biografias problemas com os biografados e com...

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A questão do público e privado se coloca de imediato nesse emba- te. Brigas judiciais e processos abertos por biografados ilustres re- cheiam o noticiário. As obras citadas são biografias não autori- zadas que, de algum modo, desagradaram os biografados a ponto de impetrarem man- dados judiciais para que fossem tiradas do mercado. O que incomodou Roberto Carlos não foi uma possível calúnia conti- da no livro, mas ver relatados certos acontecimentos de sua vida que, em sua opinião, pertence à sua privaci- dade.O impasse foi resolvido dia 27 de abril quando um acordo judicial foi fechado no 20 a Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. A editora se comprometeu a recolher os 11 mil exemplares que estavam à venda e entregá-los ao cantor que desistiria do pedido de indenização. O autor não gostou do acordo e irá contestá-lo. “O livro não fala ape- nas do Roberto, mas conta parte da história da MPB brasileira. Passei 15 anos debruçado sobre ele e que- ro vê-lo circular novamente”, justi- fica o historiador. Este não é o primeiro caso de bio- grafia que chega aos tribunais. Ruy Milhares de livros têm sido retirados das prateleiras e jogados num depó- sito para que seja decidido seu desti- no e não cheguem às mãos de ávidos leitores: serão armazenados, recicla- dos ou incinerados. Esta é a cena de- senhada pelo recente processo, de grande repercussão na mídia, envol- vendo o o historiador Paulo César de Araújo e o cantor Roberto Car- los. Araújo e a Editora Planeta lança- ram em novembro de 2006 a biogra- fia Roberto Carlos em detalhes, que não agradou o biografado pois não se insere no selo “autorizada”. Em 2007, o cantor entrou com dois pro- cessos judiciais, um civil e um crimi- nal, acusando autor e editora de in- vasão de privacidade, ofensa à honra e uso indevido de imagem. Exigiu, ainda, indenização por danos mo- rais e materiais. National Museum of Women in the Arts, em Washington, onde estão dez cartas manuscritas da pintora, fotos inéditas e afrescos de sua vida cotidiana com Rivera e seus amigos. Cuba, Filipinas e Canadá também homenageiam Frida com mostras de pinturas e fotografias. Dois espetá- culos teatrais foram montados em- São Paulo: Frida – uma mulher de pedra dá luz à noite da companhia Taanteatro e Yo soy o que a água me deu ou Frida, criada pela atriz e bai- larina Maura Baiocchi. EXTENSA BIBLIOGRAFIA Frida é uma das pintoras mais prestigiadas do mercado internacional de arte. Mais de cem livros foram escritos sobre ela, muitos sobre seus auto-retratos que compõe um terço de toda a sua obra: “Eu pinto-me porque sou o as- sunto que conheço melhor”, diz ela em seu diário. A personalidade sin- gular de Frida foi levada para as telas do cinema. O mais conhecido, mas não necessariamente melhor, é Fri- da ( 2002) da diretora Julie Taymor. Os pontos fortes do filme, entretan- to, são as narrativas visuais, a trilha sonora e a fotografia que consegue mostrar um pouco das cores e da energia presentes na obra de Frida. Para Lucia Vianna, Frida é um exemplo de artista que atingiu a consagração pelo mérito excepcio- nal de sua obra, mas também por sua personalidade: “com marcas de exo- tismo, ambigüidades e excentricida- de, Kahlo se destacou por sua vida incomum e pela capacidade de ser a artífice da imagem que queria per- petuar de si mesma”. Patrícia Mariuzzo 58 BIOGRAFIAS PROBLEMAS COM OS BIOGRAFADOS E COM SUAS FAMÍLIAS Paulo César Araújo teve seu livro sobre o cantor Roberto Carlos recolhido por ordem judicial Reprodução

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A questão do público eprivado se coloca deimediato nesse emba-te. Brigas judiciais eprocessos abertos porbiografados ilustres re-cheiam o noticiário.As obras citadas sãobiografias não autori-zadas que, de algummodo, desagradaramos biografados a pontode impetrarem man-dados judiciais paraque fossem tiradas domercado.

O que incomodou Roberto Carlosnão foi uma possível calúnia conti-da no livro, mas ver relatados certosacontecimentos de sua vida que, emsua opinião, pertence à sua privaci-dade.O impasse foi resolvido dia 27de abril quando um acordo judicialfoi fechado no 20a Fórum Criminalda Barra Funda, em São Paulo. Aeditora se comprometeu a recolheros 11 mil exemplares que estavam àvenda e entregá-los ao cantor quedesistiria do pedido de indenização.O autor não gostou do acordo e irácontestá-lo. “O livro não fala ape-nas do Roberto, mas conta parte dahistória da MPB brasileira. Passei15 anos debruçado sobre ele e que-ro vê-lo circular novamente”, justi-fica o historiador.Este não é o primeiro caso de bio-grafia que chega aos tribunais. Ruy

Milhares de livros têm sido retiradosdas prateleiras e jogados num depó-sito para que seja decidido seu desti-no e não cheguem às mãos de ávidosleitores: serão armazenados, recicla-dos ou incinerados. Esta é a cena de-senhada pelo recente processo, degrande repercussão na mídia, envol-vendo o o historiador Paulo Césarde Araújo e o cantor Roberto Car-los. Araújo e a Editora Planeta lança-ram em novembro de 2006 a biogra-fia Roberto Carlos em detalhes, quenão agradou o biografado pois nãose insere no selo “autorizada”. Em2007, o cantor entrou com dois pro-cessos judiciais, um civil e um crimi-nal, acusando autor e editora de in-vasão de privacidade, ofensa à honrae uso indevido de imagem. Exigiu,ainda, indenização por danos mo-rais e materiais.

National Museum of Women in theArts, em Washington, onde estãodez cartas manuscritas da pintora,fotos inéditas e afrescos de sua vidacotidiana com Rivera e seus amigos.Cuba, Filipinas e Canadá tambémhomenageiam Frida com mostras depinturas e fotografias. Dois espetá-culos teatrais foram montados em-São Paulo: Frida – uma mulher depedra dá luz à noite da companhiaTaanteatro e Yo soy o que a água medeu ou Frida, criada pela atriz e bai-larina Maura Baiocchi.

EXTENSA BIBLIOGRAFIA Frida é umadas pintoras mais prestigiadas domercado internacional de arte. Maisde cem livros foram escritos sobreela, muitos sobre seus auto-retratosque compõe um terço de toda a suaobra: “Eu pinto-me porque sou o as-sunto que conheço melhor”, diz elaem seu diário. A personalidade sin-gular de Frida foi levada para as telasdo cinema. O mais conhecido, masnão necessariamente melhor, é Fri-da ( 2002) da diretora Julie Taymor.Os pontos fortes do filme, entretan-to, são as narrativas visuais, a trilhasonora e a fotografia que conseguemostrar um pouco das cores e daenergia presentes na obra de Frida.Para Lucia Vianna, Frida é umexemplo de artista que atingiu aconsagração pelo mérito excepcio-nal de sua obra, mas também por suapersonalidade: “com marcas de exo-tismo, ambigüidades e excentricida-de, Kahlo se destacou por sua vidaincomum e pela capacidade de ser aartífice da imagem que queria per-petuar de si mesma”.

Patrícia Mariuzzo

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BIOGRAFIAS

PROBLEMAS COM OS BIOGRAFADOSE COM SUAS FAMÍLIAS

Paulo CésarAraújo teve seu livro sobreo cantorRoberto Carlosrecolhido porordem judicial

Reprodução

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Castro e Fernando Morais, jorna-listas e escritores consagrados pas-saram por situação semelhante. Emmaio de 2005, o livro de Morais Natoca dos leões, que conta a história daagência de publicidade W/Brasil,foi apreendido por determinaçãoda justiça goiana. Os acusados fo-ram impedidos de citar o trechoque gerou o processo e de comentaro caso publicamente, sob pena demulta de R$ 5 mil por comentáriofeito. Tal decisão foi fruto de umprocesso de calúnia movido pelodeputado federal Ronaldo Caiado(DEM-GO) ao ser citado na pági-na 301 do livro, apresentando a “es-terilização das mulheres como so-lução da superpopulação dos estra-tos inferiores da população, os nor-destinos”. Em outubro do mesmoano, porém, a publicação foi nova-mente liberada.Já Castro teve problemas com as fi-lhas do jogador de futebol Garrin-cha que é biografado em seu livroEstrela solitária – um brasileiro cha-mado Garrincha. As herdeiras dojogador entraram com um processode indenização por danos morais emateriais, por violação do direitode imagem, do nome, da intimida-de, da vida privada e da honra pa-terna. Em 2006, A Companhia dasLetras foi obrigada a pagar uma in-denização de 100 salários mínimosmais 5% sobre o valor total das ven-das. A obra, no entanto, pôde con-tinuar a venda.

OPINIÃO LEGAL Muitos biógrafos sedizem intimidados pelas decisõesjudiciais que impedem as biografiasde relatarem a história do nossopaís. Morais diz que vivemos um

período de censura de toga. Já paraAraújo, a Constituição Brasileira“parece ter sido feita por um Fran-kenstein”. Se de um lado ela permi-te a liberdade de expressão, do outrogarante o direito de imagem de umapessoa, impossibilitando que seconte sua história.No entanto, para o professor do De-partamento de Filosofia e TeoriaGeral do Direito da Universidade deSão Paulo (USP), Eduardo CarlosBianca Bittar, o pedido do cantorRoberto Carlos é consistente. O queocorre em casos assim é um conflitode direitos fundamentais estabeleci-dos pela Constituição. Alguns casosextremos desencadeiam conflitoscomo esse, no qual “a solução é sub-jetiva, depende da capacidade de ar-gumentação, de influência e de per-suasão de ambas as partes. O poderfinal de resolução é do juiz”, argu-menta Bittar.Os artigos de 11 à 21 do Código Ci-vil são, segundo Bittar, de caráter ab-soluto e transpassam a existência dapessoa. No caso de morte, os fami-liares se tornam partícipes legítimos,responsáveis legais por resguardar amoral e a imagem do ente morto. Is-to garante às filhas de Garrincha,por exemplo, o direito de questionaruma biografia que por ventura inva-da a privacidade do pai.O professor destaca, porém, que aquestão de invasão à privacidade deuma pessoa é algo relativo. Na práti-ca, analisa-se da seguinte maneira:quanto mais exposição uma pessoativer ao grande público, quantomaior e mais próximo for o seu con-tato com as multidões, menor é oseu direito de questionar essa inva-são; o inverso ocorre com a pessoa

que tenha uma vida de maior reco-lhimento e distância das massas.O resultado desses embates judi-ciais é deixar o mercado editorial re-ceoso com o investimento nesse gê-nero literário. Especula-se sobre apossibilidade de manuscritos bio-gráficos passarem por censuras pré-vias dentro das editoras, inclusivecom a contratação de advogados pa-ra analisarem aspectos legais. Outrotipo de censura cogitada é a do pró-prio autor, bastante nocivo ao exer-cício de escrever. De qualquer for-ma, Bittar adverte que uma decisãojudicial tomada isoladamente “nãoacarreta jurisprudência e não trazprejuízos ao mercado de biografias.Pois cada caso é analisado separada-mente”. A responsabilidade fica acargos dos nossos juízos. Neste as-pecto, Morais faz uma ressalva so-bre questões éticas que envolvem ojudiciário brasileiro. “No nossopaís, um juiz que hoje dá uma sen-tença como a do caso Roberto Car-los, no outro dia é preso por corrup-ção”, arremata.

Luiz Paulo Juttel

Ruy Castro: problemas com a família deseu biografado Garrincha

Divulgação/ FLIP

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