.

    Apesar dessas recomendaes, at o presente momento no se

    configurou o atendimento destas condicionantes.

    Em abril de 2010, a Relatoria Nacional de Direitos Humanos

    e Meio Ambiente, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos,

    Econmicos, Sociais e Ambientais (Plataforma DHESCA), observou

    que o projeto atual da usina de Belo Monte contm graves falhas

    e impactos irreversveis sobre a populao que vive s margens do

  • 17

    rio Xingu, particularmente os ribeirinhos e indgenas. A mais grave

    violao aos direitos humanos detectada durante a Misso foi a

    no realizao das Oitivas Indgenas, obrigatrias pela legislao

    brasileira e pela Conveno 169 da OIT, ratificada pelo Brasil

    em 2002 [...]. Apesar de os milhares de indgenas e 24 grupos

    tnicos da Bacia do Xingu afirmarem publicamente que no

    foram, em nenhum momento, ouvidos durante o licenciamento

    de Belo Monte, a Funai atestou previamente a viabilidade da

    usina hidreltrica mesmo havendo necessidade de estudos

    complementares, que poderiam vir a concluir o contrrio, e insiste

    que estes grupos teriam sido ouvidos. O direito constitucional de

    realizao de Oitivas Indgenas foi sumariamente violado (p. 2).

    Em abril de 2010, o Ministrio Pblico Federal ajuizou Ao

    Civil Pblica na 9a Vara da Justia Federal no Estado do Par,

    arguindo a falta de regulamentao do artigo 176 da Constituio

    Federal: 1o A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o

    aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste

    artigo somente podero ser efetuados mediante autorizao ou

    concesso da Unio, no interesse nacional, por brasileiros ou

    empresa constituda sob as leis brasileiras e que tenha sua sede

    e administrao no Pas, na forma da lei, que estabelecer as

    condies especficas quando essas atividades se desenvolverem

    em faixa de fronteira ou terras indgenas. (Constituio Brasileira,

    Art. 176). Em direo semelhante, h uma outra Ao Pblica que

    denunciava irregularidades graves na emisso da licena prvia,

    constatadas no Parecer Tcnico emitido pelo Instituto Brasileiro

    do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama) (no

    114/2009 COHID/CGENE/DILIC/IBAMA.23/11/2009), dentre as quais

    a ausncia de anlises aprofundadas das questes indgenas.

    Em 15 de setembro de 2010, o Relator Especial da Organizao

    das Naes Unidas sobre a situao dos direitos humanos e

    liberdades fundamentais dos povos indgenas, James Anaya,

    observou que dada a magnitude do projeto Belo Monte e seus

  • 18

    potenciais efeitos sobre as populaes indgenas, necessria

    a realizao de consulta adequada a estes povos para obter um

    consenso sobre todos os aspectos que os atingem (Human

    Rights Council Fifteenth Session. Report by the Special Rapporteur

    on the situation of human rights and fundamental

    freedom of indigenous people, James Anaya, A/HRC/15/37/Add.1,

    p. 35, pargrafo 53).

    Em 03 de dezembro de 2010, durante o Encontro de Cincias

    Sociais e Barragens, realizado na Universidade Federal do Par, em

    Belm, caciques e lideranas dos Povos Indgenas Arara e Juruna

    da Volta Grande do Xingu, Kayap Metuktire, Txukarrame do

    Parque Indgena do Xingu e Gavio da Montanha divulgaram uma

    nota pblica reafirmando a posio contrria construo de Belo

    Monte e solicitando ao Presidente da Repblica do Brasil respeito

    pelos Povos Indgenas e pelas leis brasileiras que os amparam.

    Josinei Arara, presente no Encontro, ratificou a disposio do seu

    Povo para ir guerra e se necessrio morrer para impedir esta

    barragem. Nesta ocasio, o Cacique Raoni pediu que, em nome da

    paz, no seja construda a barragem de Belo Monte

    Em 20 de dezembro de 2010, em vdeo gravado, Jos Carlos e

    Josinei Arara informaram que jamais foram ouvidos e consultados

    pela Funai quanto aos chamados condicionantes indgenas

    includos na Licena Prvia de Belo Monte. Ambos ratificam a

    falta de conhecimento de aes relativas ao cumprimento das

    condicionantes e reiteram a absoluta falta de participao dos

    indgenas nos processos relativos ao licenciamento da obra.

    Em 11 de janeiro de 2011, a Funai, em cumprimento de sua

    misso de proteo aos ndios isolados, veio a emitir portaria de

    interdio de uma rea, denominada Ituna/Itat, entre os rios

    Xingu e Bacaj, a 50 km da rea do projeto da Usina Hidreltrica

    Belo Monte. L foram confirmadas notcias sobre a presena

    de ndios sem contatos pacficos e regulares com os regionais,

  • 19

    bem como sem a proteo de equipes tcnicas da Funai. O que

    evidencia claramente o grau de desconhecimento das autoridades

    (e inclusive dos organismos tcnicos) sobre a regio e confere

    s iniciativas de acelerao do empreendimento um carter

    particularmente nocivo e dramtico.

    Poucos dias depois, o Ibama, atravs de um ato administrativo

    aparentemente rotineiro, veio a conceder permisso para o

    desmatamento de 238,1 hectares destinados instalao do

    canteiro de obras, de alojamentos de trabalhadores e abertura de

    estradas (Autorizao de Supresso de Vegetao no 501/2011).

    Em 20 de janeiro de 2011, a Funai, em lacnicos dois

    pargrafos, afirmou no haver bice para emisso da Licena

    Instalao-LI das obras iniciais do canteiro de obras da UHE

    Belo Monte, considerando a garantia de cumprimento das

    condicionantes.

    Tal pudica ressalva, aqui grifada, e que jamais foi cumprida

    (fato que a Funai, alis, no poderia desconhecer!), vem a tomar

    uma outra forma no pargrafo seguinte. A o Ibama, caracterizado

    como rgo licenciador, solicitado a colaborar com a Funai nas

    aes de comunicao e proteo da Terra Indgena Paquiamba,

    observada a situao de vulnerabilidade que esta poder ser

    submetida (Ofcio no 013/2011/GAB-FUNAI). Que extraordinria

    cautela e leveza para lembrar que a TI Paquiamba est situada

    no limite da rea de instalao do mencionado canteiro!

    Em 26 de janeiro de 2011, o presidente substituto do Ibama

    concedeu a Licena de Instalao (no 770/2011), autorizando a

    instalao do canteiro, alojamentos para trabalhadores, abertura de

    estradas e outras obras de infraestrutura da construo, novamente

    acompanhada de condicionantes. E, mais grave, apoiado na

    inexistncia de bice da Funai, no faz qualquer meno especfica

    s condicionantes referentes aos Povos Indgenas.

    Por outro lado, a Associao dos Povos Indgenas Juruna

    do Xingu km 17 (APIJUX Km 17), a Associao do Povo Indgena

  • 20

    Arara do Meia (ARIAM), juntamente a dezenas de organizaes e

    associaes da sociedade civil, em 27 de janeiro de 2011, assinaram

    uma nota de repdio concesso da Licena de Instalao, na

    qual responsabilizam o Governo Brasileiro por qualquer gota de

    sangue que venha a ser derramada nesta luta.

    Em 28 de janeiro de 2011, a Coordenao das Organizaes

    Indgenas da Amaznia Brasileira enviou carta Presidente do

    Brasil, denunciando a postura negligente e desrespeitosa do

    Governo brasileiro, a cooptao de indgenas e reafirmando a

    disposio de lutar ao lado dos Povos Indgenas do Xingu.

    ....

    Em 07 de fevereiro de 2011, a ABA, j tendo como presidente

    a antroploga Bela Feldman-Bianco, promoveu em articulao

    com a Universidade de Braslia o seminrio A hidroeltrica de

    Belo Monte e a questo indgena. Ao final da reunio, a Comisso

    de Assuntos Indgenas da ABA elaborou uma nota pblica cuja

    concluso julgamos pertinente colocar aqui.

    A compreensvel resistncia dos indgenas, que foram

    at agora desconsiderados enquanto parte do planejamento

    e do processo decisrio, poder deflagrar conflitos de grande

    monta, onde a vida dos prprios indgenas e de funcionrios

    governamentais estaro em risco, bem como o patrimnio

    e a segurana de terceiros podero ser tambm duramente

    atingidos. Novas campanhas difamatrias contra os direitos

    indgenas podero alimentar-se de acontecimentos deplorveis

    que resultam do aodamento, omisso e descumprimento das

    normas legais cabveis.

    Devemos aqui reiterar dois pontos essenciais abordados

    naquele documento. Primeiro, fundamental observar que os

    encaminhamentos e decises relativas UHE de Belo Monte

    esto descumprindo uma disposio legal, a Conveno 169,

    amplamente acatada no plano internacional e j incorporada

    pela legislao brasileira a de que as populaes afetadas

  • 21

    sejam adequadamente informadas sobre o empreendimento

    e todas as suas consequncias, exigindo-se que sejam

    antecipadamente consultadas e segundo procedimentos

    legtimos e probos.

    Segundo, as condicionantes estabelecidas pelos pareceres

    tcnicos da Funai e do prprio Ibama precisam ser rigorosa e

    imediatamente atendidas, antes que o empreendimento venha

    a passar a fases mais avanadas de viabilizao. Isto deveria ser

    verificado por avaliadores autnomos.

    Cabe voltar assim a alertar a opinio pblica e as autoridades

    mximas do governo brasileiro para o descaso e a precipitao

    com que tem sido conduzida a aprovao e implementao do

    projeto, dentro de uma estratgia equivocada e perigosa de criar

    supostos fatos consumados sem levar em conta os dispositivos

    legais e as ponderaes tcnicas.

    A prosseguir desta maneira, o empreendimento poder trazer

    consequncias ecolgicas e culturais nefastas e irreversveis,

    configurando para o Governo Federal uma situao social

    explosiva e de difcil controle. Alm de, no cenrio internacional,

    colocar o pas na contra mo do respeito aos direitos das

    populaes indgenas, como tambm de outros segmentos

    afetados igualmente por grandes projetos.

    ....

    Ao longo deste mesmo ano de 2011, em uma outra nota

    pblica divulgada pela Comisso de Assuntos Indgenas atravs

    do Informativo da ABA no 07/2011 (vide http://www.abant.org.

    br/news/show/id/130), o tema da consulta prvia foi retomado e

    aprofundado:

    H uma grande distncia entre ser informado e consentir,

    bem como no se pode confundir um procedimento de oitiva com

    uma simples comunicao aos indgenas sobre os resultados de

    um estudo de impacto ambiental conduzido anteriormente.

  • 22

    Est fora de questo, evidentemente, o trabalho desenvolvido

    pelas equipes de tcnicos da Funai e especialistas por ela

    convidados, que estiveram na regio participando de reunies com

    os indgenas com o propsito de informar-lhes sobre a UHE de Belo

    Monte e seus impactos por ora dimensionados. Cabe igualmente

    destacar a importncia e seriedade dos levantamentos e estudos

    realizados com vistas ao estabelecimento de mecanismos

    compensatrios e de mitigao dos impactos e da formulao de

    um Plano Bsico Ambiental tendo em vista estas populaes e que

    respondam a suas reais necessidades e dimenso dos impactos

    previstos. Isto faz parte indiscutivelmente das atribuies legais

    do rgo indigenista e est definido por normas vigentes.

    Contudo, imagens amplamente divulgadas pela internet (vide

    http://www.youtube.com/watch?gl=BR&v=zdLboQmTAGE) e

    no desmentidas pela Funai nem pelos tcnicos que ali aparecem

    deixam claro que as comunidades indgenas continuam a

    sentir-se ameaadas e pouco esclarecidas, formulando dvidas

    e questes que os tcnicos no tm condies de responder nem

    possuem legitimidade para dar garantias em nome do governo ou

    dos empreendedores. Em todos os registros vistos reiterada a

    preocupao dos indgenas em afirmar que no esto concordando

    com o empreendimento. Insistem ademais na necessidade de

    realizao de uma oitiva no Congresso Nacional (e no em audincias

    pblicas realizadas na regio) e destacam a importncia de

    receberem em suas aldeias a visita de autoridades com efetivo poder

    de mando, entre estas uma comisso oficial de parlamentares.

    Na perspectiva de tais comunidades, no resta dvida de que elas

    no se sentem adequadamente informadas, muito menos ouvidas. A

    simples presena de equipes tcnicas da Funai nas aldeias, informando

    as comunidades indgenas sobre os estudos precedentes de impacto

    ambiental, no pode ser equiparada ao exerccio de oitivas.

    Considerando a barreira lingustica, a peculiaridade de sua

    organizao poltica e a existncia de fortes conflitos intertnicos,

  • 23

    as audincias pblicas no se configuraram de modo algum em

    espaos que permitissem a livre manifestao dos indgenas e

    que lhes propiciassem os esclarecimentos especficos de que eles

    se ressentem. A demanda dos indgenas quanto a uma oitiva por

    parte do Congresso Nacional ou um dilogo com as autoridades

    superiores no foi nem sequer considerada.

    Em diversas ocasies, a ABA tem manifestado sua posio de

    que o cumprimento do cronograma das obras no pode sobrepor-

    se s obrigaes que o Estado tem quanto ao respeito aos direitos

    de pessoas e coletividades que l habitam (algumas desde pocas

    imemoriais) nem pode transformar em letra morta as normas de

    proteo ao meio ambiente (que embasaram o estabelecimento

    dos 40 condicionantes formulados pelo Ibama, a grande maioria

    dos quais se encontra ainda muito longe de ser atendida).

    Para corrigir esta defasagem que poder ser letal para as

    comunidades afetadas que a Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos (CIDH), da Organizao dos Estados Americanos,

    solicitou ao governo brasileiro a paralisao temporria do

    empreendimento, para que os direitos indgenas sejam respeitados

    e as condicionantes transformadas em realidade, e para que estas

    populaes sejam devidamente informadas e consultadas.

    ....

    Um outro aspecto bastante preocupante de Belo Monte

    decorre da entrega de funes assistenciais ao consrcio

    responsvel pela construo do empreendimento (UHE),

    correspondendo a uma distorcida privatizao de atribuies

    pblicas que inviabiliza o livre exerccio de cidadania pelas

    populaes ali residentes.

    Em relatrio resultante de visita feita regio em 2011,

    apresentado pelo conselheiro Perclio de Sousa Lima Neto,

    vice-presidente do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da

    Pessoa Humana (CDDPH), da Secretaria de Direitos Humanos,

    ficou claramente constatada a ausncia absoluta do Estado, o

  • 24

    consrcio vindo a desempenhar at mesmo funes assistenciais e

    de interesse pblico. O flagrante desequilbrio entre o consrcio, as

    populaes ribeirinhas e as etnias indgenas s poder constituir-

    se em fator de agravamento dos problemas sociais locais.

    A concesso de um poder e domnio quase absolutos sobre

    partes do territrio nacional a empreendimentos privados,

    sem uma adequada fiscalizao por parte das autoridades

    governamentais, que possam assegurar o cumprimento das

    leis e o respeito aos direitos dos cidados ali estabelecidos,

    uma prtica injustificada e condenvel. Os encarregados da

    execuo fsica das obras no podero jamais por eles mesmos

    assumir responsabilidades pblicas e dar solues legtimas

    aos conflitos acarretados pelo prprio empreendimento, uma

    vez que no objetivam o cumprimento das leis e de polticas

    pblicas nem muito menos assegurar os direitos das populaes

    subalternizadas.

    A estratgia de atuar como um rolo compressor, impondo

    estratgias de fatos consumados, reflete nitidamente isso,

    vindo a combinar-se com o fechamento de quaisquer canais de

    consulta aos interessados diretos e de debate com os estudiosos

    e a opinio pblica sobre os rumos do empreendimento.

    ....

    No ano seguinte, em 2012, a CAI promoveu ainda outras

    atividades e discusses pblicas, organizando fruns de

    debates sobre Belo Monte durante a XXVIII Reunio Brasileira de

    Antropologia, ocorrida em So Paulo, em julho de 2012; na Reunio

    Anual da SBPC, em Goinia, em julho de 2012; no Encontro da

    Anpocs, em Caxambu, em outubro de 2012.

    O investimento de maior flego, no entanto, foi a organizao

    de um volumoso e completo Dossi sobre Belo Monte, integrado

    por 18 textos escritos por estudiosos e especialistas de diferentes

    formaes, que analisam sob mltiplos aspectos os impactos

    das obras sobre as populaes indgenas da regio. Tal material,

  • 25

    que compe este livro, ser divulgado atravs de um e-book, em

    coleo editada pela ABA.

    Embora alguns dos textos sejam inditos (pelo menos

    na verso ora divulgada), a preocupao principal no foi em

    produzir trabalhos novos, mas sim em reunir artigos e estudos

    que possibilitassem uma compreenso mais abrangente e

    aprofundada do empreendimento, frequentemente transformado

    pela mdia em um caricatural confronto entre aqueles que

    promovem o desenvolvimento do pas e aqueles que, teimosa e

    ingenuamente, apenas priorizam a proteo ao meio ambiente.

    Os textos que compem este livro vo muito alm dessa

    polaridade simplificadora, constituindo um esforo original e

    pioneiro de reflexo e interpretao sobre os mltiplos aspectos

    da UHE Belo Monte.

    Ao tomar como foco uma questo crucial na vida do Brasil

    contemporneo, a Comisso de Assuntos Indgenas da ABA

    pretende contribuir para a compreenso da histria recente

    deste pas e a reflexo crtica sobre as escolhas realizadas pelos

    tomadores de decises oficiais, as consequncias da resultantes,

    bem como sobre as outras possibilidades e alternativas a

    rigorosamente silenciadas e ignoradas.

    Contrariamente s expectativas dos poderes coloniais,

    da elite nacional dominante e dos tecnocratas que servem a

    diferentes senhores e operam em diversas escalas, os povos

    indgenas continuam a resistir, lutando pela preservao de seus

    territrios, pela autonomia de suas formas socioculturais e pelo

    fortalecimento de suas identidades.

    Apesar da enorme desigualdade de foras, em duas ocasies

    precisas, em julho de 2012 e em abril de 2013, os indgenas

    chegaram a ocupar o canteiro de obras da empresa e paralisar

    temporariamente a construo da hidroeltrica, demonstrando

    uma incrvel capacidade de organizao poltica e engendrando

    para si mesmos um poder de barganha inteiramente indito.

  • 26

    No primeiro caso, isso implicou na construo de um amplo

    arco de alianas entre povos da regio do rio Xingu, algo que

    antes parecia completamente impossvel, uma vez que ainda se

    mantm muito vivas as memrias sobre guerras e conflitos que

    os opunham uns aos outros no passado. Na segunda ocupao,

    realizada pelos Mundurucu do rio Tapajs, estes se deslocaram

    por centenas de quilmetros de suas terras at Belo Monte,

    visando criar com o governo alguma forma de interlocuo quanto

    construo de hidroeltricas projetadas em sua prpria regio.

    Neste sentido, este Dossi, alm de sua importncia

    enquanto anlises e depoimentos sobre um momento histrico

    de antagonismo entre os grandes projetos de hidroeltricas e

    os povos indgenas ali residentes, levanta tambm subsdios

    importantes para duas grandes questes que ocuparo nos

    prximos anos a ateno da opinio pblica.

    O primeiro relativo conceituao e operacionalizao da

    consulta prvia e esclarecida, um debate ainda em seu comeo no

    Brasil e em diversos pases da Amrica (como Bolvia, Colmbia e

    Mxico, para citar apenas alguns). O segundo o debate pblico,

    democrtico e transparente, embasado em dados e anlises

    qualificadas e apoiadas em pesquisas cientficas, sobre as formas

    mais adequadas de manejo e ocupao da Amaznia, levando em

    considerao as peculiaridades de seu ecossistema e os direitos e

    projetos de futuro das populaes ali residentes.

    Antes de encerrar esta Introduo, gostaria de agradecer

    imensamente aos autores dos artigos aqui reunidos, que embarcaram

    conosco na construo deste livro, bem como antroploga Clarice

    Cohn, que juntamente comigo assumiu a tarefa de organizar este

    Dossi. Por fim, agradeo tambm s antroplogas Bela Feldman-

    Bianco, presidente da ABA na gesto 2011/2012, perodo no qual,

    contando com seu permanente estmulo, este trabalho foi iniciado

    e em grande parte realizado, e Carmen Rial, presidente da ABA no

    binio 2013/2014, que deu total apoio a continuidade dessa iniciativa.

  • 27

    A PRODUO DE UM DOSSI SOBRE UM PROCESSO EM CURSO

    Clarice Cohn

    Este dossi esta sendo montado desde 2010, quando foi

    realizado o leilo para a construo da usina hidreltrica de Belo

    Monte. Nesta ocasio, foram convidados especialistas em grandes

    obras e processos de licenciamentos; antroplogos que trabalhavam

    com povos indgenas que sofrem impacto da usina, muitos deles j

    envolvidos com os Estudos de Impacto Ambiental Componente

    Indgena para estes povos; servidores da FUNAI local; as especialistas

    que elaboravam o Plano Bsico Ambiental Componente Indgena;

    e representantes dos povos indgenas. O dossi rene os textos

    daqueles que responderam nossa chamada inicial; a FUNAI local

    entendeu fazer parte do processo e por isso estar impossibilitada

    de apresentar uma reflexo analtica sobre ele, e as especialistas

    que estavam formulavam o Plano Bsico Ambiental Componente

    Indgena PBA, depois batizado de Plano Mdio Xingu PMX

    durante 2010 entenderam que, sendo este um documento publico,

    no seria necessrio um artigo especfico sobre ele, sugerindo

    alternativamente a publicao de um resumo do documento feito

    por terceiros, o que acabou no sendo feito, sendo aqui publicado

    apenas textos autorais, e no compilaes ou resumos.

    O dossi conta a histria recente do processo de licenciamento

    e dos impactos da UHE Belo Monte na questo indgena, inclusive

    pelo lapso de tempo de preparao de cerca de trs anos. No

    foi fcil para ningum escrever algo em curso, e o dossi sempre

    parecia ter um tom de algo ultrapassado; mas achamos que,

    sabendo-se uma histria em curso, ela era tambm uma histria

    que precisava ser contada, e que o momento era este.

  • 28

    Belo Monte no novidade s o o projeto de engenharia

    e o processo poltico que possibilita hoje sua realizao. Ele

    continuidade de um projeto da poca da ditadura, conhecido

    por Karara, que foi abortado pela presso internacional e pelo

    grande encontro dos povos indgenas em Altamira em 1989.

    A definio dos povos indgenas como impactados foi sendo

    negociada durante todo o processo de licenciamento, e continua

    sendo. O projeto de Karara impactaria a montante da barragem,

    mas a impossibilidade poltica de aprovar o projeto tornou-o uma

    hidreltrica por fio dgua. Isso mudou toda a geopoltica dos

    impactos: ao invs de construir um reservatrio, planejou-se a

    mudana do curso do rio, desviando suas guas desde a barragem

    do Stio Pimental at o municpio de Belo Monte, onde ficaro as

    turbinas principais, o que d o potico nome ao empreendimento.

    Com isto, povos que no seriam antes diretamente impactados

    passaram a s-lo, e o impacto maior passou a ser no mais a

    inundao, mas a seca dos rios que banham as terras indgenas.

    Assim, os estudos que haviam se voltado montante da barragem

    teriam que ser refeitos na sua jusante na Volta Grande do Xingu.

    Estes tiveram inicio em 2006 para os Juruna e os Arara da Volta

    Grande do Xingu. No, porm, para os Xikrin cuja Terra Indgena

    banhada pelo Rio Bacaj, porque se considerou que os impactos

    no Xingu j definiria a situao deste afluente. Foi s em 2009

    que se pde fazer o estudo de impacto com os Xikrin, com dados

    primrios, que foi nomeado Estudos Complementares do Rio Bacaj,

    uma condicionante da obra definida pela FUNAI. Neste momento

    os Estudos de Impacto para os povos indgenas considerados no

    diretamente impactados foram realizados com dados secundrios.

    Isto valia para os Xikrin do Bacaj, os Parakan, Arawet e Asurini

    no rio Xingu, os Karara, Arara do Laranjal e Arara da Cachoeira Seca

    no rio Iriri. O mximo que se conseguiu na poca foi a passagem de

    coordenadores de membros das equipes de estudos pelas aldeias

    desses povos para colher seus depoimentos e vises dos impactos.

  • 29

    Enquanto na Volta Grande do Xingu os estudos transcorreram

    por quatro anos, contando com diversos encontros dos indgenas

    com as equipes e uma metodologia participativa, o primeiro Estudo

    de Impacto do rio Bacaj foi feito apenas em 2009, contando com

    rpidas visitas s aldeias em 2010. Os Estudos Complementares do

    Rio Bacaja foram realizados em apenas um ciclo hidrogrfico, o que

    mantm os Xikrin insatisfeitos com o resultado.

    Neste percurso, tambm o Plano Bsico Ambiental

    Componente Indgena estava sendo elaborado sob a coordenao

    de importantes antroplogos e indigenistas e por grupos de

    especialistas em 10 eixos de atuao. Em fevereiro de 2010, foi

    feita uma primeira apresentao das atividades propostas a

    representantes das etnias impactadas. As coordenadoras do

    PBA fizeram, ento, em companhia da Norte Energia S/A e Funai/

    CGGAM, visitas s aldeias explicando as propostas do PBA. O que

    ocorreu depois pegou, acho, muitos de surpresa os indgenas no

    reconheceram o PBA e no se sentiram devidamente representados

    e consultados sobre ele. Nesse meio tempo, um agravante: o Plano

    Emergencial, que instituiu uma soma de R$ 30.000,00 mensais

    por aldeia em forma de uma lista de compras que era revista pela

    FUNAI e adquirida pela Norte Energia S.A., sendo o transporte das

    mercadorias de responsabilidade das lideranas das aldeias. Este

    Plano, convnio firmado entre a Norte Energia S/A e a FUNAI,

    valeu at dezembro de 2012, tendo inmeras consequncias,

    como a extenso da estadia na cidade por mais tempo, o maior

    trnsito aldeia-cidade, o aumento de consumo de produtos

    industrializados, o acirramento do alcoolismo, e conflitos intra e

    interaldeias, levando abertura de novas aldeias e a conflitos e

    desconfianas intertnicas. Havia ainda o conflito entre o PBA

    proposto em forma de projetos nos 10 eixos, tal como educao,

    sade, gesto territorial, atividades produtivas, saneamento, etc.

    e o Plano Emergencial, que fornecia recursos s aldeias, mesmo

    que indiretamente, j que as lideranas reclamavam tanto da

    burocracia para conseguir comprar o que queriam as listas de

  • 30

    compras realizadas nas aldeias, revistas pela FUNAI e repassadas

    para o escritrio local da Norte Energia S.A. por meio de radiogramas

    e ofcios, a falta de prestao de contas quanto, e principalmente,

    de que este repasse de dinheiro, mesmo que indireto, tinha um fim

    previsto, e que a FUNAI insistia mesmo enquanto repassando

    estes recursos que as compensaes e mitigaes pelo impacto

    no podiam ser feitas por meio de indenizaes e no poderia ser

    monetria, quando o que praticavam era uma verso viciada disto.

    No primeiro semestre de 2011, equipes foram contratadas para

    acompanhar as compras pela FUNAI, e para transformar a lista

    de compras em projetos culturais e de atividades produtivas, um

    processo difcil e que acabou praticamente fracassando.

    Os indgenas interromperam as obras diversas vezes nestes dois

    anos em que elaboramos esta publicao, sempre pedindo melhor

    conhecimento do PBA Indgena e as oitivas indgenas, que nunca

    foram feitas. O PBA acabou sendo aprovado pela FUNAI em agosto

    de 2012, fruto da negociao da desocupao do canteiro de obras

    por nove etnias locais. Hoje se desdobra em Planos Operacionais, e o

    excelente trabalho tcnico desenvolvido por profissionais altamente

    capacitados corre o risco de ser perdido na pressa da construo

    e pelo descompromisso dos responsveis pelo empreendimento.

    Assim, a tardia aprovao pela FUNAI corre o risco de ser apenas

    nominal, e os dez eixos de propostas que correspondiam as

    condicionantes da obra, o risco de nunca sarem do papel.

    Os antroplogos tambm se engajaram neste processo. Alguns

    colaboram com os estudos de impacto ambiental, mesmo se vendo

    com questes ticas importantes, e apresentam aqui os resumos de

    seus estudos e anlises de sua elaborao e da recepo pelos povos

    indgenas. Colaboraram tambm na elaborao do PBA Componente

    Indgena, seja compondo equipes de formulao de propostas,

    seja acompanhando os povos indgenas com quem trabalham nas

    reunies em que estas eram apresentadas e discutidas, a convite da

    coordenao das equipes de elaborao do documento. Em outros

  • 31

    contextos, em reunies com a Reunio Brasileira de Antropologia,

    realizada bianualmente pela Associao Brasilciera de Antropologia,

    e os Encontros Anuais da Associao Nacional de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais ANPOCS, reuniram-se para a redao de

    moes aprovadas nas assembleias, e em Grupos de Trabalho,

    Fruns e Mesas discutindo os laudos periciais antropolgicos, o

    oficio dos antroplogos, as polticas indigenistas e os processos de

    licenciamento ambiental. A Comisso de Assuntos Indgenas da ABA

    CAI/ABA redigiu, debateu e aprovou moes, manteve um fluxo

    de informaes pela pgina da ABA, organizou um Frum sobre Belo

    Monte e a Questo Indgena na Reunio Brasileira de Antropologia de

    2012, disponibilizado em vdeo no site da ABA, e escreveu uma srie

    de documentaes, alm de organizar e publicar este dossi.

    Durante algum tempo, muitos de ns embalou sonhos de

    parar Belo Monte, deixar a gua fluir pela Volta Grande do Xingu e

    pelo Rio Bacaj, manter fauna, flora, cheias, vazantes, ribeirinhos,

    indgenas e o povo do Xingu em geral livres desse pesadelo, mas

    esta a maior obra do Processo de Acelerao do Crescimento

    PAC e, portanto, muito difcil de combater. uma pena que ela

    esteja sendo realizada afrontando, violando e revogando todos os

    direitos indgenas que este pas se orgulha de ter conquistado no

    processo de redemocratizao.

    Oferecemos aos leitores interessados uma parte dessa

    histria, que ainda no chegou ao fim e esperamos que nossos

    piores pesadelos no se realizem.

  • 32

    PARTE 1: UMA VISO GERAL

  • 33

    PLANEJAMENTO S AVESSAS: OS DESCOMPASSOS DA AVALIAO DE IMPACTOS SOCIAIS NO BRASIL

    Marcelo Montao

    INTRODUO: DEFICINCIAS ESTRUTURAIS NA APLICAO DOS INSTRUMENTOS DE POLTICA AMBIENTAL

    O quadro geral de aplicao da poltica ambiental brasileira,

    estabelecido formalmente h 30 anos com a Poltica Nacional

    do Meio Ambiente (Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981), indica

    claramente a opo efetuada pelo Estado brasileiro em compor um

    sistema articulado de instrumentos e agentes institucionais que

    atuam orientados pelos objetivos estabelecidos notadamente,

    em busca da compatibilizao do desenvolvimento econmico

    com a qualidade ambiental no pas.

    Sendo assim, empregando terminologia utilizada por Souza

    (2000), uma srie de instrumentos de apoio deve fornecer suporte

    e subsdios aos instrumentos de ao, que por sua vez trariam

    materialidade prpria poltica ambiental brasileira justamente

    por viabilizarem a concretizao daquilo que se deseja em termos

    ambientais em nosso pas.

    Devido natureza de bem comum (na concepo

    consolidada por Hardin (1968)) daquilo que se costuma referenciar

    como a questo ambiental (RIBEIRO, 2001) e nos moldes do que

    preconiza uma leitura terica da sustentabilidade em seu sentido

    amplo, a insero de aspectos ambientais e sociais em processos

    de tomada de deciso demanda a necessidade de trocas e balanos

    entre objetivos de naturezas distintas, buscando o equilbrio entre

    beneficiados e atingidos.

  • 34

    Tendo em vista seu objeto especfico, as decises associadas

    poltica ambiental trazem consigo uma srie de efeitos prticos

    que, mediados pela ao do Estado, afetam a implementao

    de polticas de desenvolvimento. Para determinados grupos,

    a interveno do Estado notadamente aquela associada ao

    disciplinamento dos impactos causados por empreendimentos

    e atividades compreendida como desnecessria uma vez

    que os impactos negativos causados seriam compensados pelos

    benefcios da implantao dos empreendimentos.

    Verifica-se, portanto, um embate entre foras que se posicio-

    nam como adversrias em torno da conduo do modelo de de-

    senvolvimento implementado no pas, desequilibrado pelo discurso

    acomodativo que orienta a prtica do desenvolvimento sustent-

    vel nos dias atuais. No caso brasileiro, esse embate tem colocado

    em evidncia a existncia de um abismo entre os to propagados

    pilares da sustentabilidade (de ordem ambiental, social e econ-

    mica) no que diz respeito capacidade de influncia que cada um

    exerce sobre as decises tomadas. Afinal, as alteraes ambientais

    e sociais provocadas pelas atividades humanas so ponderadas

    como trade-offs diante da perspectiva de crescimento econmico,

    legitimando deste modo a prevalncia do vis econmico nas deci-

    ses associadas implantao de empreendimentos.

    Entre outros exemplos vale citar as aprovaes, sob

    protestos da sociedade civil organizada, comunidade cientfica

    e instituies de meio ambiente, das construes das barragens

    para as usinas hidreltricas de Trs Gargantas (China) e Belo

    Monte (Brasil). Recentemente, em funo de sucessivas crises

    econmicas, muitos pases desenvolvidos adotaram medidas

    semelhantes para a flexibilizao dos critrios ambientais a serem

    aplicados na avaliao de projetos de desenvolvimento.

    Ao lado do desmantelamento da legislao ambiental

    brasileira, tristemente retratada nas recentes alteraes do

    Cdigo Florestal brasileiro, a constatao da ineficincia da

    Avaliao de Impactos Ambientais (AIA) como fruto da viso

  • 35

    cartorial que se insiste em aplicar ao instrumento em nosso pas

    causa extrema preocupao, sobretudo quando se verifica a

    semelhana com modelos de governana que tm como diretriz

    a diminuio dos entraves ao desenvolvimento,1 procurando-se

    eliminar qualquer tipo de conflito relacionado ao aproveitamento

    das oportunidades de crescimento econmico (ou a recuperao

    econmica, em tempos de crise).

    Reflexo imediato deste modelo, os impactos ambientais

    (dos quais derivam boa parte dos impactos sociais) passam

    a ser analisados precariamente, reduzidos ao seu potencial

    para mitigao (ou compensao), o que limita sobremaneira a

    efetividade da avaliao de impacto naquilo que apresentado

    como a sua principal contribuio ao processo decisrio

    estimular a incorporao de aspectos ambientais na concepo

    de projetos de empreendimentos ou atividades. A partir da,

    instrumentos importantes no contexto da poltica ambiental

    brasileira, como o caso do licenciamento ambiental e dos

    padres de qualidade ambiental, tornam-se vtimas frequentes de

    melhorias implementadas no sentido de flexibilizar o processo

    decisrio, agilizando as decises em torno das autorizaes

    para implantao e operao dos projetos de desenvolvimento.

    O licenciamento ambiental tem sido apontado como o vilo do

    crescimento econmico, por se tratar de um instrumento lento,

    oneroso e ineficaz.2 Aos poucos, a soluo para este problema

    1 Nesse sentido, emblemtica a declarao do ex-presidente Lula efetuada em novembro de 2006, durante evento de inaugurao de usina de biodiesel em Barra do Bugres (MT), de que o meio ambiente, quilombolas e ndios, o Ministrio Pblico e as ONGs seriam entraves ao crescimento econmico do pas, numa aluso demora na emisso de licenas ambientais por parte dos rgos de meio ambiente (ONGs... 2006).

    2 Tambm emblemtica, se compreendida luz da nota anterior, a nomenclatura utilizada pelo Ministrio do Meio Ambiente, para programas de otimizao dos procedimentos de licenciamento implementados no incio das aes ligadas ao Programa de Acelerao do Crescimento Destrava Ibama e Destrava II.

  • 36

    associada simplificao dos procedimentos de avaliao de

    solicitaes de licena ambiental. A eficcia do instrumento passa a

    ser avaliada pelo tempo de emisso de licenas, e os rgos de meio

    ambiente assumem metas a serem cumpridas um determinado

    nmero de licenas a serem expedidas ao longo do ano.

    A AVALIAO DOS IMPACTOS SOCIAIS NO BRASILDesde a aprovao da US National Environmental Policy Act

    (Nepa) em 1969, marco legal para a aplicao da Avaliao de

    Impacto Ambiental (AIA) nos EUA e que se tornou referncia para

    boa parte da legislao em outros pases, encontra-se institudo

    um referencial instrumental para avaliao de impactos que inclui

    o estudo do ambiente humano. H uma controvrsia, porm, com

    relao ao alcance de suas regulamentaes posteriores para a

    incluso de impactos sociais provocados por empreendimentos nas

    avaliaes dos pedidos de autorizao (por exemplo, as diretrizes

    preliminares emitidas em 1973, pelo Conselho de Qualidade

    Ambiental dos Estados Unidos, para elaborao dos estudos de

    impacto ambiental, bem como as diretrizes finais emitidas em

    1978, no mencionam formalmente o termo avaliao de impacto

    social; tal fato veio a ocorrer apenas em 1986 com a reviso das

    diretrizes para a avaliao de impacto ambiental, que passam a

    empregar o termo impactos socioeconmicos).

    Segundo Burdge (2002), a ausncia de uma demanda

    explcita fez com que, no incio da aplicao da Nepa, os impactos

    sociais fossem includos de modo superficial nos estudos

    elaborados por firmas e consultorias contratadas pelas agncias

    federais norte-americanas os engenheiros e arquitetos que

    trabalhavam na elaborao dos estudos ambientais reduziam

    todo o universo social descrio de indicadores demogrficos

    e socioeconmicos, sem muita preocupao com a previso

    dos impactos sobre as populaes e comunidades. Para piorar,

    nenhum recurso estava disponvel [para o financiamento de

    pesquisas] para a organizao das descobertas sobre os impactos

  • 37

    sociais reveladas pelas avaliaes iniciais (BURDGE, 2002, p. 7), o

    que contribuiu para o baixo prestgio da Avaliao de Impactos

    Sociais (AIS) dentre os instrumentos de avaliao de impacto.

    Basicamente, os impactos sociais associados a projetos de

    desenvolvimento tm sido descritos por meio de indicadores

    demogrficos e socioeconmicos, sem efeito substancial para

    a tomada de deciso. Sendo assim, no se utiliza plenamente

    do potencial da avaliao de impactos sociais, como destacado

    por Barrow (2010, p. 293), para identificar e esclarecer as

    causas dos conflitos ambientais pelo uso de recursos naturais

    e para estabelecer alguma medida para evitar ou mitigar

    antecipadamente tais efeitos. Tal fato sugere que as avaliaes

    de impacto voltadas para aes estratgicas e para projetos de

    desenvolvimento no tm se beneficiado da capacidade da AIS

    de antecipar e evitar impactos negativos e, por conseguinte,

    antecipar e evitar conflitos com certos grupos de interesse que,

    num limite, poderiam inviabilizar a deciso tomada.

    Um efeito decorrente dessa situao pode ser ilustrado pela

    ocorrncia regular de conflitos e decises judiciais em torno de

    projetos submetidos AIA,3 especialmente quando envolvem, por

    um lado, demandas (legtimas) por desenvolvimento econmico

    e, por outro, demandas (tambm legtimas) pela manuteno de

    elementos tradicionais (simblicos), laos culturais e uma srie de

    valores associados a questes identitrias e de comunidades.

    De acordo com Carpenter (1999), no havia na Nepa e,

    para alguns, ainda no h o compromisso de incluir o meio

    socioeconmico nos estudos de impacto, sendo o foco nos meios

    fsico e bitico. A varivel social teria sido includa a partir de uma

    srie de decises judiciais, que exigiam o balanceamento dos

    impactos ambientais em relao a fatores econmicos e sociais

    por meio de uma anlise sistemtica.

    3 A legislao brasileira estabelece que empreendimentos com potencial para causar significativa degradao ambiental devem ser licenciados com base na aplicao dos mtodos e procedimentos da AIA, da qual os Estudos de Impacto Ambiental constituem um de seus elementos principais.

  • 38

    As definies atualmente aceitas para a avaliao dos

    impactos sociais apontam para uma forte correlao com outros

    instrumentos de avaliao de impactos, embora o instrumento em

    si no esteja limitado a este universo de aplicao. De acordo com

    Vanclay (2003, p. 6), a AIS no deveria ser compreendida apenas

    como sendo a tarefa de previso de impactos sociais dentro de

    um processo de avaliao de impactos. Ela incluiria os processos

    de anlise, monitoramento e gesto das consequncias sociais,

    propositais ou no, decorrentes de intervenes planejadas,

    bem como as alteraes sociais derivadas, com o propsito de

    se alcanar um meio ambiente mais sustentvel e equilibrado em

    termos biofsicos e humanos.

    A experincia recente em torno da avaliao de impactos

    relacionada a projetos de desenvolvimento (e especialmente ao

    que o governo federal tem chamado de projetos estruturantes

    como grandes obras de infraestrutura para gerao de energia,

    transportes, habitao e saneamento) tem demonstrado

    uma deficincia crnica na AIA e no licenciamento ambiental

    praticados no pas, em que o tempo para a tomada de deciso

    alongado pela ocorrncia de conflitos intensos e demandas

    judiciais. No incorreto afirmar que os efeitos negativos dessa

    deficincia so agravados, sobretudo, pelas dificuldades de

    incorporar adequadamente a anlise dos impactos sociais no

    processo decisrio referente aprovao de empreendimentos.

    No caso brasileiro, avaliaes efetuadas por Montao,

    Utsunomiya e Souza (no prelo) para a verificao dos modos

    como as variveis sociais so integradas aos estudos de impacto

    ambiental demonstram que estas se mantm restritas ao

    escopo definido pela legislao federal (ainda que, de fato, a

    legislao apenas indique uma diretriz bsica para a realizao

    de diagnsticos para o meio socioeconmico, que deve ser

    complementada em funo das especificidades de cada caso).

    Alm disso, para um universo amostral de 27 processos de

    licenciamento, no fica evidente uma convergncia entre as

    variveis empregadas nos diferentes estudos de impacto,

    sugerindo uma baixa aprendizagem entre eles.

  • 39

    Tais resultados permitiram aos autores apontar uma

    deficincia importante nas avaliaes de impacto, relacionada

    fraca relao entre os estudos de diagnstico e os impactos

    avaliados. Essa deficincia fica ainda mais evidente ao se verificar

    que a anlise dos impactos sobre o meio antrpico no Brasil no

    realizada de modo estruturado, o que implica em avaliaes

    dispersas e superficiais, basicamente associadas a variveis

    socioeconmicas e demogrficas, o que raramente se constitui

    como as questes centrais que deveriam ser investigadas.

    Trata-se, portanto, de um problema significativo por

    um lado, a baixa capacidade dos profissionais responsveis

    pela elaborao e anlise dos estudos de impacto ambiental de

    identificar e incorporar a real dimenso dos aspectos sociais e

    culturais e, de outro, institucionalmente, a baixa capacidade,

    ao longo das etapas subsequentes da Avaliao de Impacto

    Ambiental, de identificar as deficincias apresentadas para os

    impactos sociais e de solicitar estudos mais consistentes, o que

    faz com que os impactos sociais dos projetos de desenvolvimento

    sejam, via de regra, avaliados de modo parcial e insatisfatrio ,

    contribuindo para o surgimento de conflitos e demandas judiciais

    em torno da aprovao dos projetos.

    Assim como descrito por Burdge (2002), pode-se dizer

    que a AIS no Brasil tambm padece do fenmeno descrito como

    substituio pelo envolvimento do pblico, ou seja, em processos

    que se apresentam como participativos, a avaliao dos impactos

    sociais termina por ser relegada a um segundo plano, alegando-

    se que a participao do pblico em discusses relacionadas

    aos empreendimentos possa suprir a necessidade de estudos

    estruturados e metodologicamente consistentes voltados para

    a identificao de alteraes em processos sociais e culturais

    provocadas pela implantao de empreendimentos e anlise de

    suas consequncias. No caso brasileiro, a situao ainda mais

    drstica, considerando-se que a insero da participao pblica

    no planejamento das polticas e projetos de desenvolvimento algo

    incipiente ficando restrita participao coletiva em audincias

  • 40

    pblicas para discusso dos resultados dos estudos ambientais,

    ou por meio de outros canais formalmente institudos (mas que

    normalmente carecem de representatividade e legitimidade,

    como os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente e a

    atuao da sociedade civil organizada).

    Ainda que seja possvel reconhecer avanos substantivos em

    um nmero expressivo de projetos de desenvolvimento a partir da

    contribuio do pblico em processos participativos, a inexistncia

    de um caminho formalmente estruturado requisitos legais e

    diretrizes para a sua elaborao para a aplicao sistemtica

    da AIS nas avaliaes de impacto no permite compreender como

    razovel a opo de se utilizar a participao social como um

    mecanismo de incorporao dos impactos sociais, sobretudo por

    estar sujeita a uma srie de acasos.

    Os processos de avaliao de impacto ambiental tm sido

    duramente criticados quando ameaam (ainda que tecnicamente

    fundamentados) estender o cronograma de aprovao de

    empreendimentos considerados estratgicos (ou estruturantes)

    para as polticas governamentais de desenvolvimento. Vide,

    por exemplo, as recentes polmicas em torno das avaliaes

    de impacto de projetos associados ao Programa de Acelerao

    do Crescimento, notadamente com relao construo de

    hidreltricas e projetos de infraestrutura (rodovias, aeroportos,

    saneamento, habitaes) e a espantosa movimentao dos

    ltimos anos para o incremento da produo de etanol no pas.

    A trajetria da AIS no Brasil segue o processo descrito por

    Burdge (2002, 2003), com sua insero no quadro formal da

    Avaliao de Impacto Ambiental, ausncia de elementos efetivos para

    regulamentao de aspectos metodolgicos e aplicados, consolidao

    de uma viso instrumental do processo de avaliao de impactos

    (fundamentada em aspectos descritivos de dados demogrficos

    e socioeconmicos), no observncia de conceitos e princpios

    internacionais, e baixa expressividade da pesquisa acadmica.

    O Brasil inclui a varivel social em suas AIAs, mas no aplica

    de modo sistemtico a AIS pela ausncia de diretrizes formais. O

  • 41

    alto nvel de conflitos e demandas judiciais em torno de decises

    favorveis a empreendimentos indica ser este um problema a

    ser enfrentado, procurando-se melhorara insero da dimenso

    social nas avaliaes de impacto voltadas para empreendimentos,

    mediante o fortalecimento da AIS como elemento de suporte s

    decises, amparada por princpios e diretrizes que orientem sua

    aplicao e lhes assegure efetividade.

    PLANEJAMENTO S AVESSAS: O EXEMPLO DE BELO MONTEDurante a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio

    Ambiente e Desenvolvimento (do ingls United Nations

    Conference on Environment and Development Unced) realizada

    no Rio de Janeiro, em 1992, 191 pases se comprometeram a

    preparar estratgias nacionais para alcanar o desenvolvimento

    sustentvel (UNCED, 1992). Dez anos depois, na Cpula Mundial

    sobre Desenvolvimento Sustentvel, realizada no ano de 2002

    em Johanesburgo, o compromisso foi reafirmado e a busca pela

    implementao plena do desenvolvimento sustentvel se tornou

    foco de prioridade internacional de forma oficial por meio dos

    protocolos resultantes (LITTLE, 2003).

    Nessa ocasio foi enfatizado o papel de processos efetivos

    de planejamento e de formulao de polticas, que possibilitem a

    integrao dos objetivos das diferentes dimenses das polticas

    existentes como condio crucial para o cumprimento do acordo

    internacional em se buscar o desenvolvimento sustentvel. Essa

    necessidade ficou evidente a partir da comprovao de que o

    tratamento desarticulado da questo ambiental no significava

    apenas um obstculo para a manuteno da qualidade ambiental,

    como, ao contrrio, deixava o estado do meio seriamente afetado

    pelos efeitos derivados das polticas setoriais (ALAHUHTA et al., 2010).

    A partir dessas constataes, a agenda poltica de vrios

    pases se voltou para a reformulao de seus sistemas de

    planejamento com vistas integrao, tanto horizontal (entre

    os diferentes setores e domnios polticos) quanto vertical (entre

  • 42

    atores polticos e diferentes escalas de governana) (COUNSELL et

    al., 2006; STEAD; MEIJERS, 2009).

    No caso do Brasil, cuja tradio de planejamento voltado

    para polticas de desenvolvimento remete a uma profunda

    setorializao de temas e instncias decisrias, tal integrao

    se coloca como uma realidade distante, ainda que reconhecida

    como necessria. No plano ambiental, sobretudo, a constatao

    da baixa capacidade de integrao, pela via do planejamento,

    de objetivos e metas estabelecidos para diferentes planos e

    programas de desenvolvimento deve ser compreendida com

    preocupao, uma vez que constitui barreiras absolutamente

    impermeveis penetrao de aspectos ambientais e sociais

    como elementos norteadores de polticas pblicas.

    O quadro apresentado pelo Brasil, sintetizado na Figura 1,

    pode ser descrito como a seguir.

    Avaliao desarticulada entre polticas, planos e programas e os projetos de desenvolvimento: a falta de alinhamento

    e integrao no planejamento tem como desdobramento

    imediato a desassociao entre os objetivos das diferentes

    aes estratgicas, dificultando a insero da varivel

    ambiental de modo compatvel com o nvel estratgico, o que

    resulta muitas vezes em repeties de avaliaes ambientais e

    acmulo de questes a serem respondidas quando da anlise

    de projetos de empreendimentos;

    Dificuldades para avaliar impactos cumulativos/sinrgicos: a falta de avaliaes de impacto para os nveis superiores de

    deciso (por exemplo, na esfera de planos ou programas)

    mascara a existncia de impactos provocados por intervenes

    anteriores, que se acumulam ou interagem entre si;

    Anlise limitada de temas e alternativas: a inexistncia de uma cadeia estruturada de planejamento que antecipe a insero

    da varivel ambiental no processo decisrio implica no

    estabelecimento de objetivos que podem se mostrar conflitantes

  • 43

    com outros planos e programas, ainda que aparentemente

    estejam de acordo com a demanda do setor, fazendo com que a

    disposio para identificao e anlise de alternativas por parte

    dos planejadores seja drasticamente diminuda;

    Conflitos e interrupo do fluxo decisrio, como consequncia dos itens anteriores.

    Figura 1 Desarticulao entre nveis estratgicos de deciso e a aplicao

    dos instrumentos de poltica ambiental no Brasil (SI Sistemas de

    Informao; PQ Padres de Qualidade; UC Unidades de Conservao;

    AIA Avaliao de Impacto Ambiental; ZEE Zoneamento

    Ecolgico-Econmico; LA Licenciamento Ambiental).

    Compreendem-se, portanto, as origens do que chamamos

    de planejamento s avessas no Brasil. Trata-se de um processo

    de planejamento voltado para objetivos imediatos e que atendem

    a um setor/segmento especfico, sem integrao com os demais

    setores e muito menos com variveis de outra natureza que no

    as econmicas. Em decorrncia, e tendo em vista a necessidade

    de fornecer respostas ambientais a uma srie de instrumentos

    que (ainda) insistem em existir, eis que o aspecto acomodativo

    do desenvolvimento sustentvel convocado para validar os

    projetos de empreendimentos (sobretudo quando associados a

    elementos estruturantes do crescimento econmico do pas).

  • 44

    Em outras palavras, o que se tem como referncia a

    sensao de permissividade em termos ambientais e sociais

    quando da implantao de projetos de desenvolvimento. A meta,

    portanto, deixa de ser a preveno e antecipao dos efeitos

    causados pelos empreendimentos, por meio da modificao e

    aperfeioamento dos projetos, e passa a ser a correo, por meio

    da mitigao e compensao, daqueles efeitos que tenham sido

    identificados nos estudos ambientais. Mesmo nos casos em que o

    conflito passa a ser mediado na esfera pblica, aps a interveno

    dos atingidos, a soluo tipicamente encaminhada no implica em

    alteraes substanciais nos projetos de empreendimento (afinal,

    considerando toda a cadeia de decises j tomadas anteriormente,

    compreende-se no haver disposio por parte dos tomadores de

    deciso para revises e modificaes em seus projetos).

    Tome-se como exemplo o caso do licenciamento

    ambiental da usina hidreltrica de Belo Monte, localizada no

    estado do Par, s margens do rio Xingu, considerado bastante

    singular como elemento ilustrativo das discusses efetuadas

    no presente texto. A despeito de toda a magnitude e inegvel

    relevncia no quadro estratgico para o setor eltrico do pas, a

    desarticulao demonstrada pelos planejadores responsveis

    por sua implantao e o descaso com que foram tratadas as

    questes ambientais e sociais chegam a ser inacreditveis, dada

    a quantidade de decises desencontradas que cercam o histrico

    deste empreendimento.

    No que diz respeito ao escopo do presente texto, vale

    destacar a falta de planejamento verificada em elementos

    essenciais ao projeto. A comear pelos custos e capacidade de

    gerao de energia estimados para o empreendimento, tomem-

    se dois extratos de notcias veiculadas pela imprensa ao longo do

    ano de 2010, s vsperas do encerramento da primeira licitao

    para definio dos consrcios responsveis pela construo e

    operao da usina.

    Custos: No se sabe ao certo quanto custar. O governo fala em R$ 19,6 bilhes; investidores estimam que os custos sero

  • 45

    de at R$30 bi (fonte: MAGALHES, 2010);

    Potncia: A capacidade de gerao de energia a partir do potencial instalado muito mais baixa do que a mdia das

    hidreltricas. [...] Nas pocas de seca, Belo Monte tem como

    garantir apenas 40% de sua capacidade (MAGALHES, 2010).

    Como se verifica, a baixa capacidade de planejamento no

    afeita apenas s questes ambientais e sociais. Eis que o modelo

    de planejamento s avessas tem se mostrado eficiente, no sentido

    de assegurar a continuidade do processo mesmo sem que se

    tenham definidos os elementos fundamentais para a implantao

    do projeto. Segundo esse modelo, depositam-se as fichas na

    viabilizao a posteriori de tudo aquilo que se mostrar essencial

    para o convencimento dos atores envolvidos com a deciso

    tomada: aos investidores, declaraes de confiana e artifcios

    empregados para assegurar a viabilidade dos investimentos; aos

    rgos ambientais, elaborao de planos e programas de mitigao

    e compensao para os impactos a serem causados; sociedade e

    aos atingidos, o discurso do desenvolvimento sustentvel.

    Belo Monte est fora dos padres do investimento privado, diz EPE.

    O presidente da estatal EPE (Empresa de Pesquisa Energtica), Maurcio Tolmasquim, reconheceu hoje que a usina de Belo Monte, licitada neste ano, est fora do padro do investimento privado, justificando a pesada participao de estatais e fundos de penso no projeto. uma usina que se voc [Estado] largar no vai sair, disse Tolmasquim, em referncia ao gigantismo do projeto. A usina ter capacidade de gerao de 11.000 MW e ser a segunda maior do pas (SOARES, 2010).

    Eletrobras compra energia livre de Belo Monte para garantir financiamento.

    Eletrobras confirmou nesta tera-feira que garantiu a compra da energia destinada ao mercado livre da usina hidreltrica de Belo Monte como forma de garantir que sejam

  • 46

    fechados os contratos de financiamento para a obra. [...] Segundo o diretor financeiro e de relaes com investidores da Eletrobras, Armando Casado, a gente realmente j garantiu a compra de energia... uma operao normal e pretendemos colocar essa energia no mercado, afirmou o executivo em teleconferncia com analistas sobre o resultado da Eletrobras do segundo trimestre de 2010 (REUTERS, 2010).

    Governo monta plano sustentvel para regio de Belo Monte

    A regio de integrao do Xingu, que abrange dez municpios do Par, onde ser construda a usina hidreltrica de Belo Monte, ter um plano de desenvolvimento sustentvel, que vai incluir aes na rea de regularizao fundiria, licenciamento ambiental, capacitao da populao local, ampliao de escolas e universidades pblicas, universalizao do acesso energia eltrica e melhoria dos transportes rodovirio e hidrovirio. O objetivo do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentvel do Xingu preparar a regio para os grandes impactos das obras de infraestrutura que esto sendo feitas, especialmente da usina de Belo Monte. um conjunto de polticas pblicas para dar conta do crescimento populacional que a regio vai ter, explica o subchefe adjunto de Anlise e Acompanhamento de Polticas Governamentais da Casa Civil, JohanessEck (CRAIDE, 2010).

    Em termos do licenciamento ambiental, surgem manifestaes

    de exigncias de novos estudos (complementares, como estudos

    etnogrficos para caracterizao das populaes indgenas sujeitas

    aos efeitos do empreendimento; novos estudos hidrolgicos para de-

    terminao da vazo histrica do rio Xingu; estudos geomorfolgicos

    para identificao das alteraes sobre a dinmica de transporte de

    sedimentos etc.), manifestaes da sociedade e comunidade cient-

    fica contestando determinados pontos do projeto, questionando at

    mesmo sua viabilidade tcnica, demandas judiciais solicitando a in-

  • 47

    terrupo do processo. Por sua vez, a estrutura institucional pres-

    sionada a dar o respaldo necessrio, e o faz com singular desfaatez:

    Minc afirma que licenciamento no atrapalha PACO ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou

    hoje que o licenciamento ambiental no problema para o andamento do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC). No h nada significativo do PAC parado por causa de licenciamento ambiental. Ele acrescentou que em matria de licenciamento do PAC, licenciamento ambiental deixou de ser o problema. Minc disse, desde que assumiu o ministrio, h um ano, a principal preocupao tem sido agilizar e simplificar o processo de licenciamento ambiental, mas aumentando o rigor. (MINC..., 2009).

    Lula quer agilizar licenciamento ambiental [...]Em reunio ministerial na manh desta tera-feira, o

    presidente Luiz Incio Lula da Silva pediu aos seus ministros que simplifiquem as regras de licenciamento ambiental para dar agilidade realizao de obras de infraestrutura. [...] O ministro Alexandre Padilha (Relaes Institucionais) no deu detalhes desses projetos e disse que esto ainda sendo trabalhados pelo governo. Quanto s licenas ambientais, afirmou que as regras em cada ministrio so diferentes, o que atrasa sua concesso. A proposta que os ministros apresentem at setembro propostas. Vamos fazer reviso de procedimentos internos para que se acelere o licenciamento ambiental, disse (IGLESIAS, 2010).

    CONSIDERAES FINAISO presente texto buscou discorrer sobre as bases para

    a ineficincia da avaliao de impactos ambientais e sociais

    como instrumentos de mediao das decises relacionadas

    implantao de empreendimentos e atividades no pas, tomando

    como ponto de partida a realizao de algumas reflexes

    amparadas em elementos conceituais que descrevem o campo

    de atuao da poltica ambiental brasileira.

  • 48

    Procurou-se evidenciar a existncia de uma questo

    estrutural por trs dos embates vivenciados cotidianamente no

    universo de aplicao dos instrumentos de poltica ambiental,

    relacionada ao tratamento absolutamente desbalanceado

    que dado aos aspectos econmicos, ambientais e sociais

    como variveis intervenientes no planejamento de projetos de

    desenvolvimento.

    Tal questo ilustrada de modo claro pela observao do

    quadro geral do licenciamento ambiental no pas em que atuam,

    por um lado, os instrumentos de apoio ao processo decisrio

    orientados para o disciplinamento do uso do territrio e seus

    recursos naturais, voltados para interesses difusos e objetivos

    de longo prazo, construdos com base em princpios como

    descentralizao e participao da sociedade e, por outro, a

    legitimao da supremacia do aspecto econmico no processo

    decisrio a partir do discurso acomodativo que orienta o

    paradigma do desenvolvimento sustentvel nos dias atuais.

    No caso brasileiro, a situao assume ares mais dramticos,

    dada a vulnerabilidade demonstrada pelas instituies que

    integram o processo decisrio em relao a artifcios que venham

    legitimar um modelo de planejamento focado na viabilizao

    a posteriori das decises tomadas. Em outras palavras, com o

    desmantelamento da estrutura ambiental no Brasil, assistimos

    precarizao daquilo que um dia foi comemorado como uma

    conquista de toda a sociedade e que, agora, a torna refm de um

    malfadado jogo de soma negativa.

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