caderno sobre autismo

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  • Uma pequena histriado autismo

    Fernando Gustavo Stelzer

    Junho 2010

    Cadernos Pandorga de AutismoVolume 1

  • 2 Associao Mantenedora PandorgaPandorga FormaoRua Pedro Peres, 272Bairro Rio BrancoSo Leopoldo/RS93032-160Tel.: (51) 3589 2949 e (51) 8134 2887E-mail: [email protected]: www.pandorgaautismo.org

    Coordenadora geral da Pandorga: Heide Kirst

    Coordenador de Pandorga Formao: Nelson Kirst

    Reviso textual: Carlos Arthur Dreher

    Capa: Eva Mansk Gaede, aproveitando pan em patchwork de Hanna Gtz

    Editorao e impresso: Editora Oikos

    Tiragem: 1.000 exemplares

    Apoio: Petrobrs

    Distribuio gratuita

  • 3APRESENTAO

    Esta publicao inaugura a srie Cadernos Pandorga de Autismo, quetem sua origem nos Seminrios Pandorga de Autismo, promovidos desde2008 pela Associao Mantenedora Pandorga em diversas cidades do RioGrande do Sul. Constatou-se nesses eventos que persiste, entre instnciase profissionais das reas da sade, da educao e da assistncia social,uma significativa lacuna de conhecimento sobre a sndrome do autismo,que, afinal, atinge entre 0.7 e 1% da populao.

    Assim como os Seminrios, os Cadernos Pandorga de Autismo tmpor objetivo contribuir para melhorar a qualidade de vida de pessoas au-tistas e de suas famlias. Este Caderno 1 busca faz-lo, trazendo informa-o bsica sobre a histria e o estado atual da pesquisa sobre o autismo.Os conhecimentos aqui veiculados fazem parte do lastro terico bsicoindispensvel a qualquer profissional que queira se dedicar ao diagnsti-co, tratamento e cuidado de pessoas autistas.

    A Pandorga agradece, reconhecidamente, ao autor deste Caderno, oneurologista Fernando Gustavo Stelzer, por t-la acompanhado, com seuvasto saber e uma enorme disposio, na disseminao de conhecimentossobre o autismo em numerosos seminrios e cursos. Alegra-nos sobrema-neira que sua contribuio se cristalize agora tambm em cadernos im-pressos, tornando-se acessvel de maneira mais perene e palpvel.

    A Pandorga manifesta sua gratido Petrobrs por solidarizar-se como empenho pela disseminao de conhecimentos sobre o autismo. Sem oseu apoio financeiro, a publicao deste Caderno no teria sido possvel.

    So Leopoldo, junho de 2010

    Nelson KirstCoordenador de

    Pandorga Formao

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  • 5Uma pequena histria do autismo

    Fernando Gustavo Stelzer

    De todas as doenas j descritas, poucas causaram (e ainda causam)tanta confuso quanto o autismo. Talvez contribua para isto o fato de queno h exames capazes de determinar o diagnstico de autismo, estabele-cido somente com base na avaliao mdica e na observao do compor-tamento. Alm disto, diversos esteretipos, presentes ainda nos dias dehoje, contribuem para a dificuldade de identificao de pessoas autistas,como o da criana isolada do mundo, muda, com dificuldade de fixar oolhar nos demais e que fica se embalando constantemente (que me lem-bra muito o filme Meu filho, meu mundo, reprisado inmeras vezes nateleviso nos anos 70), at o gnio matemtico, inapto socialmente, inter-pretado por Dustin Hoffmann em Rain Man.

    Autistas recebem ainda hoje os mais diferentes diagnsticos mdi-cos, incluindo desde transtorno obsessivo-compulsivo, personalidade es-quizoide, esquizofrenia, transtornos de humor, deficincia mental isola-da. Apesar disto, o quadro clnico do autismo j foi bem descrito e ca-racterizado, manifestando-se por comprometimento do relacionamento so-cial, por repertrio repetitivo e estereotipado de comportamentos, por di-ficuldades de linguagem e por insistncia em determinadas rotinas nofuncionais. Suas manifestaes so extremamente variveis, indo do ex-tremo com ausncia de desenvolvimento da linguagem, retraimento soci-al importante e dependncia nas atividades de vida diria at aqueles quese formam em universidades e atingem funcionamento social, mantendoalgumas dificuldades de comunicao e de interao social. Pode parecerestranho para algumas pessoas, mas deficincia mental no uma das ca-ractersticas diagnsticas para o autismo. Da mesma forma, os savants, au-tistas que desenvolvem habilidades especiais, so extremamente raros. Asmanifestaes esto presentes sempre na infncia, geralmente antes dostrinta meses. Esta condio persiste durante toda a vida do indivduo, geral-mente modificando-se ao longo dos anos (RAPIN, 1997; DSM-IV-TR, 2005).

  • 6O termo tem origem no grego: autos que significa prprio (ZA-FEIRIOU et al., 2007). Clemens Benda (apud BENDER, 1959) destaca queo termo idiotia, de origem grega tem o mesmo significado de autismo,de origem latina, descrevendo uma pessoa que vive em seu prprio mun-do, uma pessoa fechada ou reclusa.

    O autismo foi inicialmente descrito em 1943, como veremos em de-talhes mais adiante, por um pesquisador alemo, radicado nos EUA, denome Leo Kanner. At este momento, pouco se falava em autismo ou emoutras patologias psiquitricas na infncia. Mas e antes disto, onde anda-vam os autistas? Alguns creem que os antigos idiots du village, de diversasanedotas do passado, poderiam incluir diversos exemplos de deficientesmentais e de autistas. Ou ser que a tenso da sociedade moderna, na qualno h condies timas para o desenvolvimento emocional satisfatrio,teria desencadeado o aparecimento desta condio (DESPERT, 1971)?

    O comeo: e, no incio, no havia luz

    Historicamente, a psiquiatria demorou muito para reconhecer pato-logias em crianas. Somente em 1867, Maudsley, um importante psiquia-tra britnico daquele perodo, incluiu em seu livro Physiology and Patho-logy of Mind (fisiologia e patologia da mente, em ingls), um captulo so-mente para crianas, denominado de Insanidade no incio da vida. Estecaptulo era somente uma tentativa muito primitiva de correlao de sin-tomas com estado de desenvolvimento, sugerindo uma classificao queinclua os seguintes diagnsticos:

    monomania; mania Coreica; insanidade catatnica; insanidade epilptica; mania; melancolia e insanidade afetiva.Mesmo na reedio de seu livro, em 1880, no foi modificada a es-

    trutura deste captulo. Ainda assim, esta publicao foi considerada umimportante marco na histria da psiquiatria infantil. digno de nota, porexemplo, que nos primeiro 45 volumes do American Journal of Insanity

  • 7(Jornal Americano de Insanidade), no perodo de 1844 a 1889, no foipublicado nenhum estudo ou relato de caso de crianas (KANNER, 1971).

    No incio do sculo XX, DeSanctis, na Itlia, verificou que entre ascrianas frenastnicas (portadoras de deficincia mental) havia algu-mas que desenvolviam sintomas vesnicos (psicticos, na linguagemmoderna), o que o levou ao estudo da associao entre deficincia mentale dementia prcox (demncia precoce). Em 1906, ele concluiu que algu-mas crianas, portadoras de deficincia mental, podiam desenvolver sin-tomas psicticos, enquanto que outras, sem alteraes neurolgicas e in-telectualmente bem desenvolvidas, eram consideradas como portadorasde demncia precocssima, pela idade precoce em que os sintomas seiniciavam. Diversos relatos de caso apareceram a seguir na literatura m-dica da Europa, mas o termo logo perdeu o sentido, tendo em vista a asso-ciao de diferentes quadros clnicos sob o mesmo diagnstico (KANNER,1971).

    Em 1908, a educadora austraca Heller descreveu seis crianas queapresentavam um quadro clnico muito estranho. O incio dos sintomasse dava em torno do terceiro ou do quarto ano de vida, aps perodo dedesenvolvimento aparentemente normal, com mal-estar progressivo, r-pida diminuio de interesse pelo ambiente e pelas pessoas, com perdade fala e de controle esfincteriano e regresso iditica1 com preservaoda fisionomia inteligente e do funcionamento motor grosseiro.

    O termo autismo foi inicialmente introduzido na literatura mdi-ca por Eugen Bleuler (1857-1939), em 1911, para designar pessoas quetinham grande dificuldade para interagir com as demais e com muita ten-dncia ao isolamento. Mesmo assim, autismo para Bleuler no tinha osignificado que conhecemos modernamente. Bleuler trabalhava princi-palmente com pessoas psicticas e esquizofrnicas. Seu trabalho intensocom estes indivduos resultou na publicao de uma monografia, em 1911,sobre esquizofrenias. Neste estudo, ele propunha uma nova definio (es-quizofrenia) do que havia sido anteriormente denominado de demnciaprecoce por Kraepelin e outros (KANNER, 1971; STONE, 1999). Identifi-

    1 Deve-se manter em mente que, apesar de soar extremamente agressivo e estranho aos nossosouvidos no sculo XXI, idiota e idiotia eram termos cientficos empregados comumenteno incio do sculo XX, para designar indivduos portadores de deficincia mental.

  • 8cava, como sinais desta condio, quatro sinais, denominados de quatroAs: Autismo, Associaes frouxas, Ambivalncia e Afeto inadequado(STONE, 1999). Bleuler falava de autismo como um distrbio da consci-ncia no qual h desligamento parcial ou absoluto da pessoa em relao realidade e a vida interior (BENDER, 1959).

    Em 1933, Potter (apud KANNER, 1971) desenvolveu e formulou osprimeiros critrios para diagnstico de esquizofrenia infantil (ainda nose falava de autismo, especificamente), incluindo (a) retrao generaliza-da de interesses e do ambiente; (b) pensamentos, aes e sensaes desa-gregadas; (c) comprometimento do pensamento, manifesto por bloqueios,simbolismos, condensao, perseverao e incoerncia, eventualmente seestendendo at o mutismo; (d) defeitos dos relacionamentos emocionais;(e) diminuio, rigidez e distoro do afeto; (f) alterao com comporta-mento, podendo incluir tanto aumento de mobilidade, com atividade in-cessante, at diminuio da mobilidade, com completa imobilidade e com-portamento bizarro, com tendncia a perseverao e a estereotipias.

    Jean Piaget (1936, apud BENDER, 1959) via o autismo e o pensa-mento autista como um primeiro estgio no desenvolvimento da inteli-gncia das crianas normais. De novo, Piaget no empregava o termo au-tismo sem a conotao moderna. Ele via a inteligncia originando-se defenmenos sensitivo-motores no direcionados e, portanto, autistas. Oprximo estgio descrito por Piaget a inteligncia egocntrica e, pos-teriormente, a inteligncia comunicativa. Em um estudo anterior, Piagetdefinia o pensamento autista como subconsciente, no qual no haviapercepo consciente dos objetivos e dos problemas a serem resolvidos.Desta forma, o pensamento no era adaptado realidade externa, mascriava um mundo em si mesmo, um mundo de sonhos (BENDER, 1959).

    O autismo clssico foi inicialmente descrito pelo psiquiatra Leo Kanner,no Hospital Johns Hopkins, nos EUA, em 1943. A psiquiatria dava, nesteperodo, seus primeiros passos para se estabelecer definitivamente comouma especialidade distinta da neurologia. No havia grande desenvolvi-mento da psiquiatra infantil, a qual, como geralmente ocorre com a maio-ria das especialidades peditricas, teve um reconhecimento posterior. Defato, Kanner tornou-se o primeiro psiquiatra infantil, graas aos seus tra-balhos originais neste campo. Seu livro, Child Psychiatry (psiquiatriainfantil), publicado inicialmente em 1935, foi o primeiro livro-texto a

  • 9focar especificamente distrbios psiquitricos em crianas (STONE, 1999;PEARCE, 2006).

    Leo Kanner havia observado o primeiro de seus pacientes descritosneste estudo clssico em 1938. Ao todo, seu trabalho inclua descrio deonze crianas: oito meninos e trs meninas (KANNER, 1943).

    Ele descreveu com pormenores o que julgava ser uma condio neu-rolgica nica que era aparentemente decorrente da incapacidade de es-tabelecer vnculos afetivos prximos com outras pessoas e para tolerarmodificaes menores do ambiente e das rotinas dirias. A caractersticaprincipal de todas as crianas era uma incapacidade importante de se re-lacionar com as demais pessoas, iniciando-se nos primeiros anos de vida(KANNER, 1943). Ele tambm descreveu caractersticas que considerousecundrias, como alteraes de fala e de linguagem (como atraso de de-senvolvimento de linguagem, emprego de entonao pouco comum, usode pronomes trocados e perseverao), desenvolvimento cognitivo altera-do, comportamentos repetitivos e sensibilidade pouco comum a determi-nados fatos e situaes. Oito das onze crianas desenvolveram lingua-gem, mas no a empregavam para comunicao com as demais pessoas.Estas crianas no apresentavam, contudo, deficincia mental, como des-tacou o autor. Verificou-se que, nestas crianas, o comportamento era anor-mal desde fases mais precoces da infncia (PEARCE, 2006).

    Fisicamente, estas crianas eram descritas como normais. Analisan-do os pais das crianas, Kanner descrevia que todos eram altamente inte-ligentes, com nvel superior, com interesse em cincias, medicina, litera-tura e artes, com pouco interesse genuno em pessoas. Inclusive destaca-va que oito das onze mes eram formadas em faculdade, em um perodo

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    em que no era to frequente que mulheres tivessem nvel superior. Mui-tas vezes, estas caractersticas estendiam-se aos avs e demais colaterais(KANNER, 1943).

    Kanner descrevia que as crianas autistas tentavam manter o mun-do externo distante. Esta impresso tinha por base diferentes fatores, prin-cipalmente a observao de recusa alimentar nos primeiros meses de vida,destacando a comida como a primeira intruso do mundo externo em nos-sas vidas (KANNER, 1943).

    Na descrio original, Kanner cunhou o termo autismo infantil pre-coce. Ele sugeria que o autismo tinha origem em alteraes de interaoentre a criana e seus pais, criando o termo me geladeira (PEARCE,2006). De acordo com Kanner, toda a sintomatologia e o padro de com-portamento da criana autista determinado pelo fato de que esta inca-paz de usar as funes executivas do ego auxiliar do parceiro simbitico,a me, para orient-lo no mundo externo e no mundo interno (1943).

    Kanner descreveu os pais de crianas autistas como frios, ausentes edistantes, mas que haviam se descongelado por tempo suficiente paraproduzir uma criana. Por outro lado, interessante de se observar queKanner, em suas anotaes pessoais, destacava que poucas vezes em suaprtica clnica ele identificava crianas to bem observadas pelos seuspais (SILVERMAN et al., 2007).

    Apesar da descrio de isolamento e de frieza por parte dos pais e,principalmente, das mes, alguns dos detalhados relatos fornecidos porKanner, em 1943, mostravam pais preocupados, capazes de fazer relatospormenorizados e detalhados de seus filhos. Por exemplo, descrevia que ame de Donald, seu primeiro paciente, era (...) a nica pessoa com quemmantinha contato e (...) ela passava todo o seu tempo tentando desenvol-ver modos de brincar com ele.

    Kanner, no incio dos anos 70, tentou retomar contato com o seugrupo de onze crianas originalmente identificadas em 1943. Destas, noobteve informao de duas. Uma destas havia falecido, com 29 anos, nose descrevendo as causas e situaes especficas do ocorrido. Do grupo denove autistas, agora adultos, somente dois haviam obtido algum sucessoprofissional e em seus relacionamentos pessoais. Ainda assim, ambos ti-nham dificuldades sociais e de relacionamentos. Os demais permanece-ram em instituies para pessoas deficientes, com pouco ou nenhum con-

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    tato com seus familiares. Para as crianas que haviam sido institucionali-zadas, Kanner observava que estas haviam sido um marco em suas vidas,selando definitivamente o prognstico sombrio, em que no desenvolve-ram contatos com outras pessoas, adquiriram linguagem e comunicao,mantendo somente a mesma rotina de sempre (KANNER, 1971).

    Em Nova Iorque, no Hospital Bellevue, Lauretta Bender, trabalhavacom crianas com diagnstico de autismo, geralmente associado dificul-dade da fala, e que tratavam as demais pessoas como objetos. Denomina-va esta condio como esquizofrenia da infncia (1947). Ao contrrio deKanner, Bender reconhecia que os sintomas eram decorrentes da consti-tuio da criana e no do ambiente em que se inseriam (STONE, 1999).

    Em 1949, Mahler e Furer introduziram o conceito de psicose simbitica,que ocorria em crianas constitucionalmente vulnerveis (KANNER,1971).

    Do outro lado do Atlntico, um ano aps a publicao inicial deKanner, e sem ter conhecimento desta, Hans Asperger, um psiquiatra de Vie-na, ustria, publicou seu artigo original Autistic Psychopathy in Childhood(psicopatologia autista da infncia), em alemo. impressionante mesmoque estes autores, sem terem conhecimento de suas pesquisas, tenhamempregado praticamente o mesmo termo para designar a condio dascrianas. preciso lembrar que o mundo estava em guerra nesta poca eque trocas de informaes cientficas entre os EUA e pases germnicosno ocorriam. Este artigo foi somente traduzido para o ingls em 1991(HIPPER et al., 2003; ZAFEIRIOU, 2007).

    Asperger descrevia meninos com inteligncia preservada e com de-senvolvimento de linguagem normal, mas que apresentavam comporta-mento autista e comprometimento importante de habilidades sociais e de

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    comunicao. Enquanto que as trs das onze crianas descritas por Kannerno falavam nada e as demais tivessem comprometimento importanteda linguagem, os meninos de Asperger falavam como pequenos adultos.Adicionalmente, Kanner descrevia que as crianas apresentavam coorde-nao motora prejudicada, com preservao das capacidades motoras fi-nas. Asperger, por outro lado, descrevia que ambas as capacidades esta-vam comprometidas. Enquanto Kanner descrevia no haver deficinciamental nos seus meninos autistas, Asperger referia que a inteligncia dascrianas era varivel, indo desde o gnio absolutamente original at oindivduo mentalmente retardado (HIPPER et al., 2003; PEARCE, 2006).A tendncia familiar do autismo foi inicialmente verificada por Asperger(ZAFEIRIOU et al., 2007).

    A descrio original de Asperger inclua:Comprometimento da interao social, da comunicao e padres

    de comportamento, de interesses e de atividades restritos e repetitivos(...). Interesses especficos, fixao anormal, brincadeiras e movimentosestereotipados e comportamentos ritualizados (...). (PEARCE, 2006).

    Na descrio de Asperger, algumas caractersticas eram fundamen-tais para o diagnstico clnico:

    Comprometimento importante do contato afetivo (emocional) comoutras pessoas.

    Insistncia intensa nas suas rotinas.

    Mudez ou anormalidade da fala.

    Fascinao na manipulao dos objetos.

    Capacidades visuo-espaciais e de memria desenvolvidas, mas comdificuldade de aprendizado importante nas demais reas.

    Aparncia inteligente, alerta e atrativa.Quatro casos descritos por Asperger eram muito similares aos de

    Kanner. Os sintomas descritos por Asperger em seus casos preenchiamtrs critrios do DSM-IV para autismo (PEARCE, 2006). Em uma revisoretrospectiva dos casos avaliados por Asperger, Hipper e Klicpera (2003)identificaram que 68% dos meninos preenchiam critrios da dcima edi-o da Classificao Internacional das Doenas (CID 10) para Sndromede Asperger e que 25% tinham critrios para autismo.

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    O conceito do que hoje se denomina de Sndrome de Asperger foidesenvolvido por Van Krevelen, em 1963; por Lorna Wing, em 1981 e,mais recentemente, por Christopher Gillberg, em 1998 (BERNEY, 2004).

    Do ponto de vista cronolgico, a Sndrome de Rett foi descrita pos-teriormente, em 1966, na literatura mdica de lngua alem, por AndreasRett, um neuropediatra e professor da Universidade de Viena anos apsas descries clssicas de Kanner e de Asperger. O nome originalmenteescolhido para a patologia foi atrofia cerebral com hiperamonemia. Estenome no se manteve como designao considerando-se que atrofia cere-bral no um achado importante em estudos patolgicos e que o aumentodos nveis de amnia nem sempre verificado. O nome Sndrome de Rettfoi cunhado por Bengt Hagberg, professor da Universidade de Gottem-burg, na Sucia. Foi este pesquisador que difundiu os conhecimentos dasndrome com a descrio de 35 casos, publicada em 1983 (TEMUDO etal., 2002).

    Rett descreveu 22 meninas que apresentam atrofia cerebral progres-siva, com movimentos estereotipados das mos, demncia, alalia, apraxiade marcha e tendncia a apresentar crises epilpticas (TEMUDO et al.,2007). Em 1983, Hagberg e colaboradores ampliaram o conhecimento dadoena entre os pases de lngua inglesa publicando um artigo que inclua35 meninas com uma condio similar descrita por Andreas Rett comautismo progressivo, perda do uso voluntrio das mos, ataxia e micro-cefalia adquirida (WEAVING et al., 2005).

    O primeiro caso de autismo descrito na Europa foi publicado porVan Krevelen, na Holanda, em 1960. Uma das caractersticas destacadaspor este autor foi de que, em poucas situaes em sua prtica clnica,encontrava pais que forneciam informaes to detalhadas e acuradas so-bre seus filhos. No entanto, ele tambm descrevia mudanas nestas atitu-des, com incerteza e confuso, as quais atribua a influncias iatrognicasdecorrentes de atribuir aos pais a causa do autismo (VAN KREVELEN, 1971).

    O autismo recebeu diferentes nomes nos primeiros anos que segui-ram descrio de Kanner. Entre estes, temos o autismo esquizofrnico,de Bender, 1959; autismus infantus, de Van Krevelen (1971), trade dedeteriorao social, por Rutter; sndromes autistas, por Wing, desordensautistas, por Coleman e Gillberg (RODRGUEZ-BARRIONUEVO et al.,2002)

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    Teorias e hipteses do autismo

    Inicialmente, o autismo foi classificado entre as psicoses infantis. Afalta de critrios bem estabelecidos para o diagnstico de autismo permi-tiu que esta confuso persistisse por diversos anos.

    O termo psicose infantil foi introduzido no comeo do sculo XX,quando Heller descreveu uma apresentao clnica que se conhece atual-mente como transtorno desintegrativo (dementia infantilis) atualmenteincludo nos transtornos globais de desenvolvimento, de acordo com oDSM-IV-TR (MERCADANTE et al., 2006). No entanto, Kanner (1943) jdiferenciava o autismo destes casos pelo fato de os pacientes de Hellerterem desenvolvimento normal nos dois primeiros anos de vida.

    Ao contrrio do que supunha Kanner, van Krevelen acreditava que oautismo era um processo psictico, enquanto que a psicopatia autstica deAsperger era considerada como um trao de personalidade (VAN KREVE-LEN, 1971).

    No incio dos anos 50, Rank desenvolveu o conceito de crianaatpica, como uma designao abrangente para crianas que apresenta-vam sinais de fragmentao do ego, em associao prxima com psico-patia materna. A sua ideia, no fundo, era a seguinte: Por que se preocuparcom gentica, com organicidade, com metabolismo ou com outras ques-tes se podemos ir diretamente para o denominador comum psicognicocomum a todos os comprometimentos do ego? Desta forma, ele sugeriaum saco de gatos, em que diferentes patologias manifestas por sintomasde incio precoce, como a psicose da infncia, a esquizofrenia da infncia,autismo e deficincia mental, poderiam ser includas (KANNER, 1971).

    Ao final da dcada de 50, o autismo ainda considerado, na literatu-ra mdica, como uma das formas mais precoces de reaes esquizofrni-cas que podem se manifestar no Homem, tornando-se evidente ao finaldo primeiro ou do segundo anos de vida (EISENBERG, 1956).

    Hilde Mosse (1958) foi uma das mais importantes defensoras da di-ferenciao entre autismo, psicose e esquizofrenia. Ela defendia que es-quizofrenia havia se tornado um diagnstico da moda nos EUA na dca-da de 50. No entanto, Mosse destacava: no uma doena da infncia,com incio dos sintomas durante a adolescncia ou incio da vida adulta.Diversos casos descritos por ela haviam recebido diagnstico errneo deesquizofrenia durante a infncia e submetidos a eletroconvulsoterapia

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    (ECT), com resultados desastrosos. Ela defendia o emprego do chamadoteste do Mosaico como forma de diferenciao da esquizofrenia das de-mais neuroses e patologias de base afetiva.

    No perodo de 1940 a 1960,especialmente nos pases de lnguainglesa, desenvolveu-se uma verda-deira orgia de ataques aos pais (doingls: orgy of parent-bashing), con-forme o termo cunhado por EdwardDolnick (apud Ortega, 2009).

    Bruno Bettelheim e muitos deseus colegas psiclogos interpreta-vam, a partir da dcada de 1950, oautismo sob o prisma freudiano, bas-tante em voga naquele perodo,como uma sndrome de alterao doego resultante de rejeio inconsci-ente dos pais. Com base no conceitodas mes-geladeira, sugerido ini-cialmente por Kanner, Bettelheim eseus colegas indicavam, como um passo aparentemente lgico, psicotera-pia tanto para os pais como para os portadores de autismo. No entanto, aoinvs de levar melhora, observava-se somente aumento do sofrimentodos pais e a persistncia das manifestaes de comportamento nas crian-as (VAN KREVELEN, 1971; SILVERMAN et al., 2007).

    Bruno Bettelheim mais conhecido atualmente pelo seu trabalhoem contos de fada (no livro Usos do Encantamento) e sobre o tratamentode crianas autistas. Muitos consideram o envolvimento de Bettelheimcom o autismo uma das pginas mais negras da histria desta condio(SILVERMAN, 2009). Apesar de ser um dos pesquisadores e autores maisconhecidos neste campo, Bettelheim no foi o primeiro nem o nico aexplorar ideias psicanalticas sobre autismo. Aps seu suicdio em 1990,aos 86 anos, diversas acusaes sobre o trabalho de Bettelheim vieram tona, incluindo plgio de seus estudos sobre contos de fadas, acusaesde abusos fsicos e verbais das crianas acompanhadas na Escola Ortog-

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    nica e elaborao e difuso da teoria das mes-geladeira, recusando-se amodificar as suas ideias sobre as mes e pais de crianas autistas, mesmoque diversas evidncias acumulavam-se contra a teoria psicognica doautismo (Silverman, 2009).

    Esta histria teve incio com as observaes de crianas autistas naEscola Ortognica, com base nas quais Bettelheim iniciou um esboo deuma nova teoria etiolgica do autismo e de uma modalidade de tratamen-to at ento desconhecida. Deve-se destacar que a definio empregadapor Bettelheim para autismo era semelhante de Kanner, incluindo crian-as que no apresentavam deficincia mental. Bettelheim obteve inspira-o para suas ideias de estudos publicados por Sigmund Freud, John Dewey,Erik Erikson, August Aichhorn e Anna Freud (SILVERMAN, 2009). Bette-lheim lembra que os primeiros dias de vida de uma criana so funda-mentais para o desenvolvimento do ego. Ele tomou a amamentao comoexemplo, argumentando que muito depende de como a criana seguradae de quanto leite toma. A qualidade da amamentao e dos cuidados ma-ternos torna-se o grau em que a sua satisfao permite com que modele asua experincia em termos de sua prpria necessidade. Bettelheim identi-ficava o ponto inicial do autismo nos primeiros dias de vida, determinan-do que a relao me-filho precedia a ausncia de resposta da criana sua me (ZELAN, 2000). Ele publicou um livro, em 1967, denominado deA Fortaleza Vazia, no qual defendia as suas ideias sobre o autismo, tendopor base quatro longos e detalhados estudos de casos, mas tambm umacoorte de cerca de quarenta pacientes acompanhados na Escola Ortogni-ca (ZELAN, 2000; SILVERMAN, 2009). Na apresentao do caso de Lau-rie, Bettelheim elabora a sua teoria sobre as origens do autismo, defen-dendo que minha crena de que o fator precipitante do autismo infantil a vontade dos pais de que a criana no deveria existir. O autismo seriaum incessante feedback entre o isolamento da criana e a resposta inade-quada dos pais. Estava clara a responsabilidade dos pais, mas somente otratamento psicanaltico poderia torn-los conscientes de seu papel (SIL-VERMAN, 2009).

    Este livro foi publicado tendo por alvo o pblico leigo e rapidamen-te se tornou um best-seller. Para os leitores de A Fortaleza Vazia, o autis-mo representava uma metfora para o amor frustrado e o resultado maissombrio da criao de uma criana em um pas de pais cada vez maisansiosos (SILVERMAN, 2009). De forma alguma esta publicao foi rece-

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    bida como consenso pela comunidade psiquitrica e psicolgica dos EUA,uma vez que ignorava completamente as alteraes neurolgicas associa-das com o autismo. Mas como no havia medicamentos capazes de modi-ficar a evoluo do quadro clnico, os terapeutas tinham, neste momento,poucas opes de teraputica. Ainda que os pais no fossem includos noprograma da escola ortognica, ele afirmava que o convvio com a crian-a autista era extremamente difcil para os pais, os quais muitas vezesno tinham recursos seno responder erraticamente ou punitivamente(ZELAN, 2000).

    Em 2002, foi lanado um documentrio televisivo nos EUA, deno-minado Mes-Geladeira, no qual os relatos dos pais de autistas que vi-venciaram a poca da teoria psicanaltica de Bettelheim so expostos. Umartigo publicado em 1979 pode resumir a sensao de uma destas mes:Eles nunca estiveram realmente interessados em nosso filho, mas solici-tavam que meu marido e eu comparecssemos todo o tempo o tratamen-to era direcionado em ns. Ambos acreditvamos que nos amvamos an-tes de ir l e, aps este tempo, as coisas nunca mais foram as mesmas,mesmo que j se tenham passado quinze anos. Eu nunca aceitei Bette-lheim (...) No, ningum amava mais algum ou algo do que eu amavameu filho. Eu daria minha vida por esta criana, pelo menor sinal de suamelhora. E eu fao isto todos os dias (SILVERMAN, 2009).

    Durante toda a dcada de 1950, as mes de crianas consideradascomo esquizofrnicas ou como autistas eram severamente punidas porserem ambguas ou frias. Todas as causas dos distrbios emocionaisdas crianas eram, neste perodo, atribudas somente ao chamado fatormaterno, independente do fato do comportamento da me ter contribudopara a doena do filho (STONE, 1999). Ainda assim, a concepo das mesesquizofrenognicas, difundida no incio do sculo XX, era, j nesteperodo atacada por diversos autores, chegando a ser considerada comoum fenmeno cultural da psiquiatria daquele momento (EINSENBERG,1956). Caractersticas especficas dos pais de autistas foram analisadasem diversos estudos neste perodo. Alguns destes apontavam que os paisde autistas tinham nvel acadmico superior em comparao com os decrianas esquizofrnicas (MOORE, 1971).

    Einsenberg, analisando os pais de cem crianas autistas, descreveuque 85% destes eram obsessivos, desprovidos de humor, perfeccionistasao extremo e, ainda que fossem mais intelectuais, no eram pensadores

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    originais. Para eles, o trabalho vinha antes da famlia e do casamento. Esteestudo prope que estes no queriam ter filhos, mas que os consideravamcomo uma parte do padro formal de casamento, uma obrigao a ser as-sumida. Estes pais buscavam conformidade, obedincia e aceitao porparte das crianas. Nos restantes 15% dos casos, os pais eram calorosos,devotados. Neste ltimo subgrupo de pacientes, Eisenberg destaca a pre-sena de psicopatologia da me em catorze, restando quatro famlias nasquais nenhum dos pais tinha comportamentos considerados anormais(EINSENBERG, 1956).

    Na dcada de 70, a maioria dos pesquisadores ainda concordava sercomplicado diferenciar, somente com base em critrios de comportamen-to, autismo de esquizofrenia infantil. O desenvolvimento normal de habi-lidades sociais e de comunicao nos primeiros anos de vida era defendi-do pela maioria dos pesquisadores como um dos pontos-chave (MARGO-LIES, 1977).

    Por outro lado, Rutter (1971) destacava que diversos estudos anali-sando os pais de autistas e de crianas no autistas com outras dificulda-des de linguagem no mostravam diferenas significativas. Ainda assim,se defendia que, embora o autismo no tivesse origem em influncias psi-cognicas, como ocorre em qualquer outra criana, circunstncias ambi-entais podem influenciar no sentido de desenvolver limitaes secund-rias.

    Na dcada de 1950, Margaret Schoenberger Mahler (1952) descreviaas psicoses infantis autistas e simbiticas. A autora defendia que a crianaautista no tolera contato humano, o que j era possvel de se observardurante o perodo da amamentao. A criana simbitica, por outro lado,passava despercebida at o perodo em que tinha de se separar dos pais,quando desenvolvia uma aterrorizadora ansiedade de separao (STONE,1999). Mahler tambm desenvolveu o conceito de que o autista, uma vezadolescente, que no tivesse emergido de sua doena, teria nvel de fun-cionamento semelhante a de um deficiente mental, ainda que seja distin-guveis deste pelo isolamento afetivo persistente (EINSENBERG, 1956a)

    Lauretta Bender (1959) considerava que o comportamento e o pen-samento autistas eram sintomas de defesa ou secundrios, empregando otermo pseudo-defectivo ou pseudo-neurtico. Defendia que o autis-mo no sinnimo de psicose e no indica um tipo de doena mentalespecfica, podendo ocorrer em qualquer tipo de criana com problemas

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    neurolgicos e psiquitricos. Ela observa-o que, mesmo aps seguimentodas crianas at a adolescncia ou vida adulta, no era possvel tir-las deseu comportamento autista, permanecendo cronicamente dependentes(BENDER, 1959).

    Virginia Axline foi uma das pioneiras na introduo da ludoterapiana abordagem de crianas com deficincia mental, leses cerebrais e au-tismo. Publicou um livro relatando a cura de uma criana, de nome Dibs,atravs de associao de ludoterapia e de psicanlise.

    Parte do trabalho de Bettelheim foi posteriormente seguido por di-versos de seus alunos, dos quais possivelmente a que obteve maior suces-so foi Karen Zelan. Esta tambm adaptou tcnicas de ludoterapia paraabordagem de crianas autistas.

    Martha Welch desenvolveu uma forma de tratamento que associavaa proximidade (forada se necessrio) da criana, a qual era mantida abra-ada pela me, e abordagem psicanaltica (SILVERMAN, 2009).

    Einsenberg (1956a) considerava que o principal mecanismo psico-patognico no autismo infantil era o comprometimento da percepo so-cial, anlogo ao das dificuldades perceptuais em nvel sensitivomotor. Eledefendia que no havia um stio enceflico especfico comprometido noautismo, mas que este refletia a falta de integrao cortical dos compo-nentes afetivo e cognitivo do comportamento. Neste sentido, o autismoseria uma sndrome de inadequao afetiva (EINSENBERG, 1956a).

    Em uma memria recentemente escrita, Clara Claiborne Park des-crevia que a despersonalizao da abordagem clnica pode facilmenteter levado pais, anteriormente calorosos e engajados, a parecer distantes.Ela cogita mesmo que profissionais geladeira possam ter originado ospais geladeira (SILVERMAN, 2007).

    Foi somente na dcada de 60 que profissionais da rea da sadepassaram a considerar mais seriamente outras formas de compreenderautismo, muitas vezes motivados pelos pais, que desafiavam o conheci-mento mdico tradicional. Em 1964, Bernard Rimland descreveu o autis-mo infantil como uma doena neurolgica com possvel origem em altera-o funcional da formao reticular ativadora, ideias defendidas no livroAutismo Infantil. O casal Rimland havia diagnosticado o seu filho comoportador de autismo infantil em um momento em que os profissionaismdicos no estavam familiarizados com este diagnstico. Talvez pelofato de Rimland ter treinamento profissional como psiclogo, nem ele,

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    nem sua esposa tinham muita pacincia com a abordagem psicoteraputi-ca para o autismo. Rimland argumentava mesmo que tendncias sociaisatpicas e intelectualismo dos pais de uma criana autista pudessem serevidncias de leves traos autistas dos pais o que pesquisadores tmatualmente denominado de fentipo ampliado do autismo. Rimland foium dos primeiros defensores do tratamento de autismo com suplementa-o de altas doses de vitamina B6 e de magnsio. Ele tambm se interes-sou por outras formas de tratamento em voga naquele perodo, desde aterapia comportamental, a psicanlise e o tratamento de desintoxicao(SILVERMAN, 2009).

    No momento da publicao do livro de Rimland, criou-se um deba-te considervel entre este e Bettelheim. Apesar de no concordar em nadacom as ideias de Rimland, Bettelheim concordava que no havia ganhoteraputico em se culpar os pais das crianas pela origem do autismo.Defendia a ideia de que os pais agiam desta forma porque no eram capa-zes de atuar de outra (SEVERSON, 2009; SILVERMAN, 2009).

    O casal Rimland foi um dos co-fundadores da National Society forAutistic Children (mais tarde teve seu nome modificado para Autism Societyof America) (SILVERMAN et al., 2007).

    Rimland (1964, apud MOORE, 1971) defendia a teoria do insulto dooxignio. De acordo com esta teoria, uma criana potencialmente inteli-gente cujo crebro tinha a tendncia de se desenvolver com velocidadesuperior ao habitual, quando exposto ao oxignio atmosfrico ou suple-mentar, especialmente durante perodo de imaturidade, tinha possibili-dade de sofrer leso vascular. Estudos patolgicos no comprovaram estateoria, a qual foi posteriormente abandonada.

    OGorman (1970, apud RUTTER, 1971) defendia que o autismo ocor-ria como um mecanismo de defesa e que a sndrome somente o exagerode fenmenos normais. Ele defendia que todos ns temos a capacidade denos isolarmos do meio externo, como ocorre quando estamos concentra-dos na leitura de um livro, por exemplo. Sugeria que crianas autistasisolam-se de estmulos auditivos durante a infncia e continuam a mani-festar este isolamento, at que se torne um hbito. Esta hiptese no ga-nhou muitos seguidores, especialmente por no apresentar suporte emdados empricos.

    Michael Rutter (1971) defendia que autismo e esquizofrenia infantilno estavam relacionados do ponto de vista do quadro clnico ou das suas

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    causas, bem como de antecedente familiar de esquizofrenia, nvel intelec-tual, padro cognitivo, presena de alucinaes e de iluses e evoluoclnica.

    Moore e Shiek (1971) defendiam que o autismo era decorrente deuma disfuno fisiolgica da formao reticular ativadora, resultante docomprometimento da regulao homeosttica de entradas sensoriais. Elesdefendiam que a privao sensorial do feto (neurolgica e evolutivamentemais avanado do que os demais) durante a vida intrauterina levaria aodesenvolvimento posterior do autismo. Ou seja, de acordo com suas idei-as, o feto autista seria muito precoce em seu desenvolvimento neurolgi-co. E, por ser privado de estmulos sensoriais durante a vida intra-uterina,desenvolveria um comportamento semelhante durante a infncia e portoda a vida. Esta teoria foi fortemente atacada por Roger Webb, colega deKanner na Johns Hopkins University, por ser baseada em ideias errneassobre estimulao e sobre inteligncia (WEBB, 1972).

    Daniel Duch, diretor do servio de psiquiatria infantil do HospitalSalptrire, em Paris, destacava, em 1971, a importante correlao entreidade de incio dos sintomas e a natureza da psicose da infncia. Ele em-pregava o termo esquizofrenia para os casos em que a psicose tinha incioaps o perodo em que a personalidade da criana j estava mais estrutu-rada. Denominava de demncia infantil os quadros que tinham inciomais precocemente na infncia, os quais geralmente tinham causas org-nicas, como encefalites ou lipoidose. Os principais sintomas que compu-nham o quadro clnico da demncia infantil eram perda progressiva dalinguagem, presena de movimentos estereotipados, acessos de raiva,embotamento do afeto, indiferena em relao aos familiares. Alucina-es aterrorizantes e encoprese tambm poderiam ocorrer em alguns ca-sos. Analisando-se retrospectivamente, estes sintomas assemelham-semuito aos do que atualmente denominamos de autismo.

    Em Oxford, nos anos 60 e 70, o grupo liderado por Ounsted e Hutts(apud RUTTER, 1971) defendia a hiptese de que o autismo era uma for-ma de introverso extrema, geneticamente determinada, associada a des-pertar elevado em situaes sociais. No entanto, esta teoria no foi levadaadiante por no explicar diversas caractersticas do autismo, inclusive opredomnio no sexo masculino.

    Sugeriu-se tambm que o autismo poderia ser decorrente de priva-o social e emocional e de contato pessoal. No entanto, ainda que crian-

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    as que sofram de privao emocional extrema possam apresentar isola-mento social e atraso do desenvolvimento de linguagem, diversos sinto-mas so distintos do autismo e h distribuio idntica em meninos e emmeninas (RUTTER, 1971).

    A teoria psicognica do autismo, iniciada com Kanner, em 1943, foiabandonada gradativamente na dcada de 1970, principalmente com acorrelao de autismo com diversas sndromes neurolgicas e com as des-cobertas genticas que se seguiram nas dcadas adiante. Outro fator im-portante a ausncia de resposta ao tratamento psicoterpico indicadopara o tratamento do autismo. Ainda assim, h diversas escolas que aindaa defendem e empregam diariamente, mesmo no sculo XXI.

    De fato, a correlao entre autismo e fatores genticos passou a sermelhor determinada a partir da dcada de 1960, quando elevada concor-dncia em gmeos monozigticos foi inicialmente descrita por B. Rimland(SILVERMAN et al., 2007; ZAFEIRIOU et al., 2007). Rutter (1971) descre-via que causas genticas de autismo deveriam explicar um pequeno n-mero de casos, com base em achados de estudos epidemiolgicos publica-dos naquele momento, descrevendo recorrncia de autismo em 2% dosirmos nmero consideravelmente superior incidncia verificada de 4a 5 por 10.000.

    Quadro clnico e diagnstico

    Kanner (1943), j na sua descrio inicial, incluiu sintomas de au-tismo que ainda so reconhecidos modernamente. No entanto, no foramestabelecidos, neste perodo, critrios para diagnstico do autismo. Eleincluiu doze caractersticas principais do autismo:

    1. A criana autista est sempre isolada e distrada.2. A criana parece ser normal, alerta e expressiva.3. Coordenao motora parece normal, com movimentos rpidos e

    propositais.4. Evita contato direto no olho e no responde aos estmulos visuais

    e auditivos dos demais.5. No esboa necessidade de contato fsico na primeira infncia.6. No inicia sons e gestos.7. No emprega linguagem para comunicao.

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    8. Apresenta facilidade com objetos, em contraste com grande dificul-dade de relacionamento com pessoas e com comunicao verbal.

    9. Testes psicomtricos so mascarados pelas dificuldades de comu-nicao.

    10. Desejo obsessivo em manter rotinas.11. Enurese noturna, sugar os dedos, roer as unhas e masturbao

    so raramente associados com autismo infantil precoce.12. Taxa de ocorrncia inferior a 1% na populao geral.A falta de congruncia entre os diferentes pesquisadores e psiquia-

    tras foi, nos primeiros anos aps a descrio do autismo, a grande dificul-dade em avaliar a situao (MARGOLIES, 1977).

    O nmero de publicaes cientficas sobre o autismo passou a au-mentar a partir da dcada de 60, o que favoreceu o reconhecimento dasdiversas manifestaes clnicas. Em geral, os artigos iniciais eram basica-mente relatos de casos, com descries clnicas, sugerindo hipteses so-bre as etiologias possveis (EVELOFF, 1960).

    Rutter (1967) aprofundou mais o conhecimento das manifestaes dacondio. Ele descreveu quatro caractersticas principais para o autismo:

    Falta de interesse social. Esta se manifestava atravs de poucocontato olho-a-olho, pouca ligao emocional com os pais, expresso facialpobre, atitude distante e perdida, com aparente ausncia de interessenas demais pessoas. No gostavam se ser acariciadas pelos pais e no osprocuravam quando incomodadas ou com dor. No gostavam de brincarou de fazer amizades. No mostravam emoes ou empatia.

    Incapacidade de elaborao da linguagem responsiva. Fala e atra-so de desenvolvimento da linguagem so geralmente acompanhados poralgum grau de reduo de resposta aos sons e, nos casos em que a lingua-gem se desenvolve, geralmente apresenta qualidade anormal, com rever-so de pronomes e ecolalia.

    Presena de conduta motora bizarra em padres de brincadei-ras. Fenmenos ritualsticos e compulsivos podem se manifestar de qua-tro formas: ligao mrbida a objetos pouco comuns, preocupaes pecu-liares, resistncia a mudanas e rituais quase obsessivos.

    Incio precoce, antes dos trinta meses.

    Rutter defendia que os maneirismos e estereotipias das mos e dosdedos no deveriam ser includos nos critrios de diagnstico, uma vez

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    que eram identificados em outras condies comuns nas crianas, espe-cialmente naquelas com deficincia mental e institucionalizadas (RUTTER,1971).

    Os critrios de diagnstico propostos por Ward (1970, apud MAR-GOLIES, 1977) eram algo distintos, incluindo: (a) ausncia de relaesobjetivas desde o nascimento; (b) manuteno das mesmices e das rotinasatravs de comportamentos estereotipados; (c) ausncia de uso da lingua-gem para fins de comunicao; (d) ausncia de disfuno neurolgica.

    DeMyer e colaboradores (1971, apud MARGOLIES, 1977) defendiamo emprego dos seguintes critrios para definio do autismo: (1) isolamentodas demais pessoas antes dos 3 anos; (2) ausncia de emprego de linguagempara comunicao; (3) uso no funcional, repetitivo de objetos e (4) incapa-cidade de iniciar brincadeiras sozinho ou com outras crianas.

    No entanto, nenhum destes padres de critrios diagnsticos erauniversalmente aceito pela comunidade cientfica.

    Psiquiatras ingleses, Lorna Wing e J. Gould, desenvolveram, nos anos70, o conceito de uma grande variedade de condies associadas com atrade de comprometimento de habilidades sociais recprocas, compro-metimento da comunicao verbal e no verbal e comprometimento dodesenvolvimento de imaginao. Estas manifestaes receberam, em con-junto, o nome de trade de Wing (ZAFEIRIOU, 2007).

    Foi Lorna Wing, em 1981, que empregou inicialmente o termo Sn-drome de Asperger. A sua descrio, no entanto, diferia em alguns aspec-tos dos casos inicialmente descritos por Asperger, empregando o termo paradesignar crianas e adultos com caractersticas autistas, mas que falavamgramaticamente e que no eram socialmente indiferentes (HIPPLER etal., 2003; PEARCE, 2006).

    Outros pais auxiliavam os profissionais de sade a compreenderautismo como uma doena de desenvolvimento neurolgico. Na dcadade 70, diversos pais j descreviam que seus filhos tinham um perodo dedesenvolvimento neurolgico aparentemente normal ou mesmo normal,antes de desenvolverem as caractersticas autistas. Nesta forma regressi-va de autismo, os pais descreviam que seus filhos falavam palavras, man-tinham contato ocular direto e demonstravam ateno ao ambiente e ajogos, perdendo estas habilidades previamente adquiridas no segundo anode vida. Foi somente recentemente que pesquisadores voltaram a se focar

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    nesta forma regressiva de autismo. De fato, de uma reviso de vdeos ca-seiros, realizada em 2005, identificou-se que algumas destas crianas per-deram capacidades sociais e de comunicao entre o primeiro e o segun-do aniversrios (ZAFEIRIOU, 2007).

    Enquanto isto, nos EUA da dcada de 70, os autistas eram caracteri-zados pela US Office of Special Education como pessoas com graves alte-raes emocionais. A compreenso do autismo passou a aumentar com omaior volume de estudos e de pessoas diagnosticadas com a condio. Jna dcada de 1980, profissionais do governo americano haviam produzi-do volumosas evidncias dos efeitos devastadores da categorizao doautismo como uma doena emocional (ZAFEIRIOU, 2007).

    Kanner, em 1971, comenta o fato de a Academia Americana de psi-quiatra, na segunda edio do Manual Diagnstico e Estatstico (DSM-II),no inclua o diagnstico de autismo, sendo que estas crianas eram clas-sificadas no item 295.80, referente a esquizofrenia tipo infantil (KAN-NER, 1971).

    Em 1980, a Academia Americana de Psiquiatra publicou a terceiraedio de seu manual estatstico e diagnstico, denominado de DSM-III.Neste manual, o autismo foi includo, pela primeira vez, na categoria depervasive developmental disorder2 ou transtornos invasivos do desen-volvimento. A criao deste conceito visava, sobretudo, diferenciaodo autismo da esquizofrenia infantil, da psicose infantil e dos trans-tornos especficos do desenvolvimento. O autismo foi considerado comouma forma grave de psicopatia, com distrbios evolutivos iniciados pre-cocemente e com comprometimento de linguagem e de comunicao, dashabilidades sociais e cognitivas (ARTIGAS, 2002).

    Cerca de quatro anos mais tarde, a Classificao Internacional dasDoenas CID, publicada pela Organizao Mundial da Sade, na nonaedio, incluiu autismo como uma forma de psicose com incio na infn-cia e com tendncia a evoluo para esquizofrenia.

    Ainda que possa parecer pouco, se analisado nos dias de hoje, estefoi um grande passo no sentido de melhor diagnosticar e reconhecer oautismo como uma condio distinta, ainda que seu conceito no estives-

    2 Traduzida, por alguns, em portugus, como transtorno pervasivo do desenvolvimento. Estano uma palavra reconhecida nos dicionrios da lngua portuguesa, mas pode ser encontra-da em alguns textos e deve ser evitada. Em ingls, quer indicar penetrante, invasivo.

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    se completamente amadurecido e desenvolvido naquele perodo. Os cri-trios diagnsticos publicados nestes manuais servem como base para odiagnstico em consultrio e tambm como orientao para pesquisado-res.

    Apesar do conhecimento e da experincia clnica, uma categoriaespecfica para o diagnstico de autismo e de condies relacionadas nofoi includa na literatura cientfica at a publicao da terceira edio doDiagnostic and Statistical Manual (DSM-III) em 1980, pela AmericanPsychiatric Association. Neste momento, o autismo era classificado entreas condies psicticas, em geral, juntamente com esquizofrenia infantil.

    Ao final dos anos 70, estava claro que o autismo era uma condioclnica distinta, diferente da esquizofrenia em termos de gentica de ma-nifestaes clnicas e de evoluo. Os critrios empregados pelo DSM-IIIrefletiam as manifestaes inicialmente descritas por Kanner e expandi-das por Rutter no final daquela dcada. Rutter destacava sobretudo o in-cio precoce da condio, com comprometimento das capacidade sociais,linguagem atpica em termos de forma e de uso, bem como uma resistn-cia muito importante modificaes e padres ritualsticos e estereotipa-dos de comportamento. Desta forma, a primeira classificao diagnsticado autismo refletia o conceito clssico inicialmente descrito por Kanner.Assim, o DSM-III inclua critrios que so atualmente considerados comoaltamente especficos e restritos.

    A distino entre autismo e esquizofrenia infantil foi bem estabele-cida por Leonora Petty e seus colegas (1984), destacando que o autismogeralmente tem incio mais precoce (do nascimento at os trs anos) doque a esquizofrenia da infncia (predominando aps os cinco anos). Damesma forma, estes autores destacavam que pacientes esquizofrnicosadultos, durante a infncia, geralmente apresentavam boa interao sociale funcionamento sem aparentes alteraes, o que no se observa em autis-tas nos quais as dificuldades iniciam-se sempre na infncia. Ainda as-sim, estes pesquisadores descreveram casos de autistas que desenvolve-ram quadros esquizofrnicos bem consolidados na vida adulta (STONE,1999).

    No DSM-III, ainda, duas outras categorias foram includas no rtulode transtorno global do desenvolvimento (pervasive developmental disor-der). Nesta categoria, foram includos o transtorno global do desenvolvi-mento de incio na infncia (que foi posteriormente abandonado pela va-

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    lidade questionvel) e uma categoria atpica (a qual inclua casos de dis-funo social autstica que no preenchiam todos os critrios necessriospara o transtorno autista).

    O reconhecimento crescente da especificidade elevada dos critriosdo DSM-III levou reviso destes, culminando na publicao do DSM-III-R, em 1987. Esta edio inclua dois transtornos globais do desenvolvi-mento: transtorno autista e transtorno global do desenvolvimento no es-pecificado.

    Contudo, tornou-se rapidamente evidente que os critrios do DSM-III-R eram muito inclusivos, no respeitando os limites entre autismo eoutras condies que compartilhavam algumas caractersticas comuns,mas que diferiam do autismo em relao natureza do comprometimentosocial e de comunicao. Assim, os critrios foram novamente modifica-dos e testados, culminando na modificao publicada no DSM-IV, em 1994.Um dos avanos mais importantes foi a adoo de critrios similares aosadotados pela Classificao Internacional das Doenas (CID-10), da Orga-nizao Mundial da Sade. Com base nestas classificaes, a sintomato-logia primria dos transtornos globais de desenvolvimento so includasem trs categorias principais: (a) comprometimento qualitativo da intera-o social; (b) comprometimento da comunicao e (c) padro restrito,repetitivo e estereotipado de comportamento, de interesses e de ativida-des.

    A partir deste perodo, as duas maiores classificaes diagnsticasde doenas psiquitricas (CID atualmente em sua dcima edio, publica-da em 1992; e o DSM, atualmente em sua quarta edio revisada, publica-da em 2002) passaram a incluir o diagnstico de autismo e dos demaistranstornos globais do desenvolvimento em suas pginas, como condi-es distintas das demais patologias psiquitricas. Houve, como era de seesperar, algumas modificaes importantes no conceito de autismo, namedida em que se passou a diagnostica um nmero cada vez maior depessoas, e mais pesquisadores passaram a avali-las. Estes critrios e suasdiferenas sero analisados posteriormente.

    Apesar do pequeno nmero de casos descritos inicialmente, Kanneracreditava que o autismo era mais frequente do que era indicado por estefato. Relacionava o pequeno nmero de casos descritos com diagnsticoserrneos de esquizofrenia e de psicose durante a infncia (KANNER, 1943).

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    Na metade da dcada de 90, a grande maioria dos pesquisadores darea j aceitava que o autismo infantil era uma doena neurolgica orgni-ca, sem componente psicognico, com etiologia gentica muito importan-te. Neste momento, verificou-se um crescimento assustador do nmerode pessoas portadoras de autismo nos EUA. O aparente aumento na inci-dncia de autismo foi interpretado inicialmente como resultado de fatoresambientais. Ainda assim, diversos pesquisadores, epidemiologistas, neu-rologistas e psiclogos acreditam que este aparente aumento seja decor-rente da melhora dos critrios de diagnstico e do maior conhecimento mdico e do pblico leigo sobre a condio. Por outro lado, o aumentoda prevalncia dos transtornos globais do desenvolvimento deveu-se tam-bm ao fato de que a definio se tornou algo mais ampla, devido inclu-so do transtorno de Asperger e do transtorno global do desenvolvimentono especificado (1987).

    Nos ltimos vinte anos, houve um aumento na preocupao pblicasobre autismo nos EUA, relacionada com estudos de prevalncia da doen-a. Estudos da dcada de 80 e do incio da dcada de 90 referiam umaprevalncia de 4 a 10 por 10.000 crianas. Por outro lado, estudos maisrecentes descrevem uma incidncia de 30 a 50 por 10.000 crianas (BAR-BARESI et al., 2006).

    Cabe aqui destacar que, em 1971, Lorna Wing, analisando sistemati-camente todas as crianas do condado de Middlelsex, na Inglaterra, iden-tificou que cerca de 4 a 5 a cada 10.000 crianas preenchiam critriosdiagnsticos para autismo (apud DESPERT, 1971).

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    Pais comearam a questionar o aumento aparente da incidncia deautismo com o nmero progressivamente maior de vacinas indicadas naprimeira infncia, especialmente os preparados que incluam o conser-vante de etilmercrio, trimerosal, que se cria ser um agente neurotxico.Inicialmente, os mdicos, especialmente nos EUA, indicavam retardar avacinao at que este agente pudesse ser removido da frmula. Estudosrecentes demonstraram que no houve reduo da prevalncia de autis-mo com a remoo do trimerosal das vacinas (Silverman, 2007). Adicio-nalmente, os sinais e sintomas clnicos de intoxicao por mercrio e asalteraes patolgicas relacionadas exposio do mercrio no se relacio-nam com o quadro clnico ou patolgico do Autismo. Da mesma forma,tratamento com agentes quelantes no produziu melhora clnica em crian-as autistas (BARBARESI et al., 2006).

    Diversos estudos realizados na Gr-Bretanha no demonstraramhaver associao entre vacinao e autismo. Um estudo realizado na Di-namarca no apontou para diferenas epidemiolgicas de autismo entrecrianas vacinadas e as no vacinadas. Da mesma forma, no Japo, no seidentificou associao entre prevalncia de autismo e emprego de esque-mas de vacinao (SILVERMANN, 2007).

    O aumento aparente da prevalncia do autismo pode estar relacio-nado com diversos fatores. Estudos com base em dados administrativos,de crianas que recebem educao especial, descreveram aumento impor-tante da prevalncia no perodo de 1992 a 2001. Um estudo realizado emum condado americano em pessoas com menos de 21 anos demonstrouum aumento da incidncia de 5,5 por 100.000 no perodo de 1980 a 1983para 44,9 por 100.000 no perodo de 1995 a 1997. No entanto, o momentoem que ocorreu este aparente aumento da incidncia coincide com a in-troduo de critrios diagnsticos mais amplos, aumento da disponibili-dade de servios de educao especial e aumento do reconhecimento doautismo por profissionais de educao e da rea de sade (BARBARESI etal., 2006).

    Tratamentos para o autismo

    A primeira forma de tratamento indicada para o autismo, com basena teoria psicognica, foi a psicoterapia para a criana e para os pais. Estetratamento apresentava taxas de sucesso extremamente baixas, de forma

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    que foi gradualmente abandonada, juntamente com a teoria psicognica,a partir dos anos 1970.

    Nas dcadas de 60 e 70, diversos mtodos teraputicos foram em-pregados para o autismo, com base em diferentes premissas tericas: deorientao psicanaltica, com base no condicionamento operante, psico-farmacolgica, educacional, por psicoterapia com os pais e com combina-o de diferentes mtodos. Ainda assim, no se obtinha muita melhorasintomtica, na grande maioria dos casos (KANNER, 1971).

    Terapias aversivas, como emprego de choque eltrico, foram empre-gadas durante os anos 60 e 70 para induzir respostas e comportamentosesperados em crianas autistas. Apesar de seu emprego ser debatido des-de os primeiros anos, estudos realizados naquele perodo demonstravamque terapia com choque eltrico era til na induo de resposta de genera-lizao (provocava resposta de evitar outros comportamentos para os quaiso choque no havia sido empregado), melhora do comportamento social eresposta emocional positiva, mas geralmente as crianas desenvolviammedo do aparelho, respostas emocionais negativas e outros comportamen-tos desajustados como resposta ao choque eltrico. Eram indicadas inten-sidades de corrente eltrica que variavam entre 4 a 5 mA, capazes de in-duzir dor, mas no de provocar leses fsicas persistentes ou crises epilp-ticas, perda da conscincia ou outras leses (LICHSTEIN; SCHREIBMAN,1976). Gradativamente, a terapia com choque eltrico foi abandonada paraautismo e para outras patologias.

    Uma das primeiras formas de tratamento medicamentoso indicadopara crianas autistas e esquizofrnicas foi o emprego de cido D-lisrgi-co, conhecido como LSD, uma droga alucingena considerada atualmentecomo ilcita. Estudos realizados nos anos 60 demonstravam melhora sin-tomtica em relao ao bem-estar fsico, contato com o ambiente e com asdemais pessoas, percepo do ambiente, alimentao e padres de sono.Estas respostas no foram associadas a efeitos txicos, efeitos colateraisou reaes emocionais negativas (BENDER, 1966). Ainda assim, por moti-vos bvios, esta droga foi posteriormente abandonada.

    A seguir, com o desenvolvimento da concepo de que o autismopoderia estar relacionado com vacinao e, portanto, com intoxicao pormercrio, foram propostos tratamentos com agentes quelantes, que socapazes de remover o metal do organismo. Apesar de no se observar re-

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    sultado algum com estes medicamentos, eles ainda esto venda, poden-do ser encontrados em diversos sites na internet.

    Um dos tratamentos que foi indicado posteriormente denominou-sede tratamento comportamental do autismo. Nesta forma de tratamento,atravs de punies, na grande maioria dos casos, o terapeuta e os pais dacriana indicavam qual a forma de comportamento desejado para a crian-a. Era necessrio treinamento em ambiente altamente organizado, comemprego de horrios agendados, controle de estmulos e comportamentocondicionado. O reforo positivo era geralmente indicado por uso de ali-mentos, no sendo indicadas recompensas verbais ou afagos. Para crisesde perda de autocontrole de agressividade, eram empregados quartos iso-lados, com pouca moblia, afastando a criana do fator desencadeante.Como terapia aversiva, eram indicados choques eltricos e palmadas. Com-portamento por imitao no era indicado na maioria dos casos, por sedefender dificuldade de obter resultados positivos (MARGOLIES, 1977).

    Posteriormente, diversos tratamentos comportamentais foram desen-volvidos, sendo que diversos esto em uso em todo o mundo. Os mtodosmais divulgados e empregados incluem ABA (do ingls, Applied Behavio-ral Analysis) e TEACH.

    Hans Asperger

    Nasceu em 18 de fevereiro de 1906, emuma fazenda na zona rural prxima Viena,na ustria. Ele foi o mais velho dos dois filhosdo casal. Precocemente, Hans j demonstroutalentos precoces para linguagem, sendo que,no primeiro ano da escola j era conhecido porcitaes frequentes do poeta austraco FranzGrillparzer (1791-1872). Neste perodo, tinhamuita dificuldade em fazer amigos e era consi-derado como distante dos colegas. No entanto,no movimento da juventude, na dcada de 20,estabeleceu contato com diversos companhei-ros, que o acompanhariam por toda a sua vida.

    Foi-lhe conferido grau mdico em 1931 efoi nomeado diretor da estao ludo-pedaggi-

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    ca da clnica da Universidade de Viena em 1932. Casou-se em 1935 e tevecinco filhos. Em 1934, afiliou-se clnica psiquitrica em Leipzig. HansAsperger tinha um interesse especial em crianas psiquicamente anor-mais.

    Seu artigo original, submetido publicao em 1943, foi resultadode investigao de mais de quatrocentas crianas com psicopatia autis-ta. Como Hans no viajava muito e todas as suas publicaes foram emperidicos em alemo, seu nome no era to conhecido como o de LeoKanner, que descreveu o autismo infantil em 1943.

    Na parte final da Segunda Guerra Mundial, serviu como soldado naCrocia.

    Habilitou-se como palestrante na Universidade de Viena em 1944 ese tornou diretor da clnica de crianas em 1946. Hans Asperger tornou-seprofessor da clnica para crianas na Universidade a Universitts-Kin-derklinik em Innsbruck em 1957. A partir de 1962, passou a desempe-nhar a mesma funo em Viena. A partir de 1964, ele passou a chefiar aestao mdica da SOS-Kinderdrfer em Hinterbrhl.

    Asperger foi nomeado professor emrito em 1977. Continuou a tra-balhar e ministrou a sua ltima palestra seis dias antes de morrer, em 21de outubro de 1980.

    A sua lista de publicaes inclui 359 itens, a grande maioria relacio-nada com psicopatia autista ou com morte.

    Leo KannerLeo Kanner nasceu em 13 de ju-

    nho de 1894, em Klektow, ustria.Faleceu em 4 de abril de 1981. Tornou-se um psiquiatra conhecido mundial-mente por seu trabalho com autismo.Estudou na Universidade de Berlim,iniciando em 1913. Interrompeu seusestudos em decorrncia de serviomilitar obrigatrio, para servir no exr-cito austraco por ocasio da PrimeiraGuerra Mundial. Recebeu seu graumdico em 1921. Posteriormente, em 1924, emigrou para os EUA, ondeassumiu posto de mdico assistente no Hospital Estadual de Yankton County,

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    na Dakota do Sul. Foi escolhido para desenvolver o primeiro servio depsiquiatria em um hospital peditrico, no Johns Hopkins, em Baltimore.Tornou-se professor associado de psiquiatria em 1933.

    Kanner foi o primeiro mdico nos EUA a ser identificado como psi-quiatra infantil. Seu trabalho original, publicado em 1943, denominadoAutistic Disturbances of Affective Contact, em conjunto com os trabalhosde Hans Asperger, tornou-se a base dos estudos modernos em autismo.Posteriormente, em 1957, tornou-se diretor de psiquiatria infantil. Apo-sentou-se em 1959, mas manteve-se ativo at a idade de sua morte, aos 87anos.

    Andreas RettFoi um pediatra austraco,

    nascido em 2 de janeiro de 1924,em Frth, na Bavria, e falecidoem 1997. Ele frequentou a escolaem Innsbruck e iniciou seus estu-dos mdicos na universidade damesma cidade. Seus estudos fo-ram interrompidos em decorrn-cia da Segunda Guerra Mundial,quando serviu na marinha alem.Retomou seus estudos em 1945,recebendo seu diploma em 1949.A partir de ento, iniciou seu trei-namento em pediatria. Em 1955, foi nomeado chefe do servio de crian-as com deficincia mental em um lar para idosos em Lainz.

    Sua carreira acadmica iniciou-se em 1967, quando foi indicado comopalestrante (lecturer) em neurologia e pediatria na Universidade de Viena.Em 1973, foi promovido como professor associado. A partir de 1967, foinomeado como chefe do Ludwig Boltzmann Institut para pesquisa de crian-as com anormalidades cerebrais. Publicou mais de 250 artigos cientficos.

    De acordo com a descrio clssica, Rett descreveu originalmente asndrome aps a observao de duas meninas que esperavam pelo atendi-mento e que apresentavam a mesma alterao de movimento: estereotipiasmanuais (TEMUDO et al., 2006).

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    Bruno BettelheimBruno Bettelheim nasceu em 28 de agosto de 1903, na ustria, e

    faleceu em 13 de maro de 1990. Iniciou sua formao acadmica em Vie-na. Posteriormente, foi mantido cativo em campos de concentrao pelosnazistas, no perodo de 1938 a 1939. Aps, Bettelheim imigrou para osEUA, onde, a partir de 1944, dirigiu a Escola Ortognica da Universidadede Chicago, uma escola-laboratrio para crianas com problemas psicol-gicos e psiquitricos. Ele suicidou-se aps ficar deprimido pela morte desua esposa e aps sofrer acidente vascular enceflico.

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