campos e hansen - gregório de matos
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Gilson de Oliveira Mendes
Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen:
Duas leituras e uma polmica sobre a obra de Gregrio de Matos
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2013
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Gilson de Oliveira Mendes
Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen:
Duas leituras e uma polmica sobre a obra de Gregrio de Matos
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Letras: Estudos Literrios da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial obteno do ttulo de Mestre em Estudos
Literrios.
rea de concentrao: Literatura Brasileira
Orientador: Prof. Srgio Alcides Pereira do Amaral
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2013
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Agradecimentos
Agradeo a todos os meus familiares, amigos e a CNPq. Agradeo principalmente aos
professores: Cludia Campos Soares, que me introduziu nos estudos sobre Gregrio de
Matos; e Duda Machado, orientador amigvel da graduao, fundamental para a continuao
dos meus estudos. Agradeo especialmente ao professor Srgio Alcides pela generosa
orientao e impagvel apoio.
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Resumo
Esta dissertao de mestrado tem o objetivo de estudar a recepo crtica da obra de Gregrio
de Matos, concentrando-se na anlise das formulaes de Haroldo de Campos e Joo Adolfo
Hansen. Estudaremos a trajetria crtica de Haroldo de Campos, que, aliando as atividades de
poeta e crtico, cunha o termo neobarroco, aproximando, sincronicamente, sua produo
potica de vanguarda da potica do sculo XVII. Veremos como Haroldo defende o barroco
como estilo caracterstico da Amrica e Gregrio, como iniciador da literatura brasileira,
criticando a posio de Antonio Candido. Analisaremos, em contrapartida, a obra de Hansen,
que nega o termo barroco, critica o anacronismo das crticas e reconstitui o contexto de
produo potica do sculo XVII, marcado pela prescrio retrica rigidamente orientada.
Alm disso, ao estudarmos Hansen, entenderemos tambm as restries polticas, religiosas e,
obviamente, artsticas, que fazem da stira um instrumento da razo de Estado. Para Hansen,
Gregrio era uma etiqueta e no a origem original dos poemas, como supunha a crtica
posterior, que operava com critrios exteriores sociedade seiscentista. Por fim,
confrontaremos as duas vises crticas, ressaltando suas divergncias e conseqentemente
chegando ao efeito das duas leituras.
Palavras-chave: recepo crtica, barroco, neobarroco, sincronia, literatura brasileira,
anacronismo, retrica, stira, Gregrio de Matos.
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Rsum
Cette dissertation vise tudier la rception critique de loeuvre de Gregrio de Matos, en se
concentrant sur lanalyse des formulations de Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen.
Nous allons tudier la trajectoire critique de Haroldo de Campos, qui, combinant les activits
de pote et de critique, a invent le terme no-baroque approchant, synchronique, sa
production potique davant-garde du XVIIe sicle. Nous allons voir comment Haroldo
dfend le baroque comme style caractristique de lAmrique et Gregrio, en tant
quinitiateur de la littrature brsilienne, critiquant la position de Antonio Candido. Nous
analyserons, cependant, le travail de Hansen, qui nie le terme baroque, dnonce
lanachronisme de la critique et reconstitue le contexte de la production potique du XVIIe
sicle, marque par la prescrition rhtorique oriente de faon rigide. Dailleurs, en tudiant
Hansen, galement comprendre les contraintes de la vie politique, religieuse et artistique, qui
voit videmment la satire comme un instrument de la raison dEtat. Pour Hansen, Gregrio
tait comme une tiquette et non la source originale des pomes, comme suppos par la
critique posterieur, qui oprais avec critres en dehors de la socit du XVIIe sicle. Enfin,
nous confronterons les deux visions critique, mettant en vidence leurs diffrences et les
effets des deux lectures.
Mots-cls: rception critique, baroque, no-baroque, synchronie, littrature brasilienne,
anachronisme, rhtorique, satire, Gregrio de Matos.
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Sumrio
Introduo..............................................................................................7
1. Do neobarroco defesa do barroco...........................................................11
2. A rejeio do barroco e do neobarroco.....................................................56
Concluso............................................................................................................89
Referncias........................................................................................................98
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Introduo
Este trabalho estuda a crtica da poesia de Gregrio de Matos (Salvador, 1636
Recife, 1696). Para isso, julgamos mais proveitoso e interessante nos concentrarmos em dois
momentos importantes da crtica contempornea, caracterizada pelas intervenes de Haroldo
de Campos e Joo Adolfo Hansen. O estudo desses dois crticos um campo rico de debate
que nos permitir avaliar, no apenas suas formulaes, como tambm as divergncias dos
dois pontos de vista. Ao nos determos nessas duas crticas, entendemos que aprofundaremos o
conhecimento sobre questes que permanecem em aberto no mbito da literatura brasileira. O
recorte do trabalho se justifica na medida em que uma avaliao do resultado das duas leituras
sobre a poesia de Gregrio de Matos e a conseqente polmica entre elas ainda era uma tarefa
instigante. Alm disso, o fato de tanto a crtica de Joo Adolfo Hansen quanto de Haroldo de
Campos dialogarem com a crtica precedente, permitir-nos- verificar o efeito das duas
leituras, tendo como pano de fundo a cadeia recepcional que as antecede.
O trabalho se divide em dois captulos. O primeiro, Do neobarroco defesa do
barroco, dedicado a Haroldo de Campos. O segundo, A rejeio do barroco e do
neobarroco, dedicado a Joo Adolfo Hansen. Depois, na Concluso, confrontaremos as
duas perspectivas.
Em Do neobarroco defesa do barroco, acompanhamos a trajetria crtica de
Haroldo de Campos desde o perodo de formao do concretismo. Perseguiremos os
fundamentos do que ele chamava de neobarroco at a defesa que far do barroco como estilo
fundamental para o cnone da literatura brasileira. Veremos como no texto A obra de arte
aberta, dialogando com o msico Pierre Boulez, Haroldo cunha o termo neobarroco para
designar uma obra de arte aberta, no clssica, que exigia a participao do leitor. Haroldo
passar a se referir ao que fazia como neobarroco, tendo em vista que as atividades de crtico
e poeta sempre esto imbricadas. Neobarroco aproximaria sua poesia da de Gregrio de
Matos e outros seiscentistas como Gngora. Este aproximado de Mallarm, assim como, num
contexto de lngua inglesa, Eliot havia valorizado Donne. Haroldo usa o paideuma poundiano
para elencar autores que fizessem parte de uma contracorrente inventiva, da qual Gregrio
seria o fundador no contexto brasileiro. Haroldo combate as histrias lineares da literatura e
prope uma viso sincrnica, autorizado pelo terico Roman Jakobson. Sua sincronia
privilegia as obras destruidoras de uma recepo acomodada e acadmica.
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Haroldo, ao longo de seus artigos e livros, aproxima-se de outros escritores latino-
americanos que tambm defendiam o barroco como uma arte prpria da Amrica. Assim, ir
evocar os cubanos Lezama Lima (o barroco da contra-conquista) e a Severo Sarduy (o
neobarroquismo). Alm desses, Haroldo se apoiar na autoridade de Affonso vila, que
tambm via o barroco e Gregrio como congnitos ao Brasil, e na do prprio Candido, citando-
o para contradiz-lo, quando Candido reformula suas opinies e v congenialidade no barroco.
O que h de comum nesses autores diferentes intelectualmente, geograficamente e
temporalmente o essencialismo, que Haroldo defende conscientemente. Para ele, a histria da
literatura deve ser escrita por criadores: fico heurstica interessada no presente de criao.
Veremos como o Tropicalismo, mais especificamente Caetano, importante para
exemplificar sua tese de como a poesia do sculo XVII pode ser revivida e no relegada aos
arquivos antolgicos. Veremos como o prprio Haroldo pretende ser um poeta que pratica o
neobarroco, o chamado delrio lcido. Em seguida, vamos acompanhar sua obra mais
extensa sobre Gregrio, O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: o caso
Gregrio de Matos, de 1989. Obra que de certa forma sintetiza as suas formulaes sobre o
barroco, literatura brasileira, histria sincrnica e Gregrio de Matos. Haroldo de Campos se
posiciona contra o sequestro do barroco realizado por Antonio Candido. Este em sua
importante obra Formao da literatura brasileira: momentos decisivos, de 1959, classifica a
poesia de Gregrio como uma das manifestaes literrias isoladas que no influram na
formao literria brasileira, tendo em vista o sistema tridico autor-obra-pblico. Candido
parte da perspectiva dos crticos romnticos e ressalta as contribuies do romantismo e do
arcadismo, afirmando que h uma continuidade temtica entre esses dois movimentos
literrios. Alm disso, sua anlise busca destacar das obras o comprometimento, mais ou
menos consciente, dos autores com a construo da nao. Candido tambm observou, nas
obras, a unio entre o aspecto pitoresco e particularista - contribuies do romantismo -, e o
aspecto universalista com tendncias ao realismo - contribuies do arcadismo. Portanto, o
que no cabe nesse sistema, deve conseqentemente ser excludo. Logo, a obra de Gregrio
de Matos e o barroco o foram. Candido reformular suas posies em dois textos posteriores
Literatura de dois gumes e Dialtica da malandragem, o que ser utilizado por Haroldo de
Campos como reforo para sua tese. Como a questo em torno da obra de Candido e a crtica
feita por Haroldo possui desdobramentos, vamos analisar as opinies de Costa Lima, Roberto
Schwarz e Abel Barros Baptista. A elaborao deste quadro crtico nos possibilitou entender
como Haroldo via Gregrio e como ele o encaixava nos estudos de literatura no Brasil, o que,
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obviamente, serviu para a comparao, como veremos a seguir, entre sua perspectiva e a de
Joo Adolfo Hansen.
Em A rejeio do barroco e do neobarroco, estudamos a obra de Joo Adolfo Hansen.
No seu livro, A stira e o engenho, de 1989, verificamos que mesmo a stira discurso
condicionado pelas regras retrico-poticas do sculo XVII. Hansen rejeita a noo de barroco e
critica as abordagens calcadas no biografismo, que buscam ver no homem Gregrio a causa da
poesia. J era retrica a biografia do Licenciado Rabelo (Vida do excelente poeta lrico, o
doutor Gregrio de Matos e Guerra) escrita no sculo XVIII e que serviu de base para o
psicologismo e as opinies preconceituosas desde o romantismo. Hansen vai de encontro a toda
crtica precedente ao asseverar que Gregrio uma etiqueta, unidade imaginria e cambiante
e que os especialistas at ento revelavam posies crticas 'expressivas' e 'representativas', que
obliteram a historicidade da prtica satrica quando a efetuam como exterior sua prpria
histria (HANSEN, 1989, p.15). Sendo assim, critrios romnticos, naturalistas, psicolgicos,
tropicalistas e outros so anacrnicos quando empregados obra de Gregrio de Matos. Houve
leituras excessivas e, espantosamente, em nome da construo de uma arte que atendesse ao
nascimento do Estado nacional, esqueceram-se os procedimentos clssicos que predominavam
antes do romantismo. Para entendermos isso, a obra de Hansen fundamental. Alm disso,
Hansen demonstra como a stira ficcionalizava os discursos vinculados ao poder poltico e
religioso, rebatendo a idia de que houve um Gregrio contestatrio e reforando a idia de que
mesmo a stira era voz, no do povo, mas do poder colonial. Como constatamos a leitura de
Hansen, ainda que feita no fim do sculo XX, polmica, pois muito do essencialismo e demais
excessos anacrnicos estavam ativos. Hansen insiste na descrio da persona construda
retoricamente para afastar a idia de uma psicologia dotada de liberdade artstica por trs das
stiras. Hansen rejeita o barroco por consider-lo como fruto de Wlfflin e os usos que fizeram
deste. Segundo Hansen, o crtico alemo era um neokantiano e trabalhava com conceitos que
no poderiam existir no sculo XVII, pois no havia livre concorrncia artstica nem esttica.
Depois, vemos como Hansen critica o neobarroco por tambm ser um anacronismo, que ainda
possui laivos de romantismo e do etapismo teleolgico das histrias do sculo XIX; isto , o
neobarroco pressupe precursores como na perspectiva figural. Curiosamente, Hansen aponta
em Haroldo tanto o essencialismo quanto o nacionalismo, que o autor de Galxias criticou em
Antonio Candido.
Devemos observar que por simplificao, a fim de no termos que nos justificar o
tempo todo, optamos por usar, em todo o trabalho, expresses como a poesia de Gregrio de
Matos ou na obra de Gregrio de Matos, como o prprio ttulo da dissertao j indica, e
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deixamos para aplicar expresses como a poesia atribuda a Gregrio de Matos apenas na
parte referente a Hansen, que insiste que o nome apenas como etiqueta de um corpus.
A anlise dos pressupostos, critrios e juzos emitidos por cada um desses crticos teve
como base o repertrio crtico-terico existente a respeito do barroco e das conceituaes
engendradas pela teoria literria, especificamente utilizamos a Esttica da Recepo.
Como se ver, as crticas de Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen so recentes e,
devido carga de questionamentos e idias que propem, tornou-se necessrio um
mapeamento e uma sistematizao dessas discusses. Ao nos debruarmos sobre as duas
vertentes, analisamos a fundamentao terica de ambas e evidenciamos o lugar crtico do
qual elas foram formuladas, o que atende a uma lacuna nos estudos literrios e aponta para um
melhor entendimento da obra de Gregrio de Matos. Na Concluso, confrontamos as duas
visadas crticas, utilizando como fio condutor os artigos que Haroldo e Hansen escreveram
para o Caderno Mais!, da Folha de So Paulo, em 1996. Dessa polmica, destacamos
pontos importantes e tentamos inferir o que fica dessas duas leituras.
Vrios pressupostos de Haroldo e de outros que pensavam como ele parecem
realmente ter rudo. O estudo da poesia do sculo XVII sem levar em considerao suas
especificidades ou a viso de um barroco como estilo caracterstico do Brasil, numa linha
essencialista parece ter ficado para trs, assim como ver um Gregrio revoltado avant la
lettre, precursor do que s se faria bem depois. O que interessante em Haroldo talvez seja,
descontando os excessos, a crtica ao modelo de historiografia coesa, monoltica ainda
provinda do sculo XIX e sua valorizao de criadores pouco estudados, que tinham uma
verve inventiva e priorizavam a tcnica, a palavra-coisa contra o expressionismo de linhagem
romntica e alambicada que sempre pareceu imperar no Brasil. Alm disso, um certo
anacronismo na avaliao dessas caractersticas e na tentativa de aproximao (via paideuma)
da poesia seiscentista contemporaneidade talvez seja inevitvel para que a poesia do passado
no fique interdita para nosso tempo, ainda que essa apropriao diga mais sobre ns mesmos
do que sobre o sculo XVII.
O trabalho de Hansen torna-se incontornvel enquanto descrio do perodo colonial
seiscentista. Suas crticas s leituras excessivas, que levavam ao sculo XVII conceitos
exteriores, tornaram-se fundamentais. Hansen representa uma vertente que vem cada vez mais
se fortalecendo, depois da queda do nacionalismo. Seu estudo concentrado no contexto inicial
de produo potica seiscentista e que descreve as prescries retricas, juntamente com o
controle poltico e religioso exercido na Amrica portuguesa demoliu vrios mitos e parece
caminhar para uma hegemonia.
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1. Do neobarroco defesa do barroco
Neste primeiro captulo, abordaremos as obras crticas de Haroldo de Campos,
descrevendo e analisando a trajetria de seu pensamento, destacando as formulaes sobre
poesia, em particular sua teoria do neobarroco. Tais formulaes acarretaram obviamente a
defesa posterior do barroco e de Gregrio de Matos, que tambm analisaremos. Nosso
objetivo no escrever a histria do movimento concreto nem uma biografia intelectual de
Haroldo de Campos, mas apenas seguir pontos de sua obra crtica no que diz respeito a
Gregrio de Matos1.
Como se sabe, os pressupostos crticos de Haroldo de Campos comearam a aparecer
em artigos e conferncias na dcada de 50, perodo no qual surgiu a poesia concreta. Em
diversos artigos publicados em jornais, principalmente no Rio de Janeiro e So Paulo, o grupo
de poesia concreta lanou as bases desse movimento, que buscava um novo tipo de arte. O
grupo foi formado por Augusto de Campos, Dcio Pignatari, Haroldo de Campos e Ronaldo
Azeredo, aos quais outros integrantes posteriormente se juntaram. Claramente, existem
diferenas entre os principais iniciadores desse movimento, que tambm ecoou em outros
pases como Alemanha e Japo. Concentrar-nos-emos nos textos de Haroldo de Campos e
apenas referiremos, caso necessrio, aos outros escritores, quando a obra desses nos esclarecer
sobre nosso foco de interesse.
J no texto Plano-piloto para a poesia concreta, de 1958, as diretrizes desse
movimento eram definidas, valorizando a materialidade dos signos lingsticos, alm de
elencar modelos literrios de inveno, que deveriam ser seguidos e ampliados, o que
obviamente acarretaria uma reviso do passado literrio nos termos dessa nova visada potica.
Basicamente, os concretos apoiavam-se no uso dos espaos brancos e nos avanos grficos
preconizados por Mallarm em seu Un coup de ds, no mtodo ideogrmico colhido em
Pound, sem falar nas suas idias quanto ao paideuma que tambm sero de suma importncia
para a compreenso das formulaes de Haroldo. Alm disso, outros autores traziam
contribuies relevantes como os caligramas de Apollinaire, as criaes do tipo palavra-valise
de James Joyce, a poesia sinttica e critico-humorstica de Oswald de Andrade, a
racionalidade e a conteno de Joo Cabral de Melo Neto e as inovaes fragmentrias de e.e.
cummings. Esse rol de autores foi sendo ampliado ao longo dos textos crticos e das tradues
1 Para uma histria do movimento concretista, ver Gonzalo Aguilar, Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas
na Encruzilhada Modernista, So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2005.
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dos concretistas. Dentro dessa constante mudana, dessa obra em progresso, entraria uma
retomada do passado em busca de precursores e afins como Gregrio de Matos, caso que nos
interessa mais de perto. A reviso da histria literria feita sempre em dilogo com o
presente, com a atividade de produo. Esclarece-nos Joo Alexandre Barbosa em relao
posio de Haroldo: a sua experincia de poeta exigir a reflexo metalingstica que v
apontando o modo de passagem entre a criao e aquilo que chamei de leitura da tradio
(BARBOSA, 1979, p. 18). No seu texto crtico (texto tambm assinalado por Alexandre
Barbosa), Poesia e paraso perdido, de 1955, Haroldo defende esta imbricao de traduo,
crtica, viso sincrnica, reviso da histria literria e a eleio de autores para seu paideuma.
Haroldo:
A arte da poesia, embora no tenha uma vivncia funo-da-Histria, mas se
apie sobre um continuum meta-histrico que contemporaniza Homero e
Pound, Dante e Eliot, Gngora e Mallarm, implica a idia de progresso, no
no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose vetoriana, de
transformao qualitativa, de culturmorfologia: make it new. (CAMPOS,
2006, p. 43)
Essas preocupaes esto contidas nos textos de seu mestre Ezra Pound e no conceito
de paideuma, que consiste na: ordenao do conhecimento de modo que o prximo homem
(ou gerao) possa achar, o mais rapidamente possvel, a parte viva dele e gastar um mnimo
de tempo com itens obsoletos (POUND, 2006, p. 161). essa postura de Pound que
fundamentar em grande parte a trajetria de Haroldo. Pound e Haroldo, poetas-tradutores de
diversas lnguas, que buscaram no apenas revelar o que a histria acadmica havia
negligenciado como rever o sobejamente conhecido por outro ngulo; ou seja: dialogar com
uma tradio viva e incorpor-la na prpria obra potica e no somente na ensastica.
Como podemos reconhecer em outros momentos da modernidade, as artes se
influenciaram, houve uma mistura de mtodos e perspectivas por parte das diversas
modalidades artsticas. No concretismo, no poderia ser diferente. Esse movimento tambm
manteve dilogo com as artes plsticas e a msica moderna. justamente no texto A obra de
arte aberta que Haroldo, citando Pierre Boulez, fala em neobarroco. Esse texto aparece
tambm em 1955, antes mesmo do lanamento oficial da poesia concreta. Prope Haroldo:
Pierre Boulez, em conversa com Dcio Pignatari, manifestou o seu
desinteresse pela obra de arte perfeita, clssica, do tipo diamante, e enunciou a sua concepo da obra de arte aberta, como um barroco moderno. Talvez esse neobarroco, que poder corresponder intrinsecamente s necessidades culturmorfolgicas da expresso artstica contempornea,
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atemorize, por sua simples evocao, os espritos remansos, que amam a
fixidez das solues convencionadas. (CAMPOS, 2006, p. 53)
O neobarroco consistiria numa obra de arte que exige uma adeso maior por parte do
apreciador. Seria o oposto de uma arte classicizante, fechada, mas uma arte aberta sempre a
novas possibilidades tanto na elaborao, sempre questionada, como na sua fruio. Embora
Haroldo nunca tenha definido exatamente o que entendia especificamente por neobarroco,
podemos deduzir que esta concepo da poesia estava ligada mais intimamente ao, para usar
uma expresso de Jauss, lirismo hermtico de Mallarm, que desafiava o leitor a arriscar
uma leitura num jogo interpretativo. Mallarm ser importante igualmente, pois seus poemas
e a constante valorizao de sua obra promovero uma reviso da obra de Gngora e
conseqentemente do perodo tido como barroco. Assim, Haroldo e o grupo Noigandres
praticavam, predominantemente na fase orgnica, um tipo de poesia que se poderia chamar
neobarroca, que prepararia o interesse estrito pela materialidade do signo, que abalaria o
panorama da poesia brasileira. Segundo o prprio Haroldo, uma das caractersticas dessa
poesia seria, por exemplo, um vocabulrio raro, escolhido [que] reverbera em timbres de
Gngora e de Mallarm (CAMPOS, 2002, p. 23). Dessa lavra haroldiana surgiram, citemos a
ttulo de exemplo, poemas como: Thlassa Thlassa: O Mar-linguagem, Lamento sobre o
Lago de Nemi e Teoria e Prtica do Poema. Na mesma dcada, Augusto de Campos
observaria no texto Poesia concreta:
Haroldo de Campos , por assim dizer, um concreto barroco, o que o faz trabalhar de preferncia com imagens e metforas, que dispe em
verdadeiros blocos sonoros. Nos fragmentos de Ciropdia ou a Educao do Prncipe (1952) [...] merece meno o especial uso das palavras-compostas, buscando converter a idia em ideogramas verbais de som. (CAMPOS, A.,
2006, p. 57)
Como vemos nessa citao, o que Augusto entende por concreto barroco parece ser
a organizao parattica do poema; isto , blocos sintticos, que subvertem a ordenao
costumeira da frase, dispensando-a de conectivos, por exemplo, formando uma espcie de
mosaico que exige a atuao do leitor para impor-lhes sentido. Esses leitores, obviamente, no
podero ser espritos remansos, que amam a fixidez das convenes convencionadas, como
afirmava Haroldo. Da a idia de uma arte aberta, no conclusa. O prprio Augusto diz no
mesmo texto: as palavras nessa poesia atuam como objetos autnomos (CAMPOS, A.,
2006, p. 55). Haroldo de Campos retornaria a esse tema num texto posterior A arte no
horizonte do provvel, de 1963, publicado inicialmente em Inveno:
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Parece que uma das caractersticas fundamentais da arte contempornea, e
que pode ser analisada tanto de um ponto de vista ontolgico como de uma
perspectiva existencial, a da provisoriedade do esttico. Enquanto que,
numa esttica clssica, a tendncia seria considerar o objeto artstico sub
specie aeternitatis, a arte contempornea, produzida no quadro de uma
civilizao eminentemente tcnica em constante e vertiginosa transformao,
parece ter incorporado o relativo e o transitrio como dimenso mesma de
seu ser. (CAMPOS, H., 1977, P. 15)
Depois de fazer esse diagnstico da arte moderna, Haroldo citar seu texto A obra de
arte aberta para mostrar a coerncia das suas intuies. O neobarroco, que ele prope, uma
arte profundamente adequada dentro dessa argumentao de que as vanguardas, incluindo o
concretismo, tm em comum com o barroco o fato de praticarem uma arte no classicista, no
acadmica, cujo significado relativo, no essencial, variando sempre, quando a obra
fruda.
Haroldo sempre se manter ligado aproximao, que no coube s a ele realizar, de
parte da poesia moderna ao barroco, o que lhe facultava chamar de neobarroco sua produo
potica. Apesar de Haroldo dizer que essa primeira fase de sua poesia se diferencie do
neoparnasianismo da Gerao de 45, h quem veja, como Paulo Franchetti, em Alguns
aspectos da teoria da poesia concreta, afinidades entre essa fase larvar e a Gerao de 45.
Prova disso o prprio nome Noigandres ser to precioso quanto Orfeu e to impalpvel
quanto um Cavalo Azul, com a vantagem de ser, sem dvida nenhuma, mais erudito
(FRANCHETTI, 2012, p. 164). Alm disso, a poesia de Haroldo e a de Dcio Pignatari
(excetuando, na argumentao de Franchetti, a poesia de Augusto de Campos, que teria mais a
ver com o Joo Cabral, poeta preciso e econmico, pertencente apenas cronologicamente a
Gerao de 45) naquele momento ainda ostentam uma roupagem brilhante, hiperblica e
prolixa, mas dentro da moda de seu tempo (Idem, ibidem). Havia um certo tom preciosista
inicial que talvez facilitasse a juno de poetas novatos e a pedraria rebuscada de Gngora,
como tradicionalmente era vista a poesia do poeta espanhol. Essas caractersticas estavam
afastadas da conciso preconizada logo aps, mas Haroldo sempre se manteve fiel a essa
intuio de uma poesia neobarroca, at porque essa palavra e esse insight seriam importantes
para outros escritores como o cubano Severo Sarduy, que retomaria o termo e tambm
endossaria a aproximao da arte praticada pelas vanguardas s da potica do sculo XVII.
Sarduy, igualmente, daria, ao barroco, status de precursor da resistncia e subverso contra o
elemento europeu. Depois da chamada fase orgnica, como j assinalamos, o grupo em
torno de Noigandres lanou, na revista homnima, em 1958, o Plano-piloto para poesia
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concreta. Nessa revista, suas posies se radicalizam e essa nova poesia, que passar a ser
denominada por poesia concreta ou movimento concretista, consegue sua ruptura com a
gerao imediatamente precedente, a Gerao de 45. A denominao arte concreta j havia
sido usada por msicos eruditos e por artistas plsticos, manifestaes artsticas que sempre
tero importncia para os brasileiros. No caso das artes plsticas, os poetas do concretismo
sero influenciados por Mondrian e Max Bill; na msica, por Webern, Stockhausen e Boulez
(o qual, como vimos acima, autoriza Haroldo a usar a classificao neobarroco). Os concretos
decretaram o encerramento do ciclo histrico do verso, e fizeram isso respaldados pela
viso sincrnica que englobava ao mesmo tempo seus precursores num mesmo presente,
precursores que formavam o primeiro paideuma, ao qual durante as atividades de Haroldo,
Dcio e Augusto foram-se somando mais escritores nacionais e internacionais:
Precursores: mallarm (un coup de ds, 1897): o primeiro salto qualitativo:
subdivisions prismatiques de lide; espao (blancs) e recursos tipogrficos como elementos substantivos da composio. pound (the
cantos): mtodos ideogrmicos. joyce (ulysses e finnegans wake): palavra-
ideograma; interpretao orgnica de tempo e espao. cummings:
atomizao de palavras, tipografia fisiognmica; valorizao expressionista
do espao. apollinaire (calligramme): como viso, mais do que como
realizao. futurismo, dadasmo: contribuio para a vida do problema. No
Brasil: oswald de andrade (1890-1954): em comprimidos, minutos de poesia. Joo Cabral de melo neto (n. 1920 o engenheiro e a psicologia da composio mais antiode): linguagem direta, economia e arquitetura
funcional do verso. (CAMPOS, A., CAMPOS, H., PIGNATARI, p. 215-
216)
Como o grupo Noigandres e Haroldo de Campos, em nosso caso particular, entendiam
a poesia que faziam como sendo conseqncia de uma contracorrente inventiva, cabia uma
reviso do passado, aproximando-o do presente de produo, o que tambm levaria a uma
nova abordagem do nacionalismo. A essa maneira dialgica de entender a literatura,
Haroldo unir o conceito de antropofagia, de Oswald de Andrade. Uma vez que esse conceito
significa devorar o elemento adventcio para que se produza algo novo, para que se fabrique
a diferena, serve por sua vez como verso modernista do que poetas barrocos como Gregrio
de Matos executaram, quando engoliram o cdigo barroco e devolveram uma poesia cheia de
tupinismos e africanismos. A antropofagia revisitada pelos concretistas era uma maneira de
entender a poesia e a arte de modo geral como um processo de universalizao da literatura
feita no Brasil. O concretismo, sua teoria e tradues atuariam em duas frentes: a) capacidade
de absorver em p de igualdade a arte dos pases centrais, respondendo com algo novo; e b)
fazer uma reviso do passado sob novos critrios, buscando, no territrio nacional ou
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transnacional, precursores que autorizassem a postura concreta (usamos termos como poesia
concreta e concretos por simplificao, pois no desconhecemos que Haroldo, por
exemplo, rejeitar a classificao de concreto desde meados de 1963, quando comea a
redao do seu grande poema Galxias). Assim, voltando questo de Oswald e a
antropofagia: esta funcionaria como uma soluo para a descentralizao da histria literria,
que sempre teve como centro de gravidade a Europa. O nacionalismo visto por outro ngulo,
o que prenunciaria o longo texto de Haroldo, O sequestro do barroco na Formao da
literatura brasileira: o caso Gregrio de Matos, de 1989. A mudana na maneira de ver a
histria est no fato de Haroldo propor uma relao de autores de diversos tempos, no
respeitando o modo linear de traar o percurso das obras. Haroldo privilegia as obras
destruidoras de uma recepo acomodada e acadmica. Munido do conceito de paideuma de
Ezra Pound, Haroldo de Campos entende a poesia concreta como um movimento sincrnico;
isto , tomar Mallarm, principalmente o do Un coup de ds, como um dos pilares de sua
potica notar semelhanas e aproxim-lo de obras como as de Gregrio de Matos ou
Sousndrade. As inovaes grficas, o lirismo complexo, a sintaxe que impe dificuldade, a
materialidade do signo so caractersticas que Haroldo observa no poeta francs e tambm no
barroco e, obviamente, em Gregrio de Matos. Nisso, o poeta e crtico brasileiro no se
diferencia de precedentes revalorizaes. Ou seja: Lorca, revendo Gngora; Eliot e os poetas
metafsicos ingleses; Pound e os provenais.
Aparentemente, h uma contradio na proposta por clareza, conciso e comunicao
da poesia concreta com esse retorno a um barroco mallarmeniano, e mesmo a prtica desse
como ficou dito acima. E aqui cabe lembrar que Haroldo tambm foi autor de um poema de
longo flego, de partes permutveis e independentes, Galxias, que exatamente pela
dificuldade de execuo levou muito tempo para ser finalizado. Alis, mesmo outras obras de
Haroldo e dos modernistas, que adotaram o suporte dos mass media, continuam tendo uma
penetrao restrita ainda que entre leitores relativamente cultos. Enfim, Haroldo em um de
seus textos Do epos ao epifnico (gnese e elaborao das Galxias), tenta resolver essa
questo, afirmando sobre o referido poema:
Afinal, o oximoro (a coexistncia dos contrrios) a figura-rainha do
Barroco e barroquismo no se ope a construtivismo (Bach, o matemtico da
fuga, um barroco; a geometria curvilnea de Niemeyer em Pampulha ou em
Braslia , ao mesmo tempo, construtiva e barroquizante). (CAMPOS, H.,
2010, p. 272)
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Essa citao e o que foi dito acima nos ajudam a pensar no que Haroldo de Campos
entende por neobarroco: um misto de tratamento radical da palavra-coisa, mas que no fosse
irracional, e sim um delrio lcido, como ele mesmo diz. Assim, parece que a viso de
Haroldo ainda se filia quela que entende o barroco como um perodo de contradies: claro -
escuro; liberdade - represso; racionalismo - irracionalismo; materialidade espiritualismo;
conteno abundncia etc. Nesse sentido, tanto o poema barroco quanto o neobarroco
seriam uma tentativa de conciliao de foras contraditrias, um caos organizado.
As produes e a crtica dos concretos ganharam projeo internacional, uma vez que
esse movimento tambm acontece junto ao chamado boom latino-americano dos anos 50,
momento da literatura em que escritores como Borges, Guimares Rosa, Octavio Paz
influenciaram outras literaturas em diferentes continentes. Sendo assim, o poeta Eugen
Gomringer, na Alemanha, aceita a designao de poesia concreta para o que ele vinha
fazendo; no Japo, h reverberaes concretas no grupo VOU; na Amrica Latina h ainda
mais aliados: Octavio Paz, que mantm dilogo com Haroldo e empreende a revalorizao de
Sror Juana Ins de La Cruz, antes deles, Lezama Lima, em Cuba, tambm eleger o barroco
latino-americano como a arte da contra-conquista, conceito que Haroldo une antropofagia
oswaldiana. Ainda em Cuba, temos a presena de Severo Sarduy que adotar o termo
neobarroco e tambm manter os laos com a perspectiva iniciada por seu compatriota.
Portanto, devemos analisar alguns desses autores, pois eles sero citados por Haroldo na
tentativa de autorizar sua opinio sobre o barroco e conseqentemente sobre Gregrio de
Matos.
Jos Lezama Lima, com sua obra A expresso americana, publicada primeiramente
em 1957, ser sempre evocado por Haroldo de Campos. Este ligar Lezama Lima
antropofagia de Oswald de Andrade, notadamente porque o escritor cubano, em sua
teorizao, assemelha-se s propostas de 22 ao ver no barroco o princpio de uma arte feita na
Amrica, mas no de forma submissa, o que alterava as formas impostas pelo colonizador,
esboando o nativismo que se generalizaria no processo de independncia. Alm disso, o que
explicava em parte a capacidade de perturbar as formas estrangeiras era a miscigenao que
ocorreu de forma ampla na Amrica Latina.
Lezama Lima pretende mudar a maneira de ver a histria da cultura na Amrica, no
aceitando uma relao de causa-efeito, segundo ele, promovida pelo historicismo de Hegel.
Lezama engendra uma viso potica, fabulosa, que compara perodos recentes da histria a
perodos muito afastados. Para isso, ele afirma que preciso desviar a nfase posta pela
historiografia contempornea nas culturas para p-la nas eras imaginrias (LIMA, 1988, p.
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57). Entende Irlemar Chiampi, no prefcio escrito para a traduo brasileira do livro de
Lezama, que este cria uma histria fabulosa e intertextual, centrada no Senhor barroco,
smbolo da interveno americana na arte do colonizador (Idem, p. 30).
O escritor cubano assegura que: Repetindo a frase de Weisbach, adaptando-a ao que
americano, podemos dizer que entre ns o barroco foi uma arte da contra-conquista (Idem, p.
80). O interessante nessa frase, explica Irlemar Chiampi numa nota, que Lezama Lima
modifica a afirmao de Weisbach, pois este teria asseverado que: a Igreja catlica valeu-se
das artes plsticas para fins de ensino, persuaso e at propaganda da doutrina, dentro dos
seus propsitos contra-reformistas, chegando a dizer que o estilo barroco adaptou-se
maravilhosamente a tais propsitos (Idem, ibidem). E conclui, ainda sobre a posio de
Weisbach: Ora, neste caso, efeito didtico do barroco espanhol sobre o indgena americano
teria alcanado plenamente os fins da catequese (Idem, ibidem). At aqui entendemos que
Lezama tresleu Weisbach para adapt-lo a seus interesses. O curioso que a viso de
Weisbach ter proximidades com o que Candido descreve, pois este via o perodo barroco
apenas como sujeio da nova terra ao elemento estrangeiro, no cabendo em sua Formao
que visa a uma descrio da especificidade buscada pelos escritores brasileiros, busca que
seguia de perto o processo de emancipao nacional. Joo Adolfo Hansen alargar ainda mais
a distncia entre a arte dita barroca e o presente, no qual o nacionalismo est h muito
defasado, e o sculo XVII deve ser estudado dentro de seus limites, que no podem ser
aproximados do sculo XX ou XXI, levando ainda em considerao o fato de que no se pode
falar em conscincia anti-colonialista na Amrica portuguesa ou espanhola.
Lezama Lima no enxerga a questo assim, e Irlemar endossa-o, escrevendo em sua
nota:
Com sua tese da contra-conquista (uma rebelio subjacente s formas barrocas, motivada pela condio do colonizado), Lezama no s perfila
uma poltica para o modo americano de apropriar-se da esttica barroca do
colonizador como restitui s formas artsticas a sua abertura para veicular
ideologias dspares. (Idem, ibidem)
Fica fcil ver porque Haroldo de Campos tinha afinidades com Lezama Lima. Este,
como os modernistas brasileiros, propagava a importncia da miscigenao racial como fonte
dessa contestao e inovao artstica, que ocorreu no continente americano. Falando do
escultor ndio Kondori, diz Lezama:
[...] o ndio Kondori consegue inserir os smbolos incaicos do Sol e da Lua,
de abstratas elaboraes, de sereias incaicas, de grandes anjos cujos rostos de
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ndios refletem a desolao da explorao mineira. Seus portais de pedra
competem na proliferao e na qualidade com os melhores do barroco
europeu. (Idem, p. 103-104)
Temos a, segundo Lezama Lima, um dos precursores do que se faria largamente nas
vanguardas latino-americanas. No s o elemento ndio seria fundamental para esse papel
como tambm o elemento africano. o caso, argumenta Lezama, de Aleijadinho, no qual se
pode ver a rebelio artstica dos negros, cujo triunfo incontestvel, visto que se ope aos
modos estilsticos da sua poca, impondo-lhes os seus (Idem, p. 104). Lezama, inclusive,
lega-nos uma bela imagem de Aleijadinho embuado nas noites de Ouro Preto, montado em
sua mula, oculto todo o rosto sob um chapu que lhe caa como uma asa sobre os ombros, a
picotar com a sua goiva as defesas da pedra (Idem, p. 105). Portanto, o senhor barroco
seria uma sntese inovadora e da contraconquista hispano-incaica e hispano-negride
(Idem, p. 106).
Lezama Lima julga haver lugar, na sua histria no centrada na Europa e no
causalista, para escritores da Amrica do Norte como Whitman e Melville. Nas letras, ele
acrescenta em seu repertrio o poeta colombiano Hernando Domnguez Camargo, um
excesso ainda mais excessivo que os de Don Luis (Idem, p. 87). importante termos as
concepes de Lezama em mente, pois elas corroboram as de Haroldo, que ao longo de sua
obra crtica as citar, nem sempre de forma extensa, como o faz na sua obra dedicada a
Gregrio de Matos, que veremos a seguir. O que Haroldo v em Lezama um crtico que
chegou a abordar a questo da origem e da identidade de modo muito semelhante ao modo
como o prprio Haroldo o faz. Em Lezama: o barroco da contraconqusita, Haroldo dir:
De fato, a busca da identidade tende a ganhar um matiz ontolgico, a revestir-se de aspectos
substancialistas, metafsicos, na nsia de identificao de um esprito, carter, alma ou eidos
nacional (CAMPOS, 2010, p. 57). Em relao a uma histria que seguisse esse trajeto,
Haroldo cita, no explicitamente, a obra de Candido. O que interessa explicitar sua afinidade
com a resposta de Lezama a essa suposta e hegemnica abordagem histrica que vem desde
os romnticos. Haroldo: Sua historiografia obedece antes analogia da razo potica do
que ao logos impositor de um centro de verdade e de uma certeza retilnea quanto parusia
do esprito do Ocidente na histria americana (Idem, p. 59). E completa, preestabelecendo
um raciocnio que se estenderia mais tarde em 1989, no seu texto focado inteiramente em
Gregrio de Matos, na questo da origem da literatura brasileira e na incluso do barroco
nessa mesma origem:
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A histria mestio-constelar lezamesca, no subordinada tirania causalista,
rege-se pela imaginao e pela memria espermtica. uma histria enquanto construo (W. Benjamin), uma fico heurstica urgida pelas necessidades criativas do presente. Seus protagonistas (numa retomada
curiosa dos heris carlaleanos, porm s avessas, j que privilegia os marginais e os subversores), so transeuntes de uma tropologia fustica,
instigada pelo Senhor Barroco. (Idem, ibidem)
Para Haroldo, s seu mestre Oswald de Andrade teria antecipado esta viso lezamesca,
defendendo o barroco como estilo utpico das descobertas (apud CAMPOS, p. 60). O poeta de
Signncia: quase cu fica, ento, mais vontade para desenvolver suas idias e reivindicar
o barroco como comeo de uma literatura americana, de resistncia ao invasor, que mantm
relaes com o externo, entretanto sem passividade e impondo sua contribuio diferente no
cenrio mundial. Em Da razo Antropofgica, Haroldo j havia estabelecido as bases do
que repetiria nos textos seguintes em relao ao barroco, seu paideuma e sua abordagem da
poesia no presente de criao.
Outro cubano contribui para dar autoridade aos argumentos de Haroldo, Severo
Sarduy. Este um seguidor de Lezama Lima e tambm um crtico e escritor que via no
barroco um propulsor de sua vanguarda. Sarduy em seu livro Escrito sobre um corpo,
redigido originalmente em 1969, discorre sobre o barroco e o neobarroco, palavra que ele
toma de Haroldo. Especificamente em seu Por uma tica do Desperdcio, Sarduy se detm
sobre o barroco, destacando a materialidade dos signos, o artificialismo consciente e ao
mesmo tempo uma proliferao de palavras e sentidos, que se ligam idia de barroco como
algo rebuscado, que se expande de modo desordenado, como o delrio lcido, de Haroldo,
em seu poema Galxias. Assim, tambm para Sarduy alguns textos modernos latino-
americanos trazem essa marca barroca. Metalinguagem, pardia, aliterao, abundncia so
algumas das caractersticas que o escritor cubano destaca no barroco ancestral que o liga ao
presente, pois a extrema artificializao praticada em alguns textos, e sobretudo em alguns
textos recentes da literatura latino-americana, j bastaria para assinalar neles a instncia do
barroco (SARDUY, 1979, p. 60). Apoiado em Saussure e Lacan, prope:
O espao barroco o da superabundncia e do desperdcio. Contrariamente
linguagem comunicativa, econmica, austera, reduzida a sua funcionalidade
servir de veculo a uma informao -, a linguagem barroca se compraz no suplemento, na demasia na perda parcial do seu objeto. Ou melhor: na busca,
por definio frustrada, do objeto parcial. (Idem, p. 77)
Essa superabundncia leva Severo Sarduy a concluir que h algo de jogo, de ertico
no barroco: Jogo, perda, desperdcio e prazer: isto , erotismo enquanto atividade que
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sempre puramente ldica, que no mais que uma pardia da funo de reproduo, uma
transgresso do til, do dilogo natural dos corpos (Idem, p. 78). As nicas caractersticas
que diferenciariam o barroco do passado e o barroco de seu presente de criao, isto , o
neobarroco, seriam Deus e seu correspondente terrestre, o rei, ambos sustentados pelo
jesuitismo, que imperara no contexto ibrico do sculo XVII. No entanto, vejamos como seria
o neobarroco para Sarduy:
Ao contrrio, o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a
desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a
carncia que constitui nosso fundamento epistemolgico. Neobarroco do
desequilbrio, reflexo estrutural de um desejo que no pode alcanar seu
objeto, desejo para o qual o logos no organizou nada mais que uma cortina
que esconde a carncia. (Idem, p. 79)
Esse neobarroco seria uma arte da dessacralizao e da discusso, seria um barroco
da revoluo (Idem, ibidem). Com isso, o que vemos de comum entre Sarduy e Haroldo o
mesmo intento de propagandear uma arte que seja americana, que se concentre na palavra-
coisa e que, no sendo provinciana, ao mesmo tempo, tenha suas especificidades locais,
transformadas em diferenas dentro de uma histria oriunda dos pases centrais, um barroco
que veio com o conquistador, mas foi conquistado pelo elemento novo, transformando-se
tambm em outro barroco. Assim, a idia criar uma arte que no se acomoda, reverente, mas
capaz de se pr contra a dominao cultural. Animados pelo boom latino-americano, que ps
em circulao escritores da estatura de Borges, Guimares Rosa, Cotzar, entre outros, Sarduy
e Haroldo estavam afinados. Para concluirmos, vejamos a pretenso compartilhada desses
escritores, em texto sobre Jlio Cortzar (Liminar: para chegar a Jlio Cotzar), Haroldo diz
que as obras de arte devem pr em xeque o relacionamento supostamente de mo nica entre
a literatura da Europa e da Amrica Latina (CAMPOS, 2010, p. 126). E completa, unindo
Rayela, Paradiso e Grande Serto: Veredas:
Obras como essas arrunam a concepo antidialtica de que os pases
subdesenvolvidos estejam condenados a produzir literatura subdesenvolvida;
so obras que pem em questo a prpria possibilidade de transplantar, para
o campo da imaginao literria, esse conceito de 'subdesenvolvimento',
extrado mecanicamente do idioleto estatstico dos economistas [...] (Idem,
ibidem)
O neobarroco, que Haroldo e Sarduy, por exemplo, veem em Guimares Rosa a
prova de que uma obra de arte da contra-conquista possvel. O barroco, para os latinos
americanos, funcionaria como o ancestral dessas obras que combinam um alto grau de
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experimentao, conseqncias das vanguardas globais, e, ao mesmo tempo, um novo frisson,
oriundo de uma perspectiva descentrada, ex-cntrica, no dizer de Haroldo de Campos, que a
perspectiva de um pas perifrico proporciona.
No Brasil, depois dos modernistas de 22, um dos grandes responsveis pela
teorizao em relao ao barroco foi Affonso vila. Em seu livro O ldico e as projees do
mundo barroco, Affonso analisa o barroco sincronicamente, como fizeram os autores que j
estudamos, destacando semelhanas com a arte moderna, de seu tempo. Para ele:
[...] a atrao exercida pelo barroco decorre, sem dvida, das similitudes e
afinidades que aproximam duas pocas cronologicamente distanciadas entre
si, dois instantes porm da civilizao ocidental que colocam em crise os
mesmos valores [...] (VILA, 1980, p. 11).
Tendo em vista que o homem do sculo XX um homem em crise permanente, a arte
(haja vista os vrios ismos que se sucederam) deve representar essa crise, esse mundo, cujos
valores artsticos ou no foram todos postos em questo. Para Affonso vila, o homem
barroco foi como a origem de nossa arte nacional, assim como desse mesmo estado de
permanente contestao. Por isso, pondera: O artista barroco foi, pois, histrica e
existencialmente, um ser em crise, sua arte registrou, como um grande radar, as oscilaes das
idias e as linhas cruzadas das formas de expresso em mudana (Idem, p. 33). Affonso,
ento, retira de Schiller o conceito de impulso para o ldico, caracterizando a arte barroca e
unindo-a a arte moderna. O artista barroco jogaria com as formas livremente como o artista
moderno, produzindo uma obra de arte aberta; isto , no clssica, que prope dificuldades
para o pblico, pois no possui um sentido claro, facilmente definvel e que pode ser
constantemente modificvel. O artista barroco estava imbudo de uma vital vontade esttica
de jogo; em tal arte, observar-se- uma ascendncia maior do arbtrio do artista na
manipulao de seu material, [...] mas esse arbtrio no se confundir com a razo ordenadora
das formas verificada antes na atitude clssica (Idem, p. 51). Por outras palavras, Affonso
defende uma posio bem prxima do que Haroldo, Sarduy e Lezama tambm defenderam
antes ou depois. Para eles, o barroco era uma forma que foi apropriada pelas culturas
americanas, era uma arte que dava liberdade individual ao artista, que produzia obras que
expressavam sua crise, sua miscigenao; por isso mesmo, essa arte impunha novas atitudes
para quem a frua, diferentemente da arte clssica que jazia presa em modelos prefixados.
Wlfflin afirmou, em Conceitos fundamentais da histria da arte, de 1915, que:
Esquematizando os trs exemplos de estilo individual, estilo nacional e estilo
de poca, podemos ilustrar os objetivos de uma histria da arte que concebe
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o estilo sobretudo como expresso, expresso do esprito de uma poca, de
uma nao, bem como expresso de um temperamento individual.
(WLFFLIN, 2000, p. 13)
Tal afirmativa deixa a porta aberta para que Affonso vila veja o barroco como um
desejo enunciador de uma essencialidade brasileira (VILA, 1980, p. 92). Assim, por
conseqncia, o escritor mineiro ver Gregrio de Matos como o fenmeno [...] que j dar
em pleno Seiscentos uma dimenso americana ao barroco literrio portugus (Idem, p. 85).
Em Affonso, a miscigenao evocada como constituinte desse barroco abrasileirado,
lembrando Mrio de Andrade, que via na mulatice de Aleijadinho uma das caractersticas
do seu gnio; alm disso, embora o escritor baiano fosse branco, ele vivera num contexto
no qual se somam aos valores ancestrais transplantados tanto os contributos de uma presena
macia da cultura negra, quanto s ainda poderosas contingncias autctones (Idem, p. 92-
93). Sendo assim, Gregrio introduziu na poesia da lngua portuguesa uma nova feio de
sensibilidade e linguagem que podemos denominar a dimenso brasileira (Idem, p. 94).
Seguindo essa perspectiva, e unindo a ela o conceito saussuriano de sincronia, como Haroldo
igualmente o far, possvel propor que o barroco foi um estilo que possuiu: muito da
formatividade da arte moderna (Idem, p. 99). E o autor mineiro acrescenta, sobre o barroco e
a modernidade:
[...] sem dvida a acentuada ludicidade das formas verificadas em uma e
outra etapa da evoluo esttica o que mais as aproxima, quando vistas sob o
ngulo de uma crtica de sentido sincrnico (Idem, ibidem).
Affonso vila faz coro comparao que James Amado fez, em 1968, entre Gregrio
de Matos e Caetano Veloso. Affonso diz que os dois, poetas e baianos, utilizaram a mesma
linguagem tropical e desmistificadora num mesmo tipo de arte ldica, no mesmo jogo do
revs que o jogo de toda arte (Idem, p. 100). Aproveitamos esse gancho para abordar outra
questo que sempre ser retomada por Haroldo: a relao da poesia com outras artes,
especificamente com msica popular, sobretudo o Tropicalismo, e a capacidade de, por esta
via, pr na ordem do dia uma nova poesia ou uma nova forma de ver a poesia antiga.
Os poetas que lanaram o concretismo somavam a um repertrio de escritores
inventivos como Mallarm, Joyce, cummings, Apollinaire, Pound, o ideograma chins, isto ;
o aspecto visual da poesia, o no-verbal e a composio em Gestalt. Apesar, devemos
reconhecer, desse primeiro paideuma ser mais voltado ao cosmopolitismo, os concretos sero
fundamentais para uma reviso da literatura em mbito nacional, valorizando obras de autores
at ento pouco estudadas, como Sousndrade, Pedro Kilkerre e Gregrio de Matos.
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Passada a fase do Plano-piloto, nos 60, o debate poltico se acirra e a poesia concreta
questionada quanto a sua participao poltica. Sendo assim, os tericos do concretismo
inseriram um pos-scriptum, em 1961, ao manifesto, que dizia: Sem forma revolucionria no
h arte revolucionria. Essa citao de Maiakvski, alm de incluir mais um poeta no
paideuma, uma resposta exigncia de engajamento, porm sem que se abandonasse a
pesquisa, as experimentaes, que, para seus crticos, afastavam o pblico e, produzindo uma
arte alienada, rejeitavam o debate na sociedade. Por outro lado, a partir dessa virada
participante, poder-se-ia dizer que os concretos assim desfaziam a proposta potica inicial,
que era baseada na diviso sartreana de poesia e prosa. Para Sartre, como argumenta
Franchetti, a poesia no pode ser engajada, pois ela se volta sobre si mesma; isto , na poesia
a palavra uma coisa e deve ser manipulada como tal e no um veculo transmissor de um
contedo que possa ser identificado na sociedade (FRANCHETTI, 2012, p. 99). No entanto,
os concretos resolvem esse problema alegando que, nas vanguardas, os limites entre a poesia
e a prosa tornaram-se ainda menos fixos, o que permite que a poesia vincule, sem deixar de
ser experimental, uma mensagem para a sociedade; ou seja: a poesia concreta pode ser
participante. A mensagem, assim, deixa de ser apenas a forma.
Esta postura concreta tambm servir de resposta ao que se praticou nos CPCs.
Ferreira Gullar, por exemplo, um dissidente concreto e um dos fundadores do
neoconcretismo, numa tentativa de doutrinao ideolgica, tentou vincular em cordel
reivindicaes de cunho social. Como afirma Joo Luiz Lafet:
[...] a literatura pendeu para a esquerda, abandonando a potica
industrializante do Concretismo e optando por um recuo formal que desse
conta de outras faces da vida brasileira. [...] Os programas de vanguarda
foram criticados como formas alienadas da realidade brasileira, como aliados
do capitalismo internacional e como adversrios da revoluo; as
sofisticaes pond-eliot-joycianas foram substitudas pela rusticidade do
cordel, pelas arengas reivindicatrias e pelo verbalismo derramado da m
conscincia que se acusa. (LAFET, 2004, p. 118-119)
Sabemos que esse engajamento, utilizando formas populares deu em m poesia, apesar
das boas (ou ms) intenes de seus praticantes. Os concretos, exetuando algumas produes
como Servido de Passagem, de Haroldo, no cederam a essa presso momentnea e
continuaram a propor uma poesia, que, apesar de ter ligaes com os novos modelos de mdia,
radicalizava em seus resultados e solicitava um leitor mais ou menos culto interado com o
movimento das vanguardas. Porm o vis participante passou a ser considerado pelo
concretismo, o que acarretou, durante a dcada de 1960, algumas produes. Essa postura
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mudou pouco ao longo da evoluo das obras individuais dos ex-concretos. Sempre citando a
frase sem forma revolucionria no h arte revolucionria, de Maiakovski, e tendo-o
traduzido, Haroldo incorporou a poesia lrico-participante do poeta russo ao seu paideuma.
Por isso, devemos observar que Haroldo, nesse sentido, no demonstra desinteresse do temas
polticos, pois, alm do poema que j citamos, o poeta paulista far, vez ou outra, poemas
militantes ou produes no publicadas em livro, mas com o mesmo intuito de participao
poltica. Numa entrevista publicada em Galxia Revista Transdisciplinar de Comunicao
Semitica e Cultura, de 2001, Haroldo diz:
Como poeta, minha poesia tem um endereo especificamente ditado pelas
suas necessidades prprias de potica, mas no posso perder minha
conscincia de cidado, da necessidade de participao em certos processos
polticos. J escrevi poemas nessa linha como, por exemplo, O Anjo Esquerdo da Histria (protesto contra o massacre dos Sem-terra no Par) e Circum-lquio (non troppo alegro) sobre o neoliberalismo terceiromundista. [...] J fiz agit-prop (poema-propaganda de agitao), na linha maiakovskiana, em apoio a candidaturas, com as quais afinava
ideologicamente, de polticos do PT. (CAMPOS, 2001, p. 86)
Esse excurso, que inclusive antecipou a produo de Haroldo em alguns anos, foi
realizado para que mostrssemos que as preocupaes sociais, comeadas no acirramento do
debate poltico dos anos 60, no deixariam de interessar a Haroldo de Campos, o que
desmente um pouco a impresso de que a poesia praticada pelos concretos (e depois ex-
concretos) era alienada, como sugerido na citao do texto de Lafet. justamente nesse
perodo de acirramento do debate poltico, entre as dcadas de 60 e 70, que eventos
sciopolticos e culturais importantes acontecero no Brasil: Ditadura de 64, uma nova
concepo das grandes cidades como cenrio de um pas moderno e cosmopolita, a
consolidao do modelo da arquitetura de Lcio Costa e Niemeyer, a popularizao da
televiso e o Tropicalismo. Como j tentamos demonstrar, o concretismo no ficaria
insensvel a essas mudanas, sendo o prprio movimento dos concretos um dos produtos
desse mesmo tempo2.
Haver uma aproximao entre o concretismo e o tropicalismo, ainda que ambos
fossem bastante diferentes. No entanto, os tropicalistas fizeram uma renovao na msica e
em suas letras, associada a uma utilizao provocativa dos meios de comunicao, atingindo
uma gama maior da populao, coisa que seria aprovada pelos concretistas. Estes no
conseguiriam que a poesia penetrasse tanto as novas mdias como os tropicalistas. J os
2 AGUILAR, 2005, p. 357-383.
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tropicalistas fariam um uso da linguagem que se assemelharia muito s produes
concretistas, sem que houvesse um mero epigonismo. Um bom exemplo seria Batmacumba,
de Caetano e Gilberto Gil, gravada em Tropiclia ou Panis et Circenses (AGUILAR, 2005,
p.152). Assim, a relao com os concretos se manter sempre ativa: em 1972, Augusto de
Campos escreve o poema VIVA VAIA dedicado a Caetano Veloso; em 1978, no lbum Cinema
Transcendental, o cantor baiano grava a traduo de um poema de John Donne, feita por
Augusto e musicada por Pricles Cavalcanti. O mesmo Caetano, em 1984, no lbum Vel,
musicaria e gravaria O pulsar, autoria de Augusto de Campos. Como vemos, esse encontro
ser bastante profcuo. Ainda antes, em 1972, no lbum Transa, Caetano Veloso far uma
verso de um poema atribudo a Gregrio de Matos. Na cano, que se chamar Triste Bahia,
Caetano musica dois quartetos de um soneto. O contexto de ditadura daria a essa cano uma
interpretao renovada e provocativa. Haroldo ir sempre se referir msica de Caetano, e
especificamente a essa produo, como exemplo de uma criao sincrnica, que reaviva a arte
feita num perodo posterior, estabelecendo-se assim uma tradio pela renovao, pela
redefinio dos significados e no apenas pela aceitao pacfica diante de um cnone h
muito estabelecido e esttico. O prprio Pound tambm via as experincias de msicos
modernos como contribuio para a reabilitao de poetas afastados, como Arnaut Daniel
(POUND, 2006, p. 54-55). Sendo assim, para Haroldo, lcito que Caetano musique o poema
atribudo a Gregrio, abrindo novas possibilidades de dilogo com o poema do sculo XVII.
parte o que possa haver de exagero nessas aproximaes e comparaes entre Caetano
tocando seu violo e Gregrio sua viola de cabaa, o fato que pode ser muito eficaz tanto a
crtica de Haroldo quanto o procedimento do msico tropicalista para aproximar um pblico
mais amplo da poesia de um tempo j afastado do nosso. Tais experincias podem ainda
explorar outras possibilidades at ento impensadas para a mesma poesia como no caso do
soneto em eco Na orao, que desenterra... a terra, de Gregrio de Matos, que ficou
conhecido com o ttulo de Mortal loucura, quando musicado e cantado pelo msico j
referido e pelo professor e tambm msico Jos Miguel Wisnik. Esse poema musicado foi
danado pelo Grupo Corpo, no espetculo Onqot, de 1995, o que talvez Pound aplaudisse,
pois afirmava: A msica apodrece quando se afasta muito da dana. A poesia se atrofia
quando se afasta muito da msica (Idem, p. 61). Esses exemplos demonstram, no s o
sincronismo preconizado pelos concretos, como tambm uma continuidade da relao desses
com outros artistas, mesmo depois que o concretismo e o tropicalismo deixaram de existir
enquanto movimentos.
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Esse sincronismo ser trabalhado por Haroldo de Campos em dois ensaios de 1967,
ambos publicados primeiramente no Correio da Manh, Rio de Janeiro. Um ensaio levar o
nome exatamente de Potica sincrnica e o outro de Apostila: diacronia e sincronia. Esses
dois textos sero reunidos num livro publicado posteriormente: A arte no Horizonte do
Provvel e outros ensaios, de 1969/1977. Os referidos ensaios so importantes porque
prenunciam o que Haroldo retomaria mais detidamente no seu livro de crtica Formao da
literatura brasileira, de Antonio Candido. Em Potica sincrnica, Haroldo diz:
H duas maneiras de abordar o fenmeno literrio. O critrio histrico, que
se poderia chamar diacrnico, e o critrio esttico-criativo, que se poderia
denominar sincrnico, a partir de uma livre manipulao da famosa
dicotomia saussuriana, retomada mais recentemente pela crtica
estruturalista. (CAMPOS, 1977, p. 205)
A partir dessa citao e, segundo o percurso da crtica de Haroldo de Campos que
estamos acompanhando, podemos entender que o mtodo de revisar a histria
sincronicamente significa dialogar com o presente, com a arte que se faz e buscar no passado
semelhanas que tornem plausvel a reunio de autores de tempos diferentes. O que os uniria
seriam supostamente os critrios de inventividade e de capacidade de ruptura com a recepo
original. Essa atitude de Haroldo dessemelhante do historiador tradicional ou diacrnico.
Segundo Haroldo:
A sede do historiador literrio diacrnico , portanto, quanto possvel,
esteticamente neutra: interessa-lhe a congrie dos fatos, seus
desdobramentos, sua sucesso no eixo do tempo. No processo fatual que a
evoluo literria assim vista, um evento sociolgico ou de significao
meramente documentria pode assumir maior importncia que uma
ocorrncia caracterizadamente esttica. (Idem, p. 205-206)
Como se deduz desse trecho, o que Haroldo privilegia o aspecto tcnico, artstico das
obras, no, por exemplo, o fato de elas poderem ser sintomas de algo exterior, como um
crtico munido de um arcabouo sociolgico um tanto tosco pensaria. A literatura no se
subordinaria lgica dos acontecimentos polticos, pois, ela tem sua prpria dinmica e pode
(tipo preferido por Haroldo) reinventar seus procedimentos. O historiador diacrnico no seria
capaz de observar o surgimento desses instantes de ruptura e no teria sensibilidade para
aproximar as exigncias estticas contemporneas s obras do passado, o que as mostraria sob
uma nova luz. Esses historiadores trabalham com um conceito de tradio esttico e se
mostram desconfiados em relao s tentativas de everso da ordem constituda, frente das
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quais se pem, geralmente, no crticos, mas criadores (Idem, ibidem). E conclui Haroldo,
dando como exemplo um patriarca dos estudos sociolgicos na literatura brasileira:
Da por que, com tanta assiduidade, as Histrias da Literatura e as
Antologias sejam tributrias de esteretipos encanecidos, seus planetrios de
papel impresso se rejam por estrelas fixas, e os veredictos literrios, uma vez
emitidos pelo primeiro historiador de tomo (o caso de Slvio Romero entre
ns), passem to mansamente em julgado. (Idem, p. 206-207)
Assim, Haroldo vai buscar em Roman Jakobson, outro crtico importante para suas
argumentaes, mais munio para seu ataque velha diacronia. Diz Jakobson, em
Lingstica e potica: A descrio sincrnica considera no apenas a produo literria de
um perodo dado, mas tambm aquela parte da tradio literria que, para o perodo em
questo, permaneceu viva ou foi revivida (JAKOBSON, 2010, P. 154). Logo em seguida,
Jakobson, para exemplificar, constata que aos poetas ingleses daquele momento (momento no
qual Jakobson escrevia) Keats, Emily Dickinson, Donne e Marvell eram influncias presentes,
j escritores como James Thomson e Longfellow no apresentavam tanto interesse.
Haroldo, ento, encontrar em Pound e no livro deste, ABC of Reading, de 1934, o
modelo precursor de uma histria sincrnica que privilegiava a contracorrente inventiva.
Sendo assim, resume sua proposta Haroldo de Campos:
O primeiro passo para a reviso em profundidade de nosso passado potico,
a partir de uma perspectiva sincrnica, seria, a meu ver, uma Antologia da
Poesia Brasileira de Inveno, onde os autores selecionados, da fase
colonial ao Modernismo, o fossem por uma contribuio definida para a
renovao de formas em nossa poesia, para a ampliao e a diversificao de
nosso repertrio de informao esttica. No importa que alguns poetas
viessem a ser representados por fragmentos ou mesmo simples pedras-de-
toque, que outros, dos mais assduos freqentadores de crestomatias, fossem
sem maiores cerimnias postos margem, e que, finalmente, a tbua
habitual de poetas maiores e menores recebesse o tratamento que se d s inutilidades. Justamente isto que seria desobstrutivo e saneador. (Idem,
p. 208-209)
Nessa longa citao, temos a tese de Haroldo condensada e os critrios que utilizar
para montar seu paideuma. Em seguida, o crtico faz sugestes de autores e obras que
deveriam ser revisadas, exemplo: as Cartas Chilenas, Sousa Caldas, Odorico Mendes,
Bernardo Guimares, Pedro Kilkerre (este, j naquela altura, estava sendo estudado por
Augusto de Campos). Encabeando esse paideuma, estaria obviamente Gregrio de Matos, o
qual soube levar a mistura de elementos do Barroco prpria textura de sua linguagem,
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atravs da miscigenao idiomtica de caldeamento tropical [...] O mesmo hibridismo que se
encontra em nosso barroco plstico (Idem, p. 209). Alm disso, Gregrio teria outros
mritos, embora sua poesia no fosse autgrafa nem houvesse ainda uma edio cuidada das
mesmas, o de ter sido um tradutor e um rearranjador do material literrio de seu tempo.
Segundo Haroldo, ao invs de se falar de plgio na obra atribuda a Gregrio, dever-se-ia
entender certas produes como tradues criativas. Para Haroldo, ainda, Gregrio teria
traduzido e recombinado poemas de Gngora, manejando assim com habilidade a tcnica
permutatria do barroco (Idem, ibidem). Essa maneira de ver Gregrio de Matos ou a obra a
ele atribuda ser retomada no Seqestro, em 1989.
Em Aposila: Diacronia e Sincronia, Haroldo retoma o tema que at ento temos
estudado, mas o retifica num ponto. Depois de afirmar que utiliza livremente os conceitos de
diacronia e sincronia, Haroldo diz que num estudo sincrnico da poesia, por exemplo,
impossvel no haver tambm diacronia. Assevera Haroldo:
Como o domnio da poesia, diferentemente do da linguagem comum, est
praticamente imerso no diacrnico, na tradio (Stankiewicz), a postura
histrico-evolutiva inclui sempre, necessariamente, um quadro sincrnico
assumido como tbua de valor. (Idem, p. 222)
E completa: Todavia, e aqui est a diferena que metodologicamente me interessa, o
quadro sincrnico tambm historicizado, por assim dizer, embebido em diacronia, embutido
na tradio (Idem, ibidem). Haroldo no abandona sua potica sincrnica, mas reconhece
que nesta sempre se infiltra a diacronia, porm esta deve ser criticada. Como exemplo,
Haroldo toma a perspectiva de Lukcs que, quando julgava autores contemporneos como
Thomas Mann, Joyce e Kafka, o fazia sob critrios tradicionais; isto , uma vez que Mann se
aproximava mais do romance de Balzac angariava uma boa posio em seu julgamento, j
Kafka e Joyce que rompiam com o romance do tipo fechado no mereciam tanta
considerao. No caso brasileiro, Haroldo cita o crtico Wilson Martins que menosprezava
romances como Macunama, de Mrio de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald, mas
louvava os romances de rico Verssimo, que, segundo Haroldo, eram convencionais, feitos
moda romanesca j amplamente fixada no sculo XIX. Arremata Haroldo:
A potica sincrnica (esttico-criativa), no sentido em que a conceituo para
propsitos bem definidos, est imperativamente vinculada s necessidades
criativas do presente: ela no se guia por uma descrio sincrnica
estabelecida no passado, mas quer substitu-la para efeitos, inclusive, de reviso do panorama diacrnico rotineiro por uma nova tbua sincrnica que retira sua funo da literatura viva do presente. (Idem, p. 222-223)
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Assim, podemos iniciar uma concluso, dizendo: o que Haroldo de Campos busca em
Oswald de Andrade, Lezama Lima, Severo Sarduy, Affonso vila, apesar das diferenas que
separam esses autores, uma valorizao do barroco como estilo prprio da Amrica, como
primeira arte adaptada e capaz de responder originalmente dominao poltica e cultural. O
barroco para esses escritores seria o ancestral de suas experincias artsticas; isto , eles
sempre veriam o barroco tendo em vista as caractersticas da arte que praticavam no presente.
Essas produes, segundo Haroldo, poderiam mesmo ser chamadas de neobarrocas e,
obviamente, so elas que carregariam uma essncia americana e ao mesmo tempo uma forma
experimental, j autorizada pelas vanguardas europias, capaz de rivalizar com a arte do
centro dominante. J em autores como Ezra Pound ou Roman Jakobson, Haroldo sacaria, do
primeiro, alm do conceito de paideuma, o privilgio dado aos autores inventivos e a
capacidade de vivificar o passado, buscando nesse os instantes de ruptura em relao arte
dominante; de Jakobson, Haroldo aproveitaria o conceito de sincronia, esse por sua vez
originrio de Saussure, e que modifica os estudos da histria literria, pois a v sempre como
uma diacronia constantemente questionada pela sincronia; alm disso, Haroldo utiliza o
conceito de funo potica, que ser muito importante para suas formulaes. Do
Tropicalismo e de Caetano, Haroldo v concretizada a atualizao no presente de criao da
poesia de Gregrio de Matos, dando novo significado a contestao do satrico seiscentista
num contexto de Ditadura e, ao mesmo tempo, inserindo a poesia num cenrio pop.
Curioso notar que autores to diferentes como Lezama Lima, Sarduy, Affonso vila,
Haroldo de Campos, Candido (depois de reformular e rever sua opinio em relao ao barroco
e apresentar sua tese da comicidade malandra), e at mesmo Afrnio Coutinho3, viam o
barroco como um estilo congenial da Amrica Latina e, obviamente, do Brasil. Esse
essencialismo, como o prprio Haroldo o admitiu, ser visto, de modo apologtico como um
direito dos americanos de mais inventar que encontrar suas razes, de modo demolidor por
Hansen, o que explica o amplo impacto de sua obra.
A descrio da relao de Haroldo com todos esses autores e o entendimento do que
deles utilizou so importantes para que possamos compreender como o autor de Galxias
via o barroco, a obra de Gregrio de Matos e a relao deste com a produo potica
contempornea.
3 Da que a civilizao a civilizao desenvolvida no Brasil colnia uma civilizao barroca, e que o Barroco
ficou sempre congenial ao esprito brasileiro. (COUTINHO, 1986, p. 33-34).
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Agora, vejamos a crtica de Haroldo ao sequestro do barroco realizado pelo livro de
Antonio Candido e os desdobramentos dessa crtica.
Em 1959, Antonio Candido publica sua importante obra Formao da literatura
brasileira: momentos decisivos (1750 1836) e classifica a poesia de Gregrio de Matos
como uma das manifestaes literrias isoladas que no influram no devir literrio
brasileiro, tendo em vista o sistema tridico autor-obra-pblico. Candido parte da perspectiva
dos crticos romnticos e ressalta as contribuies do romantismo e do arcadismo, afirmando
que h uma continuidade temtica, e no estilstica, entre esses dois movimentos literrios.
Alm disso, sua anlise busca destacar das obras o comprometimento, mais ou menos
consciente, dos autores com a construo da nao. Candido tambm observou, nas obras, a
unio entre o aspecto pitoresco e particularista contribuies do romantismo --, e o aspecto
universalista com tendncias ao realismo contribuies do arcadismo. Portanto, o que no
cabe nesse sistema, deve conseqentemente ser excludo. Logo, a obra de Gregrio de Matos
e o barroco o foram. Como a obra de Candido se tornou um paradigma nos estudos literrios
brasileiros necessrio inclu-la aqui. Nosso trabalho abordar a crtica a esse modelo
historiogrfico de Candido feita por Haroldo de Campos em seu livro O sequestro do barroco
na Formao da literatura brasileira: o caso Gregrio de Matos, de 1989. importante
entendermos os pontos principais dessa crtica, pois ela explicita a posio de Haroldo quanto
ao barroco e os motivos da insero da obra de Gregrio de Matos no seu paideuma, alm,
claro, de ser uma fundamental reviso da perspectiva defendida pelo autor de Brigada ligeira.
Nosso trabalho no , no entanto, uma anlise das polmicas em torno de Gregrio de
Matos, mas uma anlise concentrada nos trabalhos de Haroldo de Campos e de Joo Adolfo
Hansen e, contiguamente, na polmica entre eles, o que veremos posteriormente. Nossa tarefa
discutir as bases tericas dos dois autores e ressaltar aquilo que as fundamenta.
Haroldo de Campos desde os anos 50 exerceu concomitantemente as atividades de
poeta e crtico. Dessa atividade dupla, principalmente em textos produzidos para jornais e
conferncias, que resultar O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: o
caso Gregrio de Matos, sua obra mais extensa sobre o poeta do Recncavo. Deter-nos-emos,
por isso, nesta obra por entendermos que ela resume suas posies quanto ao barroco e
Gregrio de Matos.
A obra O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: O caso
Gregrio de Matos resultado de um curso que Haroldo de Campos ministrou na
Universidade de Yale em 1978, depois o autor fez modificaes no texto ao longo dos anos
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80. A redao e reviso finais foram feitas entre 86 e 88, tendo o autor acrescentado um Post
Scriptum em 1987.
Inicialmente, Haroldo afirma que a excluso de Gregrio de Matos do cnone literrio
brasileiro feita por Antonio Candido coloca a questo da origem no centro do debate e
prope desvend-la a partir das formulaes de Jacques Derrida (CAMPOS, 2011, p. 19).
Para assinalar como a perspectiva de Candido poderia se tornar hegemnica, Haroldo de
Campos cita um texto de Wilson Martins, publicado em 21 de maro de 1970, no Suplemento
Literrio do Estado de So Paulo. Nesse texto, Martins, simplificando, leva s ltimas
conseqncias a abordagem de Candido e sustenta que Gregrio de Matos no teria existido
em termos de histria literria e que sua incluso na cronologia literria uma
involuntria mistificao histrica (Idem, p. 20). Contra o risco dessa perspectiva se
consolidar sem questionamento que Haroldo de Campos se insurge e prope,
contrariamente, Gregrio de Matos como origem, como fonte da mesma literatura. A
crescente valorizao do barroco e a reabilitao da poesia de autores como Gngora e John
Donne, por exemplo, promovida respectivamente por Lorca e T. S. Eliot, somadas proposta
dos estudos de potica sincrnica promovidos por estruturalista como Roman Jakobson, faz
Haroldo enxergar a excluso de Gregrio de Matos como um paradoxo. Afinal, para o autor
de Galxias, justamente a existncia de Gregrio de Matos que promove o sentimento de
uma tradio viva, da qual seu presente herdeiro (Idem, p. 21). Sendo assim, o que
Haroldo de Campos pretende principalmente criticar a noo de histria que subjaz
Formao da Literatura Brasileira, reabilitar autores para seu paideuma e propor uma nova
abordagem, na qual o valor de uma obra antiga constantemente afetado pelo valor da nova
(POUND, 2006, p. 72). Paideuma um conceito tambm colhido em Ezra Pound e que ser
muito importante para os concretos. Segundo Pound: Paideuma: a ordenao do
conhecimento de modo que o prximo homem (ou gerao) possa achar, o mais rapidamente
possvel, a parte viva dele e gastar um mnimo de tempo com itens obsoletos (Idem, p. 161).
Esse conceito faz parte do esforo pedaggico de Pound, que tambm animar Haroldo, a fim
de facilitar o contato mais rpido e direto com a produo potica que, segundo os padres
modernistas, vale a pena conhecer. Os autores, para Pound, dividem-se entre inventores,
mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lanadores de
modas (Idem, p. 42-43). Os inventores tm precedncia no paideuma, embora a tipologia
poundiana no seja uma rgida hierarquia; assim como importam as obras, ou at mesmo
excertos de obras, escritas sob o signo da inveno, da contracorrente. Isto deve ser
sublinhado, pois essa atitude poundiana nortear a crtica de Haroldo de Campos.
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Para realizar sua crtica, Haroldo de Campos combater em duas frentes. Haroldo
rejeitar o modelo histrico de Antonio Candido e o sistema tridico autor-obra-pblico. Esse
condiciona a entrada da obra no cnone literrio, distinguindo-a, assim, das manifestaes
literrias isoladas. Gregrio de Matos pertenceria, segundo Candido, ao perodo formativo
inicial, figurando apenas na tradio local da Bahia (CANDIDO, 2009, p. 26). Colocando-
se no ngulo dos primeiros romnticos, Candido busca estudar as obras que tenham
contribudo para formar o nosso sistema literrio. Autores e obras que fizessem parte de
uma continuidade ininterrupta e estivessem, mais ou menos, conscientes de integrarem um
processo de formao literrio (Idem, Ibidem). Esses autores deveriam estar imbudos do
desejo, vago ou no, de escrever para a sua terra, mesmo quando no a descreviam (Idem,
p. 27).
No captulo Perspectiva histrica e ideologia substancialista, Haroldo de Campos
critica a viso substancialista da evoluo literria, que responde a um ideal metafsico de
entificao do nacional contida no trabalho de Antonio Candido (CAMPOS, 2011, p. 23).
Essa perspectiva diz respeito manifestao do Logos , do esprito ocidental transplantado
para uma nova realidade, a americana. Segundo Haroldo, a formao desse esprito segue
duas sries metafricas, a animista e a organicista, isto , a leitura atenta das obras animar o
logos nacional depositado nas obras, o que possibilitar ao historiador literrio acompanhar
esse esprito em seu desenvolvimento orgnico at que ele se mostre plenamente. Esta
evoluo, por sua vez, corresponde construo do estado nacional brasileiro. Como para
Candido, a literatura brasileira galho secundrio da portuguesa, por sua vez arbusto de
segunda ordem no jardim das musas (CANDIDO, 2009, p. 11), acompanhar esse
desenvolvimento exige uma leitura amorosa para que o Logos se manifeste, alm de ser
necessrio a conscincia de que essa literatura no pode ser comparada a de outras naes
europias. Isto significa que, ainda que do ngulo dos primeiros romnticos, a leitura de
Candido no ufanista. Devido a esta perspectiva antiufanista e disfrica, descrever o
crescimento desse esprito, desse galho, desde sua origem simples at seu tlos acabado, numa
terra nova, no ser um espetculo paradisaco (CAMPOS, 2011, p. 25).
Segundo Haroldo, no captulo A encarnao literria do esprito nacional, Candido
adotar um modelo historiogrfico que estabelece uma origem simples desse esprito nacional
para depois descrev-lo ao longo de sua formao at o fim em que ele se mostre completo.
Esse modelo foi criticado por Derrida e Hans Robert Jauss. Afirma Haroldo: O conceito
metafsico de histria, segundo Derrida, envolve a idia de linearidade e a de continuidade:
um esquema linear de desenrolamento da presena, obediente ao modelo pico (Idem, p.
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26). Cabe estabelecer quando comea a conscincia dos escritores de pertencerem ao mesmo
processo de formao nacional. Candido adota como origem da sua histria as Academias dos
Seletos e dos Renascidos e a obra de Cludio Manuel da Costa, datando essa mesma origem
em 1750. Candido diz ter se colocado no ngulo dos primeiros romnticos, e esse aspecto da
sua viso que Haroldo busca destacar para fazer sua crtica. Sendo assim, o que Candido
analisa nas obras que estudou o quanto elas possuem de expresso da realidade local e, ao
mesmo tempo, elemento positivo na construo nacional (CANDIDO, 2009, p. 27). A
escolha de tratar desta literatura empenhada em descrever o elemento nacional, segundo
Haroldo, levar Candido, muita vezes, a optar por analisar obras que pecam por certo
descuido esttico (CAMPOS, 2011, p. 27). Isto acontece porque, para Haroldo, o sistema
adotado por Candido privilegia a coerncia e a continuidade, excluindo obras que pudessem
perturbar seu modelo histrico, o qual exige que as obras revelem as especificidades desse
suposto esprito nacional, ainda que esteticamente sejam pobres e fracas.
Nesse ponto, preciso dizer que Candido sempre se mostrou consciente dos perigos
do nacionalismo crtico, como ele mesmo deixou claro numa entrevista concedida
recentemente. Na referida entrevista, o autor da Formao lembra, inclusive, que a famosa
Introduo j trazia um alerta nesse sentido:
Mas o nacionalismo crtico, herdado dos romnticos, pressupunha tambm,
como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu carter representativo.
Dum ponto de vista histrico, evidente que o contedo brasileiro foi algo
positivo, mesmo como fator de eficcia esttica, dando pontos de apoio
imaginao e msculos forma. Deve-se, pois, consider-lo subsdio de
avaliao, nos momentos estudados, lembrando que, aps ter sido recurso
ideolgico, numa fase de construo e autodefinio, atualmente invivel
como critrio, constituindo neste sentido um calamitoso erro de viso.
(CANDIDO, 2009, p. 30)
Candido, na referida Introduo, continua argumentando que seu trabalho no
tomar unicamente o ponto de vista empenhado. Sendo assim, devemos observar que a
questo do nacionalismo em Candido mais complexa, alm de ser matizada pelo agudo
senso esttico, que o prprio Haroldo reconhece, o que faz da Formao uma obra
densamente crtica e no meramente uma obra nacionalista.
Para Haroldo, no captulo Literatura como sistema, Candido exps um modelo
estrutural da literatura, que limita as fases e explicita os momentos decisivos na formao
do sistema, distinguindo o que literatura propriamente dita das manifestaes literrias.
A literatura propriamente dita deve estar integrada no processo coerente e contnuo de
caractersticas que so transmitidas constituindo uma tradio que forma o sistema, j as
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manifestaes literrias so o que se produziu de forma isolada sem que existisse a interao
autor-obra-pblico, qual j nos referimos. Assevera Candido, referindo-se aos elementos
que permitem que a obra entre em seu sistema:
Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (lngua, tema,
imagens), certos elementos da natureza social e psquica, embora
literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da
literatura aspecto orgnico da civilizao. Entre eles se distinguem: a
existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos
conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes
tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor,
(de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros.
(CANDIDO, 2009, p. 25)
Haroldo de Campos ento julga correto contrapor esse modelo estrutural de Candido o
modelo semiolgico que ele retira do texto Lingstica e potica, de Roman Jakobson. Esse
terico ser muito importante nas formulaes de Haroldo, dando-lhe vrios elementos que
sero incorporados em sua crtica, como a adoo, por exemplo, dos conceitos de sincronia e
diacronia. Para Jakobson:
Os estudos literrios, com a potica como sua parte focal, consistem, como a
lingstica, de dois grupos de problemas: sincronia e diacronia. A descrio
sincrnica considera no apenas a produo literria de um perodo dado,
mas tambm aquela parte da tradio que, para o perodo em questo,
permaneceu viva ou foi revivida. (JAKOBSON, 2010, p. 154)
Na seqncia de seu texto, Jakobson citar, para exemplificar esse carter dinmico da
histria da literatura, justamente a presena de um poeta proscrito da fase dita barroca
Donne - unida j costumeira presena de Shakespeare. No resta dvida de que as opinies
de Haroldo so tributrias das do terico russo, e tal relao estabelecida pelo esforo do
brasileiro em reavivar a poesia de Gregrio de Matos. Alm disso, Jakobson aponta par