boltanski, luc; chiapello, Ève. o novo espírito do capitalismo

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    o novo esprito do capitalismo

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    o novo esprito do capitalismo

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    Lue Boltanski e Eve Chiapello

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    Traduo IVONE C. BENEDETTI

    Reviso tcnica BRASLIO SALLUM JR.

    ~ WI1 if martinsfontes

    SO P/lU LO 2009

  • NDICE

    Agradecimentos ................................. '" ...................................................... . Prlogo ....................................................................................................... .

    Um capitalismo regenerado e uma situao social degradada .............. .. A ameaa ao modelo de sociedade do ps-guerra e a perplexidade ideo-lgica ..................................................................................................... ..

    INTRODUO GERAL O esprito do capitalismo e o papel da critica

    1. O esprito do capitalismo .................................................................... . Uma definio mnima do capitalismo .................................................. . A necessidade de um espn'to para o capitalismo ................................... . D 'fi 't "t d 't I' e que e el o o espm o o capl a lsmo ........ ......................................... .. Os diferentes estados histricos do esprito do capitalismo ................... .. Origem das justificaes incorporadas no esprito do capitalismo .......... . As cidades como pontos de apoio nonnativos para construir justificaes .. O esprito do capitalismo legitima e restringe o processo de acumulao.

    2. O capitalismo e seus crticos ............................................................... . Efeitos da crtica sobre o esprito do capitalismo .... ............................... .. Provas de fora e provas legitimas ......................................................... . O papel da crtica na dinmica das provas .............. .............................. . Fonnas histricas da crtica ao capitalismo .......................................... .. Incompletude da crtica ............................................... ........................... . Modificaes do esprito do capitalismo que independem da crtica ...... .

    13 19 20

    25

    31

    35 35 38 43 49 52 55 58

    61 62 65 67 71 76 78

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    PRIMEIRA PARTE

    Emergncia de uma nova configurao ideolgica 81

    I. O DISCURSO EMPRESARJAL DOS ANOS 90 ............................................. . 83 1. Fontes de informao sobre o esprito do capitalismo ..................... . 83

    A literatura da gesto empresarial como 110rmatividade do capitalismo 83 Sobre os textos centrados 110 mobilizao dos executivos ........................ . 89

    2. Evoluo da problemtica da gesto empresarial dos anos 60 aos anos 90 .................................................................................................. . 91 Anos 60: em defesa da admillstrao por objetivos ............................... . 91 Anos 90: rumo ao modelo de rede de empresas ...................................... . 98

    3. Mudana nas formas de mobilizao ................................................ . 117 Anos 60: estmulo ao progresso, certeza nas carreiras ............................ . 117 Anos 90: realizao pessoal graas multiplicidade de projetos ............ . 121

    Concluso: A nova gesto empresarial respondendo a crticas ........... . 129

    lI. F01;:'\lAO DA CIDADE rOR PROJETOS ................................................ . 133 1. A cidade por projetos .......................................................................... . 138

    Princpio de julgmliellto e hierarquia dos seres na cidade por projetos .. ' 139 Formas de justia da cidade por projetos .............................................. .. ' 154 Antropologia e naturalidade da cidade por projetos ............................... . l(iO

    2. Originalidade da cidade por projetos ............................................... . 162 Em relao cidade inspirada ............................................................... . l(i2 Em relao cidade mercantil .............................................. ................. . 163 Em relao cidade da fama ................................................................. . 166 Em relao cidade domstica .............................................. ................. . 167 Em relao cidade industrial... .............................. .............................. . 170 Especificao do corpus dos anos 90 pela cidade por projetos ............... . 171

    3. Generalizao da representao em rede .......................................... . 174 Proliferao dos trabalhos sobre redes ................................................. ... . 174 A rede: do ilegtimo ao legtimo ............................................................. . 177 Observaes sobre a origem dos trabalhos acerca das redes ................... . 179 Naturalizao das redes lias ciucias sociais .......................................... . 186

    Concluso: Mudanas provocadas pelo novo esprito do capitalismo no plano mora1. ................................................................... . 189

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    Mudana da relao com o dinheiro e as propriedades .......................... 189 Mudana da relao com o trabalho................................. ..... ................. 192

    SEGUNDA PARTE

    Transformaes do capitalismo e desarmamento da critica 195

    m. 1968, CRlSE E RENOVAO DO CAPITALISMO ........................................ 197

    1. Anos crticos.......................................................................................... 199 Associao entre crtica social e crtica esttica ....................................... 199 Desorganizao da produo................................................................... 203 Reivindicaes........................................................................ ................. 206

    2. Reaes e respostas s crticas............................................................. 209 Primeira resposta em termos de crtica social......................................... 211 Segunda resposta em termos de crtica esttica .......... ............................. 218 A gerao 68 /10 poder: os socialistas e a flexibilidade ............................ 230

    Concluso: Papel da crtica na renovao do capitalismo ..................... 234

    IV. DESCONSTRUO DO MUNDO DO TRABALHO........ ............................. 239

    1. Extenso das transformaes em pauta.............................................. 240 Mudanas da organizao intema do trabalho....................................... 240 Transfomwes do tecido produtivo ........................................................ 242

    2. Transformaes do trabalho................................................................. 247 Precarizao do emprego ......................................................................... 247 Dualizao dos assalariados ............ .................. ............ ....... .................. 254 Resultado de um processo de seleo/excluso.... ............ ............. ............ 258 Reduo da proteo aos trabalhadores e retrocesso social...................... 270 Aumento da intensidade do trabalho sem mudana do salrio............... 272 Repasse dos custos trabalhistas para o Estado ........................................ 280

    V. ENFRAQUECIMENTO DAS DEFESAS DO MUNDO DO TRABALHO ............ 285

    1. Dessindicalizao.................................................................................. 286 Amplitude da dessir/dicalizao .............................................................. 287 Represso aos si11dicatos ............................................ ................... 292 Reestruturaes como f 011 te da dessi11dicnlizao .......................... 295 Co/no o nova gesto empresarialsc livrou dos sindicatos............. . 298

  • A ambiguidade paralisante dos novos dispositivos.. ....... ..... .... ........ ....... 300 Efeitos no previstos dos avanos legislativos... ... ..... ....... ... ...... ... ... ... ..... 303 O sindicalismo como vtima quase conivente da crtica esttica ..... ........ 306 O funcionamento sindical desfavorvel sindicalizao ........................ 309

    2. Questionamento das classes sociais ........................... ........................ 311 Representao da sociedade como conjunto de classes sociais no mbito de um Estado-nao ................................................................................ 312 Crise do modelo das classes sociais ......................................................... 316 Papel dos deslocamentos do capitalismo no processo de desconstruo das classes sociais.......................................................................................... 318 Efeito do questionamento das classes sociais sobre a crtica.................... 329 Efeito da descategorizao sobre as provas do trabalho.. ........ ...... .......... 332

    3. Efeitos dos deslocamentos do capitalismo sobre as provas regula-mentadas ............................................................................................... 333 Papel da categorizao na orientao das provas para a justia ............. 334 Deslocamentos e descategorizao: da prova de grandeza prova de fora .. 339 Identificao das novas provas e reconstituio de categorias de julga-mento ...................................................................................................... 342

    Concluso: O fim da crtica? .................................................................... 344

    TERCEIRA PARTE

    O novo esprito do capitalismo e as novas formas da crtica 349

    VI. RENASCIMENTO DA CRTICA SOCIAL .................................................. .. 351 1. O despertar da crtica social: da excluso explorao .................... . 353

    Das classes sociais excluso ................................................................ . 353 Ao humanitria .................................................................................. . 356 Novos movimentos sociais ..................................................................... . 358 Dificuldades da excluso como conceito crtico ....................................... . 361 Atitudes egostas num mundo conexionista .......................................... .. . 363 Explorao num mundo em rede ............................................................ . 369 A explorao das pessoas imveis pelas mveis em momentos de prova .. 375

    2. Rumo a dispositivos conexionistas de justia? .................................. . 383 Elementos de uma gramtica geral da explorao .. ................................ . 383 Condies para a instaurao da cidade por projetos ............................. . 387 Viso de conjunto das propostas para reduzir a explorao conexionista 392

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    Novos quadros para recCl1sear as contribuies .......... ............................ 394 Rumo a regras mais justas de remunerao ................ ............................ 397 Rumo igualdade das chances de 1I10bilidade ........................................ 405

    Concluso: O lugar do direito ................................................................. 414

    VII. PROVA DA CRTICA ESTTICA ................................ ............................ 417 1. Manifestaes de uma inquietao ..................................................... 419

    A anomia num mundo conexiOlsta............................................ ............ 419 Indicadores de anomia hoje..................................................................... 421

    2. Que libertao? .................... ... .............................................................. 423 A libertao oferecida pelo primeiro esprito do capitalismo ....... ............ 424 Crtica ao capitalismo como fator de libertao ...................................... 426 Do segundo esprito do capitalismo sua fomw atual........................... 428 Autorrealizao imposta e novas formas de opresso.............................. 429 Os dois sCl1tidos de "libertao" de que se vale o capitalismo em sua cooptao................. ... ........................................... ........... ............ ... ........ 434

    3. Que autenticidade?.............................................................................. 440 Crtica inautenticidade associada ao segundo esprito do capitalismo: uma crtica massificao .. .................................................. .................. 440 Mercantilizao da diferena como resposta do capitalismo ................... 444 Fracassos da mercadizao da autenticidade e retomo da inquietao ... 445 Suspeita sobre os objetos: o exemplo dos produtos ecolgicos .................. 450 Uma nova demanda de autCl1ticidade: a crtica ao fabricado ................. 452

    4. Neutralizao da crtica inautenticidade e seus efeitos perturba-dores ....................................................................................................... 454 Desqualificao da busca de autenticidade ................. ............................ 456 A inquietao sobre as relaes: mtre a amizade e os negcios............... 459 A nova gesto empresarial e as dmncias de manipulao .................... 462 Ser algum e ser flexvel.. ............................................ ............................ 466 A cidade por projetos e a redefinio do mercantilizvel......................... 468

    Concluso: Resgate da crtica esttica? ................................................... 472 Garantias no trabalho como fator de libertao ...................................... 474 Limitao do campo do mercado ............................................................. 477

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    CONCLUSO A fora da crtica 479

    L Axiomtica do modelo de mudana """""",,""","""",,""""",,"""" 481

    2, Etapas da mudana do esprito do capitalismo .""""" .. """""""""" 489 A crtica em regil/le de acordo sobre as provas importantes .................... 489 Tel1so das provas regulamel1tadas sob efeito da crtica ..... ".................. 492 Desloca1l1f11tos e esquivas s provas regulamentadas ............................. 496 Os deslocamentos el1contram seus primeiros elementos de legitimidade ao tirar partido dos diferel1ciais el1tre as foras crticas ........... "............. 501 Neutralizao da crtica s provas regulamf11tadas sob o efeito dos des-locamentos .. " ................................. , ................................... , ............ ,........ 504 Retomada da acumulao e reestruturao do capitalismo." ............. "... 508 Efeitos destruidores dos deslocamel1tos e riscos criados para o prprio capitalismo ...... , ...... " ....................... " ...... ................................................ 508 Papel da crtica na idf11tificao dos perigos ........................................... 513 Retomada da crtica ............... " .............. " ................................ ,,"........... 515 Construo de 11OVOS dispositivos de justia ..... " .................... "." .......... " 518 Formao das cidades ........... " .. " .... " ........... "." ... " ............. " .... "............ 519

    POST-SCRIPTUM

    A sociologia contra os fatalismos 525

    APNDICES 535

    Al1exo 1 - Caractersticas dos textos de gesto empresarial utilizados". 537 Anexo 2 - Lista dos textos-fonte dos corpom de gesto empresarial.... 539 Anexo 3 - Imagem estatstica global dos textos de gesto empresarial.. 543 A11exo 4 - Presena relativa das diferentes "cidades" nos dois corpara." 550

    Notas ...... " .. , .. , ............. " .. , .. , ... , ...... , ...... , .. " ................ , ..... , ............. , ..... ",,, .. Bibliogm fia., ..... , .. , ... , .. " .. , .. , .... , .. , ... , .. , ..... , ... , ......... , ....... " .. ............... , .. , .. " .. . 11dice dos 110111es prprios ., ... , ...... , .. , ... , ............ , ...... , ... ,.,., ......... , ......... , ...... . 11dice remissivo .... " .. " .. , ...... , ............. , .. , ... , ......... , ...... , ... , .......... , ................ .

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    555 653 679 691

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    AGRADECIMENTOS

    Esta obra pde ser levada a termo graas participao e ao apoio de numerosas pessoas que, de diversas maneiras, contriburam com seu tempo, seus conhecimentos e sua ateno, quando no tambm com a amizade -no menos necessria realizao de um programa de longo prazo -, a afeio ou, sobretudo no que tange aos mais prximos, com uma incans-vel resistncia. A todos consignamos aqui os nossos agradecimentos.

    Para a preparao desta obra contamos com o respaldo financeiro do grupo HEC e da fundao HEC, bem como com o apoio de Gilles Laurent, ento diretor de pesquisas, e de Bernard Ramanantsoa, diretor-geral do grupo HEC, bem como dos subsdios do grupo de sociologia poltica e mo-ral (EHESS-CNRS), com especial destaque para a ajuda inestimvel ofere-cida pela secretria do grupo, Danielle Burre.

    Sem o auxlio de Sophie Montant, no teramos levado a bom termo, pelo menos dentro de prazos razoveis, o trabalho difcil e no raro ingra-to de constituir os corpara de textos de gesto empresarial e em preparar em computador os arquivos destinados operao por meio do aplicativo Prospero@, cujo manejo os seus criadores - Francis Chateauraynaud e Jean-Pierre Charriaud - nos ensinaram com grande competncia.

    Yves-Marie Abraham, socilogo e doutorando do HEC, e Marie-Noelle Godet, engenheira do CNRS (GSPM), ajudaram-nos a completar a documen-tao, o primeiro compilando dados estatsticos, a segunda analisando as notcias polticas e sindicais dos anos 70 e 80.

    A verso final deste livro produto de um trabalho longo e cansativo de clarificao, depurao e tambm destilao, com o objetivo de passar de UIn manuscrito quase intransportve} para U111 objeto que, apesar de no ser cxatalncntc aerodinmico, fosse pelo Incnos mais Inancjvel. Este tra-

    :-..

  • 14 o novo esprito do capitalismo

    balho deve muito s discusses mantidas com pessoas prximas, em especial com Laurent Thvenot e com nossos diferentes leitores: Francis Chateau-raynaud, Bruno Latour, Cyril Lemieux e Peter Wagner leram fragmentos ou verses intermedirias, contribuindo com crticas vivazes. Agradecemos. Isabelle Baszanger, Thomas Benatouil, Alain Desrosieres e Franois Eymard-Duvernay encarregaram -se da tarefa ingrata de ler tudo e propor aclara-mentos' emendas e complementos. lisabeth Claverie, ao longo de toda a redao deste livro, contemplou-nos com suas observaes pertinentes e com seu apoio afetivo. Mas o acompanhamento mais constante decerto nos foi dado por Lydie Chiapello e Guy Talbourdet, que leram vrias vezes o manuscrito sem esmorecimento da vigilncia. A verso final contm a marca de sua sagacidade.

    Apresentamos juntos e submetemos prova grande nmero de temas desenvolvidos neste livro em diferentes seminrios, especialmente no se-minrio "Ordens e classes", dirigido por Robert Descimon na EHESS (onde as crticas implacveis, mas perspicazes, de P. -A. Rosental nos estimula-ram)' e no seminrio "Os mundos possveis", organizado na cole norma-le suprieure por Thomas Bnatoui1 e Elie During. Tiramos grande proveito da contribuio do seminrio semanal dirigido por Luc Boltanski na EHESS. A possibilidade que tivemos de assim submeter discusso diferentes es-tgios de elaborao deste trabalho constituiu inestimvel vantagem. Tam-bm foram muito proveitosos os trabalhos apresentados nesse seminrio por doutorandos ou pesquisadores pertencentes a outras instituies. Fo-ram de grande utilidade as observaes e exposies de Yves-Marie Abra-ham (sobre os mercados financeiros), Thomas Bnatoui1 (sobre a relao entre sociologia pragmtica e sociologia crtica), Damien de Blic (sobre os escndalos financeiros), Damien Cartron (sobre as tcnicas de superviso direta do trabalho), Sabine Chalvon-Demersay (sobre as representaes atuais da famlia), Julien Coupat (sobre o situacionismo), Emmanuel Didier (sobre a formao da noo de excluso), Claude Didry (sobre os planos sociais), Pascal Duret (sobre a prova esportiva), Arnaud Esquerre (sobre a noo de manipulao), Franois Eymard-Duvernay e Emmanuelle Mar-chai (sobre os mtodos de recrutamento), Francis Ginsbourger e Francis Bruggeman (sobre as contrapercias realizadas a pedido de comits de em-presa), Christophe Hlou (sobre a resistncia ao controle), Jacques Hoarau (sobre Marx e a moral), Dominique Linhardt e Didier Torny (sobre a ras-treabilidade num mundo em rede), Thomas Prilleux (sobre a reorganizao de uma manufatura de armas), Claudie Sanquer (sobre avaliaes de com-petncias)' Isabelle Saporta e ric Doidy (sobre os novos movimentos so-ciais), David Stark (sobre a recombinao em rede do tecido econmico hn-

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    Agrndecilllelltos 15

    garo). A todos os nossos agradecimentos pela contribuio, bem como aos outros participantes daqueles seminrios, cujas obselVaes e crticas nos foram tambm muito teis.

    Tambm fomos beneficiados por entrevistas com Alain Desrosieres, ) ean-David Fermanian, Baudouin Seys e Maryvonne Lemaire no INSEE.

    Finalmente, devemos agradecer a nosso editor, ric Vigne, a confiana que depositou em ns e a inflexibilidade demonstrada na poda de trechos de pura erudio, notas inteis ou digresses suprfluas. Este livro, na for-ma como apresentado hoje ao pblico, deve-lhe muito.

    Para terminar, cabe-nos admitir que, escrevendo quase cada pgina deste livro, no pudemos deixar de nos perguntar o que pensaria sobre ele Albert Hirschman, cuja obra, mais que qualquer outra, nos acompanhou por todo esse longo trajeto. Por isso, justo que esta obra lhe seja dedicada. Que ele encontre nestas pginas, que alcanam algumas centenas, uma home-nagem ao papel insubstituvel que desempenhou na formao das dispo-sies, no s intelectuais, que nos guiaram durante todo este trabalho: na qualidade de pesquisador, pelos conceitos que introduziu na anlise 50-cioeconmica, em especial pela importncia que, h muito, vem atribuindo crtica e, na qualidade de ser humano, pelo exemplo que tem dado.

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  • J conhecemos, j tocamos um mundo (quando crianas, dele participamos) em que todo aquele que se confinasse

    na pobreza estava pelo menos garantido na pobreza. Era uma espcie de contrato tcito entre o homem e o

    destino, contrato que o destino nunca deixara de honrar antes da inaugurao dos tempos modernos. Estava

    acertado que quem se entregasse fantasia e ao arbitrrio, quem criasse um jogo ou quisesse escapar pobreza arriscaria tudo. Jogando, podia perder. Mas quem no

    jogasse no poderia perder. Ningum podia desconfiar que chegaria um tempo, j iminente, precisamente

    o tempo moderno, no qual quem no jogasse perderia sempre e com mais certeza do que quem jogasse.

    C. PGUY, r:argent

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    PRLOGO

    Este livro - cujo projeto foi concebido no incio de 1995 - nasceu da preocupao, comum a numerosos observadores, provocada pela coexistn-cia entre a degradao da situao econmica e social de um nmero cres-cente de pessoas e um capitalismo em plena expanso e profundamente transformado. Essa preocupao foi recrudescida pelo estado da crtica so-cial- qual a sociologia, sua vizinha, raramente fica indiferente -, que nunca pareceu to desarmada no ltimo sculo como durante os ltimos quinze anos, seja por manifestar uma indignao que no oferecia propostas alter-nativas, seja (na maioria das vezes) por ter simplesmente desistido de denun-ciar uma situao cujo carter problemtico - o mnimo que se pode dizer - no podia escapar-lhe, como se, tacitamente, admitisse sua fatalidade.

    Sob muitos aspectos, vivemos hoje uma situao inversa do fim dos anos 60 e incio dos 70. Naquela poca, o capitalismo experimentava uma reduo de crescimento e rentabilidade, ligada, pelo menos segundo anli-ses regulacionistas, diminuio dos ganhos de produtividade associada alta contnua dos salrios reais, que prosseguia no mesmo ritmo de antes'. A crtica, por sua vez, estava no auge, como mostraram os acontecimentos de maio de 1968, que associaram, ao mesmo tempo, uma crtica social de fei-o marxista clssica e reivindicaes de um tipo muito diferente, com apelos criatividade, ao prazer, ao poder da imaginao, liberao referente a to-das as dimenses da existncia, destruio da "sociedade de consumo" etc. O ambiente macroeconmico era de uma sociedade de pleno empre-go, e seus dirigentes no paravam de lembrar que ela estava "voltada para o progresso"; nela, as pessoas mantinham a esperana numa vida melhor para os filhos e desenvolvia -se a reivindicao - sustentada pela denncia das desigualdades nas chances de acesso ao sistema escolar - de uma as-

  • ! '

    20 O novo esprito do capitalismo

    censo social franqueada a todos, por intermdio de uma escola democra-tizada' de cunho republicano.

    As questes que deram origem a este livro nasceram da guinada qua-se completa da situao e das pequenas resistncias crticas que, afinal de contas, foram opostas a essa evoluo. Quisemos compreender com mais detalhes - para alm dos efeitos de neutralizao da crtica gerado por um poder de esquerda' - por que a crtica no estava "ligada" na situao, como ela foi impotente para compreender a evoluo que estava ocorren-do, por que sumiu repentinamente no fim dos anos 70, deixando o campo livre para a reorganizao do capitalismo durante quase duas dcadas, res-tringindo-se, na melhor das hipteses, ao papel pouco glorioso, embora necessrio, de registro das crescentes dificuldades do corpo social, e, para terminar, por que numerosos integrantes dos movimentos de 68 se senti-ram vontade na nova sociedade a ponto de se tornarem seus porta-vozes e de lev-la a essa transformao.

    Mas, antes de abordarmos o tipo de resposta que demos a essas inda-gaes, no nos parece intil traar neste prembulo - tomando por base indicadores macroeconmicos ou estatsticos - um rpido quadro do con-texto, no mnimo cheio de contrastes, que serve de fundo no s a nossas anlises, mas tambm ao questionamento (para no dizer consternao) que, ao longo destes quatro anos, estimulou nosso trabalho.

    Um capitalismo regenerado e uma situao social degradada

    Contrariando o recurso frequente ao tpico da "crise", regularmente invocado desde 1973, ainda que em contextos muito diferentes, considera-mos que os ltimos vinte anos foram marcados por um capitalismo flores-cente. Durante esse perodo, o capital teve mltiplas oportunidades de in-vestimento, com oferta de taxas de lucro frequentemente mais elevadas que em pocas anteriores. Esses anos foram favorveis a todos os que dis-punham de uma poupana (um capital), em vista do retorno da renda, de-saparecida durante a grande depresso dos anos 30 e impossibilitada de se restabelecer nas dcadas seguintes, devido inflao.

    Sem dvida, o crescimento se manteve desacelerado1, mas os rendi-mentos do capital se elevaram. A taxa de margem4 das empresas no indi-viduais, que diminura muito nos anos 60 e 70 (- 2,9 pontos de 1959 a 1973, - 7,8 pontos de 1973 a 1981), foi restabelecida nos anos 80 (+ 10 pontos de 1981 a 1989) e mantm-se desde ento (- 0,1 ponto de 1989 a 1995). De 1984 a 1994 o Pffi em francos constantes de 1994 aumentou 23,3%. As contri-

    I / i

  • r Prlogo

    buies sociais cresceram nas mesmas propores (+ 24,3%), mas no os salrios lquidos (+ 9,5%). Durante os mesmos dez anos, os rendimentos da propriedade (aluguis, dividendos, mais-valias realizadas) aumentavam 61,1 % e os lucros no distribudos', 178,9%. Taddei e Coriat (1993), reto-mando as evolues das taxas de margens das empresas e lembrando a evoluo descendente do percentual de imposto das empresas (passagem de 50% para 42% em 1988 e depois para 34% em 1992, mas com nova su-bida para 41,1 % em 1997), assim como a estagnao das taxas de contri-buies sociais patronais desde 1987, mostram que a Frana, no incio dos anos 90, apresenta taxas de rendimento do capital em forte alta, relativa-mente ao incio dos anos 80. As finanas das empresas francesas - segun-do esses dois autores - esto em grande parte restauradas sob o efeito de um sistema tributrio aliviado e de uma distribuio lucro-salrios muito mais favorvel s empresas.

    Os operadores financeiros, no mesmo perodo, recobraram "uma li-berdade de ao que no tinham desde 1929 e s vezes at mesmo desde o sculo XIX" (Chesnais, 1994, p. 15). A desregulamentao dos mercados financeiros, sua descompartimentao, a falta de intermediao e a criao de "novos produt05 financeiros" multiplicaram as possibilidades de lucros puramente especulativos, por meio dos quais o capital cresce sem passar por um investimento em atividades produtivas. Os chamados "anos crti-cos", portanto, so marcados pelo fato de que, a partir de ento, a rentabi-lidade do capital melhor nas aplicaes financeiras do que em aplicaes na indstria (que, alis, sofre por causa do custo do dinheiro). Assistimos ao aumento do poder de certos operadores, como os fundos de penso, que havia muito tempo eram detentores bastante estveis de lotes de aes, mas ganharam notoriedade com as transformaes dos mercados (seus meios so considerveis), e seu comportamento se transformou, alinhan-do-se com "o modelo do ganho de lucro financeiro em estado puro" (Chesnais, 1994, p. 222). A liquidez concentrada nas mos dos fundos m-tuos de investimento (SICAV), das companhias de seguro e dos fundos de penso tal, que inegvel a sua capacidade de influenciar os mercados no sentido de seus interesses6 Essa evoluo da esfera financeira insepa-rvel da evoluo das empresas registradas em bolsa, que esto submeti-das aos mesmos imperativos de rentabilidade dos mercados; empresas que, por sua vez, obtm uma parte cada vez maior de seus lucros por meio de tran-saes puramente financeiras. Entre 1983 e 1993, a capitalizao da Bolsa de Paris (nmero de ttulos multiplicados por seu preo) passou de 225 para 2 700 bilhes de francos para aes e de 1000 a 3 900 bilhes de fran-cos para obrigaes (Fremeaux, 1995).

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    21

  • 22 O novo esprito do capitalismo

    As empresas multinacionais tambm saram ganhando desses anos de reestruturao do capitalismo mundial. A desacelerao da economia mun-dial h trinta anos no as afetou realmente, sua participao no Pffi mundial (ele mesmo em alta) no deixou de aumentar, de 17% em meados da d-cada de 60 para mais de 30% em 1995 (Clairmont, 1997). Considera-se que elas controlam dois teros do comrcio internacional, metade do qual, mais ou menos, constituda por exportaes dentro de grupos', entre matrizes e filiais ou entre duas filiais de um mesmo grupo. Sua participao nos custos de "Pesquisa e Desenvolvimento" certamente ainda maior. Seu desenvol-vimento h dez anos tem sido garantido principalmente por fuses e aqui-sies realizadas no mundo inteiro, acelerando o processo de concentrao e de constituio de oligoplios mundiais. Um dos fenmenos mais mar-cantes desde os anos 80, sobretudo depois de 1985, o crescimento do "In-vestimento direto no exterior" (IDE) que se diferencia da troca internacio-nal de bens e servios pelo fato de haver transferncia de direitos patrimo-niais e tomada de poder local. Mas, apesar de o impacto das multi nacionais ser um fenmeno econmico de grande importncia, quase nenhum estu-do lhes dedicado. A Conferncia das Naes Unidas para as sociedades transnacionais (UNCTNC) foi dissolvida no incio de 1993 a pedido do go-verno dos Estados Unidos. Uma parte dos titulares foi transferida para a CNUCED em Genebra, com um programa de trabalho muito reduzido (Chesnais, 1994, p. 53). Enquanto de 200 a 500 empresas, cuja lista corres-ponde mais ou menos apresentada pela revista For/une a cada ano, domi-nam a economia mundial, a definio imposta aos pesquisadores daquilo que uma empresa multinacional no deixou de ser flexibilizada, para afo-gar num oceano de empresas o punhado de firmas superpoderosas que no sofreu com a crisc~.

    Por fim, a reestruturao do capitalismo ao longo das duas ltimas d-cadas, que, como vimos,ocorreu em torno dos mercados financeiros e dos movimentos de fuso-aquisio das multinacionais num contexto de polti-cas governamentais favorveis em matria fiscal, social e salarial, tambm foi acompanhada por fortes incentivos ao aumento da flexibilizao do trabalho. As possibilidades de contratao temporria, uso de mo de obra substituta e horrios flexveis, bem como a reduo dos custos de demisso desenvol-veram-se amplamente no conjunto dos pases da OCDE, cerceando aos pou-cos os dispositivos de proteo instaurados durante um sculo de luta social. Paralelamente, as novas tecnologias de comunicao, encabeadas pela tele-mtica, possibilitaram gerar encomendas em tempo real em nvel planetrio, conferindo meios para uma reatividade mundial at ento desconhecida. Foi

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    Prlogo 23

    um modelo completo de gesto da grande empresa que se transformou sob esse impulso, para dar origem a uma maneira renovada de obter lucros.

    O capitalismo mundial, entendido como a possibilidade de fazer o ca-pital frutificar por meio do investimento ou da aplicao econmica, por-tanto, vai muito bem. Quanto s sociedades - para retomar a separao en-tre o social e o econmico, com a qual vivemos h mais de um sculo' -, no vo nada bem. Os dados aqui so muito mais conhecidos, a comear pela curva do desemprego na Frana: 3% da populao ativa em 1973, 6,5% em 1979, cerca de 12% hoje em dia. Em fevereiro de 1998, contava-se pouco mais de 3 milhes de desempregados no sentido da categoria 1 da ANPElO, que est longe dar conta de todos os que procuram emprego e so conhe-cidos pela ANPE e tampouco engloba os desempregados dispensados da procura de emprego por motivo de idade, os que esto para se aposentar, os beneficirios de cursos de formao profissional ou de contratos prec-rios de tipo CES ou similares. O nmero de pessoas "privadas de empre-go", portanto, deve ser estimado em 5 milhes em 1995" contra 2,45 em 1981 (Cerc-association, 1997 a). A situao mdia da Europa no muito melhor". Os Estados Unidos apresentam ndices menores de desemprego, mas, enquanto na Frana os assalariados conservaram at certo ponto o poder aquisitivo, l este foi bastante degradado. Enquanto o PIB america-no por habitante cresceu 36% entre 1973 e meados de 1995, a hora de tra-balho do pessoal sem cargo de direo, que constitui a maioria dos empre-gos, baixou 14%. No fim do sculo, nos Estados Unidos, o salrio real dos trabalhadores (sem cargo de direo) ter voltado ao que era cinquenta anos antes, ao passo que o PIB ter mais que dobrado durante o mesmo perodo (Thurow, 1997). Em toda a zona OCDE assiste-se a um nivelamen-to por baixo das remuneraes. Em pases como a Frana, onde os polticos procuraram manter o poder aquisitivo do salrio mnimo, os ndices de de-semprego aumentaram regularmente e a degradao das condies de vida afetaram prioritariamente os desempregados e o nmero sempre crescen-te dos trabalhadores em tempo parcial (15,6% dos ativos ocupados em 1995, contra 12,7% em 1992 e 9,2% em 1982). Entre estes ltimos, 40% gosta-riam de trabalhar mais. O emprego dos que tm trabalho tambm muito mais precrio. O nmero dos "empregos atpicos" (CDD, aprendizes, tem-porrios, estagirios remunerados, contratos de trabalho subsidiados e CES no funcionalismo pblico) dobrou entre 1985 e 1995".

    Embora o nmero de famlias abaixo do limiar de pobreza!4 tenha de-crescido (de 10,4% das famI1ias em 1984 para 9,9% em 1994), a estrutura da populao afetada evoluiu muito. A pobreza afeta cada vez menos idosos e cada vez mais pessoas em idade ativa. A evoluo da populao protegida

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    24 O novo esprito do capitalismo

    pelas alocaes sociais mnimas (Cerc~association, 1997 b) um bom refle~ xo das modificaes do perfil da pobreza: essa populao passou de 3 mi ~ Ihes de pessoas (2,3 milhes de famlias) no fim de 1970 para cerca de 6 milhes no fim de 1995 (ou seja, 3,3 milhes de famlias). O nmero mdio de pessoas beneficiadas por famlia passou progressivamente de 1,3 para 1,8, visto que a participao de casais e famlias aumentou. As alocaes mnimas destinadas a desempregados (Alocao de solidariedade especfi~ cal e o Rendimento Mnimo de Incluso (RMI)" explicam a maior parte desse aumento, enquanto o nmero de beneficirios do salrio mnimo ve~ lhice era dividido por 2 entre 1984 e 1994 com a chegada aposentadoria de faixas etrias que haviam pagado contribuies sociais durante toda a vida ativa. No entanto, deve~se ressaltar que o esforo despendido no acompanhou o aumento do nmero de beneficirios: 1 % do PIB lhes de~ dica do em 1995, tal como em 1982 (ao passo que, de 1970 a 1982, passara~ se de 0,3% a 1 %). Em porcentagem de gastos com proteo social, a parte dedicada s alocaes mnimas em 1995 chega a ser inferior de 1982"'.

    O conjunto dessa evoluo (empobrecimento da populao em idade ativa, crescimento regular do nmero de desempregados e da precarieda~ de do trabalho, estagnao dos rendimentos do trabalho) concomitante ao crescimento dos proventos que s beneficiam uma pequena parcela da po~ pulao se traduz no fato de que as desigualdades na distribuio da ren~ da voltaram a aumentar na Frana a partir da segunda metade dos anos 80, movimento que, no entanto, comeou antes dessa data nos outros pases".

    Essas mudanas na situao econmica das famlias foram acompa~ nhadas por uma srie de dificuldades que se concentraram sobretudo em certas periferias (formao de guetos, criao de fato de zonas de no di~ reito em favor de atividades mafiosas, desenvolvimento da violncia por parte de pessoas cada vez mais jovens, dificuldade de integrao das popu~ laes oriundas da imigrao) e por fenmenos marcantes - porque muito visveis - na vida cotidiana dos habitantes das grandes cidades como, por exemplo, o aumento da mendicncia e dos "sem~teto"", frequentemente jo~ vens que, em nmero nada desprezvel, so dotados de um nvel de quali~ ficao que deveria dar~lhes acesso ao emprego. Essa irrupo da misria no espao pblico desempenha papel importante na nova representao comum da sociedade francesa. Essas situaes extremas, embora ainda s afetem diretamente um nmero relativamente reduzido de pessoas, acen~ tuam o sentimento de insegurana de todos aqueles que se veem sob a amea~ a da perda do emprego, seja para si mesmos, seja para um de seus fami~ liares - cnjuge ou filhos em especial -, ou seja, no fim das contas, de uma grande frao da populao ativa.

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    Pr6logo 25

    A famlia, durante esses mesmos anos de deteriorao social, passou por uma evoluo cujos efeitos ainda estamos longe de dimensionar (Sullerot, 1997). Ela se tornou uma instituio muito mais mvel e frgil, adicionan-do uma precariedade suplementar quela do emprego e ao sentimento de insegurana". Essa evoluo , decerto, em parte independente da evolu-o do capitalismo, se bem que a procura de flexibilidade mxima nas em-presas esteja em harmonia com a desvalorizao da famlia como fator de rigidez temporal e geogrfica, de modo que, como veremos adiante, esque-mas ideolgicos similares so mobilizados para justificar a adaptabilidade nas relaes de trabalho e a mobilidade na vida afetiva. O fato que as mu-danas ocorridas na esfera econmica e na esfera da vida privada esto su-ficientemente sintonizadas para que o mundo familiar se mostre cada vez menos capaz de funcionar como um escudo de proteo, em especial para garantir aos filhos posies equivalentes s dos pais, sem que a escola, para a qual fora maciamente transferido o trabalho de continuidade cultural a partir dos anos 60, esteja em condies de realizar as esperanas que nela foram depositadas.

    A ameaa ao modelo de sociedade do ps-guerra e a perplexidade ideolgica

    Essas mudanas pem em risco o compromisso estabelecido no ps-guerra em torno do tema da ascenso das" classes mdias" e dos "executi-vos", que constitura uma sada aceitvel para as preocupaes da pequena burguesia. Pequenos proprietrios e autnomos empobrecidos ou mesmo arruinados pela crise de 1929, burocratas de nvel intermedirio ameaados pelo desemprego, membros das categorias sociais mdias assustados pela ascenso do comunismo (cujas greves de 1936 tornaram a ameaa tangi-vel), foram muitos a ver no fascismo, durante a segunda metade dos anos 30, a nica salvao contra os excessos do liberalismo. O desenvolvimento do papel do Estado depois da Segunda Guerra Mundial e o advento da grande empresa lhes ofereceram novas possibilidades de viver "burgues-mente", compatveis com o cunho salarial crescente da economia.

    Sabe-se que, at a metade do perodo entre guerras, mais ou menos, o salrio raramente era o recurso nico ou mesmo principal dos membros da burguesia. Eles tambm eram beneficiados por substanciais rendimentos pa-trimoniais, e o dinheiro que recebiam pelo fato de pertencerem a uma orga-nizao no era considerado um 11 salrio": os termos li salrio" e /I assalariado" eram reservados na prtica aos operrios. Aqueles patrimnios, compostos sobretudo de bens imobilirios, mas tambm, de modo crescente entre as

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  • 26 O novo esprito do cnpitnlis1llo

    duas guerras, de valores mobilirios (rendas, obrigaes), vo sendo aos poucos achatados, de incio pela desvalorizao da moeda nos anos 20, de-pois pela crise dos anos 30. Os engenheiros e, com eles, fraes cada vez mais extensas da burguesia, entram ento na esfera do salariato, o que cor-responde a uma baixa importante no nvel de vida at a implantao, no ps-guerra, de uma nova organizao dos recursos econmicos. Esta acar-retou um novo estilo de vida para as profisses de nvel superior, apoiadas em novos dispositivos de garantia, no mais patrimoniais, porm sociais: regime de aposentadoria dos executivos, importncia crescente dos diplo-mas na determinao dos salrios e das carreiras, promoo regular nas carreiras ao longo da vida (que facilita o acesso ao crdito), sistemas de se-guro social reforados por fundos mtuos, estabilidade dos proventos salariais pela institucionalizao de processos de reviso dos salrios em funo da evoluo passada dos preos ao consumidor, quase garantia do emprego em grandes organizaes que asseguravam a seus executivos "planos de car-reira" e ofereciam servios sociais (refeitrios, cooperativas, colnias de f-rias, clubes esportivos) (Boltanski, 1982, pp. 113-20). Surgiu assim uma nova possibilidade de viver "burguesmente", dessa vez em regime salarial.

    Sem se beneficiarem no mesmo grau de dispositivos que haviam sido inspirados pela preocupao de favorecer seu acesso ao consumo, integr-las melhor no ciclo econmico e afast-las do comunismo, as classes po-pulares, durante o mesmo perodo, assistiam a um aumento regular do seu poder aquisitivo e - sobretudo a partir dos anos 60 - das chances de esco-larizao de seus filhos no ensino secundrio.

    Elementos essenciais desse compromisso - a saber, diploma, carreira e aposentadoria - foram abalados ao longo dos ltimos vinte anos. Os efei-tos dessas mudanas foram deplorados, verdade, mas no modificaram realmente a certeza das elites dirigentes de que eram resultado de uma im-periosa necessidade, enquanto s afetavam os membros mais frgeis das classes populares - mulheres, imigrantes, deficientes ou jovens sem quali-ficao (os que "ficaram por conta do progresso" nos anos 70; os indivi-duos incapazes de "adaptar-se" ao endurecimento da concorrncia inter-nacional nos anos 80''). Em compensao, foram considerados alarmantes quando a prpria burguesia foi atingida, nos anos 90.

    O aumento do desemprego dos portadores de diploma superior e dos executivos tornou -se evidente, ainda que sem termo de comparao com o dos menos privilegiados. Por outro lado, embora continuem oferecendo pers-pectivas de carrcira a seus quadros considerados mais talentosos, as em-presas agora se abstm de oferecer garantias de longo prazo. So testemu-nhos disso o desemprego e as aposentadorias antecipadas das pessoas com

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    mais de 55 anos, que um dos aspectos marcantes do desemprego fran-cesa. As garantias oferecidas pelos diplomas, embora continuem consti-tuindo um bom seguro contra o desemprego, foram tambm alvo de acusa-o diante da constatao de que, com o mesmo diploma, na maioria das vezes os jovens tm acesso a posies inferiores s atingidas pelos mais ve-lhos quando tinham a mesma idade, frequentemente ao cabo de uma srie de empregos precrios que agora marca o ingresso das novas geraes na vida ativa. Aos receios ligados ao emprego vieram somar-se preocupaes referentes ao nvel das aposentadorias que sero pagas.

    Como o acesso a condies de vida exemplificadas pela burguesia constituiu, desde o sculo XIX, um dos maiores estmulos para tomar supor-tvel o esforo exigido das outras classes, geral o efeito desmoralizador dessa nova ordem das coisas - que repercute na mdia em forma de repor-tagens, romances, filmes, novelas. Uma das manifestaes mais evidentes disso o aumento do ceticismo quanto capacidade das instituies do ca-pitalismo - quer se trate de organizaes internacionais como a OCDE, o FMI ou o Banco Mundial, das multinacionais ou dos mercados financeiros - em manter para as geraes atualmente escolarizadas o nvel econmico de vida e, de modo mais geral, o estilo de vida de seus pais. Esse aumento do ceticismo foi acompanhado, especialmente nos ltimos trs anos, por uma demanda social crescente de pensamento crtico capaz de dar forma a essa preocupao difusa e mesmo de fornecer, no mnimo, instrumentos para a sua inteligibilidade e, no melhor dos casos, uma orientao para a ao, ou seja, nesse caso, uma esperana.

    Ora, foroso constatar que a crena no progresso (associada ao capi-talismo desde o incio do sculo XIX, mas com formas variveis), que des-de os anos 50 constitura o credo das classes mdias, quer estas se afirmas-sem esquerda ou direita, no encontrou sucedneo afora o lembrete pouco estimulante "das duras leis da economia", logo estigmatizado com a designao de "pensamento nico". Ao mesmo tempo, as antigas ideo-logias crticas antissistmicas, para retomar o vocabulrio de lmmanuel Wallerstein, fracassavam em sua funo de desestabilizao da ordem ca-pitalista e deixavam de se mostrar como portadoras de alternativas crveis.

    A perplexidade ideolgica foi, assim, um dos traos mais manifestos destas ltimas dcadas, marcadas pela decomposio das representaes associadas ao compromisso socioeconmico instaurado depois da guerra, sem que surgisse nenhum pensamento crtico em condies de acompa-nhar as mudanas em curso, em parte - como veremos melhor adiante -porque os nicos recursos crticos mobilizveis tinham sido constitudos para denunciar o tipo de sociedade que atingiu o apogeu na transio dos

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    anos 60 para os anos 70, ou seja, precisamente, logo antes de tcr incio a grande transformao cujos efeitos se fazem sentir hoje com toda a fora. Os dispositivos crticos disponveis no oferecem por ora nenhuma alter-nativa dc envergadura. S restam a indignao em estado bruto, o trabalho humanitrio, o sofrimento como espetculo e, sobretudo desde as greves de dezembro de 1995, aes centradas em causas especficas (moradia, es-trangeiros em situao irregular etc.) que, para adquirirem a amplitude de representaes mais adequadas, carecem de modelos de anlise renovados e de utopia social.

    Embora, a curto prazo, o capitalismo v muito bem, j que suas foras conseguiram se libertar em alguns anos de grande parte dos entraves acu-mulados ao longo do sculo passado, ele poderia ser tambm conduzido a uma daquelas crises potencialmente mortais que j enfrentou. E nada ga-rante que, desta vez, a crise d origem (a que custo?) a um "mundo me-lhor", como ocorreu com os pases desenvolvidos nas dcadas que se se-guiram Segunda Guerra Mundial. Sem falar dos efeitos sistmicos da li-berao ilimitada da esfera financeira, que comeam a preocupar at os responsveis pelas instituies capitalistas, parece-nos pouco duvidoso que o capitalismo venha a deparar com dificuldades cada vez maiores no plano ideolgico - ao qual esta obra principalmente dedicada -, caso no volte a dar razes de esperana a todos aqueles cujo empenho necess-rio ao funcionamento do sistema como um todo. Nos anos seguintes guerra, o capitalismo precisou transformar-se para responder preocupao e fora reivindicatria de geraes da burguesia e da pequena burguesia, cuja esperana de mobilidade ascendente (sustentada pela poupana ou pela reduo da natalidade') ou de conservao das vantagens conquista-das havia sido desenganada. evidente que est ameaado todo sistema social que deixe de satisfazer as classes que ele supostamente deve servir com prioridade (ou seja, no caso do capitalismo, a burguesia), quaisquer que sejam as razes pelas quais ele no consiga faz-lo, razes que no so todas controlveis pelos atores que tm ou acreditam ter o poder.

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    Ao escrevermos esta obra, o nosso objetivo no foi tanto propor solu-es para corrigir as caractersticas mais chocantes da situao do trabalho de hoje em dia nem somar a nossa voz aos que a denunciam - tarefas es-tas, alis, teis -, quanto compreender o enfraquecimento da crtica ao lon-go dos ltimos quinze anos e seu corolrio, ou seja, o fatalismo atualmente dOll1inante, quer as lnudanas recentes sejan1 apresentadas C01no muta-

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    es inevitveis, mas benficas a longo prazo, quer como resultado de in-junes sistmicas com efeitos cada vez mais desastrosos, sem que se pos-sa prever uma mudana tendencial.

    As instncias polticas de esquerda, mas tambm de direita, assim como os sindicatos e os intelectuais, que tendem a influir sobre os proces-sos econmicos, criando condies para uma vida humana melhor, no tendo levado a bom termo o trabalho de anlise consistente em compreen-der por que no puderam impedir uma reestruturao do capitalismo to custosa em termos humanos, tendo at, em vrias ocasies, favorecido -voluntria ou involuntariamente - essa tendncia, hoje no tm outra al-ternativa seno optar entre duas posies, insatisfatrias de nosso ponto de vista: por um lado, a utopia do retorno a um passado idealizado (com na-cionalizaes, economia pouco internacionalizada, projeto de solidariedade social, planificao estatal e sindicatos fortes); por outro, o acompanha-mento muitas vezes entusistico das transformaes tecnolgicas, econ-micas e sociais (que abrem a Frana para o mundo, concretizam uma so-ciedade mais liberal e tolerante, multiplicam as possibilidades de realizao pessoal e ampliam cada vez mais os limites da condio humana). Nenhu-ma dessas duas posies possibilita resistir realmente aos desgastes ocasio-nados pelas novas formas assumidas pelas atividades econmicas: a pri-meira, porque cega para aquilo que toma o neocapitalismo sedutor para grande nmero de pessoas e por subestimar a ruptura realizada; a segunda, porque minimiza seus efeitos destrutivos. Ainda que polemizando entre si, tm o efeito comum de difundir um sentimento de impotncia e, ao impo-rem uma problemtica dominante (crtica do neoliberalismo versus balan-o em geral positivo da globalizao), fechar o campo de possibilidades.

    Nossa ambic foi reforar a resistncia ao fatalismo, mas sem encora-jar o fechamento num passadismo saudoso, e suscitar no leitor uma mu-dana de disposio, ajudando-o a considerar de outro modo os problemas do tempo, sob outro enquadramento, ou seja, como processos sobre os quais possvel ter controle. Parece-nos til, para tanto, abrir a caixa-preta dos ltimos trinta anos e olhar o modo como os homens fazem sua histria. Voltando para o momento em que as coisas se decidem e mostrando que elas poderiam ter enveredado por direo diferente, a histria constitui o instrumento por excelncia da desnaturalizao do social e est de mos da-das com a crtica.

    Procuramos, por um lado, descrever uma conjuntura nica, na qual o capitalismo pde livrar-se de certo nmero de entraves ligados a seu modo de acumulao anterior e s reivindicaes de justia que provocara e, por outro lado, tomando por base esse perodo histrico, estabelecer um mo-

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    delo da mudana de valores da qual dependem ao mesmo tempo o sucesso e o carter tolervel do capitalismo, pretendendo uma validade mais geral.

    Assim, revisitamos a chamada evoluo inelutvel dos ltimos trinta anos, evidenciando os problemas que os empresrios devem ter enfrenta-do, especialmente em decorrncia da elevao, sem precedentes desde o ps-guerra, do nvel de crtica, as tentativas que fizeram para enfrentar es-sas dificuldades ou delas escapar, o papel das propostas e das anlises oriundas da crtica nas solues que escolheram ou conseguiram aplicar. Ao longo deste trabalho, tambm se evidenciaram as oportunidades perdi-das, por parte daqueles que deveriam ter sido mais vigilantes quanto aos riscos induzidos por tais transformaes, oportunidades de resistir a certas micromudanas prenhes de consequncias, especialmente por no terem visto que a "cooptao-implementao" pelo capitalismo de algumas de suas propostas devia lev-los necessariamente a reinvestir em anlise e a avanar, por sua vez.

    Nesse sentido, nossa inteno no era apenas sociolgica, voltada para o conhecimento, mas tambm orientada para o despertar da ao poltica entendida como formulao e aplicao de um propsito coletivo em ter-mos de modo de vida. Embora nem toda ao seja possvel a qualquer mo-mento, nada ser possvel enquanto forem esquecidas a especificidade e a legitimidade do domnio prprio da ao (Arendt, 1983) - entendida como escolha orientada por valores em conjunturas nicas, portanto incertas, cujas consequncias so parcialmente imprevisveis -, o que favorece a introverso, satisfeita ou aterrorizada, otimista ou catastrofista, na matriz acolhedora dos determinismos, sejam estes apresentados como sociais, econmicos ou biolgicos. Essa tambm a razo pela qual no procuramos dissimular, sob um cientificismo de fachada, nossas opes e nossas averses, nem se-parar com uma fronteira (outrora chamada "epistemolgica") intransponvel os "juzos de fato" e os "juzos de valor". Pois, como ensinava Max Weber, sem o recurso de um "ponto de vista" que implique valores, como seria pos-svel selecionar, no fluxo intrincado daquilo que ocorre, o que merece ser ressaltado, analisado, descrito?

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    INTRODUO GERAL

    o esprito do capitalismo e o papel da crtica

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    Esta obra tem como objeto as mudanas ideolgicas que acompanharam as recentes transformaes do capitalismo. Prope uma interpretao do mo-vimento que vai dos anos que se seguem aos acontecimentos de maio de 1968, durante os quais a crtica ao capitalismo se expressa alto e bom som, aos anos 80, quando, no silncio da crtica, as formas de organizao sobre as quais repousa o funcionamento do capitalismo se modificam profunda-mente, at a busca hesitante de novas bases crticas na segunda metade da dcada de 1990. Esta obra no apenas descritiva. Ela tambm pretende, atravs desse exemplo histrico, propor um quadro terico mais geral para compreender o modo como se modificam as ideologias associadas s ati-vidades econmicas, contanto que se d ao termo ideologia no o sentido redutor - que tantas vezes lhe foi dado pela vulgarizao marxista - de dis-curso moralizador voltado a velar interesses materiais e incessantemente desmentido peias prticas, mas sim o sentido - desenvolvido, por exemplo, na obra de Louis Dumont - de conjunto de crenas compartilhadas, inscritas em instituies, implicadas em aes e, portanto, ancoradas na realidade.

    Talvez sejamos criticados por termos abordado uma mudana global a partir de um exemplo local: o da Frana dos ltimos trinta anos. Evidente-mente, no acreditamos que o caso da Frana, em si, possa resumir todas as transformaes do capitalismo. Mas, parecendo-nos nada convincentes as aproximaes e os quadros gerais esboados pela maioria dos discursos sobre a globalizao, esperamos estabelecer o modelo de mudana apre-sentado aqui com base em anlises de ordem pragmtica, ou seja, capazes de levar em conta os modos como as pessoas se engajam na ao, suas jus-tificativas e o sentido que elas atribuem a seus atos. Ora, tal esforo, essen-cialmente por razes de tempo e meios, irrealizvel na prtica, tanto em

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    34 o novo esprito do capitalismo

    escala global quanto continental, tamanho o peso que as tradies e as conjunturas polticas nacionais continuam tendo na orientao das prticas econmicas e das formas ideolgicas de expresso que as acompanham. Provavelmente, essa a razo pela qual as abordagens globais so muitas vezes levadas a atribuir importncia preponderante a fatores explicativos -habitualmente de ordem tecnolgica, macroeconmica ou demogrfica -, tratados como foras exteriores aos homens e s naes, que padeceriam seus efeitos do mesmo modo como se enfrenta uma tempestade. Para esse neodarwinismo histrico, as "mutaes" se nos imporiam tal como se im-pem s espcies: a ns compete a adaptao ou a morte. Mas os homens no apenas padecem os efeitos da histria, eles a fazem e ns queremos v-los em ao.

    No pretendemos que aquilo que ocorreu na Frana seja exemplo para o restante do mundo, nem que os modelos por ns estabelecidos a partir da situao francesa tenham validade universal, tais como se apresentam. No entanto, temos boas razes para pensar que processos bastante seme-lhantes marcaram a evoluo das ideologias que acompanharam a reestru-turao do capitalismo nos outros pases desenvolvidos, segundo modali-dades que, em cada caso, decorrem das especificidades da histria poltica e social que somente anlises regionais detalhadas permitiriam esclarecer com preciso suficiente.

    Procuramos elucidar as relaes que se instauram entre o capitalismo e seus crticos, de tal modo que pudssemos interpretar alguns dos fenmenos que afetaram a esfera ideolgica durante as ltimas dcadas: enfraquecimento da crtica, simultneo forte reestruturao do capitalismo, cujas conse-quncias sociais, porm, no podiam passar despercebidas; novo entusias-mo pela empresa privada, orquestrado pelos governos socialistas, durante os anos 80 e o esmorecimento depressivo dos anos 90; dificuldades encon-tradas hoje pelos esforos de reconstituir a crtica sobre novas bases e seu poder mobilizador por ora bastante fraco, embora no faltem motivos de in-dignao; transformao profunda do discurso empresarial e das justifica-es da evoluo do capitalismo desde meados dos anos 70; emergncia de novas representaes da sociedade, de modos inditos de pr pessoas e coi-sas prova e, assim, de novas maneiras de ter sucesso ou fracassar.

    Para realizar esse trabalho, rapidamente se nos imps a noo esprito do capitalismo, pois, como veremos, ela permite articular os dois conceitos centrais sobre os quais repousam nossas anlises - o de capitalismo e o de crtica - numa relao dinmica. Apresentamos abaixo esses diferentes con-ceitos nos quais se fundamenta nossa construo, bem como os mecanis-mos do modelo que elaboramos para dar conta das transformaes ideol-

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  • o esprito do capitalismo e o papel da crtica 35

    gicas em relao ao capitalismo durante os ltimos trinta anos, mas que nos parece ter um alcance mais amplo do que apenas o estudo da situao francesa recente.

    1. O ESPRITO DO CAPITALISMO

    Uma definio mnima do capitalismo

    . Entre as diferentes caracterizaes do capitalismo (ou, frequentemen-te hoje, dos capitalismos) feitas no ltimo sculo e meio, escolheremos uma frmula mnima que enfatiza a exigncia de acumulao ilimitada do ca-pital por meios formalmente pacficos. Trata-se de repor perpetuamente em jogo o capital no circuito econmico com o objetivo de extrair lucro, ou seja, aumentar o capital que ser, novamente, reinvestido, sendo esta a princi-pal marca do capitalismo, aquilo que lhe confere a dinmica e a fora de transformao que fascinaram seus observadores, mesmo os mais hostis.

    O acmulo do capital no consiste num amontoamento de riquezas - ou seja, de objetos desejados por seu valor de uso, por sua funo ostentatria ou como signos de poder. As formas concretas da riqueza (imobiliria, bens de capital, mercadorias, moeda etc.) no tm interesse em si e, por sua falta de liquidez, podem at constituir obstculo ao nico objetivo que importa realmente: a transformao permanente do capital, de equipamentos e aqui-sies diversas (matrias-primas, componentes, servios ... ) em produo, de produo em moeda e de moeda em novos investimentos (Heilbroner, 1986).

    Essa dissociao entre capital e formas materiais de riqueza lhe confe-re um carter realmente abstrato que vai contribuir para perpetuar a acumu-lao. Uma vez que o enriquecimento avaliado em termos contbeis, sen-do o lucro acumulado num perodo calculado como a diferena entre dois balanos de duas pocas diferentes', no existe nenhum limite, nenhuma saciedade possvel' como ocorre, ao contrrio, quando a riqueza orientada para necessidades de consumo, inclusive o luxo.

    Certamente h outra razo para o carter insacivel do processo capita-lista, ressaltada por Heilbroner (1986, pp. 47 ss.). Como o capital constan-temente reinvestido c s pode crescer circulando, a capacidade que o capita-lista tem de recuperar sua aplicao aumentada pelo lucro est perpetua-mente ameaada, em especial pelos atos dos outros capitalistas com os quais ele disputa o poder de compra dos consumidores. Essa dinmica cria uma

    I inquietao permanente c d ao capitalista um poderoso motivo de autocon-L""'O pM' CO",;OO" ;ofirui,wlm,,"" o P'O~"O de "omol",o

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    36 o novo esprito do capitalismo

    A rivalidade entre operadores que procuram obter lucro, porm, no gera necessariamente um mercado no sentido clssico, no qual o conflito entre uma multiplicidade de agentes que tomam decises descentralizadas tem como desfecho a transao que faz aparecer um preo de equilbrio. O capitalismo, na definio mnima aqui considerada, deve ser distinguido da autorregulao mercantil baseada em convenes e instituies, especial-mente jurdicas e estatais, que visam a garantir a igualdade de foras entre operadores (concorrncia pura e perfeita), a transparncia, a simetria de in-formaes, um banco central garantidor de uma taxa de cmbio inaltervel para a moeda de crdito etc. Sem dvida o capitalismo se apoia em transa-es e contratos, mas esses contratos podem dar sustentao apenas a ar-ranjos discretos em benefcio das partes ou comportar apenas clusulas ad hoc, sem publicidade nem concorrncia.

    Na esteira de Fernand Braudel, faremos uma distino entre capitalis-mo e economia de mercado. Por um lado, a economia de mercado constituiu-se "passo a passo" e anterior ao aparecimento da norma de acumulao ilimitada do capitalismo (Sraudel, 1979, Les Jeux de l'change [Os jogos das trocas], p. 263). Por outro lado, a acumulao capitalista s se dobra regu-lao do mercado quando lhes so fechados caminhos mais diretos para o lucro, de tal modo que o reconhecimento dos poderes benfazejos do mer-cado e a aceitao das regras e injunes das quais depende seu funciona-mento "harmonioso" (livre-comrcio, proibio de cartis e monoplios etc.) podem ser considerados uma forma de autolimitao do capitalismo-'.

    O capitalista, no mbito da definio mnima de capitalismo que utili-zamos' , teoricamente, qualquer um que possua um excedente e o invista para extrair um lucro que venha a aumentar o excedente inicial. O exem-pIo tpico disso o acionista que aplica seu dinheiro numa empresa e fica espera de uma remunerao, mas o investimento no assume necessaria-mente essa forma jurdica - pensemos, por exemplo, no investimento em locao de imveis ou na compra de bnus do Tesouro. O pequeno aplica-dor, o poupador que no quer que seu "dinheiro fique parado" mas "d cria" - como diz a linguagem popular -, pertence, portanto, ao grupo dos capi-talistas tanto quanto os grandes proprietrios, que costumam ser mais fa-cilmente imaginados com essa designao. Em sua extenso mais ampla, o grupo capitalista rene, pois, o conjunto dos detentores de um patrimnio rentvel', grupo que constitui, porm, apenas uma minoria, desde que seja ultrapassado certo limiar de poupana: embora isso seja difcil calcular, em vista das estatsticas existentes, pode-se acreditar que ele representa apenas 20% das famlias na Frana, apesar de se tratar de um dos pases mais ricos do mundo'. Em escala mundial, essa porcentagem deve ser bem menor.

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    Neste ensaio, porm, reservaremos prioritariamente a designao de "capitalistas" aos principais atores responsveis pela acumulao e pelo crescimento do capital, aqueles que exercem presso diretamente sobre as empresas para que estas produzam lucros mximos. Evidentemente, seu nmero muito mais reduzido. Seu grupo formado no s por grandes acionistas, pessoas fsicas capazes de influir sobre a marcha dos negcios apenas em virtude de seu peso, mas tambm por pessoas jurdicas (repre-sentadas por alguns indivduos influentes - dirigentes empresariais de pri-meira plana) que possuem ou controlam, por meio de seus atos, as maiores parcelas do capital mundial (holdings e multinacionais - inclusive bancrias - por meio de filiais e participaes, ou fundos de investimento, fundos de penso). Sendo eles grandes proprietrios, diretores assalariados de gran-des empresas, administradores de fundos ou grandes acionistas, sua in-fluncia sobre o processo capitalista, sobre as prticas empresariais e sobre as taxas de lucros obtidas indubitvel, dif~rentemente dos pequenos in-vestidores mencionados acima. Mesmo formando uma populao que apresenta grandes desigualdades patrimoniais, mas com uma situao m-dia muito favorvel, eles merecem o nome de capitalistas, uma vez que as-sumem a responsabilidade de exigir a maximizao de lucros e repassam essa exigncia para as pessoas, fsicas ou jurdicas, sobre as quais exercem poder de controle. Deixando de lado por ora a questo das injunes sist-micas que pesam sobre o capitalista, deixando de indagar, em especial, se os diretores de empresa podem deixar de se submeter s regras do capita-lismo, consideraremos apenas que se submetem, e que seus atos so em grande parte guiados pela busca de lucros substanciais para seu prprio ca-pital ou para o capital que lhes confiado".

    Tambm caracterizaremos o capitalismo pelo trabalho assalariado. Marx, assim como Weber, pe essa forma de organizao do trabalho no centro de sua definio do capitalismo. Consideraremos o trabalho assalariado in-dependentemente das formas jurdicas contratuais que ele pode assumir: o que importa que uma parte da populao que no possui capital ou o possui em pequena quantidade, para a qual o sistema no naturalmente orientado, extrai rendimentos da venda de sua fora de trabalho (e no da venda dos produtos de seu trabalho), pois no dispe de meios de produ-o e, para trabalhar, depende das decises daqueles que os possuem (pois, em virtude do direito de propriedade, estes ltimos podem recusar-lhe o uso de tais meios); enfim, que essa parcela lhes cede, no mbito da relao salarial e em troca de remunerao, todo o direito de propriedade sobre o re-sultado de seu esforo, estando certo de que ele reverte totalmente para os donos do capitaL Uma segunda caracterstica importante do trabalho as-

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    salariado que o trabalhador teoricamente livre para recusar-se a traba-1har nas condies propostas pelo capitalista, assim como este tem a liber-dade de no propor emprego nas condies demandadas pelo trabalhador, de tal modo que essa relao, embora desigual no sentido de que o traba-1hador no pode sobreviver muito tempo sem trabalhar, distingue-se mui-to do trabalho forado ou da escravido e sempre incorpora, por isso, cer-ta parcela de submisso voluntria.

    O trabalho assalariado em escala francesa, assim como em escala mundial, no parou de se desenvolver ao longo de toda a histria do capi-talismo' de tal modo que hoje ele atinge uma porcentagem da populao ativa nunca antes atingida'. Por um lado, ele aos poucos substituiu o traba-lho por conta prpria, encabeado historicamente pela agricultura'; por ou-tro lado, a prpria populao ativa aumentou muito, devido ao ingresso das mulheres no trabalho assalariado, exercido por elas em nmero crescente fora do larlO

    A necessidade de um esprito para o capitalismo

    O capitalismo, sob muitos aspectos, um sistema absurdo: os assalaria-dos perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinao. Quanto aos capitalistas, es-to presos a um processo infindvel e insacivel, totalmente abstrato e dis-sociado da satisfao de necessidades de consumo, mesmo que suprfluas. Para esses dois tipos de protagonistas, a insero no processo capitalista ca-rece de justificaes.

    Ora, a acumulao capitalista, embora ocorra em graus desiguais con-forme o caminho do lucro pelo qual se enverede (em maior grau, por exem-plo, para auferir benefcios industriais do que para obter lucros mercantis ou financeiros), exige a mobilizao de um nmero imenso de pessoas cujas chances de lucro so pequenas (especialmente quando seu capital de par-tida medocre ou inexistente), e para cada uma delas atribuda uma res-ponsabilidade nfima, em todo caso difcil de avaliar, no processo global de acumulao, de tal modo que elas no so particularmente motivadas a empenhar-se nas prticas capitalistas, quando no lhes so hostis.

    Algumas pessoas podero mencionar a motivao material para a par-ticipao, mais evidente, alis, para o assalariado que precisa de seu salrio para viver do que para o grande proprietrio cuja atividade, ultrapassado certo nvel, no est mais ligada satisfao de necessidades pessoais. Mas essa motivao, por si s, mostra-se bem pouco estimulante. Os psiclogos

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    do trabalho tm evidenciado com regularidade a insuficincia de remune-rao para provocar o empenho e aguar o entusiasmo no cumprimento das tarefas; o salrio constitui, no mximo, um motivo para ficar num em-prego, mas no para empenhar-se.

    Do mesmo modo, para que seja vencida a hostilidade ou a indiferena desses atores, a coero insuficiente, sobretudo quando o empenho exi-gido pressupe adeso ativa, iniciativas e sacrifcios livremente assumidos, como aquilo que, cada vez mais, se espera no s dos executivos, mas do conjunto dos assalariados. Assim, a hiptese do "empenho forado", cres-cente diante da ameaa da fome e do desemprego, j no nos parece mui-to realista. Pois, embora seja provvel que as fbricas "escravagistas" ainda existentes no mundo no venham a desaparecer em futuro prximo, pare-ce difcil contar unicamente com essa forma de incentivo ao trabalho, no mnimo porque a maioria dos novos modos de obter lucro e das novas pro-fisses inventadas durante os ltimos trinta anos, que geram hoje uma par-te significativa dos lucros mundiais, enfatizou aquilo que em recursos hu-manos se chama de "envolvimento do pessoal".

    A qualidade do compromisso que se pode esperar depende, antes, dos argumentos alegveis para valorizar no s os benefcios que a participao nos processos capitalistas pode propiciar individualmente, como tambm as vantagens coletivas, definidas em termos de bem comum, com que ela contribui para todos. Chamamos de esprito do capitalismo a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo.

    Atualmente, ele est passando por uma grande crise, manifestada pela perplexidade e pelo ceticismo social crescente, de tal modo que a salva-guarda do processo de acumulao, ameaado pelo estrangulamento de suas justificaes numa argumentao mnima em termos de submisso neces-sria s leis da economia, supe a formao de um novo conjunto ideol-gico mais mobilizador. Isso vale pelo menos para os pases desenvolvidos que, situados no centro do processo de acumulao, esperam continuar sendo os principais fornecedores de pessoal qualificado, cujo envolvimen-to positivo necessrio. O capitalismo precisa ter condies de dar a essas pessoas a garantia de uma segurana mnima em verdadeiros santurios -onde possvel viver, formar famlia, criar filhos etc. -, tais como os bairros residenciais dos centros econmicos do hemisfrio norte, vitrines do suces-so do capitalismo para os adventcios das regies perifricas e, por isso mesmo, elemento crucial na mobilizao ideolgica mundial de todas as foras produtivas.

    Em Max Weber, o "esprito do capitalismo"ll remete ao conjunto dos mo-tivos ticos que, embora estranhos em sua finalidade lgica capitalista,

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    o novo esprito do capitalismo

    inspiram os empresrios em suas aes favorveis acumulao do capi-tal. Em vista do carter singular e at transgressivo dos modos de compor-tamento exigidos pelo capitalismo em relao s formas de vida constata-das na maioria das sociedades humanas", ele foi levado a defender a ideia de que a emergncia do capitalismo supusera a instaurao de uma nova relao moral entre os homens e seu trabalho, determinada por uma voca-o, de tal forma que cada um, independentemente de seu interesse e de suas qualidades intrnsecas, pudesse dedicar-se a ele com firmeza e regu-laridade. Segundo M. Weber, foi com a Reforma que se imps a crena de que o dever cumprido em primeiro lugar pelo exerccio de um ofcio no mundo, nas atividades temporais, em oposio vida religiosa fora do mun-do, privilegiada pelo thos catlico. Essa nova concepo, na aurora do ca-pitalismo' teria possibilitado esquivar-se questo das finalidades do es-foro no trabalho (enriquecimento sem fim) e assim superar o problema do empenho proposto pelas novas prticas econmicas. A concepo do tra-balho como Beru! - vocao religiosa que exige cumprimento - servia de ponto de apoio normativo para os comerciantes e os empreendedores do capitalismo nascente, dando-lhes boas razes - "motivao psicolgica", como diz M. Weber (1964, p. 108) - para entregar-se sem descanso e cons-cienciosamente sua tarefa, para empreender a racionalizao implacvel de seus negcios, indissociavelmente ligada busca de um lucro mximo, para perseguirem o ganho, sinal de sucesso no cumprimento da vocao13 Ela tambm lhes servia porque os operrios compenetrados da mesma ideia mostravam -se dceis, trabalhadores incansveis e - convencidos de que o homem deve cumprir seu dever onde quer que a providncia o tenha co-locado - no procuravam questionar a situao que se lhes oferecia.

    Deixaremos de lado a importante contravrsia ps-weberiana, essencialmen-te relativa questo da influncia efetiva do protestantismo sobre o desen-volvimento do capitalismo e, de modo mais geral, das crenas religiosas so-bre as prticas econmicas, para considerarmos, da posio weberiana, sobre-tudo a ideia de que as pessoas precisam de poderosas razes morais para aliar-se ao capitalismo l4

    Albert Hirschman (1980) reformula a indagao weberiana ("como uma atividade no mximo tolerada pela moral pde transformar-se em vo-cao no sentido de Benjamin Franklin") da seguinte maneira: "Como ex-plicar que, em determinado momento da poca moderna, se tenha chega-do a considerar honrosas atividades lucrativas como o comrcio e o banco, ao passo que tinham sido reprovadas e amaldioadas durante sculos, por nelas se ver a encarnao da cupidez, do amor ao ganho e da avareza?" (p.13). Mas, em vez de recorrer a mueis psicolgicos e busca, por novas elites, de

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    um meio de garantir a sua salvao pessoal, A. Hirschman menciona moti-vos que teriam, em primeiro lugar, afetado a esfera poltica antes de tocar a economia. As atividades lucrativas teriam sido valorizadas pelas elites, no sculo XVIII, devido s vantagens sociopolticas que delas eram esperadas. Na interpretao de A. Hirschman, o pensamento laico do Iluminismo jus-tifica as atividades lucrativas como um bem comum para a sociedade. A. Hirschman mostra tambm como a emergncia de prticas em harmonia com o desenvolvimento do capitalismo foi interpretada como algo compa-tvel com o abrandamento dos costumes e o aperfeioamento do modo de governo. Em vista da incapacidade da moral religiosa para coibir as paixes humanas, da impotncia da razo para governar os homens e da dificuldade de submeter as paixes por meio da pura represso, restava a soluo que consistia em utilizar uma paixo para compensar as outras. Assim, o lucro, que at ento encabeava a ordem das desordens, obteve o privilgio de ser eleito paixo inofensiva sobre a qual passou a recair o encargo de subjugar as paixes ofensivas15

    Os trabalhos de Weber insistiam na necessidade de o capitalismo apre-sentar razes individuais, ao passo que os de Hirschman lanam luzem so-bre as justificaes em termos de bem comum. Quanto a ns, retomamos essas duas dimenses, inserindo o termo justificao numa acepo que possibilite abarcar ao mesmo tempo as justificaes individuais (aquilo em que uma pessoa encontra motivos para empenhar-se na empresa capitalis-ta) e as justificaes gerais (em que sentido o empenho na empresa capi-talista serve ao bem comum).

    A questo das justificaes morais do capitalismo no pertinente his-toricamente apenas para esclarecer suas origens ou, em nossos dias, para compreender melhor as modalidades de converso ao capitalismo por par-te dos povos da periferia (pases em desenvolvimento e ex-pases socialis-tas). Ela tambm de extrema importncia nos pases ocidentais como a Frana, cuja populao se encontra integrada, em grau nunca igualado no passado, ao cosmos capitalista. De fato, as injunes sistmicas que pesam sobre os atores no bastam, por si ss, para suscitar o seu empenhol6 A in-juno deve ser interiorizada e justificada, e esse, alis, foi o papel que a so-ciologia tradicionalmente atribuiu socializao e s ideologias. Participan-do da reproduo da ordem social, elas tm como efeito permitir que as pessoas no achem insuportvel o seu universo cotidiano, o que constitui uma das condies para que um mundo seja duradouro. Se o capitalismo no s sobreviveu - contrariando os progosticos que regularmente anun-ciaram sua derrocada -, como tambm no parou de ampliar o seu imp-rio, foi porque pde apoiar-se em certo nmero de representaes - capa-

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    zes de guiar a ao - e de justificaes compartilhadas, que o apresentam como ordem aceitvel e at desejvel, a nica possvel, ou a melhor das or-dens possveis. Essas justificaes devem basear-se em argumentos sufi-cientemente robustos para serem aceitos como pacficos por um nmero bastante grande de pessoas, de tal modo que seja possvel conter ou supe-rar o desespero ou o niilismo que a ordem capitalista tambm no para de inspirar, no s aos que so por ela oprimidos, mas tambm, s vezes, aos que tm a incumbncia de mant-la e de transmitir seus valores por meio da educao.

    O esprito do capitalismo justamente o conjunto de crenas associa-das ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa or-dem, legitimando os modos de ao e as disposies coerentes com ela. Es-sas justificaes, sejam elas gerais ou prticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justia, do respaldo ao cumpri-mento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, adeso a um estilo de vida, em sentido favorvel ordem capitalista. Nesse caso, pode-se falar de ideologia dominante, contanto que se renuncie a ver nela apenas um subterfgio dos dominadores para garantir o consentimento dos dominados e que se reconhea que a maioria dos participantes no pro-cesso, tanto os fortes como os fracos, apoia -se nos mesmos esquemas para representar o funcionamento, as vantagens e as servides da ordem na qual esto mergulhados".

    Se, na tradio weberiana, pusermos no cerne de nossas anlises as ideologias nas quais se baseia o capitalismo, daremos noo de esprito do capitalismo um uso discrepante em relao a seus usos cannicos. Isto porque, em Weber, a noo de esprito tem lugar numa anlise dos" tipos de condutas racionais prticas", das "incitaes prticas ao"" que, cons-titutivos de um novo thos, possibilitaram a ruptura com as prticas tradi-cionais' a generalizao da disposio para o calcuIismo, a suspenso das condenaes morais ao lucro e a arrancada do processo de acumulao ili-mitada. Como no temos a ambio de explicar a gnese do capitalismo, mas de compreender em que condies ele pode ainda hoje angariar os atores necessrios formao dos lucros, nossa tica ser diferente. Deixa-remos de lado os posicionamentos perante o mundo necessrios partici-pao no capitalismo como cosmos - adequao meios-fins, racionalidade prtica, aptido para o clculo, autonomizao das atividades econmicas, relao instrumental com a natureza etc., bem como as justificaes mais gerais do capitalismo, principalmente produzidas pela cincia econmica, que mencionaremos adiante. Estas dizem respeito hoje - pelo menos entre os atores empresariais no mundo ocidental- s competncias comuns que,

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    em harmonia com injunes institucionais que se impem de algum modo de fora para dentro, so constantemente reproduzidas por meio dos pro-cessos de socializao familiares e escolares. Constituem a base ideolgica a partir da qual se podem observar variaes histricas, ainda que no se possa excluir a possibilidade de que a transformao do esprito do capita-lismo implique s vezes a metamorfose de alguns de seus aspectos mais duradouros. Nosso propsito o estudo das variaes observadas, e no a des-crio exaustiva de todos os constituintes do esprito do capitalismo. Isso nos le-var a separar a categoria esprito do capitalismo dos contedos substan-dais, em termos de thos, que esto ligados a ela em Weber, para trat-la como uma forma que pode ser preenchida de maneiras diversas em dife-rentes momentos da evoluo dos modos de organizao das empresas e dos processos de obteno de lucro capitalista. Poderemos assim procurar integrar num mesmo mbito diversas expresses histricas do esprito do capitalismo e formular indagaes sobre sua mudana. Enfatizaremos o modo como deve ser traada uma existncia em harmonia com as exign-cias da acumulao, para que grande nmero de atores considere que vale a pena viv-la.

    No entanto, ao longo desse percurso histrico, permaneceremos fiis ao mtodo do tipo ideal weberiano, sistematizando e ressaltando o que nos parece especfico de uma poca em oposio s pocas precedentes, dan-do mais importncia s variaes que s constncias, mas sem ignorar as caractersticas mais estveis do capitalismo.

    Assim, a persistncia do capitalismo, como modo de coordenao dos atos e como mundo vivenciado, no pode ser entendida sem a considera-o das ideologias que, justificando-o e conferindo-lhe sentido, contri-buem para suscitar a boa vontade daqueles sobre os quais ele repousa, para obter seu engajamento, inclusive quando - como ocorre nos pases desen-volvidos - a ordem na qual eles esto inseridos parece basear-se quase to-talmente em dispositivos que lhe so congruentes.

    De que feito o esprito do capitalismo

    Em se tratando de alinhar razes para pleitear em favor do capitalis-mo, logo se apresenta um candidato: nada mais, nada menos que a cincia econmica. Acaso no foi na cincia econmica e, em particular, em suas correntes dominantes - clssicas e neoclssicas - que os responsveis pe-las instituies do capitalismo foram buscar justificaes, a partir da pri-meira metade do sculo XIX at nossos dias? A fora dos argumentos que'

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    o novo esprito do capitalismo

    nela encontravam decorria precisamente do fato de que estes se apresen-tavam como no ideolgicos e no diretamente ditados por motivos mo-rais, ainda que incorporassem a referncia a resultados finais globalmente conformes com um ideal de justia para os melhores e de bem -estar para a maioria. O desenvolvimento da cincia econmica, quer se trate da eco-nomia clssica ou do marxismo, contribuiu - conforme mostrou L. Dumont (1977) - para erigir uma representao do mundo que era radicalmente nova em relao ao pensamento tradicional e marcava "a separao radical entre os aspectos econmicos do tecido social e sua construo em dom-nio autnomo" (p. 15). Essa concepo permite dar corpo crena de que a economia constitui uma esfera autnoma, independente da ideologia e da moral, e que obedece a leis positivas, deixando-se de lado o fato de que mesmo essa convico j era produto de um trabalho ideolgico, e que ela s pudera constituir-se incorporando - e depois encobrindo com o discurso cientfico - justificaes segundo as quais as leis positivas da economia es-to a servio do bem comum".

    Especialmente a concepo de que a busca do interesse individual ser-ve ao interesse geral foi objeto de um enorme trabalho, incessantemente retomado e aprofundado ao longo de toda a histria da economia clssica. Essa dissociao entre moral e economia e a incorporao economia (no bojo desse processo) de uma moral consequencialista"', baseada no clcu-lo das utilidades, propiciaram cauo moral s atividades econmicas pelo nico fato de serem lucrativas". Se nos for permitido um resumo rpido, mas capaz de explicitar um pouco melhor o desenrolar da histria das teo-rias econmicas que nos interessa aqui, pode-se dizer que a incorporao do utilitarismo economia possibilitou considerar como ponto pacfico que "tudo o que benfico ao individuo benfico sociedade. Por analogia, tudo o que engendra um lucro (portanto, serve para o capitalismo) tambm serve para a sociedade" (Heilbroner, 1985, p. 95). Nessa perspectiva, s o crescimento das riquezas, seja qual for o seu beneficirio, considerado cri-trio do bem comum". Em seus usos cotidianos e nos discursos pblicos dos principais atores responsveis pela exegese dos atos econmicos - di-rigentes empresariais, polticos, jornalistas etc. - essa cartilha possibilita as-sociar, de maneira ao mesmo tempo estrita e suficientemente vaga, lucro individual (ou local) e benefcio global, para evitar a exigncia de justifica-o das aes que concorrem para a acumulao. Ela considera ponto pa-cfico que o custo moral especfico (entregar-se paixo do ganho), mas di-ficilrnente quantificvel, da instaurao em uma sociedade aquisitiva (custo que ainda preocupava Adam Smith) amplamente contrabalanado pelas vantagens quantificveis (bens materiais, sade ... ) da acumulao. Tambm

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    o esprito do capitalismo e o papel da critica 45

    possibilita afirmar que o crescimento global de riquezas, seja qual for seu beneficirio, um critrio de bem comum, conforme reflete cotidianamente o fato de se mensurar a sade das empresas de determinado pas pela sua taxa de lucro, seu nvel de atividade e de crescimento como critrio de me-dida do bem-estar socia!". Esse imenso trabalho social realizado para ins-taurar o progresso material individual como um - se no o - critrio do bem -estar social permitiu que o capitalismo conquistasse uma legitimida-de sem precedentes, pois assim se tomavam legtimos ao mesmo tempo seus propsitos e seus mbeis.

    Os trabalhos da cincia econmica tambm possibilitam afirmar que, entre duas organizaes econmicas diferentes orientadas para o bem -es-tar material, a organizao capitalista a mais eficaz. A liberdade de em-preender e a propriedade privada dos meios de produo introduzem no sistema a concorrncia ou um risco de concorrncia. Ora, esta, a partir do mo-mento em que existe, mesmo sem precisar ser pura e perfeita, o meio mais seguro para que os clientes sejam beneficiados pelo melhor servio ao me-nor custo. Por isso, embora orientados para a acumulao do capital, os ca-pitalistas se sentem obrigados a satisfazer os consumidores para atingir seus fins. assim que, por extenso, a empresa privada concorrencial con-tinua sendo considerada mais eficaz e eficiente do que a organizao no lucrativa (mas isso tem o preo no mencionado de transformar o amante de arte, o cidado, o estudante, a criana em relao a seus professores, o beneficirio da ajuda social... em consumidor), e a privatizao e a mercan-tilizao mxima de todos os servios mostram -se como as melhores solu-es do ponto de vista social, pois reduzem o desperdcio de recursos e obrigam a antecipar-se s expectativas dos clientes".

    Aos tpicos da utilidade, do bem-estar global e do progresso, mobili-zveis de modo quase imutvel h dois sculos, justificao em termos de eficcia sem igual na oferta bens e servios preciso acrescentar, evidente-mente, a referncia aos poderes libertadores do capitalismo e liberdade poltica como efeito colateral da liberdade econmica. Os tipos de argumen-to apresentados aqui fazem meno libertao constituda pelo sistema salarial em comparao com a servido, ao espao de liberdade permitido pela propriedade privada ou mesmo ao fato de que, na poca moderna, nunca existiram liberdades polticas, a no ser de modo episdico, em ne-nhum pas franca e fundamentalmente anticapitalista, ainda que nem to-dos os pases capitalistas as conheam".

    Evidentemente, seria pouco realista no incluir no esprito do capita-lismo seus trs pilares justificativos fundamentais: progresso material, efi-ccia e eficincia na satisfao das necessidades, modo de organizao so-

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    cial favorvel ao exerccio das liberdades econmicas e compatvel com re-gimes polticos lib