capítulo 1: os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade
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Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade:
A “Família Silva”
A comunidade negra “Família Silva” situa-se no bairro Três Figueiras, município
de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e ocupa um terreno de 4. 445,71 m2. Nele vivem
31 pessoas entre as faixas etárias de 0 a 48 anos, distribuídas em 7 unidades
domiciliares ou residenciais28. Eles são um grupo de pessoas que reside, há mais de
sessenta anos, em uma área sobreposta em parte ao traçado projetado da rua João
Caetano, entre as ruas Nilo Peçanha e Carlos Gomes. Estão ligados entre si por laços
de parentesco, por casamento ou consangüinidade: seis irmãos, seus respectivos
cônjuges, filhos, netos e sobrinhos de duas irmãs falecidas29.
Os atuais integrantes dessa coletividade são, em sua grande maioria,
descendentes de negros oriundos do interior do Estado do Rio Grande do Sul que ali
se instalaram nos meados do Século XX. Seus avós maternos, Naura Borges da Silva
e Alípio Marques dos Santos, naturais de São Francisco de Paula e Cachoeira do Sul,
respectivamente, foram sucedidos por seus pais, Anna Maria da Silva e Euclides José
da Silva, ambos de São Francisco de Paula, na ocupação do território e na
perpetuação de seus modos de vida e organização social. Foi a instalação no local que
28 As sete residências construídas na área são de compensado de madeira, teto de zinco, com dois ou três cômodos,com ligações clandestinas de luz e água. Existem no local apenas dois banheiros com vasos sanitários que sãoutilizados coletivamente.29 Parte dos adultos do grupo tem apenas o primeiro grau completo em virtude de uma política assistêncial doColégio Anchieta que, na década de 60, oferecia aos moradores pobres da região o ensino fundamental gratuito.Suas ocupações profissionais são mal remuneradas. As mulheres trabalham em serviços domésticos, os homenscomo vigias e jardineiros da luxuosa vizinhança ou caddies do Country Club. As crianças passam meio turno emuma escola pública das proximidades e o restante do dia no pátio do terreno sob o cuidado dos adultos que estão porcasa naquele momento.
hoje é conhecido como bairro Três Figueiras o que possibilitou aos seus antepassados
territorializarem-se, isto é, projetarem sobre um espaço física e geograficamente
delimitado suas práticas de resistência e de autonomia em relação a sociedade
envolvente. Tal ato é que possibilita ao grupo gestar-se enquanto uma unidade social
diferenciada organizacional e etnicamente ao longo de seis décadas.
Entre os integrantes da “Família Silva”, a identidade de “remanescente de
quilombo” está relacionada à luta que eles travam e outrora seus antepassados
travaram para constituir um território próprio e obter as condições mínimas de
sobrevivência de forma autônoma. Em audiência pública da Comissão de Participação
Legislativa Popular sobre a territorialidade negra no Rio Grande do Sul e a luta dos
remanescentes de quilombos no Estado, realizada no dia 13 de junho de 2003, Rita de
Cássia da Silva Dutra, representante da comunidade diz que:
“ Só por que somos negros, pobres e trabalhadores, não temos direitos
de estarmos nessa terra? Depois de anos e anos lutando, todo mundo
tem direito. A única coisa que queremos é a posse da terra, nada mais.
Não estamos pedindo favor a ninguém. Isso todo o ser humano quer: o
direito de plantar e colher o fruto desse trabalho, coisa que
antepassados da gente vêm buscando. Não só os de agora- na era de
2000-, mas os de muito tempo atrás, no tempo da escravidão.”30
Os que procuram uma imediata conexão do grupo com a África ou com a
escravidão podem ficar decepcionados. As lembranças de seus membros se referem
principalmente ao período que sucede a migração de seus antepassados do interior do
Estado para um recanto afastado e rural da cidade de Porto Alegre. A ausência de
30 Extraído de caderno produzido pela Comissão de Participação Legislativa Popular sobre Audiência Pública: ATerritorialidade negra no Rio Grande do Sul. A luta dos remanescentes de quilombos no Estado. 13 de junho de2003, pág.38.
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recordações sobre épocas anteriores pode ser explicada, em parte, pela sucessivas
“quebras geracionais”, isto é, os avós maternos morreram quando eles eram jovens,
ocorrendo alguns anos depois a perda da mãe31. Os contatos que eles tinham com
parentes e amigos das cidades de origem dos seus ancestrais foram se enfraquecendo
ao longo dos anos de forma simultânea aos falecimentos mencionados. Percebe-se,
claramente, uma ruptura no processo de transmissão da memória coletiva da
comunidade, provocada pelos reduzidos períodos de convivência entre as gerações
onde esses elementos pudessem ser repassados.
O relato de Jorge32, amigo e compadre do grupo desde 1968, nos fornece
indícios importantes quanto a essa questão. Segundo ele, “Vó Naura” se emocionava
ao ouvir no rádio uma música que falava dos sofrimentos de uma mulher negra, a “mãe
preta”. Ele percebia que aquela música lhe traziam recordações dolorosas que enchiam
seus olhos de lágrimas, no entanto, ela nunca falou sobre o assunto. Cabe ressaltar
que a valorização da memória dos negros sobre o período escravocrata é um processo
extremamente recente. Até alguns anos atrás falar de escravidão era falar de um
período vergonhoso, uma mancha de dor e sofrimento do passado que muitos negros
procuraram apagar de diversas formas, até mesmo pelo silêncio33.
A memória só pode se perpetuar se for trabalhada e compartilhada pelo grupo,
conformando-se naquilo que Halbwachs (1976) definiu como quadros sociais da
31 Alípio Marques dos Santos faleceu em 25/2/1971. Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa deMisericórdia de Porto Alegre – livro de óbitos n. 71 f. 49v – guia 6542; Naura Borges da Silva faleceu em 1o/8/1980.Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre – livro de óbitos n. 78 f. 120v –guia 35259; Anna Maria da Silva faleceu em 14/1/1987. Certidão de óbito n. 48925 do Ofício de Registro Civil dasPessoas Naturais da 4a Zona da Cidade de Porto Alegre; Euclides José da Silva faleceu em 6/3/1998. Certidão deóbito n. 121.829 do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais da 4a Zona da Cidade de Porto Alegre.32 Jorge Bertoino Gomes, entrevista realizada em 21de maio de 2004.33 De acordo com GUSMÃO (1999), a terra tem sido desde sempre sinônimo de liberdade para os grupos negros, oque implicaria, muitas vezes, numa negação do passado de cativeiro.
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memória. A lembrança não é um ato individual de recordar, mas o resultado de laços
de solidariedade. As noções de espaço e tempo são fundamentais para o trabalho de
rememoração do passado uma vez que as localizações espaciais e temporais das
lembranças são efetivamente a essência da memória (ROCHA e ECKERT, 2000).
Tendo em vista que a territorialização do grupo remonta ao século passado, é
previsível que suas recordações se refiram principalmente a este período. Atualmente
esses eventos são interpretados sob a perspectiva de uma identidade quilombola que
se constitui a partir do recente surgimento da categoria jurídica “remanescentes das
comunidades dos quilombos”. Essa denominação passa a significar um tipo particular
de referência que permite recuperar uma identidade positiva do negro como cidadão de
direitos, não apenas de deveres34. Para exemplificar fazemos uso da declaração de
Lorivaldino da Silva, integrante da comunidade ora estudada, citada na matéria
veiculada na Revista Terra de julho de 2004 :
“ Antes de saber dos quilombos, eu tinha vergonha de sentar ao
lado de uma branca no ônibus. Para comer num bar, só entrava
quando não tinha ninguém . Agora isso mudou.” 35
Extraviados deste Rio Grande do Sul: em busca de origens.
Os integrantes da “Família Silva” freqüentemente referem-se a São Francisco de
Paula e a Cachoeira do Sul como lugar de origem de seus ancestrais. Partindo destas
34 Desde o final de 2002, integrantes do grupo passaram a participar de diversos eventos relacionados com a questãodos remanescentes de quilombos. Neles, os representantes da “Família Silva” têm protagonizado a sua luta pelaregularização da propriedade do território que habitam e pela conquista das condições mínimas de cidadania. Nomomento, encontram-se em processo de discussão para a constituição de sua associação.35Revista TERRA. Editora Peixes, julho de 2004- ano 12- n.º 147, páginas 14/15.
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lembranças, e tomando-as como linhas diretivas de nossa investigação, vamos
procurar na história destes municípios elementos que permitam compor uma narrativa
que trate das trajetórias dos antepassados da comunidade analisada ou de grupos
sociais a eles relacionados. A fim de completar a análise de sua sociodisséia
direcionaremos o olhar para as condições que levaram ao abandono desses locais e à
sua territorialização em um recôndito afastado na capital do estado do Rio Grande do
Sul.
Em Cima da Serra, no caminho das tropas
Guilhermino César aponta os Campos de Cima da Serra, ao longo ainda do
século XVII, como região de passagem de bandeiras paulistas, o que certamente
contribuiu para o extermínio de populações autóctones que ali viviam36. Os índios
Caaguás, identificados à tribo dos Coroados, costumam ser considerados “os primeiros
habitantes de São Francisco de Paula”, e seu desaparecimento é associado à
escravidão e às doenças ocasionadas pelos bandeirantes37. É necessário, porém, ter
cautela antes de concluir por um total extermínio da população indígena durante os
séculos XVII e XVIII. Afinal, no levantamento de moradores do Rio Grande de São
Pedro, realizado em 1784, na explicação do despovoamento desses campos e do
abandono de diversas estâncias eram responsabilizados os “índios bugres”, muito
embora seja difícil definir com maior precisão quais povos indígenas estavam sendo
referidos38.
36CÉSAR (1970). p. 64, 67.37Ver TEIXEIRA et alii (1996) p. 16; LUCENA (1971)38OSÓRIO (1990) p. 185. e OSÓRIO (1999). p. 115.
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São Francisco de Paula teve sua constituição intimamente ligada à produção e
comércio de gado muar e vacum. A localidade encontrava-se em uma posição
estratégica, isto é, no caminho das tropas que realizavam o trajeto entre o Rio Grande
do Sul e os mercados de São Paulo e Minas Gerais, através de Lages e Sorocaba:
[Em 1727] “com a abertura do caminho dos conventos, da
barra do Rio Araranguá até o planalto (no local da atual
cidade de Lages), possibilitou-se, através dos campos da
Vacaria, um acesso mais fácil a São Paulo e às Minas
Gerais. A partir de então, tropeiros percorreram este
caminho, com tropas de cavalos e rebanhos de gado e um
pouco mais tarde, mulas, iniciando um comércio
fundamental para a economia sulina”. 39
“(...) a “Estrada dos tropeiros”, também chamada “Estrada
real”, que partindo de Viamão, passava por Santo Antônio,
seguia pelo vale do rio Rolante, e depois subia a serra,
encontrando-se mais adiante com a 'Estrada dos Conventos'
que, proveniente do vale do rio Araranguá, se dirigia para
Curitiba e São Paulo. A 'Estrada dos tropeiros' (...),
encurtava consideravelmente a distância entre o Rio Grande
e São Paulo, e com subida da serra bem mais fácil que a da
'Estrada dos Conventos' nos Aparados”. 40
Corcino Medeiros dos Santos atribui à estrada a localização das primeiras
povoações do Rio Grande de São Pedro – Viamão, Vacaria, Santo Antônio da Patrulha,
Mostardas e Estreito. Contudo, posteriormente a região nordeste do estado decaiu em
importância em relação à região central, justamente a partir do momento em que “a
39OSÓRIO (1999) p. 69 Ruben Neis data de uma forma ligeiramente diferente a abertura do caminho dos Conventos,qual seja, entre 1728 e 1732. NEIS (1975). p. 2140 NEIS (1975) p. 27-28. O autor estima a construção desta estrada entre 1734 e 1736.
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estrada de São Paulo, desviando-se do rumo de Lajes e Vacaria, procura o centro-
oeste do Rio Grande do Sul”41.
Por outro lado, a região também era uma rica fonte de gado a ser apropriado,
através da Vacaria dos Pinhais, ou Campos de Vacaria, cuja origem freqüentemente é
atribuída ao gado introduzido no Rio Grande do Sul pelos jesuítas42.
“Souza Faria quando em 1729 aí chegou encontrou esses campos
repletos de gado. Cristóvão Pereira, quando dois anos depois chegou ao
alto da Serra, que domina essas paragens, onde se demorou dois dias,
só viu campos e gados, segundo suas próprias expressões”43.
Plínio Lucena, pesquisador da história deste município, afirma ser o nome do povoado
uma homenagem ao santo de devoção do Capitão Pedro da Silva Chaves, donatário
de sesmaria na região44. Falecido em 1777, Chaves foi contemporâneo da criação da
paróquia de São Francisco de Cima da Serra, em 1756, da freguesia de Santo Antônio
da Guarda Velha, em 1763, e de Vacaria em 176845.
Em fins de 1766, existiam 18 estâncias e 133 moradores no distrito de Cima da
Serra, assim como, respectivamente, em Lages e Vacaria, 16 e 18 estâncias e 82 e 77
pessoas46. Para termos uma idéia do povoamento da região anos mais tarde, temos, no
trabalho de Sebastião Fonseca de Oliveira, uma reprodução da relação de moradores
de 1784 na região serrana. Ali, podemos encontrar para Vacaria e São Francisco de
Paula, que foram tomadas conjuntamente no censo, 52 propriedades arroladas, muito
41SANTOS (1984).42CÉSAR (1970) p. 76-7743DOCA, Coronel Sousa. apud SANTOS (1984) p. 6344LUCENA (1992). 45NEIS (1975) p. 152, 160, 161. 46OSÓRIO (1990). p. 117
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embora, devido ao acúmulo de seis fazendas em mãos do Capitão Pedro da Silva
Chaves, tenhamos apenas 47 proprietários. Observando os sobrenomes dos donos
dessas terras, percebe-se que em alguns casos deveriam guardar relações de
parentesco entre si47. Com grande parte dos campos tenham sido declarados
despovoados, em virtude das já referidas irrupções dos índios bugres, e com alguns
dos fazendeiros (os maiores) residindo em Viamão, São Paulo e Laguna, a relação de
1784 evidencia a concentração fundiária nos campos de Cima da Serra48.
Os intercâmbios ao longo do caminho das tropas não se limitaram, portanto, às
trocas econômicas e à circulação de mercadorias. Também ocorreram deslocamentos
populacionais. Este é o caso da família Borges, que será analisada por nós em função
das suas relações com a trajetória histórica da “Família Silva”. Originário de Lages,
Felipe Borges do Amaral e Castro se estabeleceu nesta região. Filho de João Borges
do Amaral e Castro e de Maria Custódia do Amaral49, ao falecer, em 1876, deixou
fazendas de criação em São Francisco de Paula e em sua terra natal, oito escravos,
oito escravas e gado50. Na relação de matrícula realizada em 1872 e anexada ao
inventário, todos escravos do sexo masculino estavam identificados como campeiros;
além disso, uma cativa era lavadeira e as demais, costureiras. Dois escravos, Serafim e
José, encontravam-se fugidos51.
47OLIVEIRA (1996). p. 33-3748OSÓRIO (1990) p. 185 49O pesquisador Sebastião Fonseca de Oliveira, em seu estudo dá conta de que João Antônio era nascido em Angra,Ilha Terceira, e falecido em 1823, enquanto sua esposa Maria era natural de Lages. OLIVEIRA (1996) p. 24050 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Felipe Borges do Amaral e Castro e s/m Mariado Nascimento Amaral. Inventariante – Olivério da Silva Esteves. Auto n. 3, maço 1, estante 39 e/c. Cartório doCivil e Crime – 187651É amplo o debate historiográfico a respeito da relação entre pecuária e escravidão no Rio Grande do Sul. Para umavisão a respeito, da qual os autores do presente trabalho compartilham, conferir OSÓRIO (1999) p. 130-148, eOSÓRIO (1990) p. 150-151 Chama a atenção o fato de que sobre estes dois foragidos não há indicação de qualquerrelação familiar que se temesse deixar para trás. Além desses dois, há três cujas relações familiares são ignoradas.Os demais são mãe e filhos, irmãos, tio materno e sobrinhos.
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Esta trajetória foi seguida também por seu sobrinho, José Borges do Amaral e
Castro Sobrinho. Em testamento datado de 1875, declarava ter nascido em Lages e
residir em São Francisco de Paula. Chegando ao Rio Grande de São Pedro, adquiriu
terras de seu tio no ano de 1852, pagamento este realizado em gado: 200 reses52. A
composição de seu patrimônio ao momento do inventário novamente evidencia a
predominância de atividades produtivas pecuárias, inclusive pela denominação das
fazendas: “campos da fazenda da invernadinha”, “invernada”53. Em seu testamento,
instituiu como herança para Gertrudes Maria do Espírito Santo, mãe de seus filhos com
a qual nunca chegou a se casar, uma casa de moradias, um escravo e uma escrava.
Falecido seu marido após a abolição da escravatura, Gertrudes não recebeu – ao
menos enquanto propriedade formalizada enquanto tal, enquanto seres humanos
igualados a mercadorias – os escravos que lhe foram prometidos. Por outro lado, a
ausência dos mesmos no inventário de José Borges do Amaral e Castro nos impede de
obter maiores informações a respeito deles.
As propriedades da família Borges arroladas situavam-se em uma localidade do
interior de São Francisco de Paula denominada Chapéu, pertencente ao atual
município de Jaquirana, em direção a Cambará do Sul54. Em março de 1889, faleceu
52 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Medição da Fazenda do Chapéu ou Morrinho Agudo – autorJoão Pedro Pereira, réu José Monteiro Filho. Auto n. 162, maço 8, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 188953 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – José Borges do Amaral e Castro. Inventariante –Inácio Borges do Amaral e Castro. Auto n. 52, maço 2, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 189154Anexamos a este laudo um mapa, originariamente pertencente ao supracitado livro de Sebastião Fonseca deOliveira, no qual tais propriedades e localidades constam com razoável precisão. OLIVEIRA (1996) As terras deFelipe Borges do Amaral e Castro, por exemplo, tinham Vitorino José Pereira como vizinho, e os rios Tainhas,Camisas e das Antas como limites, que aparecem no mapa desenhado por Oliveira. Do outro lado do Tainhassituava-se um lugar denominado Faxinal, que também aparece freqüentemente nos inventários analisados.Possivelmente ali se localizasse a fazenda denominada Capão Alto. Esta fazenda foi o local onde foi criado José IldoPereira, primo-irmão do pai dos Silva, Euclides José da Silva.
Em pesquisa realizada anteriormente por um dos autores, na comunidade negra de Morro Alto, municípiosde Osório e Maquiné, foi referida a existência de territórios negros em Tainhas.
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Francisco Borges do Amaral e Castro Sobrinho, um dos filhos de José Borges do
Amaral e Castro Sobrinho. Seu irmão, João, declarou as condições de sua morte:
faleceu de morte natural, na casa de seu pai, no lugar denominado Chapéu. Seu
cunhado, José Vitorino Pereira, acrescentou que a casa de seu sogro distava 12 léguas
da vila de São Francisco de Paula55.
Este cunhado pertencia a uma das duas famílias – os Pereira e os Valim – que
sempre constam nos inventários da família e nos autos de medição consultados,
referidos por sua condição de lindeiros. As medições fornecem outras informações
importantes, concernentes à aquisição daquelas terras. Os Pereira tornaram-se
proprietários de grandes extensões de terra através de aquisições feitas no início do
século XIX56. Em 1826, Vitorino José Pereira comprou pela quantia de 192$000 “uma
sesmaria” de campo em cima da serra a Manoel Gonçalves Ribeiro e sua esposa Maria
Nolasca de Jesus. Dois anos depois, por 400$000 tornou-se proprietário de mais uma,
transação esta efetuada junto a Policarpo de Freitas Noronha e Dona Clara Cândida
Carvalho57.
Entrevistamos uma descendente da família Borges, que, indagada da localização das terras de sua família,respondeu serem para o lado de Jaquirana e Cambará do Sul. Esta entrevistada solicitou que seu nome permanecesseem sigilo. A entrevista com ela foi realizada em Porto Alegre no dia 11 de agosto de 2004.55 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Francisco Borges do Amaral e Castro Sobrinho.Inventariante – José Victorino Pereira. Auto n. 44, maço 2, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 189056No mapa confeccionado por Oliveira, as terras entre os rios Camisas e Tainhas estão referidas como “FazendaSanta Bárbara”, e Manoel de Barros Pereira aparece como seu proprietário no ano de 1747. Se deduz uma relaçãoentre Manoel de Barros e Vitorino José. Da mesma forma, acreditamos que as famílias Borges e Valim tenham setornado proprietárias de terras na região por aquisição dos Pereira. 57 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Medição da Fazenda do Chapéu ou Morrinho Agudo – autorJosé Victorino Pereira, réu João Crescêncio de Almeida. Auto n. 145, maço 5, estante 152. Cartório do Civil e Crime– 1887. Os inventários analisados demonstram uma situação típica dos anos finais do regime escravista, qual seja, osproprietários de terras tentando regularizar situações fundiárias imprecisas e indefinidas, como diferentes atoressociais compartilhando da posse das propriedades e diversos integrantes de grandes famílias senhoriais tentandodefinir o quinhão que a cada um cabia nas grandes fazendas.
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Posteriormente, integrantes das famílias Pereira e Borges celebraram
matrimônios entre si, transformando em parentesco relações de vizinhança e
agregando um patrimônio em comum. Na segunda metade do século XIX, José Vitorino
e João Pedro, netos de Vitorino José Pereira, casaram-se, respectivamente, com
Josefa e Carolina, ambas filhas de José Borges do Amaral e Castro Sobrinho. Como
veremos posteriormente, os pais e avós da “Família Silva” tinham diversas relações
com os descendentes deste primeiro casal.
Antes de investigar, contudo, estas relações, resta falar da família Valim,
também residente e proprietária na região do Chapéu. Esta família também guarda
ligações com os Silva. Ido José da Silva58, 87 anos, tio paterno da comunidade
estudada, nos relata que os Valim não gostavam de utilizar o seu sobrenome,
preferindo chamar-se de “José da Silva”. Este é o caso de Afonso José da Silva,
fazendeiro que “ficou de padrinho” de Ido até seus 17 anos. Posteriormente, quem
terminou de o criar foi seu filho, João da Silva Reis. Através do cruzamento da
documentação histórica com a memória comunitária, foi possível resgatar os vínculos
desta comunidade com o passado escravista. Ido relata que o pai de Afonso José da
Silva, o “velho que o criou”, tinha escravos.
Nos inventários da família Valim, efetivamente este sobrenome só era utilizado
pelas mulheres. Os homens aparecem na documentação como José da Silva, como é o
caso de Afonso no inventário de seu pai, em 1897, Luciano José da Silva Neto. Foi
inventariante Fortunata Maria Valim, a viúva59. Fortunata figura dentre os herdeiros de
58Ido José da Silva reside na vila Bom Jesus, é irmão de Euclides José da Silva, pai dos atuais integrantes dacomunidade estudada. Trata-se do informante mais idoso por nós entrevistado, sendo um importante guardião damemória do grupo em questão.59 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Luciano José da Silva Neto Inventariante –Fortunata Maria Valim Auto n. 87, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1897
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sua irmã Matilde Maria Valim, cujo inventário era datado deste mesmo ano. Matilde
faleceu solteira, deixando diversos bens para seus sobrinhos, irmãos e irmãs, escravos
e ex-escravos em um testamento de 6 de março de 189060.
Para quem está acostumado com cronologias históricas rígidas, esta data pode
surpreender. Afinal, costuma se datar o fim da escravidão em 1888. Ou melhor, há
quem diga que ela teria acabado no Rio Grande do Sul em 1884, apesar dos estudos
que demonstram ter a exploração compulsória do trabalho se perpetuado para muito
além destas datas, através, por exemplo, de cláusulas de prestação de serviços61. De
qualquer forma, poderíamos pensar que trata-se de mero engano de Matilde Valim no
momento de elaboração de seu testamento. Afinal, as transformações no campo
material costumam ser mais aceleradas do que no campo das mentalidades, lugar das
“defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptarem às mudanças”, já
ensinava um importante autor da disciplina histórica62.
Contudo, o uso da palavra “escravo”, em nosso entendimento, evidencia mais do
que um lapso, a sobrevivência de uma mentalidade senhorial. Afinal de contas, é feita
uma distinção entre “escravos” (Francisco e Belizário); Idalina - filha de Geralda,
Jacinta - filha de Leonarda, Maria - mulher de Ramiro (sem quaisquer qualificativos),
uma “ex-escrava” (Joana), Henriqueta - filha de Geralda (afilhada). Se há distintividade,
depreende-se de cada uma das palavras empregadas um significado diferenciado.
A situação de Francisco e Belizário é pensada como distinta da dos demais,
particularmente da de Joana. São pensados enquanto cativos, ao mesmo tempo em
60 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Mathilde Maria Valim Inventariante – AntônioValim de Azevedo Auto n. 88, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 189761MOREIRA (2003). p .251-25762LE GOFF (1976). p. 72. Fernand Braudel também apontava a lentidão das transformações no campo da cultura,por ele associado à longa duração. BRAUDEL (1990). p. 14-16
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que outros não recebem esta qualificação. Dois anos após a lei áurea, assim referidos,
encontravam-se à margem da legalidade que proclamou o fim da escravidão. A
assinatura da lei na corte não implicou necessariamente em seu cumprimento no
interior do Rio Grande do Sul. Muito embora figurassem, ainda, como cativos, eles
foram arrolados no título de herdeiros, e não dentre os bens a serem partilhados:
Francisco recebeu seis reses de ventre e uma besta, Belizário oito reses de ventre e
uma besta. Entre os demais, a Idalina foram legadas quatro reses de ventre e um
cavalo, a Jacinta, quatro reses de ventre e um cavalo, a Maria, duas reses de ventre, a
Joana, uma rês de ventre, assim como à afilhada Henriqueta.
Diversos estudos têm demonstrado que o legado de heranças a escravos ou
forros (ou mesmo a promessa da libertação) era mais comum do que se costuma
acreditar. Muito mais do que um ato de bondade, tratava-se de uma prática de
disciplina ou de perpetuação de uma relação de dependência. Afinal, a esperança em
ganhos futuros – a possibilidade de produzir por meios próprios no interior da fazenda
senhorial, através de “pequeno direito de propriedade”; o ganho de determinada
quantia em gado ou terras; a conquista (ou esperança) da liberdade – tudo isso poderia
servir como um estímulo à passividade ou à cooperação do escravo. Por outro lado, por
tais benesses serem apresentadas como uma concessão senhorial, ficava o ex-escravo
em uma situação de dívida de gratidão em relação ao antigo senhor63.
O caso de Francisco e Belizário, qualificados como escravos, é uma
demonstração explícita desta continuidade de relações de exploração de mão-de-obra
dos libertos, em relações de trabalho que podem ser chamadas de escravidão
disfarçada (ou nem tanto). Pode-se dizer que se apoiavam em redes sociais de
63A respeito, ver SILVA (1999) p.22-31; SLENES (1996). p. 37-102; MATTOS (1998); BARCELLOS et alii(2004)
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dependência que eram alimentadas pelas famílias senhoriais, através de relações de
assistência ou compadrio; e eram de exploração, em função das condições de miséria
em que os libertos foram deixados. O projeto senhorial era o da permanência e controle
dos antigos escravos nas fazendas onde viveram, e aqueles que tinham relações
familiares mais profundamente enraizadas estavam mais vulneráveis a restrições em
sua mobilidade.
“A abolição formal da escravidão significou para grande
parte dos escravizados uma armadilha, na medida em que
toda uma série de dispositivos foi criada para manter o
trabalho do negro aprisionado. Uma das principais
armadilhas era a imposição da condição de agregado que,
mantendo o ex-escravo preso às terras do senhor, permitia
a continuação da extração forçada do trabalho sob novas
roupagens”64.
“Costuma-se alegar que aos libertos nada foi concedido
além da liberdade. Nem terras, nem instrução, nem qualquer
reparação pelos anos de cativeiro. Foram entregues à
própria sorte, o que podia ser especialmente dramático para
idosos e órfãos (...). No contexto da época, entretanto, salvo
a remota possibilidade de uma distribuição de terras, que
causou forte pânico entre os proprietários, a legislação
especial que se esperava tinha como base a idéia de tutela
do liberto pelo Estado, forçando-o a continuar na plantation
em condições cujos termos deviam ser definidos pelos ex-
senhores”65.
“Como se planejara desde a lei de terras, para os libertos as
alternativas eram empregar-se nas antigas propriedades
64ANJOS e SILVA (2004), p. 3565MATTOS (1998) p. 287
35
escravistas, desde que não reunissem condições para a
aquisição de pequenas propriedades”66
“(...) a complexidade e a antigüidade dos laços familiares
herdados do cativeiro influíram diretamente nas decisões de
migração e permanência dos libertos”67.
Essa complexidade e enraizamento de laços familiares podem ser demonstrados
com precisão no caso em questão. Belizário é avô paterno da “Família Silva”, de
acordo com mapa genealógico a seguir. No ano de 1890 a ele era atribuída a idade de
25 anos. Francisco, seu companheiro de escravidão pós-escravista, era casado com
Joaquina de tal, indicava o testamento. Ou, em palavras mais íntimas, quando Ido
arrola seus padrinhos:
“Padrinho era irmão do meu pai. Chamava-se Francisco,
Chico. Ela chamava-se Joaquina, a tia Quina (risos)”.68
66MATTOS (1998) p. 32867MATTOS (1998) p. 31868Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.
36
BelizárioJosé da Silva
(Escravo)
Pedrosa Borgesda Silva
(Pedrosa JustinaBorges)
Francisco(Escravo)
Joaquina
Ido Euclides Olício
Para nos certificarmos que as informações obtidas na pesquisa documental
realmente se referiam às pessoas presentes na memória de Ido, nosso entrevistado,
achamos por bem perguntar a ele se lembrava de determinados nomes, presentes no
testamento de Matilde Valim. Não se trata de indução, uma vez que não trouxemos ao
seu conhecimento a origem dos nomes relacionados. Trata-se meramente de uma
estratégia para testar uma hipótese de trabalho que orientou a elaboração deste laudo.
Estratégia bem sucedida, já que ele reconheceu os nomes de Idalina e Joana, que não
lhe eram estranhos embora não lembrasse com exatidão de quem se tratava. Lembrou
de Ramiro, um vizinho, também criado de um fazendeiro, chamado Henrique Valim. Ele
“era parecido de idade” com seu pai. Recordou ainda de Henriqueta (para ele, tia
Henriqueta), que tem um parente chamado Gaspar e outro Bernufo. Este último tem um
filho que reside no Sarandi69. Lígia Maria, integrante da “Família Silva” também referiu-
se a este tio Bernufo, que vinha de São Francisco de Paula para visitar sua mãe e sua
avó70.
Belizário, segundo os documentos analisados, era nominado como Belizário
José da Silva71. A assunção do sobrenome pertencente à família senhorial pode ser
interpretada como uma estratégia para, por um lado, criar vínculos e uma identidade
para aqueles que até então supostamente não a tinham; por outro, tratava-se de
manter relações de dependência entre a família senhorial e os libertos. “Não se
emergia completamente livre do cativeiro, mas passava-se para o status de liberto, o
qual estava profundamente marcado pelas cicatrizes Da escravidão e no qual era
69Entrevista com Ido José da Silva no dia 30 de junho de 2004.70Entrevista com Lígia Maria da Silva no dia 25 de maio de 2004.71 A certidão de casamento de Anna Maria e Euclides, bem como as certidões de nascimento de seus filhosapresentam essa informação. Certidão n. 17208, fl. 59 do livro B-62 do Registro Civil de Nascimentos, Casamentose Óbitos da Terceira Zona de Porto Alegre, e também no registro de batismo de seu filho Olício, ao qual nosreportamos neste trabalho.
37
arriscado abdicar dos sistemas de proteção dados pelas boas relações com seus ex-
senhores”72. Dentre estas marcas deixadas pelo cativeiro, o sobrenome pode ser
considerado um sinal que permanentemente estava a indicar um vínculo à família
daqueles senhores. Isso é bastante significativo: a antropologia social tem
compreendido o nome como algo que individualiza e categoriza as pessoas; denotando
pertenças e lugares sociais73.
Ellen Woortman, ao estudar a colônia alemã de Dois Irmãos, interior do Rio
Grande do Sul, constatou que os escravos recebiam o sobrenome da família à qual
pertenciam. Essa prática buscava burlar a interdição impostas às famílias alemãs de
possuir cativos. A adoção do sobrenome, portanto, evidenciava um vínculo de
dependência e subordinação porque os escravos nunca recebiam o prenome ancestral,
do patrimônio do tronco familiar. Embora não estivessem fora da organização
doméstica, os cativos ocupavam uma posição subordinada, simbolizada pelo fato de se
servirem à mesa após os brancos, tal como as crianças se serviam após os adultos74.
Acreditamos ser possível traçar um paralelo desta situação dos colonos de origem
germânica na segunda metade do século XIX, com a de ex-senhores, em geral, no
pós-abolição: sempre tentativas de contornar a proibição de utilizar mão-de-obra
escrava.
Nos registros paroquiais por nós analisados, de São Francisco de Paula e
também de Cachoeira do Sul, era freqüente, nos anos imediatamente posteriores à
abolição, tanto as crianças quanto as mães serem identificadas unicamente pelo
prenome, tal como ocorria com os escravos. No século XX, contudo, são mais comuns
72BARCELLOS et alii (2004) p. 12173Ver MAUSS (1974) e BRANDÃO (1986).74WOORTMANN (1995). p. 212-213.
38
a presença de sobrenomes, os mesmos das antigas famílias senhoriais; além disso,
associados a relações de apadrinhamento pelas mesmas. Stuart Schwartz aponta que
alguns senhores viam a adoção destes nomes com “lisonja gratificante ao seu orgulho
e senso de paternalismo”75. Paternalismo é uma palavra muito significativa no que diz
respeito aos anos imediatamente posteriores ao fim da escravidão76. Uma relação
paternal é hierárquica, autoritária, e mantém o “protegido” alijado do exercício da
cidadania. Por outro lado, mascara uma relação de exploração econômica sob a
imagem de proteção paternal77.
A criação de camadas de indivíduos dependentes fez parte
da intenção dos grandes proprietários de terras em
garantirem seu capital simbólico através da existência de
famílias que lhes prestavam obediência, mas também mão-
de-obra para suas fazendas e demais empreendimentos.78
Se a “proteção” oferecida pelos proprietários de terras significava submissão à
exploração da força de trabalho, por outro lado a ausência desta proteção poderia
deixá-los à mercê de abusos e violências, em uma sociedade nitidamente racista, é o
que se depreende da leitura de alguns processos criminais.
Em 1905, Hortêncio José da Silva, 26 anos de idade, solteiro, jornaleiro, filho de
José Valim, respondeu a processo criminal por ter arremessado uma cadeira contra
Feliciano José Martins, qualificado ao longo do processo como “preto Feliciano”. A
75SCHWARTZ (1999) p.327.76A descendente da família Borges por nós entrevistada utilizou exatamente esta palavra, ipsis litteris, ao externar omotivo provável que, no seu entendimento, explicaria a coincidência de nomes entre os ascendentes dos Silva e osseus. 77 Ver LEITE (2002). p. 106 e MEILLASSOUX (1995). p. 13. O mesmo autor (p. 94) observa que “famíliasmanumissas, algumas, geralmente antigas, podiam entrar na familiaridade dos senhores, fornecer-lhes trabalhadoresdomésticos, auxiliares, mordomos, às vezes até tutores (...) Entretanto, senhores e escravos continuavam separados.A condição do escravo se transformara, mas não o seu estado”. 78BARCELLOS et alii (2004) p. 120
39
agressão se deu durante um baile na casa de Antônio Joaquim de Oliveira e produziu
extenso ferimento na região frontal. À medida em que lemos os depoimentos das
testemunhas, vamos percebendo a situação em que o crime se deu. Feliciano José
Martins adquiriu de Pedro Francisco de Lima duas cestas e um lenço. Tendo pago o
preço conveniente, foi interpelado por Hortêncio José da Silva e Adriano Inácio da
Silva, que o acusaram de não ter dado a quantia suficiente. Ao tentar se defender da
acusação, afirmando já ter pago e não dever nada, foi-lhe atirada a cadeira. O que o
processo parece indicar é que, mesmo se acusados injustamente, a sociedade de
então não admitia voz de defesa à população negra79.
Vinte e cinco anos mais tarde, Justina Josefa da Silva protagonizou mais um
episódio de arbitrariedades contra a população negra na comarca de Taquara. Ela foi
processada por ter vibrado em Leontina Rodrigues da Silva uma pancada com um
cacete. Era sua vizinha, e ao longo do processo iremos descobrir que o motivo da briga
fôra a soga de uma cabrita, que Leontina arremessou um tamanco em Justina, e que
esta estava sendo processada por ter se defendido. O caso lembra o de Feliciano: ao
defender-se, corria-se o risco da agressão ou mesmo do processo judicial.
A origem negra da acusada não aparece ao longo de praticamente todo o
processo. Foi invocada pelo seu defensor, contudo, com base no estranho argumento
de que “nem os negros aceitam apanhar de tamanco”, o que tornaria aceitável que
Justina se defendesse. Enfim, ela foi absolvida, ainda que em base a uma defesa
francamente racista, que admitia, em certo grau, a agressão física aos negros, e que –
ponto freqüente no discurso racista – terminava pela animalização do outro:
79APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autora – A Justiça Réu – Hortêncio José da Silva Auto n. 788,maço 32, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1905
40
“(...) Ora, Justina, consoante o que já ficou dito nas razões
de defesa, foi agredida por Leontina, que, com grande
antecedência, a vinha provocando insistentemente. Tentou,
por todos os meios suasórios ao seu alcance, desviar a
sanha feroz da sua agressora, sem entanto consegui-lo: a
guerreira colona, fingindo Mme. Roland de botequim,
investiu-a de tamanco em punho. Ora, há de convir o
meritíssimo Juiz julgador, muito mais do que o chicote, é
instrumento aviltante. De chicote só se dá em negro
escravo. De tamanco nem sequer em negro se dá. Só
mesmo em cachorro impertinente, quando incomoda a ponto
de fazer o cidadão perder a calma, esquecer a linha e cair
do bonde. Assim mesmo o cidadão não dá de tamanco no
cachorro, atira-lho, simplesmente. Era, pois, muito razoável
que Justina não quisesse apanhar de tamanco. Por isso,
num movimento ágil e robusto, desarmou a mimosa Erínea.
(...) Foi então que Justina, camponesa rude, entendendo
apenas de batatas e feijão, alma fechada às solicitações
artísticas, incapaz de “bancar” Shakespeare em qualquer
circunstância, não logrando alcançar a grandeza imaculada
da cena bíblica representada pela autora (Moisés falando
aos Hebreus no Sinai), julgou-se no direito de perder a
paciência e acariciar a sua adversária com um ou dois beijos
de tamanco no meio do frontal”80.
Por outro lado, se na situação de Justina Josefa, de pequena produtora81, havia o
risco de enfrentar arbitrariedades ou ser processada injustamente, para aqueles que
permaneciam agregados ou criados de fazendeiros existia o risco de serem co-
responsabilizados por delitos feitos a mando de seus patrões. Foi o caso de outro
processo criminal analisado, que a bem da verdade não passa de uma briga de família
que foi parar na justiça, em julho de 1902. Israel Borges do Amaral Fogaça ingressou
80APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autora – A Justiça Ré – Justina Josefa da Silva Auto n. 1306,maço 65, estante 153 Cartório do Civil e Crime - 193081É o que o processo dá a entender, uma vez que é qualificada como camponesa rude, entendendo apenas de batatase feijão.
41
com um processo judicial contra Olivério da Silva Esteves, seu tio, meio-irmão de sua
mãe, e contra “ Antônio de tal, conhecido por Antônio Mulato e capataz ou peão ou
agregado de Rosa da Silva Esteves”. No caso, sua prima.
A acusação, envolvida em uma complexa história de trocas de animais,
mudanças nas marcas, era de roubo de gado. No entanto, justamente devido às trocas,
feitas de forma consensual, e às mudanças das marcas delas decorrentes, tornava-se
impossível distinguir a quem pertencia a cabeça de gado em questão – o processo
referia-se a uma vaca. De qualquer maneira, Antônio era acusado de ser executor do
crime, a mando de seu tio.
“Esta vaca esteve sempre, desde a data da permuta, em poder do
querelante, que a tinha, no campo em frente à sua casa, à vista quem
quer que passasse e onde ela se acostumara e donde em dias do mês
de março deste ano foi subtraída, sem consentimento tácito ou expresso
do querelante, pelo querelado Antônio mulato e de ordem de Olivério
Esteves, sob o falso pretexto de que o querelante a possuísse
ilegitimamente, por provir ela de um suposto furto.”82
Ao fim das contas, por motivos que desconhecemos – talvez a argumentação do
advogado de Esteves tenha sido suficientemente convincente, talvez Israel Fogaça se
tenha novamente submetido à autoridade de seu tio (que ao fim das contas era um
coronel), talvez a vaca tenha proporcionado um saboroso churrasco de reconciliação –
o fato é que em agosto daquele ano o autor do processo abriu mão da ação. Se não
houve crime, Antônio mulato foi poupado de – mais uma – arbitrariedade. Se houve, ele
e seu patrão permaneceram impunes.
82 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autor – Israel Borges do Amaral Fogaça Réus – Olivério daSilva Esteves e Antônio Mulato Auto n. 740, maço 30, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1902
42
A lógica da adoção do nome daquele a quem se é dado em “criação” (nascidos
após 1888) ou do ex-senhor (libertos), por vezes gera famílias com muitos sobrenomes,
diferentes entre si. Ido José da Silva relata que sua mãe, Pedrosa Justina Borges83,
faleceu quando ele ainda era criança, o que implicou em ele, e os irmãos, terem sido
criados “extraviados” uns dos outros.
R “– O nome dos irmãos, quantos eram?
I – Eu nem conheci todos, mas diz minha irmã mais velha
que nós éramos 14.
R – E desses quais o senhor conheceu.
I - Tem uma coisa, a gente se criou muito extraviado uns
dos outros.
R - Como é que era isso de se criar extraviado?
I – Um lá, outro cá.
A – O senhor não foi criado com seus pais então?
I – Nós fomos criados até uma época com os pais, depois
morreu a mãe e o pai não tinha condições de criar. Então
davam.
A – Até que idade o senhor foi criado com seus pais?
I - Quando minha mãe faleceu eu estava com seis anos.
A – E depois o senhor foi para onde?
I - Eu fui para uma fazenda.
A – O senhor lembra o nome das pessoas da fazenda?
I – Não me lembro não. Me criei com ele até 17 anos.
A – Como era o nome dele?
I – Afonso José da Silva.
A – Silva sempre junto.
I – Era uma família que o sobrenome era Valim, mas parece
que eles não gostavam de ser Valim.
A – Tinha nome a fazenda?
I – A que eu terminei de me criar era a fazenda do Cais
Cais.
R – Quem era o fazendeiro desta fazenda?
83 Em alguns documentos como a certidão de casamento de Anna Maria e Euclides, supracitada, e certidões denascimento de seus filhos ela é nominada como Pedrosa Borges da Silva.
43
I – João da Silva Reis, filho do Afonso.” 84
Note-se que em “reciprocidade” à criação, mas ocultando uma relação de
exploração econômica em muito semelhante à escravidão (Ido “passou” de pai para
filho, de forma muito semelhante à herança de uma propriedade), nosso informante
trabalhava e era parcamente remunerado85.
A:”– Nesse tempo que o senhor estava nessas duas
fazendas que o senhor se criou, o senhor fazia algum tipo
de trabalho nessas fazendas?
I – Lidar com a terra, lidar com o gado.
R – Recebia alguma coisa?
I – Recebia uns trocos.” 86
Os demais irmãos de Ido passaram por situações semelhantes, com outros
proprietários da região do Chapéu. É o caso, por exemplo, de Olício. Segundo relato de
seu irmão, Olício foi criado por um fazendeiro de nome Fogaça, e por esta razão “se
assinava” assim87. O registro de batismo de Olício confirma esta informação: filho
natural de Belizário José da Silva e Florentina Pedroso dos Santos88, nasceu no dia 28
de julho de 1910, e foi batizado em 16 de março de 191289. Seus padrinhos, Antônio
84Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.85 MEILLASSOUX (1995), destaca o descompasso entre o trabalho oferecido pelo escravo, “fornecido semmedida”, enquanto o senhor apenas arcava com custos “medidos” de atender às necessidades de sua vida individual.Esta correlação se aplica, também, a estes que eram “criados” e “trabalhavam”.86Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.87Depoimento de Ido José da Silva, em 17 de agosto de 2004.88Seu Ido garantiu que Olício era filho do mesmo pai e da mesma mãe que ele. É altamente provável que PedrosaJustina Borges e Florentina Pedroso dos Santos sejam a mesma pessoa, sobretudo considerando que nesta época,para famílias descendentes de escravos, os nomes não costumavam ter o rigor e a rigidez que a eles costumamosatribuir, como estamos vendo. Em uma comunidade negra rural dos dias de hoje, é plenamente plausível que umapessoa tenha mais de um nome, que são manejáveis, compostos, e grandes. BARCELLOS et alii (2004) p. 214; 219-22889Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 13o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1911-1913, f. 42, batismo 364.
44
Soares Fogaça e Francisca Soares Fogaça, embora não possuíssem o sobrenome
Borges, eram descendentes de Felipe Borges do Amaral e Castro, já que sua filha
Ambrosina havia se casado, no século XIX, com João Fogaça de Oliveira Soares. As
relações eram as mesmas, junto às mesmas famílias, proprietários de terras na mesma
região.
A esposa de Belizário, Pedrosa, possuía o sobrenome Borges, o que é um forte
indício de descender de escravos desta família. Um primo-irmão paterno de Ido José
da Silva, José Ildo Pereira, por nós entrevistado, lembra-se de seus avós em comum.
Trata-se de Caetano e Josefina Pereira90. Não deve surpreender o fato de uma de suas
filhas, Pedrosa, ter o sobrenome Borges. Como já vimos, os Borges uniram-se
maritalmente aos Pereira. Além disso, Caetano consta como escravo no inventário de
José Vitorino Pereira, realizado em 1875, justamente o pai dos dois Pereira que
casaram-se com duas Borges. Nessa ocasião, Caetano era descrito como pardo, tinha
19 anos, e possivelmente por estar no auge da sua capacidade produtiva, era avaliado
por uma quantia mais elevada91.
Resta descrever, ainda, os vínculos sócio históricos que resgatamos da “Família
Silva”, no que tange à sua linhagem materna. Naura Borges dos Santos, avó materna
dos Silva, nasceu em 2 de agosto de 1915 e foi batizada em 17 de janeiro de 1916.
Sua mãe chamava-se Benta dos Santos, e seus padrinhos eram Ivo e Hilda Lucena
90Entrevista com José Ildo Pereira, em 30 de junho de 2004. 91APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – José Vitorino Pereira Inventariante – MariaFrancisca da Conceição Auto n. 52, maço 3, estante 39 e/c Cartório de Órfãos e Ausentes – 1875
45
Borges92. Eram dois irmãos, netos de José Vitorino Pereira e Josefa Borges Pereira.
Durante um longo tempo, inclusive durante a trajetória da “Família Silva” em Porto
Alegre, a comunidade que é objeto deste laudo de pesquisa teve uma ligação estreita
com a família Borges, particularmente com os descendentes de Hilda, e a esposa de
Ivo, Maria Feijó Borges, chamada pelos Silva de “vó branca”93.
Porém, recuando um pouco mais na árvore genealógica dos Silva, é possível
nos remetermos ao nascimento de Benta, mãe de Naura. Seu registro de batismo,
realizado a 18 de junho de 1887, esclarece ter ela nascido em 6 de agosto de 1885,
sendo filha natural de Josefa, ex-escrava94. Além de ser mais um demonstrativo dos
vínculos históricos da comunidade dos Silva com o passado escravista, o documento
presente nos permite verificar outros aspectos. Por um lado, é impossível não traçar um
paralelo entre Josefa, avó materna de Naura, e Josefina, mãe de Pedrosa. Pertencem
à mesma geração. Eram cativas na região do Chapéu. Seus nomes estão associados à
92Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 15o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1915-1916, f. 14-v.93 Essas relações serão devidamente detalhadas ao longo do texto.94Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 7o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1886-1889, f. 31-v.
46
BelizárioJosé da Silva
(Escravo)
Pedrosa Borgesda Silva (PedrosaJustina Borges)
Ido Euclides Olício
JosefinaPereira
CaetanoPereira
(Escravo)
família Borges95. Seriam a mesma pessoa? É uma possibilidade. Poderiam, também,
ser irmãs. Ou ainda, ter nomes assemelhados pelas respectivas mães terem decidido
homenagear uma à outra. Não se tratam de meras especulações. Seja qual for a
ligação, certamente há alguma. Se, como nos afirmou uma descendente da família
Borges, São Francisco de Paula era um universo muito pequeno em inícios do século
XX, quem dirá o dos negros do Chapéu em meados do século XIX.
Verificar uma ligação antiga entre as famílias Borges (negra) e José da Silva
(negra) nos ajuda a entender a “complexidade e antigüidade” dos laços de parentesco.
Nos permite pensar que o matrimônio de Euclides e Anna Maria96, ocorrido em Porto
Alegre, deveria estar atualizando ligações afetivas e comunitárias que remetem ao
século XIX, territorializadas no século XX no bairro Três Figueiras. Possibilita-nos
95Em entrevista realizada Ido José da Silva, tio paterno dos Silva, em 22 de maio de 2004, ele explicou que essa erauma prática comum e que sua mãe, Pedroza Borges da Silva, teria recebido o sobrenome Borges por ter sido criadapor alguém desta família.96Pai e mãe dos Silva. Anna Maria era filha de Naura. Euclides de Pedrosa.
47
Josefa(Ex-escrava)
Benta
NauraBorges
da Silva
Malvina
perceber também entre os escravos, sentimentos e vínculos comunitários que estão
para além da força de trabalho extirpada97.
Uma leitura de batismos realizados no mesmo dia, registrados na mesma folha,
reforçam esta idéia, por nos permitir perceber relações de solidariedade dos forros
entre si.
Crianças, filhas de ex-escravas, batizadas no dia 18 de junho de 188798
Criança Filho natural
de
Nascido em Padrinho Madrinha
Benta Josefa, ex-
escrava
6 de agosto de
1885
Fermiano Geralda
Caetana Justina, ex-
escrava
7 de setembro
de 1884
Antônio Josefa
Malvina Josefa, ex-
escrava
19 de maio de
1887
Manoel Teixeira
dos Santos
Maria Inácia
Teixeira dos
Santos
Fermiano Justina, ex-
escrava
15 de outubro
de 1886
Floriano e sua mulher
97Sobre relações afetivas, parentesco, recordações e esperanças entre a população escrava, ver SLENES (1999). “Éimportante frisar que os novos estudos não amenizam nossa visão dos horrores da escravidão, nem procuram fazerisso. (...) as nossas pesquisas 'reabilitam' por assim dizer, a 'luta de classes' sob o escravismo, praticamenteinexistente na maioria das obras da Escola Paulista – como também, estranhamente, em alguns trabalhos maisrecentes, de cunho marxista”. (p. 45) A respeito da “economia do afeto” intra e inter plantéis cativos, verBARCELLOS et alii (2004) p. 99-11698Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 7o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1886-1889, f. 31-v.
48
Realizando coletivamente o batismo de seus filhos, essas pessoas se instituíam
como comadres e compadres (a exceção é o batizado de Malvina), criando,
atualizando, reforçando laços de parentesco e afetividade. É muito provável que o
menino batizado por Justina tenha recebido este nome em homenagem ao Fermiano
que aparece como padrinho de Benta – poderia ser seu pai, um tio, um avô, um amigo
– certamente alguém íntimo da mãe. É possível traçar um paralelo entre o nome
Justina e a lembrança de Ido, para quem sua mãe se chamava Pedrosa Justina
Borges99. Também se pode lembrar que consta uma Geralda no testamento de Matilde
Valim100, e uma Justina no inventário de Felipe Borges do Amaral e Castro101. Todas
estas pessoas residiam no mesmo local: a coincidência de nomes expressa, ou a
identidade delas entre si, ou estreitos laços comunitários que os levassem a
compartilhar nomes desta forma.
99Na comunidade negra do Morro Alto, é absolutamente corriqueiro que as pessoas adicionem o nome paterno oumaterno, ou de algum outro ancestral, como nome seguido ao prenome. BARCELLOS et alii (2004) p. 219-228100APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Mathilde Maria Valim Inventariante – AntônioValim de Azevedo Auto n. 88, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1897101APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Felipe Borges do Amaral e Castro e s/m Mariado Nascimento Amaral. Inventariante – Olivério da Silva Esteves. Auto n. 3, maço 1, estante 39 e/c. Cartório doCivil e Crime – 1876. Justina tinha 9 anos em 1872, era costureira, preta, sua mãe chamava-se Albina e eralavadeira.
49
Josefa(Ex-escrava)
Justina(Ex-escrava)
1885
Benta (Padrinhos:
Fermiano e Geralda)1887
Malvina(Padrinhos:Manoel e Maria
Inácia Teixeira Santos)
1884
Caetana(Padrinhos:
Antonio e Josefa)
1886
Fermiano(Padrinhos: Floriano
e sua mulher)
As relações de apadrinhamento e compadrio com homens e mulheres de outros
grupos sociais, quer de sua condição, quer de condição superior à deles representava
possivelmente a ampliação e ou consolidação de seus contatos, expandindo-se os
laços de solidariedade e afetividade, o que lhes garantia maior ajuda e segurança, além
de status e distintividade.
Desconhecemos detalhes da relação de Benta com a família Borges; no entanto,
acreditamos que se assemelhasse à de Belizário em relação aos Valim. Ao menos, a
relação de seus respectivos filhos (Naura e Ido) se assemelha. Além disso, a integrante
da família Borges que entrevistamos nos relatou diversos outros casos de filhos de
criação dentro de sua família, o que evidencia tratar-se de prática corriqueira. Ao
explicar em que consistiam estas relações, nossa informante contou que estes
prestavam serviços como lavar e passar roupa102. O relato de um filho de criação de
Naura é de que avó materna dos Silva foi criada pela família Borges, em Taquara,
como descreve João Brito Soares, 54 anos, filho de criação dela e de Alípio Marques
dos Santos103.
“- Sei que ela foi criada, lembro que ela dizia, que foi criada
pela família Borges, da qual ela ganhou o nome. Que são os
donos da empresa que faz aqui, como é que se diz? É...
Agora me faltou memória eu não me lembro o nome da
cidade. Taquara, da Citral. Os donos da empresa Citral. Ela
foi criada com a família Borges.”104
102Foram relatados como exemplo, José Netto, mulato, criado por Valêncio Netto, marido de uma integrante dafamília chamada Elisa; de Reni Padilha, criado por Hélio Lucena Borges (este é um irmão dos padrinhos de Naura);e finalmente, lembrou do nome de Otacília, que lavava roupa para uma familiar de nome Aurélia. Otacília teve umaneta que mora em Porto Alegre hoje, no bairro Teresópolis. 103É necessário destacar que existia uma grande ligação entre Taquara e São Francisco de Paula, pelo fato destaúltima constituir comarca daquela, em determinados períodos.104 Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05/06/2004. Ele foi criado por Naura e Alípio em função daprimeira ser conterrânea de sua mãe biológica e das duas se conhecerem e exercerem a mesmas atividades
50
Quando partiu para Porto Alegre, Naura deixou sua filha pequena para que a família de
seus padrinhos a criassem. Isso nos permite pensar que, se dar Anna Maria em criação
aos Borges constitui um depósito de confiança prestado a esta família, por outro lado é
possível que o preço da liberdade representada pela partida seja a de alguém – sua
filha – para sucedê-la nos afazeres decorrentes da condição de criada dos Borges. O
vínculo da pequena Anna Maria com os Borges eram os mesmos que ligavam sua mãe
a esta família, qual seja, de apadrinhamento. Batizada em 5 de maio de 1937, ela
nasceu em 22 de junho de 1936 e era filha de Naura Borges da Silva. Seus padrinhos
eram Hilda Borges Assis e José Vaz de Assis105. A madrinha era a mesma pessoa que
havia batizado e criado sua mãe. O padrinho era o marido de Hilda. A situação remete
diretamente ao caso de Ido. Como em uma herança, foi criado por pai e filho. No caso
em questão, são mãe e filha criadas pela mesma pessoa, novamente lembrando a
herança de uma relação que estava para além das gerações.
domésticas. Sete dias após o nascimento, ela o deixou sob os cuidados dos Silva.105Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 27o livro de batismos de São Francisco de Paula, registronúmero 189.
51
Anna Maria da Silva quando pequena.
Foto reproduzida de original de Zuleica Briolandi da Silva.
De qualquer maneira, podemos depreender do relato de Ido José da Silva que a
partida para a cidade106 é percebida como um ato de liberdade, uma vez que representa
uma ruptura com uma situação de exploração, identificada com a ausência de direitos
trabalhistas e com a falta de trabalho para se fazer devido à sazonalidade das lides
campeiras:
“- Meu irmão levou cinco anos pra sair de lá. Eu nunca
demorei muito não. Cheguei a passar um ano. Eu cheguei
em março. Eu dizia: eu vou me embora. Ficar pra ser
explorado? Primeiro serviço que eu arrumei, quando eu
cheguei aqui eu não tinha nada de papel. Única coisa que
eu trouxe era a certidão de casamento. [diziam] Não tem
trabalho, quando precisar eu chamo [fazendo referência a
São Francisco de Paula].”107
Em 1952, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, preocupada com o rápido
crescimento daquilo que se qualificava como “malocas” – residências de pessoas
pobres, vistas pelos administradores como antros de imoralidade – realizou um estudo
a respeito. Nele, a busca por melhores oportunidades de trabalho foi apontada como
principal motivo (83,08%) que levava à migração do interior à capital, o que era
formulado nos seguintes termos:
106Ido José da Silva chega a Porto Alegre em 1951, encontrando seu irmão Euclides, que havia abandonado SãoFrancisco cinco anos antes. 107Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.
52
A precariedade da vida no interior, a falta de assistência ao
trabalhador rural, os baixos salários, acrescidos da
fascinação que as grandes cidades, com as suas diversões,
seu movimento e a procura de mão de obra exercem sobre
o povo, provocaram, entre outros fatores, o aumento
contínuo e cada vez maior das levas de emigrantes do
nosso “interland” para as capitais. 108
Como veremos, é discutível o quanto o ar da cidade efetivamente libertava109,
mas é significativo que esta experiência seja assim percebida por aqueles que a
vivenciaram. Porém, antes de chegarmos em Porto Alegre, temos necessidade de
fazer, também, uma breve incursão por Cachoeira do Sul, a fim de acompanhar a
trajetória que trouxe o avô materno dos Silva – Alípio Marques dos Santos – à capital110.
Ao sul do Jacuí, até a subida das águas do rio
De colonização lusitana bastante posterior à de São Francisco de Paula, a
ocupação das terras ao sul do Rio Jacuí está relacionada à apropriação militar do
108AHPOA - Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952 –Volume II – p. 861; 850. A pesquisa quantitativa certamente foi induzida, tendo em vista que as alternativas sãoexcludentes (embora não necessariamente devessem ser assim) e há poucas alternativas elencadas. 109Referimo-nos aqui a um provérbio alemão, segundo o qual “o ar da cidade liberta”. 110Alípio Marques dos Santos não era avô em termos biológicos, de consangüinidade, da comunidade em questão.Anna Maria, mãe dos Silva, era uma filha de Naura, deixada para ser criada em São Francisco antes de sua vindapara Porto Alegre, de conhecer Alípio e com ele se casar. Contudo, sempre foi reconhecido como pai por AnnaMaria e por seus irmãos adotivos; e como avô pelos atuais moradores do território. Alípio exercia, e tinhareconhecida como legítima, sua autoridade paterna. Nossos informantes chegavam a ter dificuldades para responder
se Anna Maria era filha de Alípio, na medida em que seu status de avô materno é consensual e imune aquestionamentos. O parentesco resulta do reconhecimento de uma relação social que pode ou não coincidir com umarelação biológica. Mais importante nessa definição são as atitudes de amor, afeição, temor e respeito que fazem da
família uma instituição única. Essas são as relações sociais de parentesco às quais estamos nos referindo, e que sãomuito mais significativas para a comunidade em questão do que eventuais laços biológicos.
53
território durante a guerra de 1763-1777111. Naquele contexto, o controle sobre a
população indígena tinha significância estratégica, súditos e soldados em potencial que
eram para as monarquias ibéricas. Foi de fundamental importância para a formação de
Cachoeira o aldeamento de índios originários do espaço missioneiro – trazidos ao fim
da Guerra Guaranítica – naquela localidade. No ano de 1769, o governador José
Marcelino de Figueiredo determinou seu estabelecimento no Passo do Fandango112.
Conforme observa Helen Osório, “com a reconquista da vila de Rio Grande e o
Tratado de Limites de 1777, os portugueses puderam ocupar definitivamente as terras
entre o rio Jacuí e Camaquã, que já vinham sendo apropriadas naquela década”113. O
instrumento de legalização destas terras foi o edital de primeiro de janeiro de 1780, do
governador José Marcelino de Figueiredo, com base no qual foram concedidas terras
em freguesias como Triunfo, Santo Amaro, Encruzilhada, Rio Pardo e Cachoeira114.
Por ocasião da feitura da relação de moradores de 1784, Cachoeira era a
freguesia mais ocidental e de ocupação mais recente. Suas propriedades atingiam
imensas extensões, devidamente legalizadas pelos governantes115. Embora já tenha
sido demonstrado que as atividades agrícolas não estavam tão desvinculadas das
atividades de criação quanto se costuma acreditar116, Cachoeira, situada na região
fronteiriça, era caracterizada pelo predomínio da pecuária e do latifúndio. Era, talvez,
111SANTOS (1984) p. 47.112SCHUH e CARLOS (1991). p. 20113OSÓRIO (1990) p. 145. Grifos nossos.114OSÓRIO (1990). p. 160. Cachoeira passou a ser considerada uma freguesia a partir de 1779. SCHUH e CARLOS(1991) p. 20115OSÓRIO (1990) p. 181. 116OSÓRIO (1999)
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um dos poucos casos em que a idéia tradicional que fazemos do passado colonial sul-
riograndense, teve alguma correspondência com a realidade117.
Percebe-se que ao longo do século XIX118 esta situação gradualmente foi se
transformando. É o que demonstra, ao menos, a documentação que compulsamos. À
perseguição de pistas que nos levassem a Alípio Marques dos Santos e seus
ancestrais, investigamos diversos inventários de Cachoeira do Sul, daqueles
proprietários de sobrenome Marques. Nada encontramos de Alípio, mas reunimos
informações bastante importantes sobre seu lugar de origem.
Antes de mais nada, foi possível detectar a presença de pequenos proprietários
de terras, animais e escravos. Contrariando o predomínio do latifúndio no século
anterior, e mesmo resistindo à concentração social da propriedade cativa dos anos
finais da escravidão119, vemos, ao fim do século XIX, inventariados que possuíam 20
reses e uma escrava, uma atafona para a produção de farinha, engenho e pedaço de
campo120. Outros, também de sobrenome Marques, sem escravos, com diversos
animais, e bens que denotam atividades produtivas de natureza agrícola, com casas na
vila de Cachoeira, por vezes elevadíssimas dívidas passivas121.
117Em estudo comparativo das freguesias de Santo Amaro, Serro Pelado, Encruzilhada e Cachoeira, com base àRelação de 1784, esta última sempre apresenta de uma forma mais intensa as características arroladas. “Os criadoressão maioria apenas em dois distritos, Encruzilhada e Cachoeira, os mais fronteiriços” (p. 35) “O padrão das duasfreqüências superiores praticamente repete-se para os distritos de maiores rebanhos: Encruzilhada (35% dosproprietários detêm 62% das terras) e Cachoeira (36% detêm 61%)” (p. 36) “Cachoeira, certamente, é a localidadeque melhor representa a imagem típica ainda vigente sobre o Rio Grande do Sul colonial: grandes propriedadesdedicadas exclusivamente à pecuária” (p. 38) OSÓRIO (1995).118Em 1819, Cachoeira adquiriu status de Vila. De divisas “mal delineadas e imprecisas”, abrangia o território dosseguintes “atuais” [em 1926] municípios: “Cachoeira, Santa Maria, Caçapava, São Sepé, São Gabriel, Rosário,Livramento, Alegrete, Quarai e Uruguaiana, Bagé, e parte dos de Júlio de Castilhos, S. Vicente, Lavras e D. Pedrito”. PORTO (1926).119cf. MATTOS (1987). p. 38-45120APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – Manuel Marques Rabello Inventariante – Rita Luiza daCosta Auto n. 531, maço 25, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1885121APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – João Fortunato Marques Inventariante – Brizida Mariade Souza Nunes Auto n. 429, maço 21, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes – 1880;
55
Mesmo inventários mais antigos – e de proprietários de dimensões mais
avultadas – demonstram a concomitância de atividades agrícolas com a pecuária,
numa transformação da situação predominante no século XVIII. Em 1847, José
Marques da Silveira falecia, deixando à sua viúva e aos filhos do primeiro e do segundo
matrimônio os mais diversos utensílios agrícolas – uma atafona, carretinha, tachos,
foices, enxadas, enxós, cavadeiras. Para trabalhar na agricultura – e também na
criação, já que este produtor tinha também elevada quantidade de reses e de ovelhas –
contava com plantel de 15 escravos122.
Antes disso, no ano de 1834, João Marques da Silveira realizou seu inventário,
no qual também apareciam bens de produção agrícola: enxadas, cavadeiras, arado,
carreta, atafona, prensa, um forno voltado à produção de farinha. Possuíam, estes sim,
uma quantidade elevadíssima de animais – apenas de reses, 870 xucras e 300
mansas, mas apenas um escravo e uma escrava para ali trabalhar123.
Outro inventário, porém, chamou-nos a atenção. Em 1865, por ocasião do
falecimento de Guilhermina Francisca da Silva Ilha124, seu marido Francisco Loreto do
Carvalho e Silva, um comerciante, inventariou os bens do casal. Eles possuíam dois
APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – Dona Maria Fortunata Marques Inventariante – Victorianode Souza Nunes Filho Auto n. 391, maço 19, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes – 1876Na cidade de Cachoeira, atualmente, existe uma rua chamada Dionísio Marques. Esta rua antigamente era chamadade estrada dos Marques, pois ali, segundo contaram profissionais do Arquivo Histórico Municipal, situavam-se aspropriedades desta família. A estrada era, então, fora da área urbana. Apenas posteriormente a cidade cresceu aponto de englobar a estrada dos Marques, que tornou-se rua Dionísio Marques.Ainda que hoje conste como área urbana, e tenha sua entrada próxima a uma das ruas mais movimentadas da cidade,ao caminharmos pela antiga estrada dos Marques percebe-se, ao fundo das casas, as lavouras, campos verdes,cochilas, lembretes de uma ruralidade da cidade de Cachoeira do Sul. 122APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – José Marques da Silveira Inventariante – Ana JoaquinaMarques Auto n. 126, maço 8, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1847123APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – João Marques da Silveira e sua mulher Inventariante –Joaquim Marques da Silveira Auto n. 83, maço 6, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1834124Investigamos também inventários da família Ilha por nos ter sido indicado, em Cachoeira do Sul, vínculos dealiança matrimonial entre esta família e os Marques – os mesmos da estrada dos Marques.
56
armazéns: um na colônia de Santo Ângelo e outro na cidade de Cachoeira. Além de
grandes listas com os mais variados víveres a serem vendidos, dentre seus bens
constavam muitas dívidas ativas. Em sociedades de antigo regime, de baixa
quantidade de meio circulante, é bastante comum as transações se darem por meio de
contas correntes de débitos acumulados. No entanto, freqüentemente os devedores
não têm condições de saldar suas dívidas, criando-se, com isto, uma situação de
dependência125.
No caso analisado, destaca-se que, de um total de 166 endividados arrolados,
18 (um pouco mais de 10%) fossem qualificados como escravos, mulatos ou crioulos
de alguém, forros, libertos ou agregados126. Como interpretar esta informação? Por um
lado, podemos pensar que a população negra conseguiu alguma margem de
autonomia para gerir recursos próprios, inclusive administrando dinheiro e dívidas. Esta
leitura otimista cai por terra, contudo, se percebermos dois aspectos que saltam aos
olhos. Em primeiro lugar, ao “permitir” que um escravo se endivide no bolicho, no
mercado, no armazém, o senhor se desresponsabiliza parcialmente pelo seu
sustento127; por outro lado, podemos pensar que já em 1865 o tráfico negreiro se
encontrava extinto, e se sabia que o fim da escravatura era iminente. Talvez manter os
125O endividamento enquanto mecanismo de criação de relações sociais de dependência e de extração compulsóriade mão-de-obra tem sido bastante esmiuçado pelos estudos históricos. A respeito, ver, por exemplo, CARDOSO(1979) p. 69-70126APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariada – Dona Guilhermina Francisca da Silva Ilha Inventariante– Francisco Loreto do Carvalho e Silva Auto n. 274, maço 15, estante 9 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1865127 Garantir o sustento do escravo do qual extrai a força de trabalho é um papel primordial do senhor dentro da lógicado sistema escravocrata, conforme, por exemplo, texto de Meillassoux anteriormente referido. Em Cachoeira do Sul,por exemplo, ao já citado inventário de José Marques da Silveira, se apensou uma contabilidade das despesas ereceitas obtidas no ano de 1847. Entre remédios, gastos médicos, instrumentos de trabalho e algodão paravestimentas, o senhor escravista gastou 123$780 réis. É claro que esta receita era produzida pelos próprios cativos,enquanto força de trabalho. Ainda assim, era uma parcela do lucro senhorial que deveria ser reinvestida namanutenção da mão de obra. APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – José Marques da SilveiraInventariante – Ana Joaquina Marques Auto n. 126, maço 8, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1847
57
forros, libertos, ou mesmo escravos em um sistema de dívidas fosse uma forma
preventiva para restringir sua autonomia128.
No entanto, não foi possível reconstituir os laços de descendência que
vinculavam Alípio Marques dos Santos ao passado escravista de Cachoeira do Sul. Os
estudiosos da história sabem muito bem que seu conhecimento é lacunar, e que as
lacunas jamais serão preenchidas de todo129. Entretanto, diversas outras informações
podem ser inferidas a partir do que conseguimos pesquisar. Originário de Cachoeira do
Sul, nos informam seus descendentes. Sua certidão de óbito, datada de 25 de fevereiro
de 1971, ocasião em que tinha 53 anos, nos dá a saber que Alípio era filho legítimo de
Ivo Marques dos Santos e de Antônia Marques dos Santos130. Muito embora tenhamos
pesquisado todos os livros de batismo de Cachoeira do Sul no intervalo entre 1916 e
1923, assim como os livros de casamentos entre 1889 e 1922, não conseguimos
localizar o batismo de Alípio, e sequer o casamento de seus pais131. A Cachoeira do Sul
imaginada pelos Silva – e declarada no momento do óbito – provavelmente
compreende uma área maior, com outros municípios e paróquias132. É possível que o
128A dívida média destas pessoas era de 26$876, substancialmente inferior à média do conjunto, 76$241, o queevidencia sua pauperização. De qualquer maneira, parece-nos que seria de difícil pagamento. 129As mesmas podem estar além do que as fontes têm a revelar, na inexistência de fontes, na disponibilização dasfontes existentes, ou mesmo nas condições e tempo disponíveis para pesquisa. Enfim, naquilo que um dosfundadores da historiografia francesa do século XX qualificou como “las faltas del destino”. BLOCH (1992). Semsombra de dúvidas, um dos aspectos que tornou a ancestralidade ao sul do Jacuí mais fugidia do que em Cima daSerra foi a ausência de guardiões da memória com maior familiaridade com a região de origem de Alípio. Ido Joséda Silva, por exemplo, conhece a história de seus pais, e mesmo da esposa e da sogra do seu irmão, já que eramoriginárias da mesma cidade. Por outro lado, pouco sabia sobre o sogro de seu irmão ou sobre Cachoeira do Sul.Partimos, portanto de indícios muito mais frágeis. Seu filho de criação, João Brito Soares, tinha mais lembrançassobre sua mãe, pessoa mais expansiva, do que a respeito de seu pai, mais reservado. 130Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Livro de Óbitos n. 71, guia6542 f. 49v. 131Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia Matriz. Livros de batismo n. 31, 32, 33, 34,35, 36, 37, 38; Livros de casamento n. 6, 7, 8. 132Muito embora também nos livros de batismo de Caçapava – entre 1915 e 1920 – Alípio esteja ausente. ArquivoHistórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia de Caçapava. Livros de batismo 18 e 19. No entanto,convém observar que sua situação pode ser semelhante à de Ido José da Silva, que nos contou que quando chegou
58
imaginário popular tenha seguido considerando como parte de Cachoeira (ou de uma
“Grande Cachoeira”) regiões que ao longo do século XIX e XX a ela pertenceram,
particularmente aquelas mais próximas geograficamente133. No caso dos municípios
emancipados depois de 1941, é evidente sua inclusão na Cachoeira rememorada134.
Se não foi possível localizar o batismo de Alípio, identificamos o de seu pai. Aos
dezessete de maio de 1890, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição da
Cachoeira, o inocente Ivo foi batizado. Poucas mais informações foram dadas: nascido
em 5 de outubro de 1886, era filho natural de Ana. Os padrinhos chamavam-se Pedro
Estrenguin e Ana Lopes Terra135. Não há dúvidas de se tratar de descendentes de
escravos, é o que demonstra a ausência de sobrenome em um registro realizado
poucos anos após a abolição. O nome Ana, por ser muito comum, não nos auxilia muito
na reconstituição de sua trajetória. Teria sido escrava dos Estrenguin? Ou dos
Marques? Quem é esta Ana? De outro lado, o nome Ivo, bastante incomum136, não
deixa dúvidas de se tratar do bisavô dos Silva.
em Porto Alegre, o único documento que possuía era a certidão de casamento. Entrevista com Ido José da Silva, 22de maio de 2004. O fato de alguém não ter documentos comprova sua condição marginalizada no seio da sociedade. 133Pode ser o caso de Caçapava do Sul (emancipada em 1831) e São Sepé (1876). Apesar de terem se emancipadoainda no século XIX, os vínculos sociais estão para além das fronteiras políticas municipais.1341941 é um marco porque provavelmente foi neste ano que Alípio Marques dos Santos veio para Porto Alegre. Sãoestes os municípios emancipados de Cachoeira depois daquela ocasião – Agudo (1959); Cerro Branco (1988);Faxinal do Soturno (1959); Novo Cabrais (1995); Paraíso do Sul (1988); Restinga Seca (1959)135Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia Matriz. Livro de batismo n. 19, f. 18136A título de exemplo: à procura dos laços de ancestralidade aqui esmiuçados, foram lidos 26 livros de batismos ecasamentos, entre as paróquias de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira e de Caçapava. O nome Ivo nãoapareceu nenhuma vez se não esta.
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Ivo foi contemporâneo de uma profunda transformação da realidade econômica
e social de Cachoeira do Sul – qual seja, a implantação da lavoura de arroz. Um livro
de autoria de Fortunato Pimentel, escrito em 1941, permite historiar em linhas gerais
este processo. O seu tom geral é laudatório ao progresso que o autor acreditava que a
rizicultura tinha trazido para sua cidade. Muito embora o estudo não leve em conta as
conseqüências sociais da transformação de uma economia majoritariamente pecuária
para a produção em larga escala do cereal, ele é rico em dados empíricos que nos
auxiliam a vislumbrar a dinâmica desta prática econômica.
A rizicultura teve início na virada do século XIX para o século XX. O autor
enumera doze produtores cuja dedicação à lavoura de arroz de irrigação natural teve
início no intervalo entre 1892 e 1904137. Desde aquela ocasião até a escrita de seu
trabalho, Pimentel assistiu à introdução de variedades diferentes, mais vantajosas do
ponto de vista econômico138. Entre 1906 e 1916, o número de propriedades com levante
137PIMENTEL (1941).p.27138São arrolados, junto aos anos da sua adoção nas lavouras: “Carolina” e “Agulha”, predominantes até 1915;“Japonês” (qualificado como o 'zebu do arroz'), introduzido em 1918; em 1931 foram adotados o “Blue Rose” e o“Edith Leng”. Este último, junto ao 'zebu', eram os mais cultivados em 1934. PIMENTEL (1941) p. 18-19
60
Ana
IvoMarques
dos Santos
AntoniaMarques
dos Santos
AlípioMarques
dos Santos
mecânico, isto é, bombas para elevar a água do rio para o alto das barrancas do Jacuí,
cresceu de forma geométrica, e a isso o autor atribui o incremento cada vez mais
intenso da produção, conforme os gráficos abaixo demonstram139.
Para além do progresso que Pimentel associava à lavoura do arroz, havia, no
entanto, uma outra faceta em todas essas transformações da economia regional. O
estudo relativo ao reconhecimento das comunidades de São Miguel e Martimianos
139PIMENTEL (1941) p. 18-19; 24; 31 A análise dos dados apresentados pelo autor, através do cálculo e comparaçãoda variação anual da produção em toneladas e em sacas, levou-nos à conclusão de que a saca de arroz em questãodeveria pesar 80kg.
61
enquanto remanescentes de quilombos, nos auxilia na compreensão deste processo no
que diz respeito à sua incidência sobre a população negra. É importante observar que
estas comunidades pertencem ao município de Restinga Seca, que até 1959 fazia
parte de Cachoeira do Sul. Os autores analisaram o trabalho dos integrantes dos
referidos grupos nas lavouras de fumo e arroz nas primeiras décadas do século XX.
Diversas práticas econômicas amparadas na reciprocidade, na solidariedade e
no uso em comum da terra foram se perdendo,
“pelo avanço das lavouras de arroz e de fumo, amplamente
dotadas de equipamentos agrícolas modernos; pelo
avanço da expansão urbana sobre as comunidades negras
rurais, acompanhada de processos de expropriação de
terras, em grande parte por meio de processos escusos”140.
Os negros daquelas comunidades costumavam trabalhar na construção dos
açudes para a rizicultura. No entanto,
“quando são introduzidos o trator e, gradativamente, outros
maquinários agrícolas, reduz-se drasticamente a oferta de
emprego aos negros que integram as duas comunidades
rurais negras, já referidas. Mais do que isso, provocou uma
significativa migração de grande parte desta mão-de-obra.
Sobretudo dos homens, que vão buscar emprego nos
municípios no entorno de Restinga Seca, na fronteira e em
Porto Alegre, acarretando, também, a redução dos braços
na própria comunidade.” 141
140ANJOS e SILVA (2004) p. 188141ANJOS e SILVA, (2004) p. 187.
62
O advento do trator na região é associado, neste estudo, aos anos de 1950. A
mecanização agrícola sabidamente é um fator de diáspora dos mais pauperizados do
mundo rural142. De acordo com Mari Baiocchi, que estudou uma comunidade negra em
Goiás, “Com a entrada das máquinas, falta serviço. A mecanização traz o
desemprego”143. Cachoeira tornou-se, pois, um pólo de expulsão de populacional.
Contudo, acreditamos que se esse processo explodiu nos anos 50, tem suas raízes
nas décadas pretéritas, quando podemos detectar os primórdios da mecanização e
ressaltar a transição de uma economia de predomínio pecuário e escravista para a
grande lavoura de cunho capitalista. Essas transformações acarretaram por um lado,
num acento muito grande sazonalidade do trabalho, que com o emprego das
trilhadeiras, se radicalizaria.
“A cultura do arroz é aquela que dá maior trabalho braçal. O
movimento flutuante de operários ao serviço da lavoura de
arroz em Cachoeira é estimado em 25 mil e 15 mil são
mantidos quase que efetivos. Enquanto isso, depois da
colheita vem o beneficiamento do indispensável cereal. Aí
muitas dezenas de operários são novamente
aproveitados."144
Pensamos que, se Ido queixava-se da pouca perspectiva para empregar-se em
São Francisco de Paula, tal situação deveria deixar muito mais apreensivos os
142GUIMARÃES (1979). Este autor afirma que: “para o mercado de trabalhos urbanos, à medida que se
intensificam, de um lado, o progresso técnico, e de outro, a miséria rural, também se transferem os recursos
humanos ociosos que emigram do campo.”(pág. 222). 143BAIOCCHI, Mari, apud ANJOS e SILVA (2004) p. 189144PIMENTEL (1941) p. 24. Grifos nossos.
63
trabalhadores rurais de Cachoeira do Sul. A sujeição às flutuações do mercado de
trabalho de uma cultura cujas necessidades eram variáveis, nas quais a melhor
possibilidade é tornar-se “quase que efetivo” realmente não era uma perspectiva
alvissareira para ninguém. Se 15 mil conseguiam atingir um status de “quase
efetividade”, pode-se pensar que os demais 10 mil ficavam totalmente à mercê do
variável mercado de trabalho. Tudo indica que a situação desses últimos se
assemelhasse às preocupantes condições de trabalho em Restinga Seca constatada
pela equipe que realizou o relatório de pesquisa das comunidades ali localizadas:
“São contratados como diaristas ou são agregados e,
raramente, assalariados. (...) Quando deixa de ter esta
oferta de serviço, em uma lavoura de arroz, os diaristas
procuram outra ou, então, são requisitados por proprietários
de lavouras, situadas nos municípios vizinhos de Restinga
Seca. (...) Na falta de emprego local, os trabalhadores
negros rurais procuram por outros municípios, nos quais
encontram demanda de trabalho ou, senão, já são vistos
pelos lavoureiros brancos como um lugar, a comunidade
negra rural de Rincão dos Martimianos e São Miguel, de
grande oferta de mão-de-obra especializada nesses
serviços”. 145
Talvez, se não tivesse partido para Porto Alegre, teria sido essa a vida de Alípio
Marques dos Santos. Ao menos, pode-se traçar um paralelo com a situação de
pessoas de origem social semelhante à dele, que lá ficaram – vale lembrar, já viveram
um processo de pesquisa e confecção de um laudo e já tiveram seu reconhecimento
como comunidade remanescente de quilombos. Segundo Almeida (1998), as terras
145 ANJOS e SILVA (2004) p. 189-19064
de preto compreendem as diversas situações decorrentes da reorganização da
economia brasileira no período pós-escravista. João lembra que seu pai adotivo,
chegado a Porto Alegre no início dos anos quarenta, era originário da lavoura de arroz.
“ - Era de Cachoeira do Sul. Quando ele veio para cá, ele
veio acostumado a trabalhar só na granja de arroz, não tinha
muita experiência em serviço na cidade grande.”146
Acreditamos que se, por um lado a situação de Alípio era mais precária do que a
dos seus futuros familiares de São Francisco de Paula – a falta de vínculos que parece
estar associada a estes “extraviados” da lavoura de arroz, a flutuação de seu trabalho
braçal – por outro, era também mais livre. Alípio Marques dos Santos aparece para nós
como alguém muito menos dependente ou comprometido com antigos senhores – que,
aliás, sequer conseguimos localizar, o que pode ser um sinal da menor importância
deste fato na trajetória individual deste sujeito histórico. Dirigir-se para a cidade – que
então aparecia como pólo de atração da população desvalida do interior do estado,
surgia como uma alternativa. Como observa Pesavento ao se referir à Porto Alegre das
primeiras décadas do século XX, a cidade se convertia no principal centro de atração
para os libertos, num momento de transição da escravidão para o assalariamento147.
Dados sobre as ocupações irregulares do município nos permitem dizer que tal
processo teve continuidade por um período maior do que o acima destacado. A opção
por migrar foi seguida, não apenas por Alípio Marques dos Santos, mas por muitas
outras pessoas. Nos diferentes discursos produzidos ao longo do século XX que
146Entrevista com João Brito Soares, em 5 de junho de 2004.147 PESAVENTO (1999).
65
buscaram compreender, ou produzir políticas públicas a respeito da vida dos imigrantes
mais carentes na cidade de Porto Alegre, a região do vale do Jacuí freqüentemente foi
apontada como origem daqueles de quem se falava.
Em 1950, de 100 famílias residentes na “Vila Seca”, também conhecida como
Vila “Surgida das Águas”, 57 delas eram originárias do interior. Destas, 13 eram de
Butiá, 7 de Cachoeira, 5 de Triunfo, 5 de Taquari, 4 de General Câmara. Nada menos
de, dentre as famílias vindas do interior, 59,64% eram originárias do vale do Jacuí. Isso
indica que, possivelmente, no estabelecimento em Porto Alegre eram recriados
vínculos existentes nos locais de origem – note-se o quanto é significativo o nome da
Vila em questão148.
Em 1960, os motivos que levavam as pessoas a se estabelecerem em Porto
Alegre eram pensados da seguinte forma pelo arquiteto Jorge Neves:
“Não existem dados precisos sobre a origem desta
população, mas pode se informar que os adultos procedem,
em sua maioria, de três regiões principais: FRONTEIRA,
VALE DO JACUÍ E ESTADO DE SANTA CATARINA. Por
que se apresenta a migração tão significativa nas últimas
décadas? (...) cumpre recordar que não se operando
nenhuma modificação na estrutura agrária do interior, nem a
criação de centros industriais de importância, é óbvio que a
população emigre. E para onde? - Para a sede político-
administrativa do Estado, onde se concentram os maiores
interesses econômicos, onde se distribuem os recursos
oficiais, onde se pressupõe “melhores oportunidades”. 149
148MEDEIROS (1951). p. 85-86149NEVES (1962). Cópia mimeografada. p. 16-17
66
Vinte anos mais tarde, Cachoeira do Sul era a principal região de origem dos
adultos das então qualificadas “sub-habitações” elencadas (excetuando-se aqui a
região metropolitana de Porto Alegre). O autor deste estudo acreditava que tanto o
latifúndio de pecuária extensiva – pela sua baixa produtividade – quanto o minifúndio –
pela sua dificuldade de competir com a empresa rural mecanizada contribuíam para o
êxodo rural.
“Acredita-se que o desestímulo da produção primária se deu
de forma generalizada, atingindo, inclusive, a produção
principal da região, que é o arroz. Aqui convém lembrar que
Cachoeira do Sul é a capital do arroz no Estado. (...) A crise
do setor primário, dentro do que relatamos, consiste na
principal causa do índice excepcional de migrantes da região
de Cachoeira do Sul que hoje moram em Porto Alegre, nas
vilas pesquisadas”. 150
Muito embora estejamos de acordo com o autor em vincular as migrações
Cachoeira-Porto Alegre com a lavoura rizícola, nos parece que este trânsito não se deu
apenas no momento de crise do setor primário. Pelo contrário, faz parte da lógica da
lavoura arrozeira, que exige uma sazonalidade do trabalho que leva muitos a procurar
outras oportunidades de vida. Ao menos o avô da comunidade que nós estudamos
dirigiu-se para Porto Alegre nos primeiros momentos da década de 1940. Trata-se de
um período em que a lavoura de arroz encontrava-se em franca ascensão, não em
crise (ver gráfico); da ocasião em que Pimentel tecia loas ao cereal, e comemorava a
150PMPA – DEMHAB (1981) Este relatório foi pesquisado na biblioteca da Secretaria de Planejamento Municipal.67
cheia do Jacuí do ano de 1941, por ter ela facilitado o escoamento dos grãos, realizado
que era pela via fluvial151.
Esta cheia, na cidade de Porto Alegre, provocou enchentes gravíssimas,
alagamentos na cidade que foram catastróficos para as populações de menos
recursos152. Como a do bairro Navegantes, por exemplo. À margem do rio, foi para lá
que Alípio dirigiu-se quando chegou à cidade. Localizada ao fim da linha do bonde de
Navegantes, a rua dona Teodora (ver adiante) era um dos núcleos mais importantes de
vilas populares da cidade – as “malocas” mais preocupantes. Muito provavelmente, no
imediato pós-enchente a região encontrava-se mais desvalorizada do que nunca, e foi
ali que foi possível que Alípio se estabelecesse nos primeiros tempos153.
A fixação de Alípio e Naura no bairro Três Figueiras corresponde ao período do
processo de resistência e de busca por autonomia - protagonizado pelos antepassados
e perpetuado na prática dos atuais integrantes do grupo- que encontra-se mais vivido
na memória desta coletividade. É a ele que iremos nos reportar agora.
Em busca de solo fértil para criar raízes.
A memória do grupo aponta a década de 1940 como a época da chegada de
seus ancestrais a região que hoje é conhecida como Bairro Três Figueiras. Os Silva
definem-se enquanto descendentes e sucessores territoriais de seus avós maternos e
151PIMENTEL (1941). p. 24152Ciro Flamarion Cardoso lembra que tais tragédias naturais, aparentemente tão externas à sociedade, sãoabsolutamente sociais no que diz respeito à sua incidência e conseqüências. CARDOSO (1979) p. 19-20153 Informação extraída do Processo de usucapião intentado por João José de Freitas em 20 de abril de 1964 no qualAlípio foi testemunha, e cujas cópias encontram-se anexadas ao Processo de usucapião promovido por Naura Silvados Santos de nº 12860, de 13 de novembro de 1972. É interessante ressaltar que esses fatos não eram conhecidospelos integrantes da comunidade. Desta forma não pudemos obter maiores dados sobre o período de poucos dias,segundo a declaração, que permaneceu ali em casa alugada.
68
de seus pais, todos já falecidos. Não há um consenso quanto à época e forma pela
qual Naura e Alípio se conheceram, nem quanto às razões que os levaram a se
deslocar para lá. Sabe-se que ela já tinha duas filhas quando se uniu a ele: Anna Maria
e Elenir. Das duas, apenas a primeira veio residir com eles quando de seu casamento
com um conterrâneo de São Francisco de Paula154. Embora Alípio não fosse o pai
biológico de Anna Maria, os relatos indicam que a relação entre eles tinha esse status.
Segundo Antonia Teresinha Soares, esposa de João, filho de criação de Naura e
Alípio:
“- Só a gente de casa sabia que ele não era pai dela. Ela chamava de
pai.”155.”
Ainda que não saibamos de que forma os avós maternos dos Silva se conheceram, as
informações prestadas pelo tio paterno do grupo156 lançam luzes sobre as estratégias de
recrutamento de cônjuges nessa coletividade.
Ido e Euclides eram irmãos, naturais de São Francisco de Paula. Este último
migrou para Porto Alegre cinco anos antes que o primeiro, isto é, em 1946. Ido vem
para a capital no ano de 1951, logo após a morte de sua primeira esposa.
Transcorridos alguns dias de sua chegada ele encontrou o irmão no centro da cidade.
Passaram a morar juntos numa peça alugada no Bairro Santana. Euclides trabalhava
de ferreiro na construção civil, onde Ido começou a prestar alguns serviços de mão de
154 Relatos dos Silva indicam que Elenir não pôde residir no local por que Alípio não permitiu. Tal atitude sejustificava pelo fato dela não ter se casado oficialmente. No entanto, quando ela faleceu deixando um filho pequeno(Leodoro), Naura trouxe o menino para ser criado e viver com eles.155 Entrevista realizada com Antonia Terezinha Soares no dia 05/06/2004.156 Entrevista realizada em 22/05/2004.
69
obra. Ambos terminaram por casar com mulheres que conheceram em sua cidade de
origem em bailes restritos a pessoas negras157.
Alguns anos depois da vinda de Euclides e Ido para Porto Alegre, Anna Maria
conheceu o primeiro em um baile em São Francisco de Paula. Eles dançaram e
conversaram bastante. Naquela ocasião, ela contou que sua mãe, Naura, vivia em
Porto Alegre158. Ao que tudo indica, esse encontro foi suficiente para estabelecer as
tratativas de uma união posterior. Meses mais tarde, Naura retornou a esta cidade para
buscar a filha para que a mesma se casasse com Euclides. Foi ele que, segundo os
relatos de suas filhas, custeou as despesas das viagens.
Ido demorou alguns anos para retornar à sua cidade natal, mas quando o fez foi
a um baile onde reencontrou uma conhecida, Rosa, que então estava viúva. Embora
ela tivesse dois filhos, Ido teve que pedir a sua mão em casamento para a mãe dela. A
resposta só veio depois de transcorrido algum tempo, por que a sua futura sogra a
condicionou ao sonho que ela tivesse naquela noite159.
Os locais de sociabilidade negra da cidade natal foram os espaços onde eles
encontraram suas esposas, configurando um processo intraracial de seleção dos
cônjuges, restrito a dois ou três grupos de forma semelhante ao que ocorria com as
principais famílias brancas do município de São Francisco de Paula. Como sugerido
anteriormente, o casamento de Anna Maria e Euclides poderia estar atualizando
157 Segundo Ido, o clube onde ocorriam os bailes era chamado de Sociedade União. Após algumas desavenças, partedos sócios fundaram a Sociedade Esperança. Ele relatou que chegou a freqüentar o Floresta Aurora, clube de negrosem Porto Alegre, mas como não conhecia ninguém não continuou a fazê-lo.158 Conforme Ido, Euclides já conhecia Naura de São Francisco Paula, antes de conhecer Anna Maria.159 BARCELLOS (1996) questiona o modelo de família negra que se construiu, principalmente, a partir dos estudosnorte-americanos. Para ela essa imagem de família desestruturada e instável serve como um estigma que não explicacomo ela opera e se reproduz socialmente.
70
ligações afetivas e comunitárias que remetem ao século XIX, mas que se
territorializaram no século XX, no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre.
Reproduções de fotos de Anna Maria e Euclides José da Silva
Após o casamento, Euclides e Anna Maria passam a residir com Naura e Alípio.
O casal teve onze filhos: Lígia Maria, Lídia Marina, Lorivaldino da Silva, Angela Maria,
Zuleica Briolandi, Jair, Zeneide, Ana Cristina, Euclides Guaraci, Maria de Lourdes e
Luiz Valdir. Estes últimos, por sua vez, casaram-se com pessoas negras da mesma
condição social, que residiam em vilas próximas ao seu território e com as quais
mantinham intensa sociabilidade. Lígia Maria foi companheira de Antonio Carlos,
oriundo da Vila do Beco do Resvalo (localizada aos fundos da comunidade). Lídia
Marina casou-se com Roberto, que vivia nesse mesmo local. Lorivaldino casou-se com
Cleusa e Angela Maria uniu-se a Paulo Roberto. Cleusa e Paulo viviam na Vila Caddie,
junto à Avenida Nilo Peçanha e aos fundos do Country Club. Zuleica Briolandi uniu-se a
Paulo Ricardo, oriundo da família Dutra, vizinhança negra contemporânea dos avós
maternos do grupo. Euclides Guaraci é marido de Rita de Cássia, da família Dutra já
referida e sobrinha do companheiro de Zuleica. Ana Cristina, já falecida, era casada
71
com Carlos Alberto, oriundo da Vila do Beco do Resvalo acima mencionada. Estes são
exemplos que nos permitem dizer que a lógica que orientou a união de Anna Maria e
Euclides se perpetuou nas escolhas matrimoniais de seus filhos.
João, filho de criação de Naura e Alípio, desposou Antonia Teresinha, natural de
Venâncio Aires. Embora ela seja oriunda do interior do Estado, a forma como os dois
se conheceram corrobora as situações anteriormente descritas. Antonia trabalhava
como doméstica em uma casa de família nas proximidades dos Silva. Naura prestava
serviços de lavadeira nesta mesma residência. Aos fins de semana, ela a levava para a
sua casa. O convívio propiciou a união dos dois. Além disso, podemos identificar nos
casamentos das filhas de Lígia Maria a reprodução de tal critério. Lígia Letícia é
companheira de Rogério, pertencente à Vila do Beco do Resvalo. Cláudia Tatiana é
esposa de Jorge, que faz parte de uma família de vizinhos contemporâneos de seus
avós maternos conhecidos pelo sobrenome Boeira. Este último casal reside na Vila
Beco do Resvalo.
72
Este comportamento em relação ao recrutamento dos cônjuges, ainda que não
seja produto de ações intencionais, mas de um contexto de interação e segregação
historicamente constituído, torna o parentesco um setor de restrição em relação a
outros grupos étnicos. Nesse sentido, a uniformidade da comunidade em termos
étnicos que resulta dessa seletividade matrimonial possibilita que os seus integrantes
se percebam e sejam percebidos como uma coletividade diferenciada das outras com
as quais interagem. O parentesco por aliança opera nesse caso simultaneamente como
elemento restritivo e distintivo160.
Retomando a história do grupo, temos que fazer referências aos vínculos sociais
que o mesmo estabeleceu com os habitantes da região desde o momento em que ali
160 Tal situação pode ser observada também em outras comunidades negras que residem em núcleos urbanos. VideCARVALHO (2003).
73
Euclides Joséda Silva (São
Francisco)
Anna Mariada Silva (São
Francisco)
LígiaMaria
Antonio Carlos(morador da VilaBeco do Resvalo)
LídiaMarina
Roberto (moradorda Vila Beco do
Resvalo)
LorivaldinoCleusa
(moradora daVila Caddie)
AngelaMaria
Paulo Roberto(morador daVila Caddie)
ZuleicaBriolandi
Paulo Ricardo ( dafamília Dutra, tio
de Rita de Cássia)
Eucl idesGuaraci
Rita de Cássia (dafamíl ia Dutra, sobrinha
de Paulo Ricardo)
LígiaLetícia
Rogério (moradorda Vi la Beco do
Resvalo)
ClaudiaTatiana
Jorge ( dafamíl iaBoeira)
NauraBorges
da Silva
AlípioMarques
dos Santos
João BritoSoares (fi lhode criação)
Antonia TerezinhaSoares (colega detrabalho de Naura)
Pedrosa Borgesda Silva (Pedrosa
Justina Borges)
BelizárioJosé da
Silva
Ido José daSilva (SãoFrancisco)
Rosa de Limados Reis Silva
(São Francisco)
se fixou. Os integrantes da comunidade fazem menção à existência de vizinhos
contemporâneos de seus avós maternos. Estes são identificados geralmente a partir do
sobrenome de suas famílias: os Dutra, os Boeira, os Freitas, entre outros. Segundo
João, filho de criação de Naura e Alípio:
“- Nós tínhamos três lindeiros conosco, que era a conhecida Maria, o
Freitas e os Dutra. Tinha um outro que eu não me lembro o nome desse.
Eu não consigo me lembrar o nome (...)“Divisa com João Freitas era os
Dutra. Isso aqui era tudo fazendas, tambos e chácaras. A nossa era uma
chácara. (...)“Tinha os Boeira, família Boeira. Os Boeira moravam na
parte de cima, bem na subidinha, do lado direito, ao lado do colégio. Ali
morava a família Boeira. Angelino Boeira, e mais próximo à Carlos
Gomes morava o irmão dele que é o Inácio Boeira.”161
As relações de vizinhança são descritas por ele como:
“ - Olha, a relação era bem melhor do que existe hoje entre um
apartamento e outro. Uma época era assim: a divisa bem assim mesmo.
Tem um muro aqui que dividia a outra parte. Eles moravam bem perto,
próximo da Figueira. É onde eles moravam, bem próximo da Figueira.
Então a nossa distância era trezentos metros daqui até a casa deles. Os
outros eram um quilômetro. Nós não íamos na casa de vizinho, vizinho
não visitava vizinho, mas cada fim de mês uma família carneava um
porco, um boi. Nós não criávamos gado, criávamos porco. Então nós
carneávamos os porcos e dividíamos com os vizinhos. Eles carneavam
gado e dividiam conosco. Então, as vizinhanças nós éramos praticamente
uma família só.” 162
161 Entrevista realizada no dia 05 de junho de 2004.162 Entrevista realizada no dia 05 de junho de 2004.
74
Durante o processo de pesquisa tivemos a oportunidade de conversar com Teresa
Dutra Gonçalves163, 61 anos, atualmente residente na Vila Caddie, pertencente a uma
das famílias de vizinhos acima mencionada: os Dutra. Ela manteve relações de
amizade com os integrantes da “Família Silva” desde a infância que foram fortalecidas
pelas uniões de seu filho, Paulo Ricardo, com Zuleica, e de sua neta, Rita de Cássia,
com Euclides Guaraci. De acordo com o relato de Teresa, o seu pai, assim como os
avós maternos dos Silva, cultivava legumes, hortaliças e frutas e criava animais de
pequeno porte para a subsistência da própria família. O excedente da plantação era
vendido164. Além disso, seu pai trabalhava de capataz para o Country Club, antigamente
conhecido como clube dos americanos165 .
Ela, corroborando as informações prestadas por João sobre as relações entre os
vizinhos, nos disse que cada um vivia no seu canto, produzia na sua terra, mas que
eram muito amigos. O caráter desses relacionamentos se expressava através de rituais
como o Terno de Reis. João, filho de criação de Naura e Alípio, relata que:
J:” - Tinha Terno de Reis. Nós tínhamos.
A: - Tu tem lembrança de como é que funcionava isso aqui?
J: - Sim.
A: - E quem é que participava?
J: - Todas as comunidades daqui, todos os moradores e alguns outros
amigos que vinham de outros municípios. De Alvorada vinha gente. Tinha
um gaiteiro lá, muito amigo do meu pai, chamado Marino. Então, ele vinha
com a gaita para fazer o acompanhamento do Terno de Reis. Muitas
pessoas que vinham. Naquele tempo o Morro da Polícia também não era
163 Entrevista realizada no dia 30 de junho de 2004.164 No caso dos Dutra, as melancias eram vendidas para atravessadores que vinham buscar a produção paracomercializá-las junto aos mercados. Em relação aos Silva, eram as hortaliças e flores que eram vendidas de portaem porta no caso das primeiras e nos cemitérios no caso das últimas.165 O Country Club está instalado na região desde 1939. Tal denominação foi explicada por Teresa em função dasroupas que os jogadores usavam e do tipo de esporte que praticavam: golfe.
75
tão habitado como hoje, tinha poucas pessoas, e muitos amigos que
vinham de lá vinham para cá (...) Dez, quinze, vinte pessoas com a gaita
na frente cantando e os outros roubando as galinhas e matando (...) É o
que se fazia nesse festejo. .
A:- E como é que era assim? Quanto tempo durava o Terno de Reis?
Como é que funcionava?
J:- O Terno de Reis a cada ano saía de uma casa. Hoje nos reunimos aqui
e saímos daqui. Fazendo aqueles vizinhos, aquelas pessoas com mais
afinidade. Então se procurava, era mais os nossos vizinhos mesmo, a
comunidade daqui mesmo .
A:- E aí tinha música? Como é que funcionava? Batia na porta? Como é
que era?
J:- Não, tu não batia na porta. Tu(...) Eu não lembro mais como é que era
(...). Sempre cantando a pessoa tinha que acordar e abrir a porta, a gente
entrava cantando. Quando abria a porta, os outros já atiravam os bichos
morto para dentro.
A:- Os bichos que eram da própria pessoa?
J: É, ia matar tuas galinhas para atirar dentro da tua casa. Aí o Terno já
ficava ali, já matava, cozinhava as galinhas, fritava assava, sumia, levava
para casa.
A: - E durava assim um dia todo? Como é que funcionava? Era de noite?
J:- Era de noite.
A:- E o falecido Sr. Alípio participava?
J:- Participava.
A:- E para participar, assim, o que precisava? Era ser da vizinhança
mesmo?
J:- Bastava fazer parte da comunidade e ter, como vou te dizer, uma
amizade com as pessoas, né? Ser parte da comunidade, tem que estar
participando da comunidade.”166.”
É interessante observar que essa manifestação congregava os vizinhos mais próximos,
mas também pessoas de outros bairros e municípios. As casas visitadas eram as
daqueles que eram considerados parte da comunidade, isto é, aqueles que
participavam ativamente para a construção do sentimento de existência da mesma.
166 Entrevista realizada em 05 de junho de 2004.76
Conforme referido anteriormente, os vizinhos davam uns aos outros partes dos animais
que carneavam. Esse ato nos parece ser aquele que estabelecia e reafirmava o
pertencimento a uma coletividade local167. O critério para participar do Terno de Reis,
segundo João, a afinidade e a amizade, extrapolava os limites territoriais da região
evidenciando a amplitude das redes sociais dos habitantes dessa zona de Porto
Alegre.
Lorivaldino, integrante da “Família Silva”, também tem lembranças do Terno de
Reis
L:” – Eles faziam antigamente o Ternos de Reis. Meu avô tocava muita
gaita. Ele tinha aquelas gaitinhas. Ele tocava muita gaita.
C: – Isto é muito importante Lorico. Tu sabe mais coisas?
L: – Eles agarravam e vinham. Minha mãe tinha muita galinha no
galinheiro, sabe? Batiam na porta e faziam aquela barulhada. Iam no
galinheiro e pegavam três ou quatro galinhas, puxavam o pescoço. De
madrugada todo mundo dormindo, cantavam o Terno de Reis. Entravam
pela cozinha.
C: – Quem fazia?
L :– Uns iam para cozinha e outros iam para o galinheiro. Tocavam violão.
“Abre a porta senhor dono da casa !” Aquela música que eles cantavam e
iam no galinheiro, e ficavam até de madrugada. Iam para outro vizinho,
para outra casa, batiam na porta, iam para o galinheiro. E assim passavam
a noite toda. Matando galinha e comendo. No outro dia minha mãe dava
falta das galinhas. Eram eles que tinham ...
C :– Tu sabe em que época, quantas vezes por ano?
L: – Uma vez por ano.”168.”
167 Como observa MAUSS (1974),Todas as sociedades obrigam o indivíduo a praticar a troca. Da mesma maneiraque a obrigação de dar pesa sobre o doador, o beneficiário da dádiva encontra-se na obrigação de aceitá-la e retribuí-la. Esse processo é o que denominamos de reciprocidade. Ele instaura relações sociais, assim como pode reordená-las. 168 Entrevista realizada com Lorivaldino da Silva, 44 anos, no dia 25 de maio de 2004.
77
Embora esse ritual não seja mais realizado há muitos anos, ele contínua
presente na memória do grupo como referência que permite a essa comunidade
vincular-se à trajetória histórica de ocupação do bairro Três Figueiras e às redes de
relações sociais que ali inicialmente se estabeleceram. O fim dessa prática é explicado
por João, filho de criação de Naura e Alípio, da seguinte forma :
“- Parou de ter quando cresceu a população. Deixou de ser aquelas
famílias, as chácaras. Tudo começou a ser vila mesmo. Aí parou-se.
Começou a ter as vilas. Aí terminou aquela festa, terminou tudo.” 169
Percebe-se em sua fala que é no momento em que a região começa a ser mais
habitada e que surgem as vilas que as relações de interconhecimento, reciprocidade e
solidariedade que possibilitavam a realização dos festejos não podem mais se
perpetuar da mesma maneira170.
Alguns moradores da Vila do Beco do Resvalo, como Jurumi, e Homero Abreu171,
residentes nesse local há trinta e cinco anos, recordam do Terno de Reis e da
participação de Euclides, pais dos Silva, nesse ritual. Jurumi referiu-se a ele pelo
apelido de “Tio Donga”, forma como era conhecido pelos mais íntimos, segundo seu
familiares. Ela disse ainda que nutria por ele um sentimento de filha por que, desde que
o conheceu, Euclides foi uma pessoa extremamente receptiva e solidária. É o que
indica o relato de uma de suas filhas, Lígia Maria172, quando esta diz que os moradores
169Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 5 de junho de 2004.170 Acreditamos que, embora não existam mais momentos ritualizados publicamente onde essas relações seexpressem, elas tem continuidade através de outras práticas como os casamentos , por exemplo.171 Jurumi e Homero são casados e naturais de Vacaria. Nossa conversa ocorreu em sua residência no dia 26 de julhode 2004. Eles são uma das últimas famílias da Vila do Beco do Resvalo que resiste até os dias de hoje aos processosde remoção.172 Entrevista com Lígia Maria da Silva em 25 de maio de 2004.
78
da Vila Beco do Resvalo usavam a água do poço deles e de que o pai dava aos
vizinhos e amigos aipim que plantava em sua roça.
“- Essa aqui sou eu!”173
A lembrança sobre o Colégio Anchieta, onde diversos integrantes da “Família
Silva” estudaram, cumpre um papel muito importante para esta comunidade, não
apenas por esta ter sido sua primeira experiência de contato com o sistema formal de
ensino. Nas primeiras vezes em que visitamos os Silva, eles nos falaram com bastante
ênfase sobre suas vivências naquela escola e nos apresentaram documentos
comprobatórios desses laços. Ao ser fotografada para jornais da capital, em
reportagens a respeito da demanda comunitária, uma integrante da família portou uma
foto das turmas da escola, na qual ela está presente174. Ter estudado ali se coloca como
demonstrativo de um vínculo com o bairro Três Figueiras, onde o colégio se localiza, e
onde os Silva têm enraizadas suas experiências de vida.175
No entanto, é necessário destacar que a comunidade está presente nessa
região desde muito antes do Colégio ali se estabelecer. Até o início dos anos de 1960,
esta instituição de ensino ligada à Companhia de Jesus, tinha seu funcionamento no
Centro da cidade: entre 1889, data de sua fundação, e 1939, situava-se na rua
173 Fala de Lígia Maria ao indicar a sua presença numa foto da turma do colégio Anchieta.174'Antropólogos pesquisarão quilombo urbano' In Zero Hora 6 de novembro de 2003. página 50. 'Existe um
quilombo na capital?' Diário Gaúcho 6 de novembro de 2003. página 5. Lígia Maria da Silva mostra uma fotoconstante no Relatório do Colégio Anchieta de 1968, e que será reproduzida neste capítulo, sob o número 4.175Isso se evidencia claramente através do processo de usucapião coletivo de número 107150600, Fórum de PortoAlegre. A ele os demandantes anexaram, entre as páginas 41 e 44, cópias das fichas de três irmãs naquela escola(Ângela Maria, Lígia Maria e Lídia Marina da Silva), assim como o requerimento apresentado à direção por suamãe, Anna Maria, em dezembro de 1979. Nele, solicitava que sua filha Zuleica Briolandi, que havia concluído aquarta série do primeiro grau, ali cursasse a quinta no ano seguinte. A apensão deste documento em um contexto deusucapião revela que para a comunidade o Anchieta é um importante referencial de seus vínculos com o território ecom o bairro.
79
Riachuelo. Deste momento até fins de 1962, ocupou um casarão na rua Duque de
Caxias. Em 1912, mesma ocasião em que a lei Rivadávia proibia as escolas
particulares de emitir títulos, a escola abria suas portas para crianças e operários
pobres176. No relatório do Colégio realizado no ano de 1961, algumas páginas foram
dedicadas a esta escola gratuita, inclusive com a seguinte citação do relatório de 1912:
“Resta dizer algumas palavras sobre o “Curso Noturno
Gratuito”, embora tenha com o Ginásio Anchieta apenas
uma ligação exterior, sendo que alguns professores do
mesmo instituto se encarregam da direção e ensino das
suas aulas. Tem por fim proporcionar aos operários e
meninos pobres, vítimas inocentes do desamparo e da
ignorância, alguns conhecimentos úteis para a vida,
mostrando-lhes, ao mesmo tempo, as obrigações para com
Deus e a sociedade e encarecendo-lhes a sua dignidade de
jovens operários.”177
Desde seu início, estavam muito claros os propósitos da Escola Gratuita. Fiéis à
sua tradição missionária, os jesuítas pretendiam, por um lado, formar cristãos fiéis e
devotos, por outro, operários disciplinados e dignos. No entanto, por trás desta
preocupação disciplinar se encontra a desconsideração dos padrões culturais alheios,
já que os educandos são encarados como desamparados e ignorantes, desprovidos de
conhecimentos úteis. Acreditamos que este descompasso entre o programa de ensino
e os saberes trazidos pelos discentes ajudou a afastá-los da aula. As proporções de
evadidos na ordem de 50% não podem ser explicadas apenas pelas dificuldades
176'Anchieta: do Casarão da Duque de Caxias à escola modelo de hoje' Folha da Tarde. 26 de maio de 1975, página63. Acervo de Recortes da Biblioteca Pública do Estado177Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 49
80
sofridas por aqueles que estudavam e trabalhavam, motivo apresentado pelo
relatório178. O mesmo informa os dados sobre evasão referentes a alguns anos:
Ano Matrícula Evadidos Proporção
de evadidos
1931 311 122 39,23%
1933 450 269 59,78%
1936 530 264 49,81%
1941 359 130 36,21%
1948 319 180 56,43%
1961 359 121 33,70%179
No já citado texto publicado na Folha da Tarde, o crescimento do Centro de
Porto Alegre foi apontado como o principal motivo para a transferência da escola para
um local, na ocasião, bastante afastado. A região central e mesmo as instalações do
casarão da Duque de Caxias foram considerados inadequados “às suas finalidades
didático-pedagógicas”180. Os inacianos adquiriram, em 1954, a área de 13 hectares onde
atualmente se localiza o Colégio, cuja construção teve início naquele ano e se
estendeu até 1967181. A foto seguinte demonstra o trabalho realizado pelos pedreiros.
178Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 51179Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 50180'Anchieta: do Casarão da Duque de Caxias à escola modelo de hoje' Folha da Tarde. 26 de maio de 1975, página63. Acervo de Recortes da Biblioteca Pública do Estado181SILVA (1990) p. 62
81
Pedreiro trabalhando na construção da escola.
Fonte: SILVA (1990) p. 68
Nessa ocasião, integrantes da comunidade estiveram presentes como mão-de-
obra utilizada na empreitada. É o caso de João, filho adotivo de Naura e Alípio. Chama
a atenção a pouca idade em que foi empregado em trabalhos penosos como o da
construção civil, considerando que em junho de 2004 sua idade era de 54 anos.
“ -Ajudei a construir esse colégio, Anchieta, parte do Colégio
Farroupilha. Tanto que se quiser fazer, é muito fácil saber quantos
anos tem este poço aqui. Vendo quantos anos tem a escola.
Porque estas pedras todas que tem calçadas neste poço aqui são
dali. Dinamitaram ali e trazia os tijolo, trazia numa carroça de
quatro rodas puxada a cavalo.” 182.
Mais do que uma oportunidade de trabalho, ou de estudo anos mais tarde, para os
integrantes da comunidade, a construção do Colégio Anchieta está intimamente
relacionada com outro elemento que representa para eles uma prova de sua
182Entrevista com João Brito Soares realizada no dia 5 de junho de 200482
persistência no território e de seus vínculos com a região: o poço, que até seis anos
atrás era utilizado como única fonte de água da qual dispunham. Ele também figura nas
reportagens acerca da comunidade com a mesma freqüência que as fotos das turmas
da escola da qual os Silva fizeram parte183.
O poço ao lado da casa de Zuleica
Em um texto produzido pela Associação de Moradores e Amigos de Três
Figueiras, o bairro foi descrito como “Classe A por seu próprio esforço”184. Nesse texto, o
Farroupilha185 e o Anchieta aparecem praticamente como verdadeiros ícones míticos
que teriam dado origem ao bairro, junto à Companhia Schilling e Kuss. O que se omite,
contudo, é a presença anterior de outros atores sociais. O bairro pode ser considerado
“classe A” por seu próprio esforço, desde que nesse próprio incluamos o esforço
daqueles que trabalharam duramente para edificar o bairro ao qual pertencem, desde
antes da chegada dos colégios.
183 Zero Hora, 20/12/2002, pág. 62: Herdeiros de escravos reivindicam área; e 06/11/2003, pág. 50: Antropólogospesquisarão quilombo urbano. 184'Bairro Três Figueiras – Classe A por seu próprio esforço'. AMATRES, 1988. Acervo de Recortes do ArquivoHistórico de Porto Alegre, recorte 0824.185O terreno onde hoje se localiza o Colégio Farroupilha foi adquirido em 1928 pela “Associação Beneficente eEducacional de 1858”, mantenedora da escola, em 1928; contudo, o lançamento da pedra fundamental foi realizadaapenas em 1957, dando início às obras.
83
Embora no livro editado por ocasião do centenário da escola não se dê muita
atenção àqueles que viviam no seu entorno, diversas referências a eles podem ser
encontradas nos próprios relatórios feitos à época. Acreditamos ser necessário resgatar
e dar maior atenção à Escola Assistencial, já que sua história não foi contada. Apesar
do Anchieta já ter se transferido em 1962, apenas em 1968 teve início o funcionamento
da Escola Assistêncial Vespertina:
Foto da escola assistencial em 1968.
Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968 p. 110
A legenda da foto dizia o seguinte:
“A Escola Primária [Assistêncial] faz parte integrante do
Colégio Anchieta, confunde-se com o Anchieta. Isto é
intencional, não casualidade. A utilidade desta Escola é
confirmada pela grande procura que teve já no seu
primeiro ano de funcionamento: 250 matrículas. Destina-
se especificamente às crianças pobres e necessitadas
das favelas que por três lados rodeiam as modernas e
magníficas linhas arquitetônicas do colosso que é o
Anchieta”.
84
“Nem todos têm a possibilidade de pagar pelo direito que
tem para entrar no mundo da cultura. É por isso que um
Colégio, como o Anchieta, numa verdadeira busca de
serviço, auxiliando pela compreensão dos pais e por outras
entidades, pôde prestar essa ajuda aos menos
favorecidos da zona.186
Há várias informações que devem ser ressaltadas nesses registros. Antes de
mais nada, o documento destaca o elevado número de matrículas já no ano de
implantação, e as associa às crianças da região. A “Família Silva” e os núcleos
populacionais circunvizinhos somavam no ano de 1968 pelo menos 250 crianças em
idade escolar, carentes de acesso ao ensino fundamental. Certamente são estas as
“favelas” as quais o texto se refere, rodeando o Colégio por três lados: ao sul, o beco
do Resvalo; a sudeste, a “Família Silva”; a nordeste a vila Caddie. Era especificamente
a elas que a Escola Assistêncial se destinava – esclarece o texto.
Por outro lado, novamente se percebe uma perspectiva segundo a qual as
crianças que ali estudavam seriam desprovidas de cultura e, receberiam uma
oportunidade de entrar para o mundo daqueles que a tinham. Outro trecho do relatório
reforça um estereótipo negativo a respeito dos alunos e explicita os objetivos
disciplinadores da Escola Assistêncial: “A quase totalidade das crianças matriculadas
nesta Escola [assistêncial] vêm de ambiente subdesenvolvido. A aprendizagem de
bons hábitos, ordem e disciplina se fazem necessarios [SIC]. O irmão Casemiro,
confundindo-se na massa deste mundo infantil, é um mestre bem sucedido nesta difícil
arte”187. Esta explicação encontra-se como legenda da seguinte fotografia , na qual
aparecem diversas crianças que ali estudavam, muitas das quais negras.
186Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 110. Os grifos são nossos. 187Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 113.
85
Alunos da escola assistencial – 1968
Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968, p. 113
Desnecessário dizer que, em uma situação na qual as vivências culturais dos
alunos são deixadas de lado, muito pelo contrário, combatidas, o abandono e a
repetência novamente se colocam. O próprio relatório afirmava que diversos “alunos
difíceis, cuja vida fora perturbada seriamente” acabavam por ser “excluídos”, quando
havia “diversos problemas de indisciplina”. A expulsão era o remédio quando o projeto
disciplinador malograva; e as “experiências de vida, suas carências, que os tornavam
revoltados e incapazes de se integrarem socialmente num grupo” eram francamente
responsabilizadas pelo fracasso da prática pedagógica188.
Não possuímos dados numéricos concernentes à evasão escolar, porém
podemos ter uma idéia do grau a que chegava a repetência na Escola Assistêncial
durante os anos 70, com base nas fichas escolares apresentadas por algumas irmãs da
“Família Silva” em um processo judicial. Ali há o histórico escolar das alunas durante
188Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 116. 86
sua estada no Anchieta. Lídia Marina cursou, entre 1968 e 1975, da segunda à quinta
série. Levou o dobro do tempo necessário, por ter repetido de ano uma vez em cada
série. Ângela Maria cursou três vezes a primeira série, e repetiu também a quarta série,
totalizando oito anos, entre 1971 e 1978, para chegar à quinta. Lígia Maria, por sua
vez, realizou a terceira série em 1968, e nos dois anos seguintes esteve na quarta
série. Somos de opinião que este quadro de repetência deveria se repetir em escala
maior, dado que a situação das irmãs Silva se assemelhava à de outros vizinhos.
Neste relatório consta, ainda, listagens nominais com os alunos das turmas da
Escola Assistêncial, dentre os quais constam os três irmãos mais velhos da “Família
Silva”. Lorivaldino da Silva encontrava-se na primeira série (turma 1-A); Lídia Marina da
Silva, na segunda (turma 2-B); e Lígia Maria da Silva, na terceira (turma 3-A)189. Lígia
também aparece na foto a seguir, que foi a mesma que ela quis segurar ao ser
retratada para os jornais Zero Hora e Diário Gaúcho, nas referidas reportagens.
189Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 118-120. 87
Alunos da escola assistencial em frente à Capela – 1968
Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968 p. 114
A relação entre a Escola Assistêncial e o restante do Colégio Anchieta era,
predominantemente, de segregação. Ela funcionava em um prédio diferente do
restante da escola, que fazia frente à Nilo Peçanha, e que, coincidência ou não, era o
mais próximo aos núcleos populacionais citados, pode-se perceber pela seguinte
fotografia:
88
A Escola Assistencial, segregada do restante do Colégio. 1965
Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1965 p. 53
A separação era evidente na própria denominação utilizada. A Escola
Assistêncial também era conhecida como “escola anexa”. O nome demonstra que ela
era pensada como um apêndice do Colégio. Fazia parte da escola, nos momentos de
se louvar a caridade cristã dos seus administradores, mas ainda assim não deixava de
ser muito bem caracterizada como algo distinto do restante. As situações de contato
entre alunos das duas escolas eram minimizadas pela existência de portas de acesso
diferentes entre ambas. A documentação consultada demonstra haver existido
momentos nos quais coleguinhas ricos declamavam poesias ou distribuíam presentes
para os coleguinhas pobres, confraternização da qual o colégio muito se orgulhou190.
Trata-se de uma relação paternal, uma relação de caridade, uma relação hierárquica,
em suma, na medida em que ficava muito bem demarcado simbolicamente os lugares
sociais daqueles que tinham a possibilidade de oferecer, e daqueles que dependiam,
190Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 112-113;115.
89
necessitavam da oferta. Da oferta de ensino gratuito em uma escola particular, por
exemplo.
As elites que estudavam no Colégio Anchieta, por um lado, aprendiam desde
cedo a convivência com classes e grupos étnicos socialmente desfavorecidos; por
outro, esta convivência se dava com base a uma redução do outro ou à condição de
rebelde “perturbado seriamente”, ou de dependente. Ou ainda, à condição de exótico,
de alteridade radical a ser mostrada às crianças. Através de um depoimento de um
famoso político sul-rio-grandense, que teria estudado no Colégio Anchieta pelos idos
de 1972, descobrimos que a escola tinha o hábito de levar seus alunos para visitar vilas
próximas ao Colégio, a que o mesmo teria atribuído o início de sua formação política191.
Esta situação se repete nos dias de hoje. A comunidade vem sendo
sistematicamente importunada pela visita de escolas, que querem ver “o quilombo”.
Muitas vezes, admitimos, na melhor das intenções, os “educadores libertadores”
interessados em demonstrar aos seus alunos o mundo dos menos favorecidos, acabam
por perturbar o sossego de comunidades que sofrem há muito tempo com o assédio de
estranhos. De qualquer forma, ainda que por meio de visões estereotipadas do outro -
“revoltados”, “dependentes” ou uma “miséria absoluta” a ser utilizada para despertar a
consciência política e social dos alunos – o fato é que há o reconhecimento de uma
alteridade por parte da escola.
191SILVA (1990) p. 62-6390
Alunos do Colégio Anchieta em frente à capela.
Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968, p. 121
É interessante observar que a adoção na década de 1970 de novas perspectivas
pedagógicas, com base em Paulo Freire e em Jean Piaget192, foi paralela a uma
crescente dificuldade de acesso à escola gratuita. O relato que obtivemos junto à
comunidade revela que, depois do estudo dos três irmãos mais velhos, os demais
tiveram crescentes dificuldades porque o “Anchieta começou a complicar”. Dentre
estas, estava um maior controle pelos guardas do acesso e trânsito na escola e a uma
exigência cada vez maior de documentos a serem apresentados. Como se sabe, dentre
as camadas populares a relação com a palavra escrita é distinta do que entre outros
grupos sociais. Uma maior exigência burocrática acaba por revelar-se fator de exclusão
na medida em que nem todos têm todos os documentos193.
Essas transformações representaram o prenúncio para o fechamento definitivo
da Escola Assistêncial, no ano de 1984. Na edição comemorativa aos cem anos do
Colégio Anchieta, é apenas nesse momento em que há menção aos “núcleos de
192SILVA (1990) p. 47193Talvez isso explique o fato de Zuleica Briolandi, mais nova do que Lígia Maria, Lídia Marina e Ângela Maria, terapensado ao seu usucapião um requerimento, e não uma ficha com Histórico Escolar.
91
favelados” vizinhos à escola. No entanto, ênfase maior é dada a alunos oriundos de
“Alvorada e outros lugares distantes”. Tanto é assim que o autor explica a extinção da
escola da seguinte forma:
“Por volta de 1983, levando em conta que a condução se
tornava muito dispendiosa para aqueles alunos que
moravam longe do Colégio e que uma favela vizinha
começava a ser removida, a Escola Anexa Gratuita houve
por bem transferir os seus alunos para as escolas públicas
que se localizassem mais próximas às suas residências. “
Temos alguns reparos a fazer a esta leitura da realidade. Ela não se coaduna
com os dados de que dispomos. Os relatórios analisados, conforme demonstrado, dão
uma ênfase muito grande às vilas próximas ao Colégio, em contraste com o silêncio do
autor a esse respeito. Além disso, cumpre observar que, ainda que o pagamento de
passagens fosse caro a eventuais alunos originários de Alvorada (ou outros lugares
distantes), os alunos que moravam perto dali (e não eram poucos) foram obrigados a
se deslocar para os bairros vizinhos para continuarem estudando. Finalmente, há que
ter em conta que, conforme demonstraremos, a remoção da Vila Beco do Resvalo não
se tratou de um procedimento asséptico e trivial, como a narrativa do autor pode dar a
entender. Aconteceu em um contexto de pressão, de violência, conseqüência de um
ato de força. Trata-se, mais uma vez, da fúria saneadora da cidade que, à medida em
que cresce, empurra seus pobres para lugares distantes (ou Alvorada). A presença de
vilas nos bairros Três Figueiras, Boa Vista, ou da comunidade da “Família Silva” não
92
mais eram desejáveis depois da abertura do Shopping Iguatemi194. Foi neste contexto
político que o Colégio Anchieta encerrou as atividades da escola assistêncial.
Religiosidade: católicos e encostados.
Outro aspecto da história do grupo que diz respeito aos seus vínculos sócio
culturais é aquele que se refere a religiosidade. Anna Maria e Euclides José da Silva se
casaram na igreja Auxiliadora no dia 24 de julho de 1954195. Lígia Maria, filha deles, foi,
segundo ela própria, batizada e crismada na Igreja São Sebastião da mesma forma
que João, seu tio 196. Angela Maria, sua irmã, quando questionada a respeito,
respondeu que freqüentava a Igreja Mont’ Serrat. Essas são as igrejas mais próximas.
Ter sido batizado e crismado em uma delas, ou ainda frequentá-las demonstra as
relações que os integrantes da “Família Silva” foram tecendo com os espaços religiosos
da região.
Lorivaldino, membro do grupo, declarou que ali todos eram católicos. No entanto,
o relato de Lígia indica que a avó materna freqüentava casas de Batuque na Vila
Jardim. Além disso, ela recorda de ocasiões onde pessoas vinham fazer limpeza
espiritual das casas. Ela revelou que sua mãe, Anna Maria e sua avó, Naura iam a uma
casa de Nação em Viamão. De acordo com Maria Helena da Rosa, 58 anos, irmã de
194 O Shopping Center Iguatemi foi inaugurado em abril de 1983. Um mês antes, era concluída a expansão daavenida Nilo Peçanha, no trecho entre a Luiz Manoel Gonzaga e a João Wallig. AHPOA, Zero Hora, 19/3/1983,recorte 4804; Folha da tarde, 19-20/3/1983, recorte 4802. 195 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Paróquia da Auxiliadora, Livro 7 de registros decasamentos, f. 30-30v196 Referimo-nos a João Brito Soares, filho de criação de Naura e Alípio, que é assim classificado pelos filhos deAnna Maria e Euclides.
93
Antonia Teresinha Soares197, mãe-de- santo do centro religioso em questão, a casa era
freqüentada por Zaida, vizinha da Vila Beco do Resvalo, que se tornou mais tarde
sogra de Lígia Maria. Foi essa conhecida que apresentou Naura à Sidnei, o pai –de -
santo da casa. Esta última por sua vez apresentou a ele Maria Helena com quem o
mesmo veio a se casar e pela qual foi sucedido na liderança da casa após a sua morte.
Ana Cristina, irmã falecida dos Silva, foi batizada na “religião” em função da fragilidade
de sua saúde.
A:” – Mas ela [referindo-se a Naura] vinha com freqüência?
MH: – Não vinha assim, não vinha sempre, duas vezes no mês.
A: – E a Anna Maria também?
MH: – Trazer algum cliente.
A :– Mas ela era filha de santo da casa ou não?
MH: – Ela era encostada. Não era filha de santo.
A: – Encostada?
MH: - Como a gente diz, para ter os cuidados espirituais. Não tinha
obrigações com a casa.
A: – E a Anna Maria tinha?
MH: – Não.
A :– Até a Angela e a Lígia comentaram que a irmã delas foi batizada....
MH:– Sim, ela tinha problema de saúde.
A :– E foi aqui?
MH: – Foi aqui.” 198
Ainda que Anna Maria e Naura não fossem filhas da casa, existiam outros aspectos
que as ligavam a Sidnei como informou Maria Helena.
197 Antonia Teresinha Soares é esposa de João Brito Soares. Ela veio de Venâncio Aires para trabalhar em uma casade família substituindo a irmã que estava doente. Maria Helena já conhecia Naura haja visto que esta última tambémprestava serviços domésticos para as mesmas pessoas.198 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.
94
“– Elas continuavam vindo aqui. Às vezes também eu visitava. A amizade
era muito grande, a amizade do meu marido com a família deles.”199
Embora Alípio e Euclides não fossem ao local, ela nos relatou que :
A:”- Mas nem o Alípio e o Euclides freqüentavam casa de religião?
MH: – Não.
A: – Mas como é que a senhora sabe que eles gostavam de religião?
MH: – Eu convivi muito tempo com eles e eu trabalhava na religião.
Trabalhei muito para ele [referindo-se a Alípio].
A: – Ele também tinha um problema?
MH: – Tinha sim. Ele era bem doente.
A: – Mas ele acreditava então?
MH – Sim, ele acreditava.”200
Essas informações nos permitem dizer que a religiosidade, embora se manifestasse de
diferentes maneiras ao longo das gerações, é um elemento importante na memória do
grupo, que serve de metáfora para pensarmos outros aspectos da história dessa
comunidade como os vínculos com a localidade e seus moradores. Ser batizado,
crismado ou unir-se em matrimônio a alguém numa igreja católica da região significa
estabelecer laços de identificação com uma zona, um bairro, um território e seus
habitantes. Como pudemos observar, a ligação dos Silva com a casa de Batuque
localizada em Viamão se deu através de relação estabelecida com uma vizinha,
relação esta que posteriormente se tornou de parentesco.
199 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.200 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.
95