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FOREVER (Eu, Sísifo III)
Otto Marques da Silva
Cotia
2017
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ÍNDICE
Capítulo Primeiro – As Metas ...................................................................... 3
Capítulo Segundo – Labda........ ................................................................... 6
Capítulo Terceiro –Noelma ........................................................................... 23
Capítulo Quarto –Oficinas ............................................................................. 46
Capítulo Quinto - .Idade Média I .................................................................. 77
Capítulo Sexto – Giovana .............................................................................. 89
Capítulo Sétimo – Idade Média II ................................................................... 97
Capítulo Oitavo – Britt ....................................................................................112
Capítulo Nono – Forever ................................................................................130
Capítulo Décimo – Renascença .....................................................................146
Capítulo Décimo Primeiro –– Marcus..............................................................174
Capítulo Décimo Segundo ... Idade Moderna.................................................193
Capítulo Décimo Terceiro – Universo .............................................................222
Bibliografia ......................................................................................................247
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Capítulo Primeiro
AS METAS
Acomodados na sombra de uma grande pedra no alto do Voturuna, os três não
puderam furtar-se à oportunidade de admirar em silêncio o imenso panorama
que se estendia à sua frente num verdadeiro mar de um verde cheio de
nuances, iluminado pelo sol brilhante do início do inverno. Aqui e ali a imensa
área era interrompida por cidades de pequeno ou médio porte, além de trechos
de uma ou outra rodovia que buscavam o centro de São Paulo, cujos bairros
periféricos dava para notar na linha do horizonte..
- É muito bom termos algumas oportunidades para fazermos um intervalo
informal em nossas atividades, não é mesmo? perguntou Heródoto.
Agostinho levantou-se apoiando as mãos em pedras adjacentes e comentou:
- Nem diga, meu caro! Eu gosto muito dos ambientes criados nas modernas
instalações do XPTO Voturuna. Para mim e para o Sísifo foi uma surpresa
completamente inesperada. Em suas instalações todos convivem com a maior
tranqüilidade e o ambiente de trabalho apresenta-se muito saudável. No
entanto, acho que todos concordamos que de quando em quando é
fundamental a gente criar condições para um repouso longe das rotinas
internas, das reuniões, das revisões de textos, das soluções de problemas
internos, das peripécias com os computadores...
Joshua olhava o horizonte com um postura de verdadeira paz. Sem se mover
comentou:
- Tudo isso tem sido muito bom, meus caros, mesmo porque o momento que
vivemos demanda criarmos situações sem tensão. Já demos passos
ponderáveis em nossos planos de tornar muito clara não só a existência, mas
também a eventual relevância de pessoas com deficiência em muitos
momentos da História Antes de Cristo entre os Hebreus, Gregos, Egípcios,
Romanos... .
Heródoto apressou-se em afirmar:
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- Sem nos esquecermos das informações e comentários sobre a Pré-História,
chegamos até a avançar pelo Império Bizantino afora, mestre Joshua! No
entanto, devo ressaltar sem susto que os dados levantados sobre a Pré-
História para mim foram surpreendentes.
Agostinho agradeceu a referência de Heródoto e observou:
- E com isso chegamos à Idade Média, para gradativamente caminharmos no
sentido da Renascença, da Idade Moderna e depois, dos dias atuais. E será
após esse finalzinho do parcial levantamento histórico que iremos nos lançar
na etapa mais crucial de nosso grande projeto.
Heródoto colocou-se em pé na frente dos dois e afirmou:
- Você razão, Agostinho! Precisamos coroar todo o esforço atual com a
montagem de um projeto de visão moderna e de aplicação universal para
incrementar cada vez mais as possibilidades de inclusão das pessoas com
deficiência na vida plena. Precisamos conscientizar nosso grupo de assistentes
especiais para o fato de que um projeto de visão moderna não significa
necessariamente algo dispendioso e extremamente chamativo, mas algo
objetivo e viável em qualquer realidade do mundo atual.
Agostinho apoiou o raciocínio de Heródoto e acrescentou:
- Vocês sabem que tentativas foram feitas no passado pela ONU e suas
Agências Especializadas em cinco países diferentes, mas elas, apesar dos
esforços locais ou da assistência técnica da ONU, da OIT e da OMS, não
frutificaram. Várias foram as causas, mas uma das mais notáveis foi que as
equipes montadas em cada novo centro criado foram compostas de
profissionais de visão muito míope da reabilitação. Ou então, contando com
profissionais de boa vontade, mas com uma visão muito dispare de seus
colegas de equipe e com atitudes muito marcantes da importância de sua
própria área de atuação.
Joshua concordou com aquelas observações e concluiu:
- Será vital, portanto, que a unidade demonstrativa a ser criada lute com muita
força e determinação sobre esse ponto crucial para o sucesso do
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empreendimento. Embora já tenhamos passado e repassado esse ponto, não
pode haver confronto de opiniões, mas uma postura aberta para ações de
cooperação contínua e irrestrita. E essas características precisam ser
fortemente garantidas não só no proposto centro de demonstração, mas em
toda e qualquer unidade a ser montada no futuro, pelo mundo afora.
- No meu modo de ver, esse será o desafio maior, comentou Agostinho.
- Plenamente de acordo, Joshua e Agostinho! concordou Heródoto. Para
garantirmos o modus operandi desse tipo de ambiente que deve ser criado,
pelo menos no centro de demonstração proposto precisaremos desenvolver um
esforço marcante nesse sentido e para tanto, precisaremos de especialistas
que precisam ser selecionados com cuidado extremo. Enquanto isso não
acontece, deveremos daqui para a frente, fazer com que nosso grupo de
assistentes especiais afinem seus instrumentos e aparem suas arestas, a fim
de vivenciar essa harmonização de que estamos falando. Será nesse desejável
ambiente que um eventual especialista deverá mergulhar e com o qual deverá
também se afinar.
Agostinho levantou-se e olhando para o horizonte que se preparava para
receber o sol, comentou com uma certa ironia:
- Meus prezados, nosso pretendido repouso precisa ser interrompido para
voltarmos aos nossos ambientes.
Ao começarem a caminhar de volta para a entrada do XPTO Voturuna,
acrescentou:
- Daqui a uma hora mais ou menos, logo após o jantar, teremos a primeira
reunião dos assistentes especiais para darmos início à série de depoimentos,
dentro da estratégia sugerida por Heródoto, para conseguirmos a
harmonização de que estamos falando e que deverá ser aprimorada em nosso
meio. Conhecendo os assistentes como tenho tido oportunidades sem conta de
conhecer, escalei a nossa veterana Labda para uma primeira apresentação.
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Capítulo Segundo
LABDA
- Meus prezados, vocês estão perfeitamente a par da necessidade que temos,
neste nosso projeto, de contarmos com um grupo básico de assistentes
especiais bastante coeso, face aos desafios que deveremos enfrentar para
poder ter sucesso no empreendimento que em breve estaremos
desenvolvendo, com o auxílio de especialistas de inquestionável saber e
experiência. Uma das estratégias que adotamos para que este pequeno grupo
– que será sempre um grupo de apoio - se fortaleça é optar por um sistema
que leve ao conhecimento mútuo, sem barreiras. Como vocês sabem, com o
intuito de fazer com que os depoimentos pessoais aconteçam sem maiores
dificuldades, elaboramos uma escala de apresentações conforme todos já
conhecem. E será nesta oportunidade que daremos início ao sistema adotado.
Para tanto, teremos agora o depoimento sobre a experiência de vida desta
moça amada por todos nós, que é a Labda, uma das veteranas deste projeto.. Com bastante serenidade, Labda encaminhou-se para próximo à tela destinada
ao retro-projetor e com um sorriso envolvente começou:
- Amigos, vou começar meu depoimento contando um pequeno segredo: Meu
nome verdadeiro é Helena, Helena Báquida, nascida e criada em Corinto. No
entanto, sou muito mais conhecida por Labda, como todos vocês sabem muito
bem. Nasci numa família muito poderosa de Corinto – os Báquidas ou
Baquíadas, como querem alguns - no finalzinho do século VII Antes de Cristo.
Faz um tempão, não é mesmo? Os Báquidas constituíam uma família fechada
ao extremo contra interferências externas e muito voltada para a sua
importância. Os cuidados tomados por séculos para garantir a força da grande
família incluía casamentos que só podiam ocorrer entre seus membros e a
busca da perfeição física. Os reis de Corinto foram Báquidas, por gerações e
gerações a perder de vista.
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Diante desses usos e costumes, normalmente Labda teria vivido uma vida
muito tranqüila em ambientes requintados junto ao palácio real, mas ela havia
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nascido com um problema físico que provocou uma mudança radical em sua
vida: Ela tinha uma perna um pouco mais curta que a outra. Por causa disso foi
colocada meio de lado em sua grande família.
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- Minha vida no palácio do meu avô, que era rei de Corinto, foi muito tranqüila e
quase sem novidades, mesmo porque toda a nossa família mais próxima era
bastante protegida contra interferências externas. No entanto, numa certa
manhã, quando eu estava com 17 anos de idade, meu sobrinho pequeno de
três anos de idade, Laércio, veio correndo ao meu encontro, gritando de dor,
com o dedo da mão direita seguro pela mão esquerda. Tinha sido picado por
uma enorme aranha que no corre-corre que se seguiu foi localizada no meio de
diversos brinquedos espalhados pelo chão do pátio interno do palácio. Era uma
tarântula!
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Médicos egípcios que atuavam para atender a família real no palácio acorreram
para analisar o dedo de Laércio, mas aparentemente nenhum tinha experiência
com aranhas. Um deles lembrou imediatamente de algo e abrindo espaço no
grupo de cinco médicos reunidos, informou com convicção, num tom firme de
voz:
- Epidaurus. Em Epidaurus médicos-sacerdotes que servem Apolo e Asclépios
dominam todos esses assuntos relacionados com cobras venenosas, com
lagartos, sapos, escorpiões e com aranhas, pelo que eu estou sabendo de
informações muito seguras a mim passadas por um médico egípcio de
Memphis que lá trabalhou por diversos anos.
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Labda foi relatando com precisão o que acontecia ao seu redor naqueles
momentos de pura aflição.
- Minha irmã Selene, mãe de Laércio, abriu espaço no meio daqueles sábios
egípcios e saiu correndo com ele no colo, gritando o nome de Alexandre, seu
marido e pai de Laércio, pedindo para conseguir transporte imediato para levar
o menino para Epidaurus. Sabendo da distância e do tempo que poderia
demorar a viagem, eu fui correndo até a responsável pela cozinha do palácio
onde consegui alguns tipos de produtos avulsos já prontos e bem
acondicionados, como pedaços assados de aves, costelas de porco, bolinhos
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para matar a fome enquanto durasse a viagem. Consegui também cobertores e
alguma roupa e com toda a pressa possível cheguei nas cocheiras onde um
veículo estava sendo preparado para a viagem, com um cocheiro e um soldado
para segurança do grupo já prontos para a partida que aconteceu sob forte
tensão, com Laércio chorando muito no meu colo, com o dedo indicador
enfaixado por uma espécie de vedação feita em parte com linhas de bordar e
com fitas, a fim de tentar impedir o veneno de circular. No meio da tarde
chegamos a Epidaurus onde Alexandre movimentou-se com extrema eficiência,
conseguindo o imediato atendimento em uma espécie de triagem, durante a
qual o médico- sacerdote lancetou sem a menor hesitação a ponta do dedo de
Laércio e fez o sangue escorrer o quanto foi possível.
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No entanto, o atendimento da Asclepéia era muito mais complexo e, enquanto
Laércio dormia, o sistema todo foi explicado para Alexandre e Selene, face aos
cuidados que o caso requeria.
Em resumo, segundo o médico-sacerdote que havia atendido Laércio, o próprio
deus Asclépios deveria ver o menino e dar o seu veredito, face à inacreditável
experiência que trazia consigo.
Segundo ritual estabelecido desde muitos anos, esse procedimento com o
deus Asclépios devia acontecer durante a noite, num local próprio para a
participação direta do deus e isso ocorreria num prédio comprido e todo
branco, com mais de 10 colunas enfileiradas de um dos lados e conhecido
como abaton. Lá os pacientes preparados para o momento de intervenção de
Asclépios deveriam se acomodar e dormir, uma vez que, segundo os médicos-
sacerdotes informaram com extremo cuidado, Asclépios estaria presente e
passaria de doente em doente, para os procedimentos finais da cura.
Bem compreendidas e aceitas as orientações básicas quanto ao sistema de
funcionamento, Alexandre deixou Selene e Labda cuidando de Laércio, e foi
tomar providências para seu alojamento pessoal e alimentação, além daquelas
relacionadas ao cocheiro e ao soldado acompanhante.
Antes disso, por insistência de Silene, tomou providências para um alojamento
condigno para Labda, em outras instalações só para mulheres, uma vez que
Selene deveria ser mantida com Laércio ao seu lado o tempo todo nas
instalações do abaton.
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As duas irmãs, acomodadas dentro do magnífico templo de Asclépios ali
existente, ficaram admirando a beleza daquele santuário, com uma
impressionante estátua de Asclépios em seu centro, toda cercada de bancos
lotados com fiéis orando em murmúrios para obter a graça do deus.
Lamparinas e velas votivas iluminavam o seu interior.
O ambiente era tão respeitoso que as duas conseguiam falar apenas por
sussurros, enquanto Laércio dormia. Sacerdotes e servidores passavam de um
lado para o outro portando pequenos archotes, dando atenção aqui e ali para
pessoas que precisassem de ajuda.
Com a volta de Alexandre ficou clara a localização noturna de todos, devendo
Selene aguardar ali no templo de Asclépios a chamada para se dirigir ao
abaton por algum sacerdote. Para alívio de Alexandre e de Labda, Laércio
dormia tranqüilo no colo da mãe. Parecia em paz.
Quando o médico-sacerdote se aproximou de Selene para acompanhá-la ao
abaton que ficava ao lado do templo, Laércio já estava dormindo no colo de
Labda.
Alexandre, acompanhando os três no pequeno trajeto, deu algumas
recomendações a Selene, tomou Laércio um pouco em seus braços, perguntou
se Labda sabia onde devia dormir e deixou-os a alguns passos da porta do
abaton para resolver de vez algumas pendências sobre seu alojamento e dos
dois acompanhantes.
Labda acomodou melhor Laércio em seu colo enquanto caminhava
vagarosamente para a entrada do abaton.
- Fica tranqüilo, querido... A titia fica com você. Vamos com este senhor aqui
procurar onde você e a mamãe vão dormir.
- Você vai ficar com a gente? perguntou Laércio segurando seu rosto.
- Eu vou ficar fora um pouco e logo depois eu volto.
A entrada do abaton estava bem iluminada e diversos médicos-sacerdotes
atendiam o grupo de pacientes selecionados para passar a noite ali naquelas
instalações. Era conhecida como “noite de incubação”. Cada um que entrava
recebia uma pele de carneiro para colocar no chão e se aquecer à noite. Além
disso tudo, bebiam uma pequena poção adocicada entregue por um médico-
sacerdote que dizia a cada um, com voz bem pautada:
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- Beba esta poção sagrada, para poder dormir bem, sonhar e encontrar o deus
Asclépios durante esta noite.
Quando chegou a vez de Laércio ser atendido, o médico-sacerdote ouviu a
identificação feita pela mãe e orientou:
- Olha, senhora. Seu local para esta noite sagrada é lá no final dessas colunas,
que é o ponto onde ficam as mulheres, está bem? Pegue estas duas peles de
carneiro aqui para poder montar sua cama e se abrigar... E quem é esta moça
aqui?
- É minha irmã... Ela só vai levar o menino até lá, está bem? Depois ela sai.
- Mas olha que isso vai ter que ser garantido. Ela não poderá ficar...
- Claro, claro... A gente entendeu bem. É que o menino precisa se aclimatar um
pouco. Ele está meio assustado.
- Correto, senhora. Certifique-se que sua irmã saia tão logo a senhora se
acomode em seu lugar e o pequeno esteja tranqüilo.
Foram caminhando com cuidado até o ponto em que um outro médico-
sacerdote veio pressuroso ao seu encontro.
- Olha o pequeno Laércio aqui!... fez ele, sorrindo. Fui eu que lancetei o dedo
dele, senhora. Estou aqui para resolver qualquer problema que possa ter. O
deus Asclépios virá durante a noite para orientar a senhora. Podem se alojar
aqui mesmo, que este ponto estará ótimo para a senhora e para este pequeno.
A suavidade com que o médico-sacerdote falava deixou as duas mais
tranqüilas, porque desanuviou o ambiente e Laércio foi ficando muito mais
receptivo.
- A senhora sabe que esta mocinha aqui precisará sair, não sabe?
- Sei, sim... Já foi explicado lá na entrada.
Labda olhou ao redor com cuidado e ajudou Selene a estender as duas peles
de carneiro no chão. Colocou ao lado duas sacolinhas com alguns pertences
dela e de Laércio e preparou-se para sair.
- Na sacolinha tem alguma coisa para comer, se for necessário, Selene.
Laércio estranhou um pouco, mas já tinha entendido que ela ia sair, mas
voltaria assim que pudesse.
O abaton foi aos poucos sendo ocupado por devotos de Asclépios que
apresentavam algum problema médico que não tinham conseguido resolver em
suas respectivas comunidades.
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As peles de carneiro eram colocadas a mais ou menos dois metros umas das
outras, numa disposição garantida pela supervisão de um atendente especial
daquela unidade da Asclepéia que procurava localizar as peles de carneiro
com uma certa aparência de ordem, garantida sempre a separação entre elas.
Cessado o lento movimento de ingresso e de acomodação silenciosa daqueles
que deveriam ali passar a noite, as tochas, velas votivas e lamparinas foram
sendo apagadas. Pelas pesadas cortinas fechadas uma fraca luminosidade
dava ao ambiente um tom misterioso, que era reforçado pelo som de suaves
cânticos de um coral masculino ao longe, em louvor a Asclépios.
A poção bebida por todos – que continha um componente sonífero
desconhecido – logo surtiu efeito e a grande maioria mergulhou num sono
profundo. De um ou outro leito improvisado vinha o som de um gemido, de um
soluço incontido ou de um ronco eventual.
Selene notou que Laércio havia dormido quase que imediatamente e, muito
mais tranqüila com os acontecimentos todos das horas passadas, acomodou-
se de lado, voltada para o filho que se aconchegou com naturalidade em seu
abraço.
Sentia-se admirada com os procedimentos adotados em Epidaurus. Percebeu
que estava vivenciando partes daquilo que todos consideravam misterioso no
tipo de medicina liderado por Asclépios. Tudo era muito diferente dos
procedimentos adotados pelos médicos egípcios que eram contratados pelo
palácio real de Corinto.
Mas ela não sentia receio algum. Sentia-se confortada pelo fato de seu filho ter
sido atendido com toda a presteza e que sua dor havia sumido como por
encanto.
Logo cedeu ao cansaço e dormiu com serenidade.
- Senhora... senhora, ouviu uma voz feminina.
Acordou sobressaltada por alguém que tocava seu ombro e viu em sua frente
um rosto jovem de mulher emoldurado por um capuz branco.
- O deus Asclépios veio ver o seu filho, senhora, sussurrou a jovem..
Selene assustou-se um pouco e logo percebeu que eram três pessoas que
estavam ao lado de sua pele de carneiro, as três vestidas de branco, com uma
delas segurando uma lamparina de cobre que as iluminava.
- Sim... Sim... Meu filho está aqui do meu lado...
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Percebeu no mesmo instante que Laércio já estava acordado e muito sereno,
em pé, mostrando o dedo enfaixado para o homem de barba branca que devia
ser Asclépios.
- Vou tirar essas ataduras de seu dedo, meu pequeno Laércio, para ver como é
que está o seu machucado.
Enquanto ele ia soltando as ataduras do dedo ferido, uma das moças ajoelhou-
se ao seu lado com uma bandeja cheia de potinhos.
Asclépios tomou a mão de Laércio e mergulhou o dedo ferido num deles.
- Pronto, meu querido! Não vai doer mais!
Aproximando-se mais da moça de capuz ao seu lado, com a bandeja, orientou:
- Filha, enfaixe outra vez esse dedo com firmeza, está bem?
Voltando-se para Selene, que estava um pouco aturdida, com os olhos cheios
de lágrimas, afirmou com serenidade:
- Mãe!... O problema está resolvido e demanda algum cuidado para sua
cicatrização final. Não há veneno algum nesse seu dedo. Depois de
cicatrizado, faça seu filho exercitar bastante e sem medo o uso desse dedo
para ele voltar ao normal e sumir qualquer sinal de insensibilidade.
Levantando-se com o uso de seu bastão, comentou:
- Volte para Corinto em paz, levando ao seu rei as melhores saudações de
Asclépios que sabe muito bem que os tipos de atendimento que aqui são
utilizados poderão igualmente ser de vital importância para os habitantes desse
importante reino.
Começando a movimentar-se para o próximo doente, disse baixinho, tocando a
moça no ombro:
- Venha, Iaso! Vamos continuar.
- Sim, pai!... Estou quase finalizando aqui.
Dando um pequeno nó na atadura sobre o dedo de Laércio, ela tomou o rosto
dele com ambas as mãos e murmurou sorridente:
- Você é muito lindo e um menino muito corajoso!...
Os três caminharam vagarosamente para o leito ocupado por uma senhora
bem ao lado, enquanto Selene e Laércio acomodaram-se outra vez para
dormir.
De sua parte, no dia seguinte bem cedo, Labda percorreu vagarosamente
todos os prédios destinados ao atendimento de pessoas vitimadas por algum
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mal que a medicina de outras paragens não havia conseguido resolver. Ficou
deslumbrada com a pureza do estilo imprimido ao tholos, com suas colunas
externas perfeitas e seus círculos concêntricos internos guardando segredos
milenares.
Cansada pela caminhada, foi sentar-se num dos bancos situados em frente ao
templo de Asclépios, que conhecera durante o início da noite ao lado da irmã,
aguardando sinais de movimentos no abaton para encontrar com Silene e o
sobrinho. Querendo muito manter-se relaxada para o encontro, fechou os olhos
e permaneceu sentada de olhos fechados. Permaneceu nessa posição por
alguns minutos, meditando sobre aquele misterioso lugar que inspirava tanto o
lado melhor dos seres humanos ao se voltar para os menos afortunados.
Enquanto assim permanecia, absorta na análise mental que fazia das
construções visitadas, um grupinho de médicos-sacerdotes foi passando bem
em frente, caminhando em silêncio na direção do abaton. Um deles, de barba
branca bem cuidada, portando um bastão de seu tamanho, parou para olhá-la
admirado com seu rosto sereno e suas vestes refinadas que indicavam uma
origem mais afortunada do que a maioria daqueles que procuravam Epidaurus.
Sem qualquer comentário, continuou seu caminho, sorrindo interiormente.
Logo em seguida vozes foram ouvidas de várias partes e ela correu para o
abaton para encontrar a irmã e o sobrinho.
Laércio veio correndo para cair em seus braços, reclamando dela não ter
voltado para dormir ao seu lado no abaton.
Selene havia passado pelo médico-sacerdote encarregado de interpretar os
sonhos relatados por todos aqueles que haviam passado a noite no abaton.
Seus sonhos não deram muita chance de interpretações válidas para sua vida,
mas deixou uma mensagem sutil de que os Báquidas poderiam colaborar mais
com causas que poderiam beneficiar populações mais pobres de Corinto,
especialmente nos casos em que as pessoas estivessem enfrentando
problemas de saúde que Epidaurus poderia resolver.
Enquanto Selene encontrava-se com Alexandre, Labda fez questão de levar
Laércio para ver alguns dos prédios, dando destaque especial ao Tholos.
Amirado com aquela série de colunas em forma de círculo, que encerravam em
seu meio uma espécie de labirinto de outras colunas, Laércio só conseguiu
perguntar:
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- Titia, será que Iaso está por aqui, atrás dessas colunas?
A volta a Corinto foi muito feliz, graças ao problema principal resolvido.
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Quando foram chegando aqueles anos que antecediam as verdadeiras
negociações para acertos de casamentos, sempre dentro da família,
dificuldades começaram a surgir quanto a Labda e seu futuro.
Sem comentar nada com ela, membros de sua família acharam que ela devia
ser afastada do ambiente perfeccionista dos Báquidas, que havia sido imposto
por muitos anos em Corinto.
Quando chegou na idade de se casar, ou seja, com os seus 18 anos, ainda
interagindo intensamente com suas irmãs e irmãos, primos e primas, sobrinhos
e sobrinhas, muito sutilmente arranjaram um casamento que exigiria que ela
vivesse muito longe.
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- E foi verdade, porque me casei meio em segredo com um rapaz oriundo de
Petra, que ficava muito longe de Corinto e mesmo de toda a Grécia. Ele se
chamava Eécion e era filho de um rico magnata da grande região de Petra, de
nome Echacrates, que tinha algum renome e bastante riqueza, mas nada
comparados com os da minha família original. Além disso, Eécion era um
homem - como eu poderia dizer? - jovem, sim, mas de cabeça muito simples,
de poucas idéias, de poucas palavras, de nenhum estudo. Era um homem que
sabia trabalhar com pedras, trabalhar no pesado para garantir a sobrevivência.
Só isso. Na verdade, ele nem sabia falar direito.
- Deixa ver se eu entendi, Labda. Logo depois do casamento você foi morar
num lugar muito distante que era Petra, é isso? perguntou Eurínome.
- Foi mais ou menos isso. Mas é preciso saber que nas negociações do
pretendido casamento, feitas exclusivamente com a corte, eu fui levada de
navio por alguns tios meus e duas de minhas irmãs, para representar a família
e me casei em Petra. Por que isso? Porque em Corinto, de um lado ninguém
queria casar-se comigo por eu ter um defeito físico numa das pernas, e do
outro, os maiores líderes da grande família não queriam demonstrar que uma
mulher da estirpe dos Báquidas se casaria fora dos ambientes fechados dos
Báquidas e ainda por cima com um estranho, por mais rico que fosse. Casei-
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me assim meio em segredo para Corinto e o meu marido já tinha uma casinha
pequena, mas sólida, feita de pedra e dada pelo pai, onde fomos morar.
Noelma pediu a palavra levantando as duas mãos.
- Que bom! E você ficou satisfeita com isso?
- Para ser bem franca eu não fiquei, não! Nem um pouco, Noelma. Eu tinha
sido educada em outra realidade. Eu me sentia muito infeliz longe de minha
mãe e de minhas irmãs e irmãos. Foi com eles que eu havia crescido e havia
sido educada. Vivia bem e me divertia muito em Corinto. Além disso eu tinha
vários sobrinhos e sobrinhas que preenchiam meus dias com uma alegria muito
freqüente. Mas não fiz feio com o casamento que me arranjaram, não.
Chorava, sim, de noite, de pura tristeza e solidão, sentindo falta do meu
ambiente original. Para piorar as coisas, ficou logo muito claro que meu marido
não prestava atenção em mim e não mostrava nenhum carinho. Fiquei muito
infeliz, mas apenas nos primeiros meses, porque gradativamente fui me
adaptando e me envolvendo com os usos e costumes locais. O pior veio aos
poucos, porque, de acordo com os costumes de Petra, uma mulher deveria
engravidar logo depois do casamento e no meu caso isso não estava
acontecendo. Não fiquei sabendo porque. Meses após o casamento, meu
marido – sempre muito inseguro - com medo das pressões de seu pai e de
outros parentes, que na certa aconteciam e também informado pelas crenças
daquele povo, foi procurar o famoso oráculo de Delphos. Ele foi procurar o
oráculo junto com o pai e alguns outros parentes mais próximos, para saber
qual previsão poderia trazer sobre a possibilidade de termos filhos. A
informação que meu marido trouxe foi um mistério. Dizia que eu engravidaria
logo e daria à luz uma grande pedra, imagine... E que essa pedra modificaria
muitas coisas ao longe.
- Que coisa mais estranha, não? Como é que um oráculo tão famoso podia
repassar essa previsão tão sem sentido para o futuro? Que alegoria poderia
ser essa? perguntou Sísifo.
- Claro que no meu raciocínio de mulher bem educada em Corinto, essa
previsão do oráculo estava expressa por meio de uma evidente alegoria, como
disse Sísifo. A palavra “pedra” era evidentemente alegórica e eu até achava
que sabia o que poderia ser. Mas nem o meu marido nem sua família
entendiam isso e eu fiquei quieta. Meses depois eles voltaram ao oráculo de
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Delphos para pedir mais esclarecimentos. E o oráculo informou que eu
engravidaria logo, sim, e daria à luz um menino que deveria esmagar, como
uma pedra, a dinastia dos Báquidas, em Corinto.
- Mas isso foi muito forte, não foi? perguntou Noelma.
- Claro que eu assustei com as palavras do oráculo, porque eu levava muito a
sério toda e qualquer previsão oriunda de Delphos. Receios à parte, o fato é
que eu engravidei logo mesmo e o oráculo aparentemente foi esquecido por
todos, de tão absurdo que parecia. É preciso lembrar que para aqueles tempos
Petra era muito longe de Corinto... Meu filhinho nasceu muito saudável e
acabou sendo o verdadeiro centro de minha vida.
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O que Labda não sabia nem podia imaginar é que os Báquidas não só haviam
tomado conhecimento da previsão do oráculo, mas também que homens
ligados à realeza mantinham seu provável significado na memória.
Por levar a sério essas previsões e por ouvir os comentários de sacerdotes e
pitonisas locais, tomaram uma providência extrema, assim que souberam que o
marido de Labda havia morrido num acidente com uma carroça carregada de
pedras.
As autoridades ligadas ao rei de Corinto escolheram 10 homens da grande
família dos Báquidas– todos primos entre si - que embarcaram para ir, numa
viagem especial, até Petra. Lá deveriam procurar onde Labda morava e
deveriam pegar a criança de três meses e atirá-la contra o chão duro para
matá-la, sem dó nem piedade. Com isso eliminariam a ameaça pendente
contra Corinto e contra os Báquidas, claramente expressa pela pitonisa de
Delphos.
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- Misericórdia! Que coisa mais absurda! E você não sabia de nada? comentou
Sísifo.
- Quando eles bateram em minha porta reconheci um a um e recebi cada um
deles do lado de fora de minha pequena casa, com um beijo de saudação de
uma verdadeira Báquida, sorridente e muito feliz. Éramos todos parentes
próximos – e fiquei muito contente, pensando naquela hora que era uma visita
de cortesia e que talvez a minha família estivesse mostrando algum
arrependimento pelo que havia feito comigo. Eu vivia sozinha naquela casa
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minúscula. Fiz com que entrassem e fui ao quarto buscar meu pequeno
tesouro, passando-o para o mais velho dos Báquidas ali presentes na minha
sala, sem saber que sua intenção era matar o menino. Quando ele olhou o
rosto do pequeno notei que ficou meio transtornado, porque o menino sorriu
seu melhor sorriso para ele, batendo as perninhas e os bracinhos e soltando
aquele gritinho próprio que criança pequena faz quando está muito feliz. Sem
coragem de fazer o que tinha que fazer devido à surpresa e à provável
emoção, ele passou o menino para o segundo, acontecendo a mesma coisa. E
eu, muito feliz da vida, sem saber a verdadeira intenção daquela visita, fui
dizendo alegremente que ele era assim mesmo, sempre sorridente e muito
feliz. Tendo chegado ao último, meu filho foi-me devolvido com todo o cuidado.
Saíram todos, bastante embaraçados, desculpando-se um pouco pela pressa.
Com meu menino nos braços, fechei a porta, achando que, afinal de contas, os
meus parentes lá de Corinto não eram tão preconceituosos assim. Talvez que,
sendo viúva, eu até pudesse ser levada de volta a Corinto...
- Mas que sorte, hein? E os dez foram embora? perguntou Britt.
- Não, não foram, Britt. Ficaram discutindo alto lá fora que o motivo da visita era
“matar o menino”. Essa era sua missão. Ouvindo isso é claro que eu me
assustei. Depois de alguns minutos de discussão meio acalorada resolveram
voltar, batendo com força outra vez em minha porta.
- Minha nossa! E o que é que você fez? Saiu correndo com o seu filhinho no
colo? perguntou Eurínome.
- Não. Eles me pegariam de qualquer forma. Não sei bem de onde me veio
uma idéia estranha, mas rapidamente levantei a tampa de um pequeno
depósito de trigo meio vazio perto do fogão e lá coloquei bem devagar o meu
filho, esperando que ele ficasse quietinho, não chorasse e que os Báquidas
não o encontrassem. Enquanto eles abriam com violência minha porta e logo
começaram a revirar a casa toda, afastando e vasculhando meus poucos
móveis, eu saí correndo e comecei a gritar por ajuda, o que logo surtiu efeito.
Homens e mulheres meus vizinhos vieram correndo com armas ou com
instrumentos agrícolas cortantes ou ponteagudos, numa gritaria de assustar,
afugentando os dez Báquidas, que nunca mais voltaram. Abri a tampa do
depósito de trigo chorando de puro desespero e o meu pequeno lá estava,
ainda sorrindo, batendo os bracinhos e as perninhas, feliz da vida.
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Sísifo não se conteve de tanta emoção. Levantou-se e ficou em frente a Labda.
- Que susto, hein? Como você foi esperta, Labda! Que presença de espírito,
hein?
- Foi por causa disso que meu filho foi apelidado de Cípselo, que é uma palavra
composta para armazenamento de trigo.
- E como é que ele se desenvolveu depois, Labda? quis saber Noelma.
- Cípselo cresceu sempre muito ativo. Ele me ajudou muito por diversos anos.
Fez muitas amizades, tornou-se um líder local, tomou conhecimento da tirania
dos Báquidas e do que haviam feito comigo e acabou formando um verdadeiro
exército que invadiu o palácio de Corinto, destronou o rei Báquida, que era seu
próprio avô, e instalou seu governo por muitos anos.
- Que bom, hein? E você continuou em Petra?
- Não, Eurínome. Meu filho me levou de volta a Corinto e passei a viver no
palácio, junto com sua nova família por muitos anos mais.
- Logo no início de sua história você comentou que o seu nome verdadeiro não
é Labda, mas Helena. Dá para você comentar um pouco isso para a gente
entender os motivos para essa diferença?
- Meu nome verdadeiro de fato é Helena, mas eu nem quero me lembrar dele,
de tantos desgostos que me trazem à memória. Prefiro Labda, porque sempre
me faz lembrar o seguinte: eu posso ter tido um defeito físico numa sociedade
perfeccionista e preconceituosa como a de Corinto daquelas épocas, mas
mesmo assim eu consegui vencer. Fui mãe de um rei, meus queridos!
Imaginem! Mãe de um rei!
O grupo todo reagiu com manifestações verbais de congratulações, que deixou
Labda um pouco surpresa. Mas, com calma, prosseguiu:
- Morei em seu palácio por vários anos, como eu disse, tendo sido tratada com
extrema dignidade e respeito. Nunca mais me casei e cheguei até a ser uma
espécie de embaixatriz de Corinto em diversas oportunidades, chegando a
conhecer povos e reinos diferentes. Eu passei a ter tudo o que queria ou que
nem havia pensado em ter. Quando eu morri, com meus 60 anos de idade,
devido a umas febres misteriosas que me assaltaram praticamente sem motivo,
meu filho, netos e o povo todo de Corinto choraram muito.
Noelma sentou-se em sua frente e perguntou:
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- Mas... Deixa eu voltar um pouquinho... Qual o motivo que faz você achar que
seu nome Labda pode causar tristeza e certas mágoas? Afinal de onde surgiu
essa espécie de apelido?
Ela riu um pouco e comentou:
- Vocês conhecem o alfabeto grego, não conhecem?
Noelma apressou-se em afirmar:
- Não... ouvi falar de algumas letras, como o Pi, em matemática, o Alpha e o
Omega em sua referência a Deus. Só isso.
- Há uma sigla um tanto misteriosa para alguns, que é o XPTO usado para
referir-se a estas instalações, não é mesmo? Por que será? perguntou Noelma.
- O que é XPTO? Eu nunca ouvi falar nisso, riu Labda. Dá para vocês me
explicarem?
Sísifo adiantou-se para informar:
- Na verdade, em português é pronunciado assim: XPTO. Mas de fato, são
letras gregas maiúsculas... Me empresta uma caneta e uma folha de papel.
Rapidamente ela atendeu seu pedido e chegou perto para ver o que ele iria
fazer. Com certa agilidade Sísifo desenhou em caracteres bem grandes as
letras XPTO.
- Ah, é isso?! E ficou assim famosa por que motivo?
- É usada hoje em dia, nos meios mais cultos, para designar uma coisa ou uma
pessoa fora do comum, boa demais, excelente!...A gente diz: Ele é XPTO, ou
isto está XPTO! Nosso centro no Voturuna é conhecido por XPTO...
- E por que motivo? De onde veio isso?
- É uma abreviação secreta da palavra CHRISTOS.
- Verdade isso? perguntou Eurínome.
- Você sabe, Jesus Cristo, o próprio Deus feito homem dos cristãos. O X
corresponde ao Chi grego. O P corresponde ao Rô grego. O Tau e o Ómicron
são iguais em nossa língua para o T e o O. Assim: CH-R-TO.
- Ah... Entendi. Era uma espécie de código meio secreto de comunicação que
aos poucos foi sendo incorporado na sua língua, é isso?
- É isso mesmo, Labda. Isso foi muito usado durante as violentas perseguições
aos cristãos nos primeiros séculos. Mas me diga porque o nome LABDA é
pejorativo, ou coisa parecida.
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- Se vocês olharem bem a letra LAMBDA notarão que é composta de dois
traços, formando duas perninhas, a maior apoiada sobre a menor. Olhem aqui.
Tomando a folha de papel das mãos de Sísifo, pegou a caneta e desenhou a
letra num tamanho bem expressivo.
- Mas...
- Não tem “mas” nem meio “mas”, meus caros. Eles disfarçaram ironicamente,
como vocês disfarçaram o nome de Cristo. Tiraram uma letra do meio e ficou
LABDA! Em vez de lambda, que é o nome da letra, ficou labda... Claro que a
diferença entre as minhas pernas não é tão marcante, não é verdade?... Mas a
alegoria até que serviu para muitos e para mim, pelo resto dos meus anos de
vida.
Eles ficaram surpresos com a explicação e Noelma segurou de leve seu braço.
- Lamento que tenham feito isso com você, Labda. Lamento mesmo. Você
deve ter sofrido bastante com isso, não é mesmo? ... Acho que eu gostaria de
chamar você de Helena!...Posso?
- Claro que pode e se esquecer na hora, pode me chamar de Labda mesmo,
que eu responderei.
Com todos mais acomodados, ela resolveu encaminhar uma finalização de sua
apresentação, dizendo:
- Eram os dados que eu gostaria de repassar a vocês a meu respeito. Estou
neste projeto faz um tempão – vocês sabem - e tenho trabalhado diretamente
com uma certa variedade de mestres na História. Aos poucos vou notando que
estamos caminhando para tópicos mais específicos e fico muito contente com o
fato de que poderei ser útil com o pouco de diferente que aprendi em minha
vida.
Mestre Agostinho pediu a palavra para perguntar:
- Labda, você que viveu essas realidades tanto de Petra durante alguns anos
após seu casamento, quanto de Corinto, durante todo o resto de sua vida,
naquele século para nós tão distante, chegou a tomar conhecimento de
problemas de pessoas com lesões de várias naturezas? Eu lhe pergunto isso
porque é sabido que de casamentos entre primos e parentes próximos podem
ocorrer nascimentos de bebês com defeitos físicos...
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- É verdade e embora nunca tivesse me passado pela cabeça essa
eventualidade, pode ser que eu tenha sido um dos casos. Meus pais eram
primos.
- Não é possível saber hoje as causas de seu problema, Labda, mas a minha
pergunta relaciona-se a uma visão bem ampla da realidade, já que você viveu
muitos anos no palácio real de Corinto e mantinha contatos fora. Você chegou
a tomar conhecimento de problemas de pessoas com deficiências na realidade
de Corinto?
- O que eu aprendi, Mestre Agostinho, em minha vida, é que todos os
pequenos reinos existentes naquelas épocas, sem exceção, tinham um grande
volume de homens que haviam sido feridos com maior ou menor gravidade nas
pequenas ou grandes batalhas sangrentas que aconteciam pela Grécia afora.
O que me deixava um pouco aliviada com os problemas decorrentes de uma
amputação, por exemplo, é que Esparta, Atenas, Corinto e outros reinos
gregos seguiam o princípio básico estabelecido numa lei de Sólon que dizia:
“Soldados feridos gravemente e os mutilados em combate serão alimentados
pelo Estado”. Parece que isso ajudava a diminuir o problema dessas pessoas e
de suas famílias.
- Verdade. Nós chegamos a ouvir depoimentos a respeito quando estudamos a
existência de pessoas com deficiência na Grécia Antiga. Você estava presente
e colaborou bastante com o desenrolar das discussões lá em Epidaurus.
- Mas havia, Mestre Agostinho, problemas com parcelas da população que
ficavam doentes ou viviam com alguma deficiência e que não tinham cobertura
dos governos estabelecidos. Cheguei a ver muita miséria, muito cego ou
amputado pedindo esmolas nas ruas e praças de Corinto. Quando a fama de
Epidaurus chegou à nossa cidade, muitas famílias começaram a procurar
meios para viajar até o santuário de Asclépios que existia desde poucas
décadas. A própria família Báquida teve que se socorrer de Epidaurus por
causa de meu sobrinho que havia sido picado por uma tarântula. Foi devido a
essa necessidade que eu tive a oportunidade de conhecer as instalações e o
sistema de atendimento dos médicos-sacerdotes ligados a Asclépios, em
Epidaurus. Fora isso, quase nada posso relatar quanto aos problemas vividos
ou provocados pelas pessoas com deficiências em Corinto. Na verdade, tenho
ouvido falar dos inúmeros problemas das pessoas que vivem com uma lesão
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séria, mas eu não tenho uma idéia da extensão desse verdadeiro universo de
seres humanos que vivem isolados em suas casas ou pedindo esmolas para
poder comer. Devido às expectativas sobre o nosso importante projeto futuro,
eu acho que todos nós gostaríamos de ter uma idéia mais precisa a respeito.
Todos concordaram com o posicionamento de Labda e Mestre Agostinho, com
firmeza, colocou:
- Meus prezados, a extensão dos problemas das deficiências é um tema do
interesse de todos, sem dúvida. Ele será inserido num futuro próximo, assim
que contarmos com o especialista que todos aguardamos em nosso meio. Por
hora, vamos concentrar nossos esforços no sentido de estudarmos com
historiadores presentes e com obras específicas que temos em mãos, o que
sucedia com pessoas com deficiência durante a Idade Média, que para fins de
nossos estudos está dividida em duas partes devido à sua extensão. Só para
relembrar, antes da segunda parte da Idade Média teremos o depoimento da
Giovana. Por ora, então, encerramos os nossos trabalhos de hoje com o
apreço que todos sentimos com os fatos ou análises repassados pela Labda
durante sua vida em Corinto. E neste momento só posso recordar o velho dito
latino: Carpe diem.
Enquanto todos começaram a se encaminhar para fora da sala, Mestre
Agostinho recomendou:
- Aproveitem o restante desta tarde para seus assuntos mais pessoais.
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Capítulo Terceiro NOELMA
Levantando-se de sua bancada de coordenação dos trabalhos, Agostinho
caminhou até a cadeira onde estava localizada Noelma e, tomando sua mão,
ajudou-a a levantar-se.
- Seguindo ou não o estilo de apresentação da Labda, Noelma, conte-nos,
com suas próprias palavras, sem qualquer preocupação maior, como você vê
sua vida passada e como ela pode estar relacionada ou não aos parâmetros de
nosso projeto futuro, repassando para este grupo de colegas o que considerar
de fato relevante.
- Obrigada, Mestre Agostinho. Tenham paciência comigo, está bem? Não sou
muito de falar assim... bom... vocês sabem. Com todos me olhando e
esperando... só os druidas podem imaginar o quê...
Sentou-se num tamborete, cruzou as pernas e começou:
- Ninguém aqui está sabendo, porque nunca comentei com ninguém, mas, para
surpresa de todos, eu nasci e cresci numa região muito pobre e de natureza
meio estranha e feia, perto de uma mina de carvão, bem pelo norte da Britânia
dos Romanos, quase na Escócia de hoje. Quando eu nasci – isso no século II
depois de Jesus Cristo - o que hoje é a Inglaterra, era um imenso território
ocupado militarmente desde muitos anos pelos romanos e, como eu disse,
chamava-se Britânia. Meu pai, que era uma espécie de ajudante geral na
fábrica da legião, quis me dar o nome de Brit, com um “t” só... A idéia dele era
dar um nome que lembrasse a presença romana, mas para os pictos do norte,
ele dizia que era um nome meio viking, meio norueguês. Estou certa, Britt?
- E é mesmo! Aqui estou eu para provar isso, brincou Britt levantando-se. Mas
deixo claro que eu não sou viking e o meu nome tem dois tes...
Todos riram e Noelma continuou:
- Que bom que você está aqui, Britt! Mas, só para vocês saberem, meu pai,
então, era de origem picta. Tinha nascido numa tribo da antiga Caledônia que
vivia infernizando as centúrias romanas, com ataques inesperados e do tipo
relâmpago.
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- Do tipo guerrilha? quis saber Sísifo.
- Até menos do que isso, acho eu. Eram às vezes emboscadas... Mas
enquanto ele sonhava em me batizar com o nome de Brit, minha mãe insistiu
em me dar um nome bem romano e ele mudou de idéia. E fiquei com o nome
de Noelma. Fui criada como órfã de mãe, que nem conheci, porque ela morreu
devido a um parto mal sucedido quando eu tinha três anos de idade. Mas
mesmo assim eu sempre fui uma criança livre e, apesar das dificuldades,
sempre fui muito risonha...
- Como hoje, por sinal, riu Eurínome, com a concordância de todos.
Todos riram e disseram algumas palavras de apoio para encorajar Noelma a
continuar seu relato.
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Desde pequena Noelma perambulava pelos ambientes da centúria romana que
construía sua parte da assim chamada muralha de Adriano, nos arredores de
onde vivia. Procurava se comunicar com sua linguagem misturada entre o
picto, o latim e uma língua não identificada da Caledônia, usada por tribos
selvagens que não tinham diálogo com seus vizinhos.
Apesar de franzina quando pequenina, sempre se mostrou muito viva e falante.
Procurava, para deleite dos legionários, saber o que faziam, como faziam e
porque faziam cada uma das atividades de receber pedras dos habitantes da
região, à guisa de tributos devidos em troca da proteção garantida pela
presença constante da Legião.
As pedras chegavam em carroças, mas tinham que ser separadas por tipo e
por tamanho. Além disso, todas precisavam ser desbastadas com martelos
próprios e talhadeiras antes de sua remoção para os pontos de finalização do
trecho trabalhado da muralha, que os habitantes pictos consideravam um
despropósito e algo inimaginável.
No entanto, a grande missão da VI Legião – Victrix era construir essa muralha
que separaria fisicamente a Britânia de todo o norte da Caledônia e seus
selvagens grupos guerreiros. Cabia a cada centúria construir um quilómetro da
muralha, seguindo os padrões estabelecidos nos planos feitos por engenheiros
de Roma e ligados ao Imperador Adriano.
Noelma sobreviveu praticamente graças a ajudas de diversas famílias ou
mesmo de legionários romanos, que davam a ela alguma roupa ou agasalhos
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velhos e coisas para comer. Era às vezes uma broa pequena, um biscoito, um
pedaço de pão duro, alguma fruta, um osso com alguma carne de caça, uma
folha de couve... o que desse para comer, sem dar dor de barriga ou sem
provocar a maldição de Thor.
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- Maldição de Thor?!... Mas Thor não era um importante deus dos bretões
antigos ou mesmo dos pictos? quis saber Eurínome.
- Era e é, Eurínome. Na comunidade onde eu vivia, que havia crescido ao redor
da mina de carvão, atuava um estranho druida muito barbudo, que usava uma
espécie de camisolão encardido, amarrado na cintura por uma corda, que
andava sempre mancando muito, apoiado em um cajado enorme. Esse druida
tinha muita influência no aldeamento ao redor e orientava aos berros o povo
quanto aos deuses que faziam parte da mitologia dos pictos ou mesmo dos
caledônios mais distantes. E para qualquer erro sério das pessoas, dizia que
um determinado deus ou deusa ficava irritado e mandava um castigo. E uma
doença, uma queda, ou mesmo uma dor de barriga muito forte, por exemplo,
era um castigo provocado por Thor, o mais terrível dos deuses. Apesar de não
dar o mínimo valor para a higiene das pessoas de um modo geral, esse druida
não aceitava nenhum desvio de conduta dos habitantes. Não fazia mistério
algum sobre o que pensava. Afirmava sempre que detestava qualquer
relacionamento com os romanos. Palavrão, nem pensar... Brigas entre homens
ou entre mulheres, jamais. Engraçado é que foi graças a algumas orientações
suas em determinadas ocasiões que eu consegui sobreviver, mesmo sem ter
uma família para cuidar de mim no começo de minha vida.
- E o que era de verdade essa Maldição de Thor? quis saber Sísifo.
- Era o apelido que o povo do lugar dava para um desarranjo intestinal... Coisa
séria. O nome tinha sido inventado pelos pictos para assustar os romanos.
Mas, na verdade, a tal de maldição de Thor era uma disenteria muito forte que
dava febres altas e que podia até matar.
- Isso até parece o nome que, nos dias atuais e em alguns ambientes, dão à
disenteria no Peru. Vocês sabiam disso? perguntou Sísifo.
- Nunca ouvi falar, informou Noelma, muito curiosa. Como é que eles chamam
esse problema intestinal?
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..- Chamam de “Maldición de Atahualpa”... Não sei se vocês sabem, mas
Atahualpa foi um rei Inca que foi enganado e executado pelos espanhóis...
Então, hoje em dia os índios peruanos afirmam que uma dor de barriga muito
forte nada mais é do que a maldição do rei inca Atahualpa.
- Interessante... Mas, continuando o que eu estava contando, um dia apareceu
em nossa muito pobre comunidade um barbeiro itinerante, que percorria toda a
extensão dos mais de 100 quilómetros da muralha em construção. Ele e o
garoto que era seu auxiliar movimentavam-se usando uma carroça mambembe
puxada por um cavalo velho. A carroça era coberta por um pano claro todo
pintado e apoiado por alguns galhos finos de árvore, com desenhos mal feitos
de xaropes, elixires, poções, tiras de pano para bandagem e pomadas. Além
de fazer a barba e deixar o cabelo dos oficiais e legionários em ordem, ele
anunciava de uma forma meio cantada, inclusive que fazia sangria e curativos
e que possuía, além de tudo, poderes para resolver os problemas da
impotência sexual... Os legionários adoravam isso. E sabem por que? Porque
eles sabiam bem que um dia depois da presença dele no local, chegariam
pequenos bandos muito alegres e festivos de mulheres e rapazes bem
enfeitados, alegres e perfumados... Parecia que tudo era meio combinado. E
faziam a festa com música de cítaras, pequenos chocalhos e tamboretes,
equilibristas, através da qual procuravam envolver os legionários para danças e
se divertir, chegando mesmo a provocar escapadas para áreas mais escuras, a
fim de dar vazão à sua excitação sexual.
- O espetáculo que eles apresentavam era sempre igual ou havia novidades
que atraiam mais espectadores? quis saber Eurínome.
- De vez em quando, Eurínome, o grupo incluía atrações especiais, como
mulher barbuda, anões muito estranhos... Coisas assim. Eles montavam uma
barraca bem fechada e cobravam dos legionários uma ou duas moedas para
ver de perto e mesmo tocar essas atrações diferentes. Uma das novidades
mais marcantes que eu cheguei a ver foi um jovem muito bonito, sempre
vestido como um guerreiro picto que aos poucos tirava sua roupa toda bem
devagar para provocar a manifestação ruidosa dos legionários que se
agrupavam para ver e participar. E aos poucos a gente notava que era uma
mulher muito nova com seios bem à mostra. E bem devagarzinho todos aos
poucos também percebiam que tinha também um pênis bem desenvolvido, o
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que levava a platéia à loucura. O danado fazia movimentos maliciosos com o
corpo todo, que já estava todo besuntado e brilhante.
- Imagine só! admirou-se Eurínome. Tinham encontrado um hermafrodita e
estavam usando o tipo como atração...
- Pois é... Assim é que a coisa funcionava, pelo menos durante muitas
ocasiões, pelo que eu pude perceber.
- Mas de onde era esse tipo, esse barbeiro-cirurgião? perguntou Britt.
- Esse barbeiro-cirurgião era originário das grandes regiões dos Escotos, bem
ao norte. Era voz corrente que ele aprendera tudo com um druida da Caledônia
e povoados próximos, que também era do norte. Ele mancava muito de uma
perna. Conforme ele contou ao meu pai, sua perna tinha sido amputada abaixo
do joelho como um castigo, por ter sido pego roubando comida de uma das
muitas famílias dos legionários romanos que moravam nos arredores... Usava
uma espécie de perna de pau, parecida com essas que a gente vê em
ilustrações de piratas... que era escondida por uma espécie de saia comprida
de um tecido todo quadriculado de preto, vermelho e branco.
- Que tipo, hein? observou Eurínome.
- Meu pai praticamente me vendeu para ele como se eu fosse um menino,
quando soube que seu jovem auxiliar tinha morrido dois dias antes num assalto
de estrada.
- Vendeu?!... Vendeu mesmo?! perguntou Britt meio assustada.
- Vendeu de verdade. Eu cheguei a ver a hora em que ele tirou várias moedas
de um saquinho e colocou na mão de meu pai, que nem olhou para mim. E
para mim foi uma espécie de alívio.
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Daquele dia em diante, com seus 11 anos de idade, Noelma ficou em contínuo
movimento, trabalhando muito para esse barbeiro, mas alimentando-se com
mais regularidade e melhor. Acabou sendo a encarregada não só da cozinha,
como também da limpeza contínua da carroça. Aos poucos também eram de
sua responsabilidade os instrumentos para sangrias. Além do mais, era sua
obrigação cuidar das duas navalhas que deviam estar sempre muito limpas e
afiadas. Mais do que isso, ela ficava cuidando da caixinha que guardava cinco
sanguessugas... Quando não chovia ou não fazia muito frio, dormia debaixo da
carroça, sempre como se fosse um moleque, fugindo da proximidade do
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barbeiro que cheirava muito mal. Procurava se defender, garantindo agasalhos
suficientes, embora muito velhos e de tecidos ásperos.
Foi durante os primeiros anos que trabalhou com ele que chegou a sua
primeira menstruação. Ela se assustou muito porque nem sabia do que se
tratava. Pensou que ia morrer, se aquele sangue estranho continuasse saindo
devagarzinho do seu corpo, tentando descer pelas suas pernas. Aos poucos
ela foi disfarçando sempre as gradativas alterações de seu corpo que foram
aparecendo, com roupas mais grossas, escuras e bem folgadas, além do
cabelo sempre muito curto, que ela mesma cortava com uma das navalhas.
Dessa forma, conseguia nunca revelar o seu sexo.
De sua parte, o barbeiro nunca perguntava nada... Na verdade, ele nem olhava
para ela, o que era um alívio em seu corre-corre diário. Só recolhia o dinheiro.
E nunca lhe deu qualquer explicação para onde ia indo ou se ia ficar parado
num determinado lugar..
Para Noelma, naqueles anos todos, a paisagem mudava pouco na contínua
jornada, com a muralha pronta ou ainda em construção do lado direito ou
esquerdo, conforme iam para o leste ou para o outro lado.
Mas em algumas ocasiões, a carroça permanecia dias num determinado ponto
e ela aproveitava os momentos de folga para se aproximar dos legionários e
dos seus afazeres. Eles, tratando-a como um moleque crescido e muito falante,
deixavam que ela trabalhasse um pouco com as pedras ou com a mistura
destinada à sua fixação na muralha. Chegaram inclusive a ensiná-la a cavalgar
sem qualquer arreio e sem rédeas, o que ela conseguia fazer sem muita
dificuldade, não tendo levado nenhuma queda preocupante.
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- Deixa eu explicar para vocês que a muralha de Adriano, da qual estou falando
muito, foi erguida bem ao norte da Inglaterra. Estendia-se por 118 quilómetros,
indo desde a desembocadura do rio Tyne, até a Câmbria, a oeste. Por
determinação do Imperador, cabia a cada centúria a obtenção contínua de
pedras com a população local. Ela foi completamente construída entre os anos
122 e 126 depois de Cristo. Vários trechos dessa muralha atingiam 4,5 metros
de altura e 2,50 metros de largura, tendo sido utilizada como verdadeiras
estradas para a VI Legião, a VICTRIX, livres de qualquer impedimento. A cada
distância determinada pelos centuriões e engenheiros que supervisionavam a
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obra, era construída uma torre de observação e instalações para abrigar
continuamente os legionários destacados como sentinelas. Na extensão toda
da muralha, distâncias maiores eram providas com verdadeiros quartéis para
alojar duas centúrias.
- Quer dizer que sua vida era uma rotina só, embora existissem esses contatos
com os legionários, comentou Sísifo.
- Mais ou menos, Sísifo. Só que, de repente as coisas mudaram muito naquela
vida repetitiva e sem muitos estímulos. Num dia de muita chuva, enquanto a
carroça rodava muito devagar e eu tentava dormir um pouco ali dentro, no meio
das coisas, com o som das pesadas gotas de chuva na cobertura da carroça
que formavam uma espécie de garoa interna, percebi muito assustada um
certo tumulto, uma gritaria feroz e o barulho dos cascos rápidos de vários
cavalos numa ponte de madeira que era chamada pelos romanos de Pons
Aelii, em parte construída sobre barcos, que eu sabia de antemão que
deveríamos atravessar. Na confusão criada, a carroça onde eu procurava
dormir foi parar dentro do rio, que era fundo. Era na desembocadura do rio
Tyne. Com meus gritos assustados de socorro na língua dos pictos e dos
escotos, alguns carregadores de pedras mergulharam para tentar salvar-me.
Na confusão toda, depois de beber muita água, senti que alguém me pegava
pela perna e acabei desmaiando.
- Que susto, hein? comentou Sísifo.
- Pois é... Quando voltei a mim já era noite, continuava a chover e eu estava
estendida numa espécie de maca. Eu estava coberta com uma pele macia de
carneiro que na hora me pareceu bem quentinha. Meio confusa, procurei
acostumar os olhos com a escuridão do local e vi perto de mim o rosto sereno
de um romano envolto numa capa vermelha, segurando uma espécie de
lamparina, tendo em sua mão esquerda minha velha camisa encharcada.
- Com sua roupa na mão?!... E o que é que você fez, Noelma? A situação era
meio embaraçosa, não era? perguntou Eurínome sorrindo.
- Eu me alertei no mesmo instante para o fato de que, debaixo daquela pele de
carneiro, eu estava completamente nua, e que ele sabia disso. Na hora eu me
encolhi um pouco, fechei os olhos e fiz a única coisa que podia: cruzei bem as
pernas e puxei a pele de carneiro para meu pescoço. Com isso descobri partes
de minhas pernas até acima dos joelhos, e sorri meio amarelo, como dizem os
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brasileiros, mas sorri. Ele retribuiu o sorriso meio surpreso e me acalmou,
passando a mão direita pelos meus cabelos curtos e ainda molhados, dizendo
para eu tentar dormir bem agasalhada. Colocou uma outra pele de carneiro em
minhas pernas e disse para não me preocupar que ele voltaria para saber
como é que eu estava. Antes de sair da barraca ele perguntou qual era o meu
nome. Quando eu disse que era Noelma, ele sorriu outra vez e disse:
- Noelma, você está numa espécie de hospital que é conhecido como
valetudinária e que faz parte da unidade central da Legião VI – Victrix. É aqui
que eu trabalho, porque sou centurião médico e meu nome é Lucius Flavius. Já
percebi que você está bem, apesar de um pouco machucada em seu peito, em
sua barriga, nas pernas e nos braços. Noto também que você não está mais
tão assustada como estava. Ainda bem... Mas o cavalo e o dono da carroça
onde você estava morreram na correnteza do rio. Lamento muito, mas aquele
desgraçado do carroceiro parece que era picto. Ele foi o culpado por querer
atravessar a ponte sobre barcos que temos aqui, mas sem autorização e
acabou provocando o acidente. Não se mova daqui, porque vou buscar alguma
ajuda para você se alimentar e poder andar por aí. É claro... sem roupa não dá,
não é mesmo? fez ele mostrando minha camisa velha em sua mão.
- E o que aconteceu depois... depois que você descansou? insistiu Eurínome.
- Ele voltou logo com uma mulher chamada Druzilla e me informou que ela era
a responsável pelas atividades das mulheres que eram ajudantes dos médicos
daquele lugar. Afirmou também que ela me alimentaria, cuidaria de meus
ferimentos, arranjaria umas roupas e me abrigaria até eu ficar completamente
boa. Tirou a pele de carneiro de minhas pernas e mostrou para ela os
arranhões e ferimentos no meu pé direito e nas coxas, pedindo que cuidasse
deles. Retirou a pele de carneiro que me cobria, descobrindo meu corpo todo e
mostrou uns vermelhões em vários pontos. Mostrou meus seios que estavam
com diversos pontos de irritação devido ao acidente e também à fricção do
pano grosso de minha camisa e pediu para ela cuidar, passando um ungüento.
Nessa hora, ele olhou bem sério para mim e comentou:
- Você, Noelma, que é uma puella... como a gente diz em latim...
- Ou uma puellula, sorriu Druzilla...Uma garotinha...uma mocinha...
Eu só fiquei olhando os dois de olhos bem abertos, cobrindo meus seios com
as mãos e sem saber o que dizer ou o que fazer, pois entendia pouco o latim.
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Mas logo veio a explicação que eu precisava, num latim bem simples,
misturado com palavras pictas: :
- Preste bem atenção e siga as orientações da Druzilla. É preciso que você
saiba que uma menina-moça, como você, que já tem corpo de uma mulher,
não pode e não deve usar esses tecidos ásperos diretamente sobre sua pele e
especialmente sobre os seios. Aprenda isso e procure evitar que isso aconteça,
está bem? Se tiver que usar uma camisa feita com pano áspero, por exemplo,
por não ter outra roupa, amarre uma faixa macia sobre seus seios antes. A
Druzilla orientará melhor você.
Druzilla sorriu complacente, assentindo com a cabeça, enquanto ele se
afastava.
- E foi o que ela fez. Ela arranjou algumas roupas de tecido mais fino para mim
e fez com que eu passasse a usar uma cama de verdade, nas instalações onde
outras mulheres se alojavam para poder trabalhar por ali. Com todo o cuidado
passou alguns ungüentos sobre meus ferimentos nos braços, nas pernas e no
peito e orientou-me com muito carinho sobre a forma de cuidar dos meus seios
um pouco feridos, que, segundo ela, eram bonitos demais para ficarem com
sua pele irritada ou mesmo machucada. Pegou uma daquelas faixas de pano
que os legionários sempre levavam para o campo de batalha e explicou como
fazer para proteger os meus seios. Estendeu a faixa sobre a cama, fez com
que eu me deitasse em cima, pegasse as duas pontas e amarrasse bem na
frente, cobrindo o peito completamente. Era de fato muito simples para mim,
que nunca tinha me preocupado com isso.
- Não ande sem isso, está bem? disse Druzilla. Além da proteção contra
irritações, você também estará mais a salvo dos olhares maliciosos desses
legionários que não perdem nenhuma oportunidade para dizer coisas pesadas
e que ofendem as mulheres. A maioria deles é composta de gente bruta e sem
educação. Saiba disso e tome cuidado.
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Alguns dias depois, sentindo-se completamente bem e tendo explicado de
várias maneiras o trabalho que desenvolvia na carroça do barbeiro, Noelma foi
envolvida nas atividades, chegando a ir com Druzilla trabalhar nos alojamentos
onde ficavam os doentes que precisavam ficar apenas sob os cuidados dos
auxiliares de médicos – homens ou mulheres - para alguns curativos ou
33
providências mais simples de higiene, cuidado de frieiras, cortes, resfriados e
coisas menos complicadas que não precisavam de orientação dos médicos.
Os doentes eram basicamente legionários jovens e convalescentes e muitas
vezes em fase final de recuperação para voltar às armas em sua centúria.
Havia diversos com sérios ferimentos nas pernas e nos braços que precisavam
de cuidados de limpeza para suas feridas poderem cicatrizar com sucesso e
diversos com braço ou perna decepados devido a combates com os inimigos
dos arredores. Seus ferimentos variados precisavam de contínuos cuidados.
Depois de algum tempo, tomando conhecimento por suas observações
pessoais ou pelas demonstrações de Noelma daquilo que aprendera com o
barbeiro em sua carroça e que dominava bem, Druzilla acabou encarregando-a
de ser a única ajudante a fazer os indispensáveis curativos nesses legionários.
Esses tratamentos eram muito demorados e esses homens não podiam ser
removidos ou empreender qualquer viagem.
Como Noelma sempre foi muito expansiva e brincalhona, aproveitava sempre
para aprender cada vez mais o latim, a fim de conversar com eles e saber de
que forma viviam, como eram suas famílias e o que pensavam fazer quando
voltassem para suas cidades.
Dependendo de algumas circunstâncias, por vezes os legionários feridos se
agrupavam durante os curativos e trocavam com ela idéias quanto ao que
acontecia ao redor.
Foi devido a essas pequenas reuniões que ela percebeu que a maioria gostaria
de se envolver com alguma atividade para passar o tempo e várias sugestões
foram aparecendo.
Intrigada com sua facilidade em aperfeiçoar procedimentos sobre os quais já
tinha algum conhecimento prévio, Druzilla fez questão de conhecer melhor e
em muitos outros detalhes como é que Noelma tinha absorvido tudo. Devido ao
seu latim ainda um pouco limitado, ela foi explicando mais na prática, fazendo
cada procedimento com mais clareza.
Druzilla decidiu então levá-la a uma parte da valetudinária onde atendiam
pessoas doentes mais graves, que era conhecida internamente como
nosocomium.
Ela quis saber o motivo para esse nome estranho e com isso ficou conhecendo
mais algumas palavras latinas. Nesse nosocomium a presença de médicos sob
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a supervisão de Lucius Flavius era contínua. Embora não adotado oficialmente,
era um nome que ia aos poucos sendo usado cada vez mais por vários
médicos destacados para algumas legiões romanas.
Em seu novo ambiente de trabalho, estavam sendo tratados diversos
legionários em estado mais grave, que tinham até camas mais confortáveis
para dormir, algumas das quais inclusive com protetores contra insetos quando
o estado do doente requeria mais cuidados e um sono mais reparador.
Noelma ficou trabalhando nessas atividades muito mais delicadas por diversos
anos, não só fazendo em parte o que fizera antes na carroça do barbeiro, mas
aprendendo muito mais e envolvendo-se em situações que requeriam
dedicação total.
Depois de tanto tempo de ter iniciado suas atividades, ela foi destacada, junto
com outras mulheres, para trabalhar com o médico Marcus Druzus num posto
avançado bem ao norte, atendendo diretamente vítimas de uma espécie de
peste misteriosa que estava vitimando legionários, seus familiares e a
população local. As auxiliares logo mostraram-se com problemas pessoais e
familiares e alegavam motivos diversos para voltar à valetudinária onde haviam
trabalhado.
Como Noelma não tinha família e devia estar com seus 25 anos de idade,
muito vigorosa e cheia de iniciativa, foi destacada pelo centurião-médico Lucius
Flavius, para assumir a responsabilidade de coordenar os trabalhos, ao lado do
“medicus legionis” Marcus Druzus.
Nenhum dos médicos sabia o que fazer com aquela doença que provocava
uma febre violenta. Era, de fato, uma peste misteriosa, que ninguém conhecia.
Trabalhando muito para aliviar os problemas das pessoas atingidas e
principalmente procurando baixar a febre das vítimas do mal, com o uso de
panos molhados, banho frio, fatias de grossos tubérculos amarradas na testa e
outros recursos, a peste acabou atingindo Noelma de uma forma menos
violenta.
Com isso, e com a opinião favorável de médicos diversos, foi mandada de volta
para a valetudinária, num comboio do qual também fazia parte o médico
Marcus Druzus que devia voltar à valetudinária depois de passarem alguns
dias de repouso num posto avançado da muralha.
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Decorrido algum tempo para sua recuperação, Noelma foi outra vez envolvida
nas rotinas da valetudinária que ficava perto da ponte Élio, em Tyne. Desta vez
ao lado de Marcus Druzus, ficou atendendo mais feridos em batalhas.
Sentia-se outra vez em casa, dava-se muito bem com Marcus Druzus e
acabaram ficando muito felizes com o reconhecimento do centurião médico
Lucius Flavius, que logo conseguiu uma promoção para Marcus, como médico
romano que era. Passou de seu título mais simples e básico de “medicus
legionis” para “archiatrus legionis”.
O título de archiatrus indicava um médico mais experiente, era reconhecido em
todas as legiões romanas e também na maioria das cidades, significando bem
mais do que meramente o título de medicus.
Noelma, por sua vez, não fazia parte do corpo de legionários e nem era
romana. Mas, por intercessão de Druzilla, sempre muito interessada em seu
modo muito especial de atuar, recebeu o título de “optio valetudinarii”.
Esse título correspondia a assistente, auxiliar. Era concedido apenas a civis
que tinham atribuições bem definidas e que não eram engajados nas atividades
guerreiras das legiões.
Lucius Flavius conversou com Marcus Druzus e com ela no dia em que
receberam essas notícias e afirmou:
- Quero informar vocês dois que esses títulos existem em todas as legiões
romanas atuais, por aprovação direta do Imperador Adriano, confirmando um
posicionamento anterior do Imperador Trajano.
Noelma ficou eufórica quando soube que a partir daquele dia receberia um
denário por pessoa que atendia. Conforme recebia suas moedas, colocava-as
durante o dia na faixa que protegia seu busto e no final do dia levava-as com o
máximo de cautela para a tenda onde habitava com as outras mulheres que
atuavam em áreas variadas. Quando sozinha, enterrava-as num pequeno
buraco que fizera sob sua cama. Era um lugar bem escondido por várias
roupas dobradas, peles de carneiro e objetos variados de seu uso exclusivo.
Depois de negociar com o centurião encarregado da Oficina e com a
aprovação de Lucius Flavius, uma boa parte do seu tempo era utilizado para
coordenar as atividades dos legionários feridos na recuperação de algum
material, como as tiras das sandálias, partes dos escudos e muito mais.
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Marcus Druzus, de sua parte, insistia com ela para treinar bastante suas
qualidades de amazona, que adquirira ainda nos anos que trabalhara com o
barbeiro itinerante.
Como ela conseguiu aos poucos desenvolver habilidades excepcionais
enquanto cavalgava nas horas em que tudo estava em paz nas áreas de
atendimento dos feridos, era sempre aplaudida pelos legionários quando
passava em velocidade com seu cavalo branco de orelha preta, que recebera
de Lucius Flavius na própria hora de seu nascimento.
Lembrava-se muito bem do dia em que foi procurada por Druzilla, informando
que o centurião Lucius Flavius queria que ela fosse até a estrebaria de
repouso, onde uma égua branca estava para parir seu potrinho.
Correndo até lá, ela recebeu a incumbência de colocar-se próximo à cauda da
égua, que já estava deitada, espalhando no local um tecido limpo sobre o feno
todo picado em minúsculas partes.
- Noelma, limpe bem o local e retire todos os resíduos de feno para não sujar o
potrinho que vai nascer. E coloque-se bem na melhor posição que achar para a
hora do nascimento do pequeno. Não deixe que ele escorregue para o lado do
feno.q
Ela, pega de surpresa, porque era a primeira vez que iria presenciar o
nascimento de um animal tão pertinho, assentiu com a cabeça e ajoelhou-se
próximo à cauda, espalhando o pano com cuidado, conforme orientada.
Cansada pela espera que se seguiu, mudou de posição e sentou-se sobre seus
calcanhares, observando curiosa os sinais de contração da égua para expulsar
seu filhote, enquanto Lucius Flavius, observado por outro centurião, tomava
outras providências e comentava:
- Não se preocupe que a natureza cuida de tudo, Noelma. Fique tranqüila. Só
tome cuidado para segurar o potrinho se ele se movimentar muito. Claro que a
mãe dele cuidará de tudo depois. Quanto mais limpo você deixar o potrinho,
mais fácil será para a mãe dele.
Para seu encantamento o filhote foi saindo do ventre da égua. Num movimento
rápido e suave caiu deitado sobre o pano que Noelma segurava nas duas
pontas, com as duas pernas esticadas na frente. Ela sorriu muito surpresa com
seus olhos grandes muito abertos e ficou espantada com um movimento
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repentino do pequeno logo em seguida, que o fez descansar sobre a saia de
seu avental, olhando-a com serenidade.
Ainda surpresa com o potrinho em seu colo, sentindo seu calor nas suas
cochas ela murmurou para o pequeno animal:
- Oi, querido! Sua mãe está aí atrás de você!... Deixa eu enxugar um pouco sua
cabeça, sua testa, esse focinho lindo e suas orelhas... Uma é preta e a outra é
branca!... Você é muito lindo... muito lindo, sabia?
A égua virou a cabeça na direção do filhote e voltou a repousá-la sobre o feno,
depois de vê-lo protegido no colo de Noelma.
- Você foi ótima, Noelma. Vejo que o potrinho gostou de você! Você gostou
dele?
- Estou... estou surpresa e feliz. Que coisinha mais linda veio parar no meu
colo! Nem acredito! comentou enquanto terminava de limpar o potrinho.
Terminadas as providências no local, Lucius Flavius lavou as mãos numa bacia
trazida por um jovem picto e, segurando de leve o braço de Noelma, disse:
- Não sei bem se você sabia, mas como essa égua é minha, o potro também é
meu! E como seu dono quero entregá-lo a você para que cuide dele. Sua
obrigação será colaborar um pouco com a mãe para que nada de mal
aconteça. E na hora certa, treinar o pequeno nas coisas que só um cavalo
adulto deve saber.
..............................................................................................................................
Sua incumbência seria, portanto, cuidar, lavar, escovar e exercitar o pequeno
animal durante os meses de seu crescimento.
E, de fato, pelos meses seguintes ela zelou com esmero por ele, que ficava
misturado com os demais nos variados ambientes da Centúria.
Deu-lhe o nome de Querido, enquanto os cavalariços chamavam-no de
Albinus, devido à sua cor branca. Ela achava encantador que ele fosse tão
branco e tivesse a orelha esquerda completamente preta.
Passados alguns meses, quando todos os dias à tarde montava seu jovem
animal, colocando apenas um pelego em seu dorso, sua segurança, elegância
e postura de notável destaque davam um tom diferente para as áreas um
pouco mais distantes da valetudinária, onde os legionários lotados na área
eqüestre cuidavam dos cavalos.
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Observando-a sob aspectos mais utilitários dentro da VI Legião, um dia ela foi
sondada por Marcus Druzus quanto ao seu interesse em atuar de uma forma
experimental para salvar soldados nos campos de batalha. Com isso ela
ganharia mais denários para sua economia.
Ao comentar o assunto com alguns dos feridos, um legionário de origem
desconhecida, conhecido como Corvo, começou a repassar a ela uma nova
idéia que nenhum outro legionário queria ouvir por não acreditar que poderia
ser aprovada.
Por ter servido durante anos em outra legião, mais próxima da Grécia, ele
havia aprendido que, com o uso de arreios adaptados com um estribo extra e
uma alça de couro mais saliente, poderia ser mais fácil resgatar um ferido em
combate.
Depois de levar o assunto a Marcus Druzus, ele foi discutido com o Centurião
Lucius Flavius que decidiu experimentar a idéia, passando-a para o centurião
da fábrica a fim de tomar providências.
O treinamento para colocar em prática essa novidade começou a ser feito
durante os meses do verão, nos ambientes protegidos do grande
acampamento. O pretendido ferido sempre era um legionário qualquer que se
apresentava como voluntário e que fingia de quase morto no meio do campo.
Ela, montando Querido, já com arreio adaptado preparado pela fábrica,
aproximava-se em velocidade, dobrava o corpo para a direita e abaixava-se
ainda a galope para pegar o braço do legionário. Ele agarrava a alça que
pendia do arreio, colocando o pé no estribo extra, assim que o cavalo parasse
por um instante. Logo em seguida ela saía em velocidade no sentido contrário,
para uma suposta retaguarda, onde o ferido deveria ser entregue.
Ela fazia parte de um pequeno grupo de homens de origem Caledônia que
passava pelo mesmo treinamento, na esperança de merecer o cargo
reconhecido como “deputatus”, como era formalmente designada a nova
função em todas as legiões que adotavam o sistema de salvamento.
Quando estava no auge do treinamento, adquirindo habilidades cada vez mais
apuradas, sempre ovacionada pelos legionários, ela foi chamada pelo
Centurião-médico Lucius Flavius que havia presenciado várias de suas idas e
vindas com sucesso e que, muito feliz, levou-a ao Centurião Tarquínius, que
comandava toda a centúria localizada em Tyne.
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E lá ela ficou surpresa com a proposta de que, quando houvesse batalhas ou
outros tipos de lutas com tribos inimigas, ela e seu pequeno grupo de
cavaleiros pictos deveriam cavalgar a uns 50 metros de distância da linha de
combate, com a missão de salvar legionários feridos e levá-los de volta até as
carroças onde seriam acomodados para um cuidado maior e depois, para
serem transportados para a valetudinária.
Nessa nova função, que só existiria nos casos de combates, ela teria o título
latino de “deputata” e ganharia um denário extra para cada soldado salvo.
Com a adoção do sistema de resgate de feridos em batalha, a vida de Noelma
foi sendo enriquecida com experiências fora do comum no atendimento de
legionários romanos feridos ou mesmo que não poderiam mais ser engajados
em atividades guerreiras.
De outra parte, na valetudinária, as atividades de reparos de uniformes e armas
dos legionários pelo grupo daqueles em convalescença, continuava cada vez
melhor definidas, graças ao seu contínuo interesse. Depois de algum tempo
conseguiu que o grupo mais prejudicado em sua locomoção fosse diariamente
transportado de carroça até a oficina, onde passavam o dia todo, com suas
refeições no mesmo ambiente dos demais componentes da unidade da fábrica.
De sua parte, gradativamente os encarregados de setores da fábrica, para seu
grande alívio, foram separando mais atividades que esses legionários feridos
deveriam desenvolver.
Entrementes, passados vários meses de contínuo treinamento junto com outros
pictos e caledônios que eram bons cavaleiros, numa determinada manhã o
pequeno grupo foi convocado pelo Centurião Tarquinius para comunicar que
teriam que atuar numa situação real.
Numa luta feroz que estava acontecendo a alguns quilômetros de Tyne contra
forças caledônias, ela e mais três “deputati” se aproximaram e ficaram
esperando a oportunidade de avançar para o teatro da batalha, enquanto a luta
infernal e desorganizada deixava os cavalos muito assustados com os gritos
ferozes dos combatentes. Nos observadores de retaguarda ficava uma
impressão de salve-se quem puder.
Flechas voavam para todos os lados e os quatro nem sabiam mais onde
deveriam colocar seus cavalos.
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No meio da confusão e da gritaria toda causada por um movimento um tanto
inesperado de marcha a ré, uma flecha zuniu no ouvido direito de Noelma, que
ficou muito assustada e outra, quase no mesmo instante, atravessando o
peitoral do arreio, atingiu em cheio o seu cavalo, provocando sua queda
imediata sobre as patas dianteiras.
Ela saltou imediatamente para o lodaçal que havia ao redor, enquanto Querido
debatia-se no chão, sangrando muito. Muito assustada e ouvindo seus
companheiros gritando continuamente para ela voltar correndo para a
retaguarda, ela apenas gritou que sim, mas teve que se movimentar para retirar
do arreio a sacola que levava sempre consigo com pomadas e ataduras.
Ao fazer esse movimento, uma lança atingiu-a fortemente nas costas.
Perdendo a firmeza das pernas na mesma hora, ela caiu sobre o cavalo
moribundo, que estrebuchava e rolou logo em seguida para o lodaçal
ensangüentado ao seu redor, ficando com a cabeça próxima ao focinho do seu
cavalo.
- Fomos atingidos!... gemeu ela olhando com pena os olhos assustados de seu
animal.
E ali Noelma, em poucos instantes de lucidez, sentiu em sua boca sangue que
procurou cuspir, mas percebeu que ia também perdendo a firmeza das mãos.
Logo em seguida deixou de sentir seu próprio corpo.
Ela apenas sentira um golpe nas costas, mas, na verdade, uma lança pesada,
atirada por algum guerreiro caledônio, havia penetrado no alto de suas costas,
fraturando a sua espinha. Tendo atravessado o seu tórax, nas proximidades de
seu coração, a ponta metálica da lança havia saído entre seus seios, sem
nenhuma dor.
E ali, na confusão da luta ao seu redor, com a mão esquerda segurando o
focinho do seu cavalo moribundo e a direita agarrando fortemente sua crina,
ela conseguiu olhar assustada a ponta ensangüentada da lança, mas em
instantes foi envolvida por uma escuridão que tomava conta de tudo e por um
silêncio muito forte ao seu redor. Encostou a cabeça sobre o pescoço de
Querido e expirou.
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- E aqui termina a minha história, meus prezados.
41
Labda levantou-se rapidamente e foi até ela. Comovida, segurando suas duas
mãos, olhou-a com extrema admiração e disse:
- Muito comovente a sua história, Noelma! A gente nem imaginava que você,
tão sorridente, pudesse ter passado por tudo isso.
- Mas valeu a pena, meus amigos.. Valeu a pena. Acho que foi devido a essa
experiência que fui trazida para este projeto que eu acho muito importante.
Olhando o pequeno grupo que parecia meio atônito com o desfecho de sua
vida, murmurou comovida:
- Vejam a vantagem de eu ter sido atingida naquele lodo todo. Acabei
conhecendo vocês... o que para mim é um presente dos deuses.
Todos a cercaram para abraçá-la efusivamente.
- Não duvide nem um pouco da importância de tudo o que vivenciou Noelma.
Acho que você teve uma preparação fora do comum para esta nossa missão
especial, comentou Eurínome.
- Ah... agora Labda e eu entendemos aquele comovido contato lá no redondel
de Istambul, com aquele cavalo lindo que você abraçou tão comovida. Eu até
chorei agora, quando você contou sobre ele... comentou Britt.
Depois de algum tempo, quebrando seu silêncio, Sísifo procurou aproveitar o
término da narração para que Noelma relaxasse um pouco e perguntou:
- Nesses seus anos de atuação nessa espécie de hospital de campanha, que
servia aquela legião...
- Era a Sexta Legião, conhecida como Victrix, que ocupou o lugar de uma outra
que tinha desaparecido misteriosamente nas matas e pantanais do norte da
Britânia, segundo relatos que passaram para a História.
- Isso mesmo. Aliás, foi um acontecimento verdadeiro que nunca foi descoberto
ou explicado pela História militar romana. Mas eu ia perguntar se você chegou
a notar algum tipo de providência ou sinal de solução para dificuldades
causadas por lesões mais incapacitantes, como a cegueira ou uma
amputação?
- Sísifo, como a Britânia era uma conquista romana extremamente distante de
Roma, os legionários feridos que não apresentavam muita dificuldade em se
movimentar e a cuidar de si mesmos e que eram oriundos de regiões muito
distantes, acabavam sendo envolvidos em diversas atividades, de acordo com
o seu potencial físico, sua desenvoltura, suas habilidades e as necessidades
42
de sua própria centúria. Fiquei sabendo de casos de legionários que foram
transferidos para oficinas de retaguarda, que faziam parte da assim chamada
“fábrica”. A existência desse setor chamado de “fábrica” numa legião era
imperativa não só para a contínua produção de flechas, lanças e espadas para
seus legionários, mas também porque providenciava reparos em variados tipos
de arreios e correias de couro, em sandálias com suas tiras rompidas,
capacetes, meias furadas, penachos de capacetes de oficiais, peitorais com
defeito devido ao uso ou acidentes durante ações contra forças inimigas e
alguns vestuários... Cheguei a ver, por exemplo, diversos cegos sentados ao
redor de um tablado na área da fábrica da Victrix enrolando com muito cuidado
estreitas faixas de tecido branco que eram amarradas na ponta para não
desenrolar, que serviam como ataduras provisórias e que se destinavam às
mochilas dos legionários para as eventualidades de cortes e ferimentos
variados. Havia recantos em variados setores dessa assim chamada fábrica
que eram destinados ao preparo de ungüentos ou uns poucos remédios...
Todos os legionários sabiam muito bem que essas faixas e ungüentos diversos
deviam ser usados para os casos de ferimentos durante batalhas, sobre os
quais recebiam algumas orientações.
Sísifo aproveitou o assunto para levantar-se e caminhou na direção dela.
- Eu gostaria de saber o seguinte, Noelma: Os legionários muito feridos ou
doentes eram devolvidos a suas famílias quando passavam os piores
momentos ou riscos de morte, ou continuavam ligados à valetudinária? Você
ficou sabendo o que acontecia com aqueles que tinham os braços ou as pernas
decepados, ou casos mais graves?
- Eu soube, Sísifo, que durante muito tempo na vasta história das campanhas
militares romanas, mas de um modo muito especial na Victrix, eles eram
localizados em cidades por perto de onde a Legião estava estacionada, para
serem cuidados por famílias romanas locais que se dispunham a recebê-los em
troca de pagamentos simbólicos feitos pelas Legiões mesmo, para despesas
de alimentação e outras mais. Claro que as famílias também passavam a
contar com parte do soldo pago a esses legionários ou oficiais.
Sísifo levantou-se para ficar ao lado de Noelma e, pedindo licença, voltou-se
para os demais colegas para explicar:
43
- Vou pedir licença para a Noelma a fim de esclarecer um certo ponto que eu
aprendi na faculdade. Esse tipo de solução dada para legionários feridos ou
adoentados acabou sendo histórico. A gente aprende em História Antiga que,
conforme as legiões romanas iam conquistando territórios, ou seja, nações
após nações, famílias romanas previamente selecionadas eram oficialmente
deslocadas para áreas já pacificadas, protegidas por legionários de ocupação
local, para habitarem as cidades ocupadas. O objetivo do governo central
romano era montar os esquemas presentes da administração do Império,
coleta de impostos, produção de determinados bens e serviços, liderança ou
envolvimento na construção civil, preparo e manutenção de estradas,
plantações de produtos agrícolas de alimentação básica, ou então para
organizarem um novo esquema próprio de vida, devido à saturação dos
ambientes das grandes cidades. Era uma espécie de romanização meio
improvisada na maioria dos casos. No entanto, a intenção dos imperadores era
muito séria e tinha sido demonstrada muitas décadas antes pelo próprio
Imperador Caio Júlio César, que tinha sido o primeiro incentivador desse tipo
de ocupação pacífica. Mas o destino mais desejado dos legionários feridos era
quase sempre a devolução para suas famílias em suas cidades de origem,
conforme a gravidade de cada caso.
- Existem estudos que indicam a origem dos legionários de cada legião, Sísifo?
perguntou Britt.
- É sabido que com o passar dos séculos, muito poucos eram originários de
Roma. Na verdade, conforme o Império Romano ampliava, a grande maioria
acabou sendo proveniente de províncias conquistadas e colonizadas por
dezenas de anos por famílias romanas. No entanto, é bem fácil de imaginar
que muitos não tinham em sua vida familiar condições de serem tratados como
seria esperado e desejado. Exemplificando um pouco, em Roma, quando
esses legionários feridos ou doentes tinham dificuldades familiares, eles
procuravam quase que imediatamente a Insula Tiberina, uma ilhota no meio do
rio Tibre, muito famosa desde séculos antes de Cristo, onde havia instalações
ou pelo menos espaço para abrigar muita gente nos ambientes ao redor dos
templos de Esculápio ou de Apolo, ou mesmo em casebres improvisados nos
terrenos desocupados ou às margens do rio Tibre, na própria ilha. Eram
principalmente soldados dispensados devido a deficiências físicas
44
permanentes ou com sérios problemas físicos de outras naturezas, não só para
se recuperar ou tratar, como também para se alojar por tempo indeterminado e
com poucas despesas. E muitos refizeram seus esquemas de vida com base
nos tipos de ambientes ali criados. É um engano pensar que esses ambientes
eram necessariamente de miserabilidade ou precariedade material, porque,
conforme o caso, eles garantiam um certo conforto com os soldos oficiais que
recebiam por terem sido legionários que haviam se prejudicado em benefício
de Roma.
- Muito esclarecedor isso tudo, Sísifo.
- Eu teria uma outra pergunta para a Noelma, adiantou Britt.
Noelma segurou um pouco a mão de Sísifo, com o qual estava conversando e
voltou-se completamente para Britt, atenta para a questão que seria levantada
pela colega.
- Você, que lidou por tanto tempo com legionários feridos ou doentes, dos quais
muitos não só tinham ferimentos para cicatrizar, mas que também estavam
vitimados por males variados, tendo febre alta, ou sofrendo com um mal súbito,
mesmo que corriqueiro como uma gripe, uma tosse severa ou algum tipo de
virose, você se lembra dos tipos de produtos que eram usados para ajudar no
tratamento dos mais variados males?
- Lembro diversos, sim, Britt, porque muitas vezes os problemas eram
corriqueiros e não era necessário nenhum conhecimento dos médicos para sua
administração e que hoje em dia ficam nas áreas cobertas por pessoal de
enfermagem ou mesmo por auxiliares de farmácia. Na verdade, muitos eram
de uso familiar, como hoje em dia com os muitos chás ou emplastros.
- Você conseguiria citar alguns como exemplo e para que serviam?
- Claro!... Vejam bem, Britt e meus bons amigos. Eu relembro de vários e
dentre eles alguns que eu estava acostumada com o seu uso por causa dos
anos que passei como ajudante do barbeiro. Deixa eu lembrar... Para cortes,
por exemplo, o barbeiro aplicava uma pasta que a gente mesmo preparava,
feita com mastruço bravo misturado com verbena e dissolvida em gordura de
porco numa frigideira quente. A gente usava muito também na valetudinária
alfavaca de cobra bem moída e misturada numa espécie de frigideira com
gordura animal bem aquecida, colocada como pomada no local e enfaixava.
45
- A alfavaca de cobra, pelo que eu aprendi lá em Lemnos, foi também muito
usada para aliviar dores nas pernas perto de pequenas veias
azuladas...comentou Eurínome.
- Seriam varizes? interrompeu Sísifo.
- Isso mesmo, Sísifo. Varizes. Eu tenho um pouco aqui e ali em minhas coxas,
fez Eurínome levantando a saia comprida um pouco acima dos joelhos.
- Contra dores desse tipo ou mesmo de outros tipos e de natureza mais
muscular, pelo menos aqui no Brasil a gente usa uma tal de erva baleeira,
conforme me ensinou uma velhinha lá em Coqueiral, que morava perto do
convento cistercense.
- Você se lembra de outros produtos, Noelma? quis saber Britt.
- Muitos outros, Britt. Havia uma raiz que resolvia muitos problemas que se
chamava panacéia. A gente fazia chá com ela. Esse chá servia para quase
tudo... Lembro também de sementes de meimendro, verbena moída, raízes de
espadana, sempre-noiva moída...
- E para frieiras, você lembra?
- Lembro porque os legionários usavam na maior parte das vezes aquelas
sandálias abertas e a região ocupada pela Victrix tinha muitos pontos com
alagadiços. A gente usava uma espécie de pomada feita com a raiz bem moída
de uma plantinha brava chamada pão-de-porco, que ajudava muito no
tratamento de frieiras e picadas de insetos nas pernas e nos pés. Para outros
problemas, fora isso, na valetudinária viviam usando cataplasmas, óleo de
cedro, pomadas de algumas cascas de árvores, óleo de camomila, pó feito com
chifre de rena... tantas coisas!...Vocês nem imaginam!
Sísifo levantou-se para informar que havia lido em algum artigo que em
Epidaurus os médicos-sacerdotes usavam betônica e argêmora para colocar
sobre membros dormentes ou semi-paralisados. Parece que esses produtos
estimulavam a circulação se a pessoa fizesse massagem com eles no local.
- É verdade... A gente usava isso também, fazendo uma pasta quente que
enrolava com tiras de pano. E isso funcionava para determinados casos, mas
não para todos.
Levantando-se devagar, Agostinho caminhou até onde estava Noelma e louvou
seu esforço para tornar sua apresentação muito ilustrativa.
46
- Meus caros, a vivência aqui relatada pela Noelma, surpreendente como foi,
ao que me parece, destaca dois aspectos principais da vida dela. Um é aquele
relacionado aos cuidados de legionários feridos e o outro, muito interessante,
chega a definir atuações de caráter ocupacional, utilizando partes seletivas das
áreas cobertas pela fábrica da legião. E esse ângulo das ações da Noelma está
evidentemente relacionado com os objetivos atuais da reabilitação para a vida
de trabalho.
Caminhou devagar na frente do grupo e comentou:
- Mais uma vez quero agradecer o empenho da Noelma em seu relato e
informar que amanhã cedo teremos uma apresentação bastante atualizada a
respeito dos variados tipos de oficinas existentes em centros de reabilitação.
Esse tipo de assunto é um dos mais relevantes no grande projeto que
precisamos definir e finalizar nas próximas semanas. E, como tem sido nossa
tônica, esperamos contar com a atenção de todos, a fim de podermos redefinir
esse tipo de recurso, face às características da realidade atual. Obrigado a
todos... Vamos voltar às nossas respectivas atividades.
Eurínome segurou o braço de Noelma, enquanto outros assistentes foram
chegando para cumprimentá-la.
- Da minha parte especialmente, muito obrigada pelo seu esforço, Noelma. E
agora, minha gente, vamos encerrar nossos trabalhos aqui e voltar às nossas
atividades normais, como indicou Mestre Agostinho. Elas lá estão nos
esperando.
Noelma sorriu contente, deu meia volta e, agarrada à cintura de Labda e ao
ombro de Britt, foi caminhando na direção de sua área de trabalho,
murmurando:
- Ufa! Até que eu falei demais, não falei?
- Que os deuses abençoem sua capacidade de contar as coisas, Noelma. Você
foi fantástica! elogiou Britt.
Capítulo Terceiro
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OFICINAS DE PRODUÇÃO
- Conforme informei ontem, hoje dedicaremos a maior parte de nosso tempo de
discussões ao tema Oficinas de Produção. Faremos isso diante da sua
permanente relevância na busca de soluções práticas e viáveis para os
problemas que cercam pessoas com deficiência na incessante procura de
soluções para a sua vida de trabalho. É evidente que por décadas a perder de
vista esse assunto tem sido discutido em profundidade. Muito tem sido escrito
de ângulos variados, inclusive do ponto de vista da Organização Internacional
do Trabalho. Basearemos as discussões livres de hoje numa verdadeira
coletânea de tópicos harmonizados por estudiosos do assunto. Essa coleção
de tópicos fundamentais foi apostilada por alguma entidade que vivenciava as
dificuldades inerentes ao tema. No entanto, não conseguimos informação
quanto à sua autoria final. Ele foi lido e discutido pela Britt e, dentre vários, foi
considerado o mais equilibrado para ser apresentado para consideração e
ciência deste grupo. Vou solicitar à Britt que proceda à leitura desse extenso
arquivo que é considerado como de importância capital no que se relaciona aos
preparativos indispensáveis para enfrentar a vida de trabalho.
- Pois será com prazer, Mestre Agostinho. No entanto, antes de proceder à
leitura eu gostaria de dizer a vocês que eu é que gostaria de ter escrito esse
trabalho que está de uma limpidez fora do comum. Minha homenagem sincera
a todos os que colaboraram em sua finalização. Vamos, portanto, ao tema que
se intitula “OFICINAS DE PRODUÇÃO – SIGNIFICADO E REALIDADE”
Hoje em dia existem muitos resultados positivos nas tentativas de
inserção das pessoas com deficiência no mercado aberto de trabalho. E a
contratação da mão-de-obra de pessoas com deficiência, em muitos casos,
comprova o resultado de um trabalho pouco reconhecido em prol da sua
verdadeira independência pessoal e social.
No entanto, por muito que já tenha sido realizado em determinada
realidade, não se pode jamais esquecer do muito que precisa ainda ser feito.
Nesse fantástico volume de conquistas a serem obtidas, está, sem qualquer
48
sombra de dúvida, a parcela de responsabilidade dos poucos programas de
reabilitação profissional da área privada. Esses recursos, ao buscar a
integração de seus clientes no mercado de trabalho, têm plena consciência de
que as empresas atuam basicamente por meio do capital e do trabalho. O
trabalho consegue levar uma organização ao sucesso se for de boa qualidade,
isto é, se contar sempre com pessoas competentes e dedicadas à sua
responsabilidade, na contínua luta pela produção.
Várias providências têm sido tomadas pelos responsáveis do mundo
empresarial para sempre conseguir mão-de-obra de qualidade. Existem
critérios múltiplos para que a seleção dessa mão-de-obra seja correta, levando
em consideração fatores diversos, como a idade, o preparo acadêmico, a
constituição física, o sexo e outros.
Para os centros que prestam assistência e orientação às pessoas com
deficiência, na prática o desafio passa a ser formulado nestes termos: ou
preparam competidores para esse mercado de trabalho, ou esses indivíduos
que apresentam algumas desvantagens devido a algum tipo de deficiência
caminharão para frustrações.
É muito provável que nem terão oportunidades confiáveis para uma
vida normal, por mais incisivos e determinantes que leis e decretos possam ser
no estabelecimento de cotas e porcentagens, como é o caso do Decreto 3298,
de 20 de dezembro de 1999.
Visão Panorâmica das Oficinas de Produção
As oficinas de atividades de trabalho especialmente organizadas para
pessoas com deficiência - mais comumente conhecidas a Décadas, e de
acordo com a Organização Internacional do Trabalho, como Oficinas de
Produção - devem ser um recurso indispensável no desenvolvimento dos
programas reabilitacionais de natureza global e devem estar bastante afinadas
com alguns critérios empresariais.
No cumprimento de seu papel fundamental, tornam-se também muito
importantes para demonstrar à sociedade - consciente ou inconscientemente -
a viabilidade prática de toda a base filosófica da reabilitação profissional.
Em nosso meio, a grande maioria delas tem sido útil para ocupar sua
clientela, que não tem condições de enfrentar o desafio do trabalho
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competitivo, levando menos satisfação pessoal para cada um dos seus
participantes e aprendizes, do que alívio e tranqüilidade para seus pais ou
responsáveis.
Algumas dessas oficinas, que têm vivido uma verdadeira odisséia para
manter-se atuantes, jamais teriam sido organizadas, se os seus criadores ou
patrocinadores tivessem levado em consideração apenas o estágio de
desenvolvimento econômico do país, a eventual dificuldade na obtenção de
apoio político, os problemas de ordem financeira e a quase que inexistência de
profissionais conhecedores do assunto.
Por mais inadequadas que algumas delas possam parecer a um
julgamento mais técnico e mais severo, oficinas destinadas a pessoas com
deficiência têm sido analisadas e avaliadas com muita impropriedade, quer
sejam organizações isoladas, quer sejam parte de outras entidades maiores,
uma vez que fazem o que podem, sem receber um mínimo de assessoria
específica e com pouco conhecimento de causa.
O fato concreto é que, por mais problemas que tenham, algumas delas
até poderiam assumir um papel de grande relevância em sua comunidade, nos
esquemas montados ou tentados de inclusão, ou, então, no assim chamado
processo de inclusão social de pessoas com deficiência.
Para tanto, seus dirigentes e os profissionais por elas empregados
devem manter-se alertas para o universo em que estão elas inseridas. Mais do
que isso, devem atentar para os motivos reais que, no fundo, são responsáveis
pela sua existência, procurando, se possível, adaptá-las à realidade da
problemática das pessoas com deficiência e suas respectivas famílias.
E será com base nos resultados desse desejável posicionamento, que
a maioria das oficinas existentes no Brasil precisará envolver-se, para iniciar
um movimento muito sério, destinado à reformulação e ao aprimoramento dos
próprios programas destinados à inclusão das pessoas com deficiência na vida
de trabalho.
Muito embora haja exemplos fartos de oficinas relacionadas a
esquemas bem posicionados de atendimento em educação especial ou em
reabilitação profissional, mas que existem apenas por motivos utilitários, não
são esses exemplos, em absoluto, que devem orientar as futuras instalações
ou os programas dessas unidades. Existem oficinas destinadas a atividades as
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mais variadas, inclusive a de trabalho, que foram instaladas simplesmente para
ocupar o tempo das "crianças", em geral acima de 14 anos de idade. Podemos
igualmente conhecer outras unidades que foram criadas para copiar, sem
grande sucesso, exemplos de algumas organizações que caminharam nessa
direção com desenvoltura (quem não gostaria de reproduzir uma experiência
bem sucedida?). Existem, de outra parte, oficinas cujos patrocinadores nem
sabem porque elas foram montadas, mas que são muito úteis para mostrar às
visitas e para ocupar o tempo dos assim mal chamados excepcionais. São
encontradiças aquelas que são mantidas somente para garantir parte do
orçamento da entidade-mãe, enquanto que, na mesma linha de raciocínio
voltado para o fator dinheiro, algumas existem desde que sejam auto-
suficientes e não sobrecarreguem a entidade mantenedora.
Ao analisar essas questões - tão vitais que são para pessoas com
deficiência - não se pode ignorar o principal e enfatizar o secundário. Instalar
uma oficina em determinada entidade apenas porque ela tem espaço
disponível, pode ser um exemplo do secundário sendo considerado em
primeiro lugar. É muito óbvio que espaço é importante. Sem ele não se pode
ampliar serviços. A questão não está nesse ponto. Está na eventualidade de
uma organização dispor-se a organizar uma oficina apenas porque tem espaço,
sem considerar outros importantes e muito mais relevantes motivos.
Outro exemplo que mostra como fazer prevalecer o secundário sobre o
principal está no fato de certas oficinas serem criadas porque algum doador -
seja particular, seja oficial - cede máquinas e equipamentos. Muitas vezes o
presente à entidade passa a ser um verdadeiro problema (por exemplo:
marcenaria para entidades que atendem alunos com deficiência mental a nível
de treináveis...), que traz ônus sérios à organização e a necessidade de uma
programação que raramente se efetiva ou se torna aplicável na vida dos
clientes. Há algumas outras variáveis pouco recomendáveis que poderiam ser
aqui citadas, mas que ficarão discretamente sem ser mencionadas, em
homenagem à paciência e boa vontade dos interessados no assunto.
São experiências inúteis? São exemplos que devem ser esquecidos e
anatematizados? Não é bom que seja assim, porque na vida todos
aprendemos com experiências boas e más, observando o certo e o errado,
comparando o adequado com o inadequado.
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A Realidade das Oficinas de Produção
É muito importante que, ao se tentar descobrir meandros nunca
atingidos da problemática da clientela de reabilitação, haja um esforço objetivo
para utilizar de absoluta honestidade e vontade de acertar, com muita
consciência dos limites de formação técnica ou humana, que todos têm, e do
papel pouco ou muito relevante de cada um, dentro da entidade ou da
comunidade.
Os diretores e os profissionais que labutam nas entidades de
atendimento a pessoas com deficiência não são nem super-homens nem
mulheres-maravilha, para dominar tudo aquilo que representa necessidade dos
seus alunos ou clientes. Embora seres limitados, devem ser absolutamente
honestos com essas pessoas que a eles vêm na esperança de encontrar um
atendimento pelo menos adequado. Não têm o direito de improvisar, de fazer
experimentações, de testar com eles, devido ao fato de não terem tido o
cuidado de se atualizarem ou mesmo de dominar a tecnologia eventualmente
envolvida, ou, bem pior, somente porque são pessoas com deficiência. Caso se
engajem neste campo de assistência educacional ou reabilitacional, seja por
motivos profissionais, seja por motivos de ordem pessoal, têm a mais evidente
necessidade e obrigação de serem competentes, dedicados e autênticos.
Todos esses profissionais, voluntários e diretores de entidades, sem
qualquer exceção, precisam buscar a ajuda de que podem necessitar para que
seus clientes ou alunos recebam o melhor, pois, a luta deles é muito mais
árdua que a daqueles que por eles trabalham. Menos por motivos de ética
pessoal e profissional, do que por respeito a essa mesma clientela, é
importante fazer sérias análises, cobrindo os pontos mais relevantes que
representam o verdadeiro cerne da questão das oficinas de trabalho para
pessoas com deficiência.
O Raciocínio Indispensável
E por que? Devido ao simples fato de que, sem um objetivo
posicionamento a respeito de todos os pormenores desse assunto, nenhum
recurso relacionado à reabilitação profissional - nem mesmo a mais modesta e
despretensiosa oficina - poderá funcionar com propriedade.
Dentre os pontos mais relevantes, podemos considerar os seguintes:
52
a) As pessoas com deficiência necessitam do respeito de todos, como qualquer
outro ser humano, nada mais, nada menos. Parte desse respeito é
expresso pela forma como a elas as pessoas se referem. Por exemplo:
adjetivos substantivados não denotam respeito algum. Ninguém gosta de
ser identificado ou referido como caipira, barrigudo, orelhudo, cabeçudo,
maneta, perneta, gordo, vesgo, mulato, negro, china e outros apelidos. Por
que os clientes ou alunos de nossas entidades de atendimento educacional
ou reabilitacional podem ser citados como os deficientes, os portadores, os
PPDs, os excepcionais, os amputados?...Por que identificar um serviço
como "oficina para excepcionais" ou "escola para deficientes"? Onde fica a
qualidade maior que eles todos sempre apresentam de "pessoa humana"?
b) Pessoas com deficiências físicas, sensoriais, orgânicas ou mentais formam
um universo evidentemente muito complexo. Boa porcentagem delas
precisa muito mais do que dos serviços iniciais de educação ou de
reabilitação física. Elas são muitas vezes bloqueadas por dificuldades, que
podem incluir não só a pobreza material, mas também a ausência de uma
boa escolarização, a precariedade de saúde física ou mental, a inabilidade
para resolver problemas, a inadequada e incompleta preparação para a
vida, o desconhecimento de normas usuais de convivência, além de
condições outras, que podem impedi-las de garantir um lugar digno na
sociedade a que pertencem, por meio do trabalho.
c) O sucesso na vida profissional está em geral relacionado a um bom índice
de desenvolvimento humano e da conseqüente aceitabilidade, que nem
sempre se apresenta simples e descomplicado. Problemas de monta, na
vida de trabalho, podem brotar dos relacionamentos mal sucedidos ou dos
comportamentos inadequados, das dificuldades de adaptação a chefias, ou
da não aceitação de normas da empresa. São problemas dessa ordem, e
não tanto as deficiências do corpo humano, que levam trabalhadores a se
movimentarem de setor para setor numa mesma empresa, ou a provocar
suas demissões e a saltar de emprego em emprego, num espaço de tempo
bem limitado.
d) É de conhecimento universal que a demonstração de habilidade para a mera
execução de tarefas ou de determinado trabalho, nunca foi suficiente para
um emprego bem sucedido. Toda pessoa que busca um emprego
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competitivo e que quer ser aceita, não importa que tenha ou não uma
deficiência, deve estar equilibrada o melhor possível nos aspectos mais
relevantes de sua vida de trabalho.
e) As Oficinas de Produção devem procurar manter um ambiente que seja o
mais realista possível, servindo, dessa maneira, como base para os
clientes adquirirem ou fortalecerem seus hábitos e atitudes no trabalho.
Elas devem manter-se atualizadas com o mundo industrial e comercial, a
fim de sempre poder contar com produção que seja rentável, farta e
sempre útil aos seus objetivos.
Condições Essenciais para Organizar uma Oficina de Produção
O adequado desenvolvimento de Oficinas de Produção destinadas a
pessoas com deficiência na comunidade, necessita do decidido apoio das
forças governamentais - legislativas e executivas - para que se torne uma
realidade. No entanto, não se pode cair na ingênua suposição de que,
assinadas as leis e obtido o apoio necessário - muito esperado e poucas vezes
conseguido - tudo estará florescendo e em boa ordem. Acima e além de bem
definida ajuda financeira e de uma assistência técnica objetiva e constante,
será necessário pessoal qualificado para organizar e gerir esses recursos.
Sem cuidados especiais para a capacitação de recursos humanos
específicos, estará sendo viabilizada apenas a montagem de recursos
potencialmente perigosos, que poderão manter as pessoas com deficiência em
verdadeiros guetos institucionais e que, num curto espaço de tempo, estarão
explorando essa mão-de-obra, nada fazendo pela sua verdadeira integração
social. As Oficinas de Produção , bem estruturadas e bem organizadas, de
acordo com a própria filosofia da reabilitação, podem representar um potencial
recurso de que as pessoas com deficiência verdadeiramente precisam para
encetar com firmeza a grande caminhada para sua independência pessoal.
As Dificuldades Encontradas
Para que uma entidade tome uma decisão correta quanto à
organização de uma oficina destinada à orientação de seus clientes ou alunos,
é importante que examine com cuidado, ângulos relevantes de toda a questão
de pessoas com deficiência na vida de trabalho.
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Esse exame, todavia, requer verdadeiro conhecimento de causa, assim
como a educação de crianças com deficiência auditiva, por exemplo, é feita -
sim - porque é preciso fazer, mas com pessoas que têm conhecimento de
causa, têm especialização, têm experiência. É por esse motivo que ela muitas
vezes dá certo (embora muitas vezes não dê certo). Será desejável e salutar,
portanto, uma parada séria, para raciocinar a respeito dos verdadeiros (e não
supostos) problemas dos jovens e adultos com deficiência em sua comunidade,
face aos objetivos justos de integração à vida social, a que têm direito
irretorquível.
No que diz respeito à vida de trabalho, há formulações muito óbvias
que qualquer pessoa consegue expressar. Todos já ouviram frases como
estas, em geral vindas de pessoas sem conhecimento específico de causa,
mas com grande vontade de colaborar: eles podem trabalhar... eles precisam
se ocupar... eles devem produzir, mesmo que um pouco... vamos organizar
uma oficina de carpintaria... vamos criar galinha... vamos vender verdura...
vamos trabalhar com pintura em tecido... vamos costurar bola... vamos
organizar um bazar... vamos fazer cestos de vime...
Entretanto, sua formulação correta e os cuidados fundamentais para
que a programação visada seja sempre objetivamente útil à clientela, quem
cuida deles? Evidentemente que ninguém, para um grande volume de
entidades, face ao que existe espalhado por todo o Brasil.
O que falta às entidades brasileiras para que possam enfrentar o
problema dos variados tipos de oficinas de trabalho com propriedade?
Por muitos anos, nossas entidades não se aventuravam em organizar
diversos tipos de oficinas de trabalho, devido ao fato de que no Brasil faltavam
leis que as viabilizassem, incentivassem, formalizassem e garantissem. As
diretorias das entidades nem pensavam com tranqüilidade no assunto,
basicamente por receio da fiscalização do trabalho ou de ações trabalhistas
eventuais por parte de clientes ou de suas famílias.
Hoje temos os dispositivos do Decreto no. 3.298, de 20 de dezembro
de 1999, que dispõe sobre a política nacional para integração das pessoas com
deficiência, consolidando normas de proteção e dando outras providências,
como, por exemplo, a prevista em sua Seção Quarta - Do Acesso ao Trabalho.
Dentro dessa Seção, o artigo 35 prevê o seguinte:
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"São modalidades de inserção laboral da pessoa portadora de deficiência:
I - colocação competitiva: processo de contratação regular, nos termos da
legislação trabalhista e previdenciária, que independe da adoção de
procedimentos especiais para sua concretização, não sendo excluída a
possibilidade de utilização de apoios especiais;
II- colocação seletiva: processo de contratação regular, nos termos da
legislação trabalhista e previdenciária, que depende da adoção de
procedimentos e apoios especiais para sua concretização; e
III-promoção de trabalho por conta própria: processo de fomento da ação de
uma ou mais pessoas, mediante trabalho autônomo, cooperativo ou em
regime de economia familiar, com vista à emancipação econômica e
pessoal."
Mas, quem pode viabilizar e/ou intermediar tudo isso, principalmente
nos casos de alternativas outras de trabalho que demandem apoios especiais,
procedimentos diferenciados, adaptações físicas? A própria lei prevê que
"entidades beneficentes de assistência social, na forma da lei, poderão
intermediar a modalidade de inserção laboral de que tratam os incisos II e III,
nos seguintes casos:
I - na contratação para prestação de serviços, por entidade pública ou privada,
da pessoa portadora de deficiência física, mental ou sensorial; e
II- na comercialização de bens e serviços decorrentes de programas de
habilitação profissional de adolescente ou adulto portador de deficiência em
oficina protegida de produção ou terapêutica".
Para o legislador, o que é uma "oficina protegida terapêutica" -
composição neologista de certa forma indesejável, mas compreensível, face às
circunstâncias?
É um tipo de unidade que funciona "em relação de dependência com
entidade pública ou beneficente de assistência social, que tem por objetivo a
integração social por meio de atividades de adaptação e capacitação para o
trabalho de adolescente e adulto que, devido ao seu grau de deficiência,
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transitória ou permanente, não possa desempenhar atividade laboral no
mercado competitivo de trabalho ou em oficina protegida de produção".
Ao afirmar isso, o decreto indica que existe outro tipo de oficina
protegida: aquele destinado à produção propriamente dita e não tanto ao lado
terapêutico do atendimento reabilitacional.
Será importante, então, que analisemos o que seria uma oficina
protegida de produção, na conceituação expressa pelo Decreto em pauta. Ele
diz, expressamente: "Considera-se oficina protegida de produção a unidade
que funciona em relação de dependência com entidade pública ou beneficente
de assistência social, que tem por objetivo desenvolver programa de
habilitação profissional para adolescente e adulto portador de deficiência,
provendo-o com trabalho remunerado, com vista à emancipação econômica e
pessoal relativa".
Neste caso, o decreto está falando de trabalho contratado? Sim, está,
para os casos de pessoas que trabalhem nessas agora batizadas "oficinas
protegidas de produção".
O Decreto 3.298 - que regulamenta a Lei 7.853 - entra em pormenores
de grande interesse, que de fato garantem os aspectos jurídicos das relações
entidade-cliente, ou oficina-cliente, face aos requisitos da Consolidação das
Leis do Trabalho. Vale a pena um estudo pormenorizado por parte das
entidades provedoras de serviços de reabilitação profissional.
Assim, finalmente temos a lei brasileira que garante a criação de
oficinas protegidas de caráter terapêutico, sem qualquer relação de
trabalho, e de oficinas protegidas de produção, que possibilita contratos
diferenciados de trabalho, de acordo com características individuais de horário,
produtividade e outros aspectos mais.
Temos a lei, mas agora precisamos de uma firme disposição de
sairmos da improvisação, não só naquilo que se relaciona a Oficinas de
Produção, mas também e principalmente a tudo aquilo que poderá ser
identificado como reabilitação profissional e seus desdobramentos básicos.
Essa grande carência requererá um imenso leque de ações e de providências,
pois ela, sem dúvida, é muito mais dramática do que se pode hoje mensurar.
Ela poderá ser suprida gradativamente, mas precisará iniciar pela contínua
capacitação de pessoal.
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Problemas a serem Enfrentados
Na implantação de Oficinas de Produção (que infelizmente a lei
brasileira chama de oficinas protegidas de produção, contrariamente ao que
defende a Organização Internacional do Trabalho), as entidades devem
primeiramente analisar e reconhecer as principais preocupações que têm
servido de base para o estabelecimento das linhas principais de sua atuação.
Para que haja objetividade na tomada de decisão quanto à pretendida ou já
existente Oficina de Produção , todavia, determinadas constatações - algumas
das quais anteriormente indicadas - não podem deixar de ser feitas, como, por
exemplo:
a) A Extensão dos Problemas das Deficiências
Uma deficiência pode levar, não só a limitações de natureza física, mas
também a distúrbios psicológicos (do tipo ansiedade, neurose, etc.). Podem
trazer, como conseqüência, dificuldades múltiplas nos relacionamentos, que
acabam afetando, tanto o ambiente familiar quanto o da sociedade.
Reconhecida esta verdade, defendida por dezenas de anos pela família de
organizações da ONU, e de um modo especial pela Organização Mundial de
Saúde, ficou claramente decidido que seria necessário atender a pessoa com
deficiência sempre de maneira globalizante, dentro do universo de
atendimento de cada entidade, e, sempre que necessário, da própria
comunidade. O tratamento a ser dispensado deverá ter condições de sempre
considerar não apenas a extensão e o significado dos problemas que afetam
as pessoas com deficiência e seus familiares, mas, de um modo todo
especial, o seu potencial.
b) A Complexidade do Universo das Pessoas com Deficiência
Bem acima e além dos problemas individuais relativos a dificuldades em seus
relacionamentos, é preciso reconhecer que pessoas com deficiências físicas,
sensoriais, orgânicas e mentais formam um universo muito variado. O
atendimento não pode limitar-se, por exemplo, à reabilitação física ou à
educação especial. Conforme o caso, especialistas deverão ser envolvidos
para dar cobertura às necessidades específicas do indivíduo com deficiência.
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Ao analisar esta realidade, dentro dos ideais de atendimento globalizante,
cada entidade que trabalha nessa área deverá considerar cada cliente como
candidato potencial a todo o processo reabilitacional. No caso das Oficinas de
Produção , esse tipo de ênfase leva a um atendimento mais objetivo e pode
até provocar encaminhamentos no sentido inverso do processo, se
necessário, ou seja, a fases anteriores de atendimento de reabilitação
profissional, por necessidade do caso.
c) Os Bloqueios Usuais na Vida das Pessoas com Deficiência
As pessoas com deficiência têm o direito de desejar uma vida digna e
produtiva. Entretanto, elas podem ser bloqueadas por problemas muito
concretos, que por vezes incluem a má escolarização, uma saúde física e
mental precária, situação econômica precária, dificuldades pessoais para
resolver problemas, certo despreparo para a vida em geral, um fraco domínio
das normas de convivência, além de condições que provocam dificuldades
para garantir seu lugar na sociedade.
Considerada essa realidade incontestável, as Oficinas de Produção devem
garantir, por meios próprios ou utilizando alguns recursos da comunidade,
esquemas de complementação escolar, avaliação e eventual tratamento
médico, além de uma programação contínua destinada ao seu ajustamento
global. Pessoas com deficiência não conseguem, por vezes, freqüentar
programas de reabilitação profissional devido a problemas financeiros.
Destaque-se que o comparecimento diário a um centro de reabilitação
profissional leva sempre a despesas bastante pesadas com o transporte
público.
Dentre as diversas preocupações das equipes atuantes nas Oficinas de
Produção , aquela de verificação e encaminhamento para solução dos mais
variados problemas que interferem com a contínua presença dos clientes,
deve ser uma das mais relevantes.
As Oficinas devem procurar dar cobertura a essas dificuldades, para que
clientes, com ou sem potencial, freqüentem continuamente o programa e
preparem-se com objetividade para o dia-a-dia do trabalho. Há pessoas com
deficiência que vivem mal nutridas, não conseguindo de imediato a vitalidade
indispensável para uma atividade de oito horas diárias.
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Nesse sentido, as Oficinas de Produção , por manter atividades contínuas de
oito horas diárias, deveriam fornecer um lanche no meio da manhã, um
almoço e um lanche no meio da tarde. Esse sistema de refeições pode alterar
com rapidez o estado nutricional de seus clientes.
d) Dificuldades de Ajustamento ao Trabalho
Para muitas pessoas com deficiência, o ajustamento à vida de trabalho
poderá mostrar-se muito simples e natural. Para outros, no entanto, ele
poderá ser extremamente complexo.
Dificuldades no trabalho podem surgir de comportamentos impróprios, da
falta de um bom relacionamento com chefias, da não aceitação dos
regulamentos ou normas da empresa, por exemplo.
Como vimos antes, problemas dessa ordem, e não tanto as deficiências do
corpo humano, têm levado pessoas a saltar de emprego em emprego, em
curto espaço de tempo.
Problemas derivados da quase que ausência de habilidades, atitudes, hábitos
e comportamentos em situações de trabalho atingem, em geral (mas não
exclusivamente):
- as pessoas com deficiência que nunca em suas vidas puderam ter
oportunidade de desenvolver uma atividade contínua e de natureza
competitiva;
- as pessoas que quase sempre se mantiveram isoladas devido mais à
institucionalização voluntária ou forçada do que a outros motivos;
- as pessoas que muitas vezes viveram ou atuaram superprotegidas por suas
respectivas famílias ou instituições;
- os indivíduos que não conseguem adotar firmes normas de conduta e
disciplina de vida.
Acresce a tudo isso que o mero domínio ou a aquisição de algumas habilidades
manuais não são suficientes para levar um indivíduo a garantir um emprego
competitivo, disputado e promissor.
Por todos esses variados motivos e pelo próprio desafio que significa o trabalho
competitivo, as Oficinas de Produção devem manter como sua preocupação
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fundamental a preparação de cada um de seus clientes em termos de hábitos,
atitudes e comportamentos em sua vida pessoal, social e de trabalho.
As equipes precisam estar continuamente voltadas para essa ênfase do
programa.
As Oficinas de Produção precisam também organizar um ambiente de atuação
muito realista, procurando mantê-lo o mais próximo possível daquele que é
encontrado no mercado competitivo de trabalho. É exatamente nesse ambiente
que cada cliente deve ser orientado, para chegar à competitividade, eliminando
os bloqueios que dificultam sua assimilação.
e) Insegurança para Trabalhar
Pessoas com deficiência, há muito tempo afastadas do mercado de trabalho
competitivo, em geral apresentam dúvidas sérias e sentem-se inseguras
quanto à viabilidade de sua volta para trabalhar com sucesso e de dominar as
demandas da vida de trabalho.
Estes tipos de problema devem ser sempre cobertos pelos profissionais das
equipes que atuam nas Oficinas de Produção, considerados os pontos
levantados anteriormente, e relacionados ao ambiente de trabalho. Neste caso,
o cliente pode contar com a atuação do orientador profissional, como ponto
principal de apoio da equipe e do próprio cliente, para levá-lo a uma atuação no
mínimo aceitável na vida de trabalho.
f) Problema da Espera pela Colocação Desejada
As pessoas com deficiência que se beneficiam de um programa de reabilitação
profissional são, em alguns centros de atendimento, dispensadas para
aguardar em sua residência os resultados de uma colocação competitiva. Essa
espera, provocada às vezes pela indisponibilidade de vagas, às vezes pelo
próprio sistema adotado pelo centro de reabilitação, desestimula o cliente e
leva-o à perda parcial de todo o condicionamento geral para o trabalho.
Por vezes sem conta, as pessoas com deficiência têm condição limitada de
lutar pela sua própria inserção no mercado de trabalho, logo após a conclusão
de seu programa em centros que adotam a linha da auto-colocação, sob a
justificativa pouco plausível de estimular as pessoas a resolver seus próprios
problemas.
61
As Oficinas de Produção devem tentar um sistema de colocação dos seus
clientes em situações de trabalho, que leve em conta o potencial de cada um e
a capacidade de sua absorção pelo mercado de trabalho.
Para casos que aguardam uma solução final, os Centros devem estabelecer
programas de prontidão para emprego, através dos quais mantêm-se
continuamente prontos para assumir uma colocação competitiva.
Atendimento Integrado a Todas as Deficiências
A Oficina de Produção deve estar sempre aberta ao atendimento de
pessoas com os mais variados tipos de deficiência, dentro de certos critérios de
elegibilidade, evidentemente.
A disposição para o atendimento integrado a praticamente todos os
tipos de limitações que levam a deficiências, que aparentemente não considera
o específico de cada tipo de problema, pode estar relacionada a vários tipos de
raciocínio. Os mais válidos serão provavelmente estes:
- Provido o atendimento específico, que é desenvolvido antes da reabilitação
profissional, por instituições especializadas, que mantêm suas equipes
preparadas para tal fim, supõe-se, naturalmente, que cada pessoa atendida
deseja alçar seu vôo no sentido da vida de trabalho. No entanto, raras são as
organizações que dispõem de pessoal especializado, ou de instalações e
equipamentos para cumprir tal propósito com sucesso.
- O mundo do trabalho, de outra parte, onde todos devem dar seu mergulho, é
um só. Ele mantém alguns critérios de aceitabilidade ou de rejeição, que
podem independer de a pessoa ter ou não ter o corpo perfeito ou todos os
sentidos em boa ordem.
- O critério mais comum de aceitabilidade gira, sim, em torno da ausência de
anomalias físicas e mentais, mas gira também em torno da eficiência pessoal
e profissional. Não há carta de apresentação, de referência ou de
apadrinhamento, que o substitua, muito embora possa significar um fator
decisório em muitos casos.
Dentro desses tipos de raciocínios, na verdade, cabe a uma Oficina de
Produção preparar mão-de-obra independentemente de a pessoa ter este ou
aquele tipo de deficiência.
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A Oficina deve funcionar como se fosse uma espécie de antecâmara
do mercado de trabalho, que se localizará entre as entidades de atendimento
mais específico, de um lado, e de outro, o mundo empresarial, pois será
durante sua programação que cada pessoa com deficiência irá encontrar seus
momentos de verdade quanto à pretendida vida profissional.
Critérios Fundamentais de Elegibilidade
A partir de raciocínios indicados e face à necessidade de garantir seus
objetivos principais, a Oficina de Produção não pode deixar de decidir os tipos
de pessoas que poderá atender, ou seja, de estabelecer seus critérios de
elegibilidade. Estes critérios devem incluir, como os mais determinantes, os
seguintes:
- A pessoa deve ter, no mínimo, dezesseis anos de idade; não deve haver
limite para idade máxima, devido à relatividade desse conceito, diante das
alternativas de trabalho que podem ser buscadas.
- A pessoa candidata ao programa de reabilitação profissional deve ser
independente em seus cuidados pessoais, tais como vestuário, alimentação e
uso de sanitários.
- Ela deve ser independente no uso de transporte público.
- A pessoa deve expressar sua vontade própria de trabalhar.
A equipe de uma Oficina de Produção precisará ter em mente que, ao
estabelecer critérios de elegibilidade, estará limitando seu atendimento. Ao
estabelecê-los, porém, deverá levar em consideração não só aquilo que poderá
ser cobrável da reabilitação profissional, como também as características de
uma vida competitiva e a realidade em que a comunidade está inserida.
Equipe Técnica e suas Funções
A equipe técnica de uma Oficina de Produção , para atendimento de
aproximadamente trinta e cinco pessoas, deverá ser composta de, no mínimo,
um assistente social, um orientador profissional e um supervisor de oficinas. Na
distribuição das funções deverá ocorrer o seguinte:
63
a) Ao assistente social dessa equipe caberá zelar, não apenas pelos
procedimentos relativos à triagem social, como pela busca cada vez mais
insistente de objetivos relatórios médicos, psicológicos e sociais, por ocasião
do encaminhamento e da avaliação inicial, e também pela interpretação do
programa ao cliente e aos seus familiares. Caberá a esse profissional
também manter-se alerta para a contínua desobstrução do progresso de
cada pessoa, devido a fatores externos ou internos. Trata-se de um trabalho
que, para ser bem desenvolvido, deverá contar com a estreita colaboração
dos demais membros da equipe e funcionários da organização. Ao
assistente social caberá também coordenar um programa de educação de
base e de atividades de grupo, que deve ter por objetivo final um bom
ajustamento pessoal do indivíduo. Esse programa também deverá contar
sempre com a forte colaboração dos demais membros da equipe.
b) Ao orientador profissional caberá, após receber do assistente social os
dados coletados na triagem social, proceder à avaliação inicial e dar as
coordenadas para que o programa do novo cliente tenha sucesso. O
aconselhamento sistemático deverá seguir um roteiro próprio e o
aconselhamento situacional deverá cobrir todos os tópicos relevantes a
serem continuamente discutidos com o supervisor de oficinas ou com o
assistente social. O orientador profissional deverá trabalhar muito próximo às
situações de oficina, procurando não se afastar desse ambiente, pois é nele
que as pessoas estarão continuamente e será nele que os eventos de
interesse devem acontecer. A decisão quanto ao destino profissional de
cada pessoa que se submete ao programa, ao final do processo, será
sempre do próprio interessado, com a participação ou não de sua família,
devendo ser coordenada pelo orientador profissional, que tomará
providências para sua efetivação em situação competitiva ou abrigada.
c) O supervisor de oficinas deverá ter função dupla. De um lado, deverá ser o
responsável pela produção em todos os sentidos: controle, distribuição,
qualidade, quantidade, prazos de entrega; de outra parte, deverá ser
também responsável, diante do orientador profissional, pela observação e
relato dos acontecimentos de interesse para o esquema de aconselhamento
64
de cada cliente. Será o profissional que poderá dar um diagnóstico contínuo
do estágio de cada pessoa presente ao programa, em termos de hábitos,
atitudes e comportamentos no trabalho, comparando-os com os padrões
empresariais.
Sem uma equipe mínima como essa, tornar-se-á praticamente inviável
o esquema previsto em reabilitação profissional. Ela retrata, na verdade, a
expressão mais simples do funcionamento técnico de qualquer organização
voltada para a reabilitação profissional.
A ampliação do sistema, exigida pelo número de pessoas inscritas na
Oficina de Produção , por exemplo, demandará outro tipo de organização
técnica, uma vez que o desafio passará a ser muito diferente.
O Desejável Ambiente Realista
Para poder funcionar com maior objetividade, as Oficinas de Produção
, que se especializam em atividades de reabilitação profissional, devem
duplicar o ambiente de trabalho competitivo, para que sirva de base para a
aquisição e fortalecimento de uma saudável postura na vida profissional.
Para funcionar com desenvoltura as Oficinas de Produção devem
garantir atividades de caráter industrial, subcontratadas ou não por empresas.
Considerado o momento de significativa ênfase em atividades terceirizadas, a
possibilidade de crise para a continuidade da idéia, sempre com atividade
rentável e de boa qualidade, coloca-se como um tanto remota, apesar de
dificuldades ou de recessões econômicas que afetam ou podem vir afetar
diversos países latino-americanos.
Subcontratos - A Linha Terceirizada
Para surpresa de muitos, a industrialização tem estado presente em
quase todos os programas de reabilitação profissional do mundo moderno,
escondida talvez pela palavra "subcontrato", que retrata, nada mais nada
menos, do que uma das formas como ela pode acontecer.
SUBCONTRATO é um termo comumente usado - no mundo inteiro, por
sinal - para alguém referir-se a quase toda atividade industrial, comercial ou de
serviços, executada em empresas, com ou sem fins lucrativos, fora do
65
ambiente original da organização interessada no produto. Subcontratar não
significa necessariamente tentar obter determinado trabalho, ou atividade
específica, por preços rebaixados, uma vez que subcontratos estão
relacionados a atividades ou a trabalhos sempre necessários, que são muitas
vezes especializados. Na verdade, subcontratar atividades, tarefas ou produtos
quer dizer passar para outra organização aquilo que normalmente a empresa
originária deveria estar fazendo, em seus procedimentos globais de produção e
de comercialização, mas tem desinteresse ou dificuldade para tanto.
Subcontratação, no mundo empresarial dos dias atuais, é uma das
estratégias de produção, na maior parte das vezes também conhecida como
terceirização.
Variedade de Produtos Envolvidos
No mundo da produção de hoje, seja no meio das indústrias, das
empresas comerciais ou das organizações de serviços, não é difícil imaginar
que haja milhes de funções ou de atividades que podem ser, e que de fato são,
subcontratadas através de organizações que podem até existir para tal fim.
No seio das indústrias, por exemplo, elas diferem muito daquelas
empresas que preparam um produto acabado, não apenas devido a questões
muito óbvias relacionadas a matéria-prima, a estoques e a capital de giro,
como também devido ao seu próprio objetivo, que raramente chega à
comercialização direta para o público, daquilo que é fabricado.
Em outras palavras, no setor industrial, por exemplo, a empresa autora
de uma encomenda de trabalho encaminha seus produtos para
"industrialização", que se caracteriza muitas vezes pela modificação da
natureza, do funcionamento, do acabamento, da apresentação e mesmo da
finalidade de determinado produto.
Em determinados casos, todavia, a "industrialização" desejada leva ao
aperfeiçoamento para consumo, ao beneficiamento, à montagem ou à
desmontagem, ao acondicionamento ou à própria renovação do produto.
Assim, é fácil prever que existem algumas operações fundamentais para que
um subcontrato de industrialização ocorra.
66
Uma delas, é a remessa pela empresa encomendante, e a outra, é o
retorno ou devolução do produto já industrializado, sem que ocorra venda
direta.
Resultados para as Empresas Encomendantes
Para uma empresa que precisa subcontratar atividades ou produtos, há
vantagens e desvantagens no relacionamento comercial do subcontrato.
Dentre as diversas vantagens evidentes, destaque-se a não sobrecarga direta
de sua folha de pagamentos, beneficiando-se do fato de não precisar se
envolver com a miríade de problemas e dificuldades inerentes a recursos
humanos (seleção, contratação, demissão, faltas, acidentes de trabalho,
licenças, custo social do trabalho, reclamações, greves eventuais, transporte e
outros mais).
Só em termos do custo social relacionado a cada trabalhador, pode-se
lembrar o valor dispendido com recolhimentos da Seguridade Social,
desembolso dos pagamentos de períodos de licença sem contar com a
presença do trabalhador, a manutenção de serviço médico e de serviço social,
que são minimizados com a simples existência de atividades ou de trabalhos
executados fora da empresa.
Há outras vantagens, que são altamente ponderáveis para as
empresas, com a existência dos subcontratos, tais como a economia de
espaço, com diversos dos seus ingredientes inseparáveis: a redução no
consumo de força, de luz, de água, de serviços de limpeza ou de manutenção,
e outros.
Na mais absoluta totalidade, as empresas encomendantes levam nítida
vantagem com a existência do recurso dos subcontratos, ou com os
procedimentos de terceirização, que poderá não ser muito aparente numa
primeira análise, mas que acaba sendo bem significativa. Note-se que, mesmo
que essa situação vantajosa relacione-se apenas à não utilização de partes de
seu espaço físico, sempre significará uma vantagem, que barateará o custo
final do produto ali fabricado.
Aspectos de Custo nos Subcontratos
67
Isso posto, resta saber em que bases normalmente são negociados os
famosos subcontratos com empresas comerciais. E aqui mergulha-se num
imenso labirinto de informações e conceitos, porque não existem normas a seu
respeito. As bases são negociadas, em geral, com referenciais já trabalhados
pela empresa contratante que, na maioria das vezes, poderá até solicitar o
orçamento da contratada ou candidata ao contrato. Supõe-se que as
negociações ocorram em bases justas, que chegam a satisfazer ambas as
partes.
O relevante, nessa questão, todavia, reside numa espécie de "ciência"
da negociação, que acaba sendo lastreada na mais absoluta prática.
Subcontratos e Entidades Filantrópicas
Quando subcontratos são propostos a algumas entidades sem fins
lucrativos, porém, ocorrem por vezes algumas atitudes dignas de observação.
A mais notória, mas não necessariamente a mais freqüente, é aquela que
alguns empresários ou seus prepostos assumem de colaboração, de ajuda, de
auxílio, face aos objetivos dignificantes da entidade.
Salvo honrosas exceções (e elas são muito significativas), eles não
facilitam muito as eventuais tentativas de negociação de preços. Informam,
sim, que estão pagando determinada quantia de dinheiro por determinado
volume de peças, sem muita discussão.
E fazem isso essencialmente por dois motivos: em primeiro lugar
porque sutilmente procuram tirar partido da caridade de fornecer trabalho para
uma organização beneficente, e em segundo lugar porque têm certeza de que
os representantes da entidade não saberiam negociar, não saberiam dominar a
linguagem empresarial.
Em sua crença pouco informada, eles acham que todas as entidades,
sem exceção, estão apenas e tão somente envolvidas numa tentativa de
ocupar seus órfãos, seus velhinhos, seus abrigados ou seus excepcionais.
Felizmente, apesar do número de empresários pretensamente
caridosos, a atitude não é generalizada. Há uma imensidão daqueles que estão
objetivamente interessados em subcontratar tarefas, produção e serviços,
numa base justamente negociada.
68
Ainda quanto aos aspectos de estabelecimento dos preços para os
produtos encomendados, talvez seja relevante chamar a atenção para o fato de
que, para todo valor proposto por uma empresa contratante para determinada
tarefa ou produção, a entidade deverá negociar um período de adaptação de
alguns dias, após o qual questionamentos quanto aos valores pretendidos
poderão ser levantados, com muito mais propriedade e num clima bem mais
favorável, se representantes da indústria tiverem tido oportunidade de visitar as
oficinas - o que é considerado como altamente recomendável.
Dentre os tópicos que precisam ser inseridos na negociação de preços,
a organização filantrópica nunca deverá se esquecer dos critérios para
atualização dos preços em bases mensais, numa economia potencialmente
inflacionária como a encontrada em boa parte dos países em desenvolvimento,
como tem sido o caso do Brasil.
Negociação com as Empresas
Resta saber se esses representantes de empresas terão oportunidade
de encontrar dirigentes de entidades filantrópicas, supervisores ou instrutores
de oficinas as mais variadas, com a objetiva capacidade de negociar preços,
tipos de produtos, controle de qualidade, fluxo de produção, prazos de entrega,
transporte e outros ângulos que surgem no dia-a-dia da subcontratação.
A negociação de um subcontrato e de todos os seus ingredientes -
inclusive seus preços - requer, como é evidente, certa dose de prática
empresarial, por parte dos representantes das entidades sem fins lucrativos.
Os empresários ou seus representantes não se sentem em suas
confortáveis águas quando, numa discussão negociadora, entram argumentos
relativos à reabilitação, à inclusão social, à marginalidade, por exemplo. Na
maioria das vezes eles falam sobre dados de quantidade, qualidade, prazos,
preços por peça, documentação fiscal, prazos para pagamento, atualização de
custos, relação custo-benefício.
Assim, ao tentar negociar subcontratos de seu interesse, as entidades
sociais precisam oferecer às empresas o que elas estão buscando, ao passar
serviço para fora dos seus muros: cumprimento de prazos, qualidade de
produção, quantidades negociadas, garantia de preços e documentação fiscal
em ordem, no mínimo.
69
A esses tipos de requisitos fundamentais que o mundo empresarial
domina muito bem e que indicam algumas vantagens para as empresas, as
entidades poderão claramente chamar a atenção para outras, já citadas
anteriormente, tais como: economia de espaço para a empresa contratante,
inexistência do fator mão-de-obra e a não incidência dos custos sociais,
seguros, faltas, licenças diversas, tudo numa linguagem clara, quando o
ambiente ou o momento permitirem.
Procedimentos Especiais Relativos a Subcontratos
Uma entidade sem fins lucrativos que mantém algum tipo de oficina e
que possa pretender mergulhar no mundo dos trabalhos subcontratados,
poderá não estar alerta para o fato de que um subcontrato não precisa ser
objeto de qualquer documento contratual escrito. A tratativa pessoal entre os
representantes de ambas as organizações é básica, uma vez que é dela que
irão surgir os diversos procedimentos.
Logo em seguida, o que em geral sucede e vigora é a troca de Notas
Fiscais, nas quais devem ficar claros os dados de produção e preços, os
prazos de entrega e de pagamento - a vista ou a prazo.
Com sua documentação de personalidade jurídica em ordem, a
entidade precisará registrar-se nos órgãos oficiais requeridos.
Subcontratos e Entidades Beneficentes
Para as entidades filantrópicas existem vantagens e desvantagens em
sua aceitação de subcontratos. As principais vantagens são as seguintes:
a) Usualmente eles não requerem nem equipamento nem transporte, pois, de
um modo geral, as operações exigem alguma ferramenta simples e de
natureza comum. Sempre que necessários, os equipamentos e as
ferramentas devem ser fornecidos pela empresa contratante, enquanto que o
transporte será sempre fornecido pela empresa interessada.
b) Eliminam completamente o problema da comercialização direta;
c) De um modo usual não é necessário que a oficina de reabilitação ou de
produção faça investimentos e imobilize capital em matéria-prima, reposição
de estoques, etc.
70
d) Facilitam o cálculo de custo porque, na prática mais aceitável para o mundo
empresarial, vende-se apenas o custo da mão-de-obra adicionada de
estimados custos de manutenção e de administração.
e) O relacionamento com os empresários que fornecem trabalho, por vezes
propicia a obtenção de empregos para reabilitandos nas empresas que
dirigem.
f) Qando se trata de operações novas, o treinamento é geralmente dado por
funcionários das empresas envolvidas.
g) De um modo geral, as empresas costumam designar pessoal ligado ao seu
sistema de inspeção de qualidade para oficinas destinadas a pessoas com
deficiências, a fim de as orientar quanto à execução dos trabalhos e
obtenção da qualidade requerida.
Desvantagens dos Subcontratos
As desvantagens mais evidentes dos subcontratos em Oficinas de
Produção costumam ser as seguintes:
a) Há dificuldade em se conseguir bons subcontratos regularmente, de forma a
garantir o funcionamento contínuo de uma Oficina de Produção.
b) Ocorrem, de quando em quando, exigências por parte de algumas empresas
contratantes, quanto a prazos para entrega não previstos, mas decorrentes
das necessidades de suas linhas de montagem.
c) A dependência intensa de uma ou duas empresas apenas, leva as entidades
a não conseguir buscar novas indústrias para manter um relacionamento de
trabalho mais objetivo.
d) Quando as empresas entregam grandes quantidades de mercadoria para
eventual montagem ou trabalho específico, ou quando se demoram para
retirar material já trabalhado, cria-se problema de espaço para a oficina.
e) As Oficinas de Produção assumem uma responsabilidade séria com as
empresas, ao armazenar em suas instalações, sem muita segurança por
vezes, mercadorias de muito valor.
Importância dos Subcontratos em Reabilitação Profissional
71
Considerados os meandros desse universo muito real, organizar uma
Oficina de Produção não é tarefa das mais problemáticas, naquilo que se
relaciona a tarefas rentáveis. Além de uma determinação objetiva da diretoria
da entidade e da contratação de pessoal para sua equipe técnica, cuidados
especiais devem ser dedicados à provisão do espaço físico, à obtenção de
bancadas ou mesas de trabalho com boa iluminação, de cadeiras ou
banquetas, de armários, de sanitários e pouca coisa mais.
As enormes dificuldades ocasionadas pela falta de leis específicas que
viabilizem a constituição e a manutenção de Oficinas de Produção para
programas reabilitacionais (e o assunto merece estudos muito sérios e
profundos do que aqueles já inseridos nas leis existentes no Brasil, por
exemplo), não podem ser simplesmente ignoradas.
Além delas, o problemático não é, portanto, nem a existência e a
variedade de produtos, nem os procedimentos para montar uma oficina.
Atividades rentáveis existem à farta - é uma questão de olhar
atentamente ao redor e não se conformar com as ofertas daqueles que batem
às portas das entidades apenas com embalagens, malas diretas e produtos
provenientes de "empresas de fundo de quintal", que não garantem
continuidade e que pagam pouco, via de regra explorando as entidades
filantrópicas ou ligadas a setores do governo, que prestam assistência ou dão
abrigo a segmentos da população.
Essas organizações beneficentes, apesar de não terem fins lucrativos,
não precisam ser mal remuneradas pelos trabalhos executados em suas
oficinas de subcontratos, como muitas vezes acontece. No dizer de um
especialista colombiano, ..."nosotros formamos, si, una organización sin ánimo
de lucro, pero también, sin ánimo de pierda".
O que é realmente problemático na existência de uma oficina
especificamente destinada à reabilitação profissional, é que ela esteja de tal
forma organizada que possa garantir sempre suas atividades, sem perder de
vista os objetivos de inclusão social de sua clientela através do trabalho.
ssas oficinas precisam zelar pela manutenção dessa característica
prioritariamente, apesar da aparente similaridade com outras oficinas que
aceitam pessoas com deficiência, mas que, na prática, não endossam essa
preocupação e acabam por se limitar a atividades ocupacionais.
72
Significado das Oficinas de Produção
Dentre as vantagens mais marcantes que apresentam as Oficinas de
Produção , organizadas de acordo com os critérios acima, para a inclusão
social das pessoas com limitações as mais variadas, é muito importante
ressaltar:
a) A possibilidade de oferecer serviços reabilitacionais de uma forma mais
objetiva, adaptada à realidade local, com bom envolvimento comunitário e a
baixo custo operacional.
b) A garantia da manutenção de ambientes mais realistas do que as oficinas ou
outros locais existentes hoje em dia, para orientação de sua clientela, que já
é adolescente ou que vive como pessoas adultas.
c) A possibilidade de estabelecer um sistema de retribuição financeira que
realmente é uma atração para os clientes e um fator decisório no bom
delineamento do programa.
d) A colaboração efetiva que prestam à imagem pública e mesmo ao
orçamento da entidade mantenedora.
e) A evidente aproximação ao mundo empresarial, com o qual muito se
relacionam.
Retribuição Financeira nas Oficinas de Produção
A retribuição financeira que pode ser feita aos clientes de reabilitação
profissional, quando atuantes em uma Oficina ou Centro de Produção (aquela
oficina que no Decreto 3.298 é reconhecida como oficina protegida
terapêutica), deve ser calculada com base em certos princípios e dentro de
critérios mínimos pré-determinados, e jamais apenas pela produtividade.
Um desses princípios, que acaba estabelecendo diversos dos critérios
indispensáveis, é o da relação oficina-pessoa com deficiência. Essa relação
precisa ficar muito clara. Não é (e não pode ser) a mesma relação empregado-
empresa, ou escola-aluno.
Nenhuma pessoa que trabalhe, seja em que velocidade ou em que
circunstância for, pode deixar de ser retribuída por essa atividade. Como é
universalmente sabido, a retribuição relacionada a "empresa-pessoa que
73
trabalha" leva o nome de "remuneração", "salário", "ordenado", "honorário",
etc., dependendo do tipo de contrato e do profissional.
Mas, o que ocorre na relação entre uma Oficina de Produção e a
pessoa com deficiência, em atividade orientada por profissionais na área? É
relação de trabalho? Se for, deve ser paga uma retribuição prevista em nossa
Consolidação das Leis do Trabalho e na farta jurisprudência existente.
Mas não o é.
A pessoa com deficiência freqüenta um assim chamado "centro de
produção" para se preparar para a vida de trabalho.
Enquanto perdurar essa situação, necessariamente controlada por uma
equipe técnica, com a participação da pessoa interessada, não existe uma
relação de emprego. Há, de fato, uma relação profissional-cliente: profissional
que, em equipe, pode oferecer algo, e cliente, que pode se beneficiar desse
relacionamento, enquanto assim o desejar.
Dentre os critérios mínimos indicados acima para a existência correta e
proveitosa de uma Oficina de Produção , usados nos dias atuais em muitos
programas de reabilitação profissional, tem prevalecido o da manutenção de
ambientes realistas de trabalho.
Tanto isso é verdade, que tem sido muito usado o critério universal da
criação de Oficinas de Produção, para garantir esse ambiente realista.
É mergulhado nesse ambiente que o cliente (cliente é aquele que
escolhe, decide se sim ou se não, no mínimo) atua e mostra tudo o que pode
fazer em termos de vida de trabalho.
Se o acervo de qualidades que demonstrar for suficiente para um
trabalho competitivo, ele não pode deixar de ser um candidato natural a uma
colocação competitiva no mercado de trabalho.
Enquanto perdurar seu programa de verdadeiro ajustamento à vida de
trabalho, no entanto, atuando no ambiente criado pela Oficina de Produção,
não existe nem poderia existir uma relação de trabalho, apesar de certas
similaridades. Ao iniciar seu programa, o cliente e sua respectiva família devem
saber perfeitamente bem disso, sendo recomendável até que assinem uma
declaração de reconhecimento dessa situação, para efeitos de eventual
fiscalização do Ministério do Trabalho.
74
Por exemplo: "DECLARO para os devidos fins que me matriculo
(matriculo meu filho) no programa de reabilitação profissional, mantido por esta
organização, tendo conhecimento que todas as atividades desenvolvidas
destinam-se à verificação de sua capacidade de trabalho, com as quais
concordo. DECLARO, outrossim, conhecer os termos do Decreto 3298 que se
relaciona ao assunto e estar de acordo que não existe nenhuma relação de
trabalho formal ou informal ao submeter meu filho a atividades de oficina,
sabendo tratar-se de partes do programa global ali desenvolvido".
É indispensável incentivar o cliente a permanecer no programa e a
encará-lo como um recurso destinado à melhoria de sua postura de
trabalhador. Orientações e interpretações pessoais são importantes, mas o
incentivo de um reforço prático e palpável pode ser muito mais oportuno.
Como denominar adequadamente esse tipo de ajuda? No raciocínio
desenvolvido pelos especialistas, como não existe relação formal de trabalho, a
Oficina de Produção jamais deverá usar as palavras "remuneração" ou
"salário". Exemplos de palavras estimuladoras, usadas em diferentes oficinas e
centros são "prêmio" e "bolsa-treinamento", sendo mais comum o uso do termo
"prêmio".
É muito importante ressaltar que se formula esse tipo de apoio levando
em consideração todos os aspectos da programação de reabilitação
profissional, e não apenas o aspecto produtividade.
Na medida em que a ênfase recai sobre produtividade, torna-se mais
ou menos evidente o fato de que existe uma sutil relação de trabalho e não um
programa mais complexo. Nunca será demais enfatizar que é importante as
equipes de reabilitação manter-se atentas para todos os aspectos relacionados
ao ajustamento à vida de trabalho.
De que forma calcular prêmios? Como mantê-los como tal, e não como
um disfarce pela retribuição pelo trabalho executado? É recomendável que a
equipe leve em consideração suas atividades, de um lado, e o objetivo final do
cliente na Oficina, de outro, que deve ser a integração completa na vida de
trabalho.
Sendo assim, e considerados os instrumentais já usados, torna-se
indispensável que a equipe preocupe-se com as avaliações semanais, e com o
estabelecimento de "médias avaliativas".
75
Nunca será demais reafirmar que os critérios de avaliação, segundo é
do conhecimento de todos os que trabalham nessa área, devem levar em
consideração, sempre, os padrões de aceitabilidade exigíveis no mercado
competitivo de trabalho.
Feita essa avaliação e considerada a média mensal, pela equipe
técnica apenas, torna-se relativamente fácil para a administração calcular o
valor dos prêmios de cada mês. Vejamos os passos fundamentais:
a) Deve ficar estabelecido o valor do nível máximo da escala. É preciso que se
mantenha claro o critério de considerar como nível de excelência os padrões
estabelecidos pelo mundo competitivo de trabalho. A consideração de
"excelente" não deve se relacionar, portanto, ao melhor cliente da oficina, e
sim, a um trabalho considerado muito bom no mercado aberto de trabalho.
b) Para cobrir as variáveis de avaliação, será importante estabelecer uma
escala com 10 (dez) níveis, indo do nível mais alto, até o nível mais baixo.
c) Se a equipe considerar como áreas separadas o ajustamento ao trabalho e
o desenvolvimento pessoal/social, será necessário indicar o peso de cada
área, em termos percentuais. Devido à equivalência das duas áreas, em
termos de sua importância na vida do cliente, é recomendável considerar-se
o percentual de 50% para cada uma.
d) A equipe não deve preocupar-se com questões relacionadas a dinheiro, mas
relacionadas de um modo todo especial a conceitos relacionados a hábitos,
atitudes e comportamento no trabalho. Caberá apenas à administração da
Oficina de Produção fazer cálculos, transformando os conceitos na moeda
corrente, dentro de uma escala pré-determinada (ver Anexo, calculado com
moeda fictícia).
Conclusões
Será relevante repetirmos aqui idéias expressas mais acima quando
eram discutidas condições essenciais para se organizar uma Oficina de
Produção, devido à importância evidente que podem ter na vida da população
que apresenta dificuldades para sua inserção na vida de trabalho.
Como ficou claro, o bom desenvolvimento de Oficinas de Produção não
pode dispensar um decidido apoio oficial, seja da área legislativa, seja da área
76
executiva, nos mais variados níveis de governo, para que se torne uma
realidade muito mais concreta.
No Brasil, o Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999 apenas acenou
- muito de leve e de forma um tanto confusa para a questão - ficando muito
evidente a necessidade de definições mais claras e muito mais
pormenorizadas.
No entanto, seria muito ingênuo da parte de todos julgar que,
assinadas as leis e obtido o apoio necessário, tudo estará em ordem. É
fundamental que haja, além de recursos financeiros e um sistema de
assistência técnica objetiva e constante, pessoal qualificado para organizar e
gerir esses recursos.
Se não houver cautela na capacitação de recursos humanos
específicos, estará sendo criada uma certa condição para a montagem de
recursos inócuos ou segregativos e potencialmente perigosos.
As oficinas montadas sem as condições mínimas acima discutidas
certamente que poderão manter as pessoas com deficiência em indesejáveis
guetos institucionais e que, num curto espaço de tempo, para poder sobreviver,
estarão promovendo a exploração dessa mão-de-obra, nada fazendo pela sua
buscada inclusão na sociedade em que nos movimentamos e vivemos.
As Oficinas de Produção, bem estruturadas e bem organizadas, de
acordo com a própria filosofia da reabilitação profissional, podem representar
um recurso de que as pessoas com deficiência precisam para encetar com
firmeza a grande caminhada para sua independência pessoal.
77
ANEXO
ESCALA DE PRÊMIOS
(moeda fictícia)
Mês: Nota: Valor máximo do prêmio: 100
-------------------------------------------------------------------------------- % CONCEITO Valor a ser pago
-------------------------------------------------------------------------------- 100 Excelente + ............................... 100
-------------------------------------------------------------------------------- 90 Excelente ................................... 90
-------------------------------------------------------------------------------- 80 Excelente - ................................. 80
-------------------------------------------------------------------------------- 70 Bom + .......................................... 70
-------------------------------------------------------------------------------- 60 Bom ............................................. 60
-------------------------------------------------------------------------------- 50 Bom - ........................................... 50
-------------------------------------------------------------------------------- 40 Regular + .................................... 40
-------------------------------------------------------------------------------- 30 Regular ....... ............................... 30
-------------------------------------------------------------------------------- 20 Regular - ..................................... 20
-------------------------------------------------------------------------------- 10 Péssimo ...................................... 10
78
Capítulo Quinto
IDADE MÉDIA - I
Dos anos 500 até o final do século X, mergulhada num generalizado estado de
ignorância, uma leve e quase imperceptível chama de cultura clássica era
conservada na Europa e em muitos pontos do Oriente Médio. Os povos
invasores e desmanteladores do antes inexpugnável Império Romano
mantinham-se em franca e obscura atitude contrária aos ensinamentos
deixados pelos grandes pensadores gregos e romanos, enquanto que no
Oriente Médio, numa situação bem diversa daquela encontradiça na Europa, os
povos árabes, igualmente invasores e expansionistas, procuravam desvendar
todo o mistério de conteúdo da propalada sabedoria grega e dos seus mais
renomados filósofos e cientistas.
E no meio do caos do destroçado Império Romano, a Igreja Cristã demonstrava
sua pujança e sua rigidez. Ela passou a ser quase que o único baluarte capaz
de manter a cultura clássica que ela preservava com segurança nas bibliotecas
dos mosteiros e dentro de seus fortes muros organizacionais.
Criação de Hospitais e Abrigos para Pobres
Apesar de todas as concepções místicas, mágicas e por vezes misteriosas, de
muito baixo padrão, que foram a tônica da cultura das populações menos
privilegiadas e mais empobrecidas durante muitos séculos da Idade Média, em
muitas partes da Europa e do Oriente Médio, os casos de doenças e de
deformações das mais diversas naturezas ou causas passaram aos poucos a
receber mais atenção. Isto é verdadeiro não só quanto à Europa Cristã, mas
também a todo o Leste Islâmico. Um dos sintomas dessa atenção mais
humanizada foi a contínua criação de hospitais.
No Leste da Europa, por exemplo, hospitais e abrigos para doentes e pessoas
com deficiência mais pobres eram criados por vezes por senhores feudais ou
por governantes de aglomerados urbanos mais fortes ou de burgos mais
79
significativos, sempre ajudados pela cooperação de esforços provenientes da
Igreja.
Exemplo desses esforços ocorreu no século VII, com a criação de uma
instituição para cegos perto de Pontlieu, na França, por iniciativa do bispo de
Le Mans, São Bertrão. Foi um projeto diferente de qualquer outro encontrado
na mesma época.
Santo Cego na História da Bretanha do Século VI
A história de Santo Herveu (Saint Hervé), um monge cego, é típica do início da
Idade Média, pois está repleta de poesia, imaginação e de crendices. Segundo
ela, Herveu nasceu no ano 520 na Bretanha continental. Seu pai foi o bardo
(cantor e poeta) Hoarvian e sua mãe, Rivanone, que era uma piedosa jovem
que sempre cantava os salmos com excelente voz.
Dizem os poucos biógrafos desse pouco conhecido santo bretão, que sua
jovem e inexperiente mãe, muito inquieta com os perigos do mundo, pediu a
Deus que seu filho nascesse cego. O pai, menos sonhador e muito mais
prático, ficou atemorizado com essa prece e repreendeu-a, dizendo:
"Ó mulher, não é cruel por parte de uma mãe pedir que seu filho seja privado
da luz da vida? Se ele deve nascer assim, todavia, peço de minha parte a Deus
todo poderoso, que essa criança já daqui desta vida tenha visão dos
esplendores do céu. E para que minha prece seja atendida, renuncio desde
agora a todas as vaidades deste mundo para servir apenas a Deus pelo resto
de meus dias".
E o pai acabou partindo de fato, sem ter chegado a ver o filho que, de acordo
com orações de sua mãe, nasceu cego. O nome Herveu, recebido no batismo,
significava "amargo". Passados diversos anos, a mãe deixou o filho com um
monge, conhecido pelo nome de Arzian, passando o menino a viver confinado
em seu pequeno mosteiro, enquanto ela procurou alojar-se num convento.
Herveu aprendeu muito com a vida monástica praticada no mosteiro de Arzian.
Demonstrava, todavia, suas preferências às ciências profanas, sem se
esquecer de todos os salmos que sua mãe - ele recordava muito bem - cantava
com límpida voz. No seu dia-a-dia o jovem Herveu movimentava-se com a
ajuda de um guia chamado Guiachan.
80
Foi durante sua adolescência que deixou o mosteiro de Arzian e foi em busca
do retiro do eremita Urfold, num local próximo ao convento onde sua mãe vivia
confinada. Com a ajuda do eremita, Herveu acabou encontrando sua mãe,
muito debilitada pelos jejuns e pelas penitências.
Transformou-se logo em professor, apesar da cegueira. No entanto, por
humildade afastou-se e começou a peregrinar de mosteiro a mosteiro, seguido
por grupos de alunos seus. Nessa espécie de peregrinação constante, o grupo
visitou o bispo de Houardon que quis ordenar Herveu sacerdote. Mas, devido à
sua cegueira e à sua humildade, não aceitou a ordenação. Recebeu finalmente
as chamadas "ordens menores" e o poder do exorcismo. Fundou um mosteiro
próprio pelo ano de 540, num local posteriormente conhecido como
Lanhouarneau.
Apesar de não ser sacerdote, recebeu o título de abade de sua congregação e
nessa qualidade foi convocado para o Concílio que ia ser realizado em Menez-
Bré, em 545.
Conta-se que muitos dos participantes que conheciam Herveu ficaram o dia
todo esperando por ele para iniciar o conclave, o que irritou sobremaneira um
dos bispos presentes.
- "0 que?!... Foi para esperar esse ceguinho que perdemos um dia todo?",
explodiu o prelado.
Os participantes sentiram uma indignação forte contra o bispo que, castigado
no próprio ato, caiu cego ao chão. Herveu aproximou-se e tomando de um
pouco de água que começara a brotar de seu bordão, umedeceu os olhos da
vítima que logo a seguir voltou a enxergar (Apud Le Berre).
Suas relíquias ainda hoje existentes no mosteiro de Lanhouarneau (distrito de
Finistère, na Bretanha, a oeste da França, entre a Baía de Biscaia e o Canal da
Mancha) são sempre usadas para a benção das águas da Fonte de Santo
Herveu, em procissão solene realizada no dia de sua festa. Dizem que essas
águas têm virtudes um tanto misteriosas para a cura de males dos olhos nelas
lavados.
Seus restos mortais foram transferidos para a catedral de Nantes em 1002.
Santo Herveu é considerado o patrono dos cantores populares e é festejado
em 17 de junho.
81
Santo Egídio, Padroeiro das Pessoas com Deficiência
Santo Egídio (Gilles, em francês e Aegidius, em latim) é patrono
da pequenina cidade de Saint Gilles, ao sul da França. Fica situada no
Departamento de Gard, às margens do canal do rio Rhone-à-Sète. Existe na
vila uma antiga abadia que chegou a ser expressamente protegida por Carlos
Magno e que hoje guarda as relíquias de seu santo padroeiro, que lá viveu no
século VI.
É ele considerado na França como um dos dez santos que mais ajudam à
população desamparada e sempre foi venerado na Europa como o padroeiro
dos mendigos, dos ferreiros e das pessoas com defeitos físicos.
Sua fama foi tão importante no passado que os peregrinos agradecidos
chegaram a contribuir para a melhoria da vila e da abadia. O famoso santo é
representado tendo uma flecha cravada em sua mão e uma corça em seus
braços. Segundo lendas do século X Egídio era um jovem aristocrata de origem
ateniense que, após ter visitado o mosteiro de São Cesário de Arles, pelo ano
543, passou a viver como eremita no meio do bosque. Foi ferido
acidentalmente pelo rei Flavius dos Godos quando este perseguia uma corça e
ela procurara segurança aos pés de Egídio. Arrependido com o engano,
Flavius mandou imediatamente construir uma abadia naquele bosque e
nomeou Egídio seu abade.
Sua festa é celebrada no dia primeiro de setembro. Os restos mortais de Santo
Egídio, levados a Toulouse no século XVI, foram transladados para Saint Gilles
apenas em 1962.
Assistência aos Pobres pela Igreja
Os pobres, os doentes e os deficientes físicos e mentais foram objeto de uma
norma da Igreja Católica em pleno século VI, norma essa que pretendia assisti-
los e ao mesmo tempo circunscrever seus movimentos a um determinado
território.
E foi o Concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567, que decretou pelo seu
cânone quinto o seguinte:
"Cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os
habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos
vagabundos de correr as cidades e as províncias" (Apud Guérin).
82
É também relevante saber que o Concílio de Lyon (583) aprovou, em seu
último cânone, a seguinte medida relacionada aos hansenianos:
"Os leprosos de cada cidade e de seu território serão alimentados e abrigados
às expensas da Igreja, aos cuidados do bispo, a fim de Ihes impedir a liberdade
para serem vagabundos em outras cidades" (Apud Guérin).
Mutilação como Castigo no Século VII
Desde épocas imemoriais, em quase todas as culturas espalhadas pela Europa
e por todo o resto do mundo conhecido até o século VII d.C, praticamente
todos tinham o direito - ou viam-se investidos desse direito - de punir
severamente seus criados, seus escravos ou empregados, mesmo que fosse,
conforme as circunstâncias, pela mutilação de parte de seus corpos: orelhas,
nariz, dedos, membro sexual, etc.
Durante os primeiros séculos da Idade Média essa punição tanto podia ser
aplicada diretamente pelo senhor como, de um modo indireto, por meio de
juízes. A gravidade da situação poderá ser bem retratada por uma decisão
tomada num dos Concílios particulares da Igreja. Foi o Concílio de Mérida, em
Portugal, no ano 666, que procurou cercear esse bárbaro costume, pelo menos
com relação aos bispos e sacerdotes, já um tanto distanciados dos preceitos
da caridade. 0 cânone décimo quinto, aprovado nesse Concílio, "proíbe aos
bispos e aos sacerdotes maltratar os empregados da igreja pela mutilação e
manda que, se forem eles considerados culpados de qualquer crime, que
sejam entregues aos juízes seculares, pelo menos para os bispos moderarem
a pena à qual serão condenados, e não deixarem que sejam marcados com
ignomínia" (Apud Guérin).
O Milagre de Fazer um Mudo Falar
São Bedo, cognominado "o Venerável", tem sido considerado nos meios
católicos ingleses não só como um homem santo, mas também como um sábio
e grande historiador. Nasceu em 675, vindo a falecer em 735. Escreveu muitas
obras, dentre as quais não podemos deixar de chamar a atenção para a
"História Eclesiástica da Nação Inglesa", que cobre período que vai desde os
primórdios da Igreja Cristã na Inglaterra até 731.
83
Consta nessa obra que em 685 um bispo católico chamado João, tido como
santo e miraculoso, ensinou um jovem que nunca havia pronunciado palavra
alguma a falar. Apesar do Santo historiador inglês citar o fato como um milagre,
não causaria impacto maior hoje em dia ou mesmo há dois ou três séculos
atrás.
Segundo São Bedo, o bispo João pediu ao jovem para mostrar sua língua e
soltar o som "iá", o que foi feito aparentemente sem maiores dificuldades. A
partir desse ponto, pronunciando uma a uma as várias letras do alfabeto, o
bispo orientou o jovem a repeti-las. Daí por diante o prelado começou a inserir
sílabas, palavras curtas e mesmo frases simples. O moço obteve pleno êxito e
não parou mais de falar.
No campo da comunicação dos deficientes da palavra falada esse é um fato
totalmente isolado ocorrido no início da Idade Média, uma vez que só
ouviremos falar sobre o ensino de surdos e de surdos-mudos pelo final do
século XV (Apud Mullett).
Amputações como Penalidade por Crimes Cometidos 1. Embora não disponhamos de dados muito preciosos, existem evidências de penas severas para crimes considerados graves durante toda a Idade Média, em diversos países europeus. Na maioria dos casos o objetivo dessas penas - principalmente as mutilatórias - não era matar o criminoso, mas deformá-lo, sendo a mutilação um Cuidavam os aplicadores das penas mutilatórias que os condenados não
morressem devido à hemorragia ou a eventuais complicações.
Como as vítimas dessas penalidades quase sempre se viam impedidas de
trabalhar, restava-lhes o recurso de esmolar, que de certa forma, como no
Império Bizantino, levava o povo cristão a ter oportunidade de fazer caridade...
Dentre os diversos crimes que podiam ter como pena a amputação das mãos,
por exemplo, um deles (bastante específico para determinado fato ocorrido na
História) sucedeu em Milão em 630, durante uma violenta peste.
De acordo com muitas acusações baseadas em observações e também em
crenças de natureza pseudo-científicas, a peste era espalhada por um certo
ungüento que era esfregado nas paredes das casas por indivíduos criminosos.
As autoridades e o povo deram caça aos mesmos, tendo todos eles sido
submetidos a torturas, amputações e mesmo à morte. Um dos castigos a eles
aplicados foi a amputação de uma das mãos, conforme nos é mostrado em
estampa existente no Welcome Medical Historical Museum, de Londres (Apud
Brothwell e Moller-Christensen).
84
Se interessado nesse tipo de ilustração, procure o site do Centro de
Referências FASTER – www.crfaster.com.br.
A Evidência de Dupla Amputação: Século VII
Foi em 1956 que uma área desabitada na ilha de Tean (uma das Scilly, a
sudoeste da Inglaterra) mereceu toda a atenção dos cientistas do
Departamento de Arqueologia Pré-Histórica da Universidade de Edinbourgh. É
que lá haviam sido descobertos diversos túmulos - talvez do século VII D.C. - e
um dos esqueletos apresentava peculiaridades bem marcantes.
Eram os restos mortais de um homem de 40 a 50 anos presumíveis ao morrer
que, além de ter sido vítima de um processo artrítico sério, apresentava algo
bastante inusitado. Eis os dados que nos são repassados por dois cientistas:
- 0 braço esquerdo apresenta sinais da amputação da mão a 10 mm acima do
punho. Com a sobrevida de mais de um ano, a extremidade áspera
correspondente ao ponto da mutilação ficou arredondada e quase lisa e uma
espécie de calosidade óssea uniu as duas pontas do rádio e do cúbito num
único osso. Há leves sinais de infecção, mas ao que parece não houve
dificuldades na fase de cicatrização sem inflamações.
- A perna direita apresenta mutilação do pé, tendo a amputação cortado 50 mm
da tíbia e do perônio. Como no caso do braço esquerdo, o coto está
arredondado, com a união de ambos os ossos num só.
Segundo Broththwell e Merller-Christensen, acrescente-se a esses problemas o
fato de que vários anos antes o mesmo indivíduo havia fraturado a clavícula e
uma vértebra toráxica que, embora bem solidificadas, provocaram alguma
deformidade.
As mutilações indicadas pelos dois autores provavelmente não foram feitas
sem conhecimento de causa. Vejamos a sua opinião:
"Com certeza somente um ou dois anos antes de sua morte foi realizada a
amputação de sua mão esquerda a 10 mm acima do punho e do seu pé direito
aproximadamente a 50-60 mm acima da junta do tornozelo. Essas mutilações
não foram provavelmente feitas com uma serra"... ..."mas foram o resultado de
uma remoção intencional por machado ou faca pesada e martelada com um
malho - métodos sabidamente empregados como punições na Inglaterra
85
durante a Idade Negra" ("Médico-Historical Aspects of a Very Early Case of
Amputation", de Brothwell e Maller-Christensen).
Hospitais Criados pela Igreja na Europa
No ocidente europeu hospitais continuaram sendo organizados graças à
iniciativa e à contínua ação de segmentos da Igreja Católica, tendo as ordens
monásticas dado uma relevante contribuição, pois a experiência dos religiosos
enclausurados em tratar seus irmãos feridos ou doentes, bem como os pobres
e desvalidos portadores de sérias limitações físicas, passou a ser um
verdadeiro modelo. Era já o resultado de uma experiência multissecular
desenvolvida por mosteiros espalhados pela Europa e pelo Oriente Médio,
além daqueles localizados na África.
No entanto, já no ano 845, o Concílio de Meaux referiu-se ao que chamou de
"Hospitia Peregrinorum" (Abrigos dos Peregrinos) e de "Hospitia Scotorum"
(Abrigos dos Escoceses), queixando-se que eles haviam sido desviados de
seus propósitos originais de hospitalidade e pedindo sua reinstalação em
moldes diferentes, não só como casas destinadas à assistência aos peregrinos
ou a viajantes doentes, como também abrigos aos inválidos.
Duzentos anos antes desse Concílio, considerando que era uma obrigação
quase que funcional dos bispos dar abrigo e proteção a peregrinos e a doentes
pobres, o bispo Landry, de Paris, organizou um lar para inválidos e para
peregrinos doentes num local bem perto de sua igreja. Foi dessa experiência
do século VII que surgiu o nome de "Hôtel Dieu" para hospital de caridade na
França.
Do século VII ao século XII os hospitais mantidos nas propriedades dos
mosteiros e das abadias ou mesmo das poucas instituições especialmente
preparados para tanto, foram praticamente as únicas organizações européias
que mantiveram como seus objetivos básicos cuidar do doente agudo e em
muitos casos também do crônico. Serviram também de abrigo para pessoas
impossibilitadas de prover seu próprio sustento devido a sérias limitações
físicas e sensoriais.
Convém aqui voltar a ressaltar que não havia propriamente nenhum mosteiro
ou abadia de porte, durante a Idade Média, que não mantivesse seu
"xenodochium", devido ao espírito de caridade e de hospitalidade cristãs,
86
enquanto que muitos foram se aparelhando e alterando seus serviços para um
atendimento próprio de um "nosocomium".
Deficiêncía Física na Mitologia Germânica
Wayland, o ferreiro, é um herói mitológico famoso na cultura germânica. Não
necessariamente uma réplica nem cópia de Hefesto, já citado e inserido em
muitas histórias da mitologia grega, Wayland também era um excelente artesão
e ferreiro. Chegou a fabricar peças famosas que passaram para diversas
histórias da avantajada mitologia do norte da Europa dos meados da Idade
Média. Dentre essas peças imortais é importante destacarmos que, segundo as
lendas, Wayland fabricou a espada de Siegfried ("Nothung") e a do rei Artur
("Excalibur").
Wayland, o único herói teutônico assimilado pela cultura e pelo folclore de
diversos países europeus, inclusive pela mitologia inglesa, aparece em
histórias lendárias tanto na Alemanha quanto na Escandinávia.
A lenda principal relacionada a esse fantasioso ser fala a respeito de sua
vingança contra o rei que o havia aprisionado. Esse rei havia mandado quebrar
seus joeIhos para torná-lo incapacidade de se mover com destreza e rapidez. 0
objetivo era retê-lo no reino e com isso garantir seus serviços de alta
qualificação.
No entanto, o muito sagaz Wayland, depois de anos de paciente planejamento
e da espera de um momento mais adequado, matou os dois filhos do rei
Nipopr. Fez mais, para dar mais peso à sua vingança: deflorou a princesa, sua
filha. Logo após, tendo completado todos os atos que havia premeditado,
empreendeu uma fuga espetacular, utilizando-se de um par de asas por ele
mesmo fabricadas.
Deficiências Físicas em Sacerdotes na Idade Média
Questão permanentemente discutida por autoridades eclesiásticas, tendo já
merecido o posicionamento de papas e Concílios e um lugar permanente no
Código de Direito Canônico, o problema das deficiências físicas e sensoriais
nos sacerdotes ou nos bispos é citado por Thomassin. No que diz respeito a
alguns dos primeiros séculos da Idade Média essa autoridade da Igreja
informa:
87
"0 Concílio de Tribur (Cânone XXXIII) alega as decisões do Concílio de Nicéia
sobre os eunucos, aquelas do papa Inocêncio I sobre quem amputou seu
próprio dedo, ou a quem se cortou o próprio dedo acidentalmente, dos quais o
primeiro é irregular e o outro não o é: enfim, aquelas decisões de Gelásio que
excluem do clero todos os que são mutilados de qualquer parte do corpo. Esse
Concílio confirma em seguida todas essas ordens e a elas acrescenta que
aqueles que se tornaram coxos por qualquer enfermidade corporal não devem
ser impedidos das santas ordens" ("Ancienne &Nouvelle Discipline de l' Église",
de Thomassin).
Nesses primeiros séculos da Idade Média a Igreja Ortodoxa Grega seguia
basicamente as mesmas regras, sendo mais condescendente para com
candidatos ao sacerdócio que apresentassem deficiências. Essa facção da
Igreja decidira mesmo, por meio de cânones apostólicos, que os coxos e
mesmo os que haviam perdido um olho, podiam ser ordenados e até mesmo
elevados ao bispado. 0 motivo alegado era contundente para a época, mas
muito real: "São as manchas da alma e não os defeitos do corpo que nos
afastam dos divinos mistérios"...
Segundo seus líderes e autoridades maiores, cegos e surdos eram
considerados como impedidos ao sacerdócio porque essas deficiências os
incapacitavam para exercer as funções múltiplas da vida sacerdotal.
No entanto, os que já haviam sido ordenados podiam continuar exercendo o
sacerdócio sem maiores dificuldades e não perdiam de maneira alguma a
dignidade ou os benefícios e proventos que recebiam.
Teodoro Balsamon, canonista grego do século XII, afirma ter conhecido
diáconos, padres e mesmo bispos que, tendo ficado surdos ou cegos, não
foram por causa disso privados de sua dignidade, e que a lei civil possibilitava
àqueles que haviam perdido a visão gozar de sua antiga posição de juiz ou de
senador, apesar de não permitir o acesso a outro tipo de magistratura (Apud
Thomassin).
Vários papas foram aos poucos tornando o assunto mais e mais esclarecido
através de decisões, permissões, epístolas e regras. Encontramos no século
XII, durante um reinado de 22 anos, entre os anos de 1159 e 1181, o papa
Alexandre III esclarecendo que, quanto a mutilações e deformações do corpo,
elas tornavam uma pessoa "irregular" para o sacerdócio quando essas
88
dificuldades fossem de tal monta que seria impossível exercer as funções
sacerdotais sem provocar escândalo ou problemas.
Ocorreram casos de sacerdotes parcialmente impedidos de ordens devido a
deficiências físicas e sensoriais. Esses impedimentos incluíam: sacerdotes
proibidos de celebrar a missa, sem ser impedidos das demais funções de seu
ministério, por ter perdido metade de uma das mãos. O motivo: o alegado
escândalo que já àquela época correspondia a algo chocante e que chamava
muito a atenção. Os textos latinos, porém, utilizam o termo indicado: "nec sine
scandalo propter deformitatem membri”
Inocêncio III, reinando ao final do século XII e entrando no século XIII até o ano
de 1216, analisou o assunto em maiores detalhes, indicando que os mesmos
defeitos e mutilações que tornavam impedido um homem para as chamadas
"ordens maiores" não precisavam necessariamente excluir das "ordens
menores", pois estas expunham muito menos os candidatos já clérigos à vida
pública.
Esse mesmo papa, ao julgar o problema de um sacerdote que fora atingido por
um assaltante e com isso perdera um dedo da mão esquerda, decidiu que não
incidira em qualquer impedimento às suas funções, uma vez que o acidente
ocorrera após sua ordenação.
Foi Inocêncio III também que chegou a determinar a deposição de um abade,
pois o mesmo não tinha uma das mãos (a esquerda), o que, se descoberto a
tempo, e se tivesse sido constatado antes de sua ordenação, teria sido
impeditivo dos mais sérios. Um outro motivo alegado pelo papa foi a
dissimulação do referido abade: ele havia muito habilmente escondido o defeito
durante sua eleição para o cargo de superior (observação do autor: talvez
tivesse usado uma prótese).
Luís III, o "Cego", Rei da Provença e da Itália
Luís III, conhecido pelo cognome de o "Cego", nasceu em 880 e era filho de
Boso, rei da Provença - hoje parte Sudeste da França. Depois da morte de seu
pai em 887 foi protegido pelo imperador Carlos, o Gordo. Luís foi reconhecido
como rei da Provença com 10 anos de idade, sob o forte apoio do papa
Estêvão V.
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No correr do ano 900, quando estava com 20 anos de idade, por insistência e
muita pressão dos inimigos de Berengar, rei da Itália, cruzou os Alpes com
suas forças, depôs o monarca após muita luta e reclamou sua coroa. Foi
coroado rei dos lombardos na cidade de Pávia e rei da Itália em Roma, em
fevereiro de 901, ocasião em que recebeu a coroa real das mãos de Benedito
IV, papa que ocupava então o trono da Igreja Católica.
Mas o jovem rei tinha deixado em seu rastro um feroz e muito cruel inimigo,
que era Berengar, rei por ele deposto da Itália.
Após poucos meses de reorganização de sua forças e de insistente luta,
Berengar conseguiu surpreender Luís III em Verona e lá mesmo, com muito
ódio, mandou vazar seus olhos.
Levado de volta à sua Provença, Luis III, o "Cego", lá permaneceu em Arles,
vivendo por mais de 26 anos uma vida muito atrapalhada devido à cegueira,
com a qual não se adaptava. Deixou os negócios de sua coroa aos cuidados
de um primo seu, Hugo, duque de Provença, que bem mais tarde tornou-se rei
da Itália.
Na vida deste nobre da História da Provença e da Itália há um registro
lamentável e raro nos países da Europa, embora não tão surpreendente na
corte bizantina: mandou vazar os olhos de seu irmão Lamberto, marquês de
Toscana, por motivos de alegada traição.
Berengar, que havia derrotado e vazado os olhos de Luís III, acabou
derrotando também as forças deste odioso Hugo, rei da Itália, em 945.
90
Capítulo Quinto
GIOVANA - Meus prezados, sou filha de pai italiano e mãe brasileira. Nasci numa cidade
que ninguém que eu saiba conhece, que é Sassari, bem ao norte da ilha de
Sardenha. Ela faz parte da Itália num regime político especial e fica logo abaixo
da ilha de Córsega, que pertence aos franceses. Meio do Mediterrâneo...por
assim dizer. Bem a oeste da Itália.
- Daria para você nos contar como é que sua família foi parar lá? perguntou
Sísifo.
- Meus pais tinham uma pequena empresa que negociava com diversos tipos
de calcáreos. É bom saber que a Sardenha desde muitos séculos foi famosa
por ser pródiga em minérios. Até os romanos sabiam disso. Se vocês forem até
Sassari e outras partes da Sardenha um dia, terão oportunidade de visitar
diversas ruínas romanas e uma famosa ponte em pedra que até hoje é
utilizada.
- Vocês viveram sempre lá? perguntou Noelma.
- Não. Lá vivemos 10 anos e lá freqüentei a escola, usando em parte a língua
meio estranha da ilha e em parte o italiano, por imposição das leis federais...
Logo em seguida passamos para Turim, onde meus pais reorganizaram seus
negócios e a família localizou-se em definitivo. Meu pai era oriundo de Bolonha
e minha mãe, como eu disse, era brasileira, nascida num lugarzinho bem
minúsculo chamado Serrana, no sul do Estado de São Paulo.
- Serrana?!... Nossa! Nunca ouvi falar e olha que eu conheço o sul do Estado...
Registro, Jacupiranga, Pariquera-Açu, Cajati, Cananéia, Iguape... observou
Sísifo.
- Cajati! Esse era o nome oficial do lugar, mas devido a um gigantesco trabalho
de mineração de apatita, acabou sendo conhecida como Serrana, por causa do
nome da empresa que ali havia montado uma verdadeira vila com recursos
variados.
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- Quando eu estava com 14 anos minha mãe resolveu vir para o Brasil visitar
seus pais. Meu irmão e eu viemos junto, claro, e ficamos nesse lugarzinho
chamado Serrana, enquanto meu pai decidira ficar em Torino para não deixar
os negócios da família correr qualquer risco. A gente pensou que seria uma
viagem curtinha, mas ficamos na casa dos meus avós uns quatro anos inteiros,
devido a problemas de saúde de meu avô, que acabou falecendo. Foi durante
esses anos que fiz o curso para ser professora. Curso de normalista, como
chamavam. Até que eu me saí bem, apesar de no começo eu só entender ou
falar italiano. Aos 17 anos já estava formada. Pode parecer coincidência, mas
na verdade, meus estudos, meus estágios, meus contatos voltaram-se
completamente para as áreas que cobrimos aqui neste projeto, porque no final
do curso fui fazer um estágio obrigatório na área técnica da Fundação para o
Livro do Cego no Brasil, que depois mudou de nome. Tive a oportunidade de
participar ativamente de um projeto de educação de base planejado
especialmente para cegos, com adaptações para populações migrantes do
Nordeste, sem qualificação profissional e sem vivência de.uma cidade grande.
- Giovana, eu queria comentar que eu fui atendido no Centro de Reabilitação
dessa Fundação durante alguns anos, sabia? fez Sísifo, muito animado.
- Foi mesmo? Ora vejam só, hein? Sabe, Sísifo, que lá conheci pessoas
notáveis, que tinham uma visão bem objetiva dos problemas causados pela
cegueira e como os cegos poderiam ser melhor preparados para a vida. Uma
dessas pessoas era Da. Ivete, uma assistente social da mais alta qualificação.
Queria a todo o custo que eu me inscrevesse para trabalhar numa Campanha
Especial para a Educação e Reabilitação do Cego, ligada ao Ministério da
Educação. Mas a minha família tinha outros planos e precisamos voltar para
Turim, devido ao falecimento de meu outro avô, pai do meu pai.
- Você conseguiu trabalhar com cegos lá em Turim ou seguiu outros caminhos
nas muitas áreas da educação? perguntou Sísifo.
- Procurei e consegui, por pura sorte, acho eu, um emprego numa organização
muito famosa e quase lendária que era a Piccola Casa de la Divina Providenza.
Ali fui entrevistada por um professor que tinha uma experiência fora do comum
no mesmo campo que me interessava e fui aprovada. Ele se chamava Marco
Antônio e nós dois fomos engajados logo após o início do meu contrato, num
projeto demonstrativo de educação do deficiente visual para a vida, que incluía
92
tudo o que pode acontecer na vida de uma pessoa que pode ser ou não ser
cega. A questão era verificar como o cego poderia se sair naquelas
determinadas circunstâncias que nós dois precisávamos imediatamente
levantar e cobrir...
- Dá para você indicar alguns exemplos dos assuntos com os quais vocês
trabalhavam? pediu Eurínome.
- Posso citar muitos exemplos de ângulos de um complexo programa de
atividades da vida de todo o dia. Vou citar um exemplo simples, mas que eu
considero incisivo e que pode até parecer ridículo de tão simples que parece
ser: Desenvolver habilidade para colocar água num copo sem derramar.
Colocar café num copinho sem fazer um desastre. Comer em público como
qualquer outro ser humano, de uma forma aceitável...
- Isso mesmo... Isso mesmo, Giovana. No meu tempo no Centro de
Reabilitação da Fundação chamavam essas atividades de AVP ou AVD.
- Que quer dizer o que, Sísifo? questionou Labda.
- AVP quer dizer Atividades da Vida Prática. AVD quer dizer Atividades da Vida
Diária... Mas me conte, Giovana, ao elaborar o projeto, eu imagino que vocês
dois chegaram a inserir muitos pormenores, não é mesmo? perguntou Sísifo
muito interessado.
- Claro. Fomos incluindo uma centena de coisas que nós, que enxergamos,
fazemos sem qualquer preocupação, porque usamos nossa visão, mas um
cego não consegue fazer bem feito, sem um treinamento. Além disso tudo,
havia a importante área de independência para caminhar com segurança,
usando uma bengala longa, que requer um treinamento especial. A gente
incluía também uma área que chamávamos experimentalmente de
visualização, que ajudava o cego a ter uma noção a mais real possível de
coisas intangíveis, delicadas ou muito grandes, como um prédio, uma cidade
toda, uma nuvem, um por do sol, um avião, um balão metereológico, um
semáforo, uma cordilheira... tantas coisas!
- E certamente vocês dois iam anotando e ordenando tudo! perguntou Noelma.
- Sem dúvida, porque o material levantado era finalizado para que membros
especiais da equipe se preparassem para o desafio todo. Isso na verdade era
fundamental. Mas tem mais assuntos. Dentre coisas mais delicadas ou
relacionadas a costumes... Por exemplo: as diferenças e alterações que
93
ocorrem na vida de uma pessoa desde o nascimento até a idade avançada...
as diferenças entre homens e mulheres, o relacionamento afetivo, o
casamento, a gravidez, o próprio nascimento de um bebê, a vida sexual, o
choro, o sorriso... Ih! Vocês nem imaginam quanta coisa precisamos levantar,
anotar, ordenar, buscar recursos áudio-visuais, ambientes e bolar formas de
transmissão dos conhecimentos sem cair no ridículo ou, pior e mais perigoso
ainda, na malícia. E registrar tudo isso ordenadamente, para o projeto poder
ser repassado a programas estruturados ou a profissionais avulsos
interessados, por ser exatamente essa a intenção da Piccola Casa. .
- Notável, notável isso, Giovana! Que experiência mais positiva, gente!...
comentou Britt levantando-se e aplaudindo.
- Antes de voltar do Brasil, esqueci de dizer que essa especialista, Dona Ivete,
comentou comigo com grande preocupação sobre a necessidade do cego ser
preparado para vida independente numa multiplicidade de aspectos. Muitos
deles óbvios e inquestionáveis. Alguns muito delicados e sutis. Contou-me
sobre Valentin Hauy e sua decisão de organizar uma entidade para ajudar os
cegos a saírem de situações absurdas de inadequações pessoais lastreadas
na falta de visão ou na doentia vontade de chamar a atenção e angariar
esmolas. Isso chamou minha atenção e ao procurar o apoio da Piccola Casa,
acabei sendo convidada para lá atuar, contratada especialmente para um
projeto demonstrativo para cegos, conforme expliquei antes. Fiquei surpresa
com a importância inquestionável de formulação de um programa destinado
exatamente a cobrir as necessidades de pessoas que viviam desvantagens
sociais das mais sérias, por meio de uma espécie de programa de educação de
base, cujo propósito era suprir conhecimentos não recebidos na vida escolar ou
familiar.
- E como é que vocês fizeram isso? Parece que nada semelhante existe, a não
ser tentativas de centros de reabilitação de pessoas com deficiência física.
- Assim que o Marco Antônio e eu começamos a levantar os múltiplos aspectos
a serem cobertos por programas bem definidos de orientação de cegos para a
vida independente, notamos, com crescente preocupação, que logo
chegaríamos a assuntos bem delicados e muito sutis da vida, incluindo
anatomia, sexo e coisas do gênero.
- Vocês ficaram preocupados com o que? perguntou Eurínome.
94
- Não era bem receio. Nós dois éramos solteiros e cada um do seu lado achou
que poderiam surgir alguns embaraços na citação dos temas e na formulação
do repasse das orientações, em pormenores, para pessoas necessitadas
delas. A gente temia que um impasse de fundo psicológico entre nós dois
poderia surgir nesse ponto, prejudicando a indispensável objetividade. Ficamos
um pouco indecisos a respeito e sentíamos que precisávamos de uma opinião
mais madura a respeito.
..............................................................................................................................
Numa manhã tranqüila, graças a uma sugestão do capelão franciscano de uma
das alas da Piccola Casa de la Divina Providenza, Marco Antônio e Giovana
tomaram o trem para Roma e foram de transporte público até a Isola Tiberina.
Seu objetivo, previamente combinado, era procurar um veterano frade
franciscano, já conhecido dos dois, Frei Andréa Martini, zelador das áreas
todas adjacentes à Basílica de São Bartolomeu, situada em frente ao Hospital
dos Fatebenefratelli.
...............................................................................................................................
- Seria o notável frei Martini? perguntou Labda, bastante envolvida na história.
- Ah... Você conheceu o frei Martini? Mas que bom! Nós o tínhamos conhecido
devido a alguns encontros especiais sobre educação para a vida adulta.
Quando chegamos na Basílica de São Bartolomeu, ele estava numa espécie
de varanda que ficava logo depois da sacristia, usando luvas negras e
compridas, segurando pedaços de uma argila especial que estava amassando,
para trabalhar numa de suas esculturas, todas elas muito esguias, muito altas e
elegantes. Você deve ter visto algumas...
- Vi, sim... Ele me deu algumas publicações que falam de suas esculturas nas
mais diversas partes do mundo. Fiquei fascinada com ele e ainda por cima ao
dizer adeus ganhei um beijo no rosto.
- Quando ele nos viu passando da sacristia da Basílica de São Bartolomeu
para esse quintal adjacente, desculpou-se um pouco e foi até um tanque de
água para livrar-se da argila, tirar as luvas e lavar as mãos. Com ele nos
sentamos por horas a fio, na própria sacristia. Foi lá que explicamos o projeto
todo e as dúvidas que tínhamos no momento. Dessa conversa surgiu a idéia
operacional de utilizarmos no projeto, um médico clínico, que deveria estudar o
assunto. Poderia fazer o ordenamento e a separação dos múltiplos aspectos
95
envolvidos e cuidar de assessorar quanto ao seu repasse com a delicadeza e a
objetividade requeridas. Segundo Frei Martini, esse médico poderia, por
exemplo, estudar a conveniência da separação dos cegos por sexo e por faixa
etária, a fim de discutir com tranqüilidade toda a temática da evolução da
fisiologia masculina e feminina, a questão do sexo e sua importância,
menstruação, gravidez e todos os demais assuntos co-relacionados.
- Isso deu certo, Giovana? quis saber Noelma.
- Deu muito trabalho, mas acabou dando certo. O projeto total foi aprovado pela
Piccola Casa e repassado in totum para organizações responsáveis por
esquemas de educação básica e mesmo de reabilitação de cegos num
congresso italiano na cidade de Milano.
- E vocês dois? quis saber Labda. Conseguiram atuar na implementação, na
indispensável revisão, nos acréscimos, na busca de novos temas?... Como a
coisa toda evoluiu?
- Conseguimos nos manter na coordenação local do projeto por muitos anos,
sim. Seu conteúdo em si nunca tinha sido considerado imutável, mas tinha
aberturas para adaptações a cada realidade e podia ser enriquecido com a
experiência dos mais variados profissionais, como de fato tem acontecido.
Soubemos por meio de nossos múltiplos contatos que a separação de temas
mais delicados por grupos masculinos ou femininos foi em muitos casos
efetivada e transmitida por meio de dinâmicas de grupo por profissionais bem
preparados que não eram necessariamente médicos.
- Esse material todo foi publicado, Giovana?
- Parece que não foi. Mas, devido ao seu uso em diversos centros, foi sendo
enriquecido conforme era aplicado na prática, como era esperado. No entanto,
não existe nenhum controle quanto a essa evolução, o que é uma pena.
Organizações representativas de cegos e deficientes visuais têm pensado em
publicar um volume sintético quanto a toda essa temática, seguindo mais ou
menos a idéia da ONU quando no passado havia decidido publicar uma série
que se chamava “Basic Equipment and Services for Rehabilitation Centres”.
Britt levantou-se e ao chegar mais próximo de Giovana, comentou:
- Seria ótimo se houvesse, de fato, um manual com orientações práticas a
respeito, indicando os princípios básicos de valorização do ser humano, de um
96
lado, e a necessidade de equipar centros e serviços específicos para os cegos
superarem as dificuldades que os mantêm marginalizados, de outro.
- Seria bom resgatar esse material, vocês não acham? perguntou Eurínome.
- Sem dúvida alguma, afirmaram vários participantes em uníssono..
- Volto a comentar que a intenção firme da direção do projeto era que esse tipo
de material fizesse parte de uma série mais ampla de temas que precisam ser
cobertos na educação global de qualquer ser humano e não apenas de
pessoas com deficiência, seja ela visual ou física. Todos nós sabemos muito
bem que a família sempre teve grande responsabilidade por isso, mas estamos
falando aqui de pessoas que, além de viverem com algum tipo de deficiência,
não tiveram a sorte de viver numa família ideal, chegando à idade adulta muito
despreparada.
- Giovana, você teve algum sucesso nas tentativas de resgate ou de
atualização desse material? perguntou Mestre Agostinho.
- Com a clara intenção de fazer uma revisão bastante cuidadosa em todos os
aspectos desse material, fiquei meses a fio tentando contatos com centros que
estavam utilizando esse material. Havia neles profissionais que estavam
procurando fazer algumas alterações ou adaptações mais relevantes, de
acordo com a realidade local. Seria ótimo juntar tudo isso num documento só.
- Conseguiu algum resultado promissor? insistiu Mestre Agostinho.
- Não tive tempo para alinhavar esses estudos porque acabei sofrendo um
acidente de moto que me levou a uma hospitalização muito problemática por
ter fraturado o alto de minha coluna, ficando quase tetraplégica. E depois de
meses de angústia, fui vítima de uma infecção hospitalar muito séria, que
acabou com a minha vida.
- Claro que todos nós lamentamos esse sofrimento todo, Giovana. Mas, me
diga se na atualidade deste nosso projeto, você acha que consegue resgatar
de memória os ângulos mais relevantes desse trabalho todo?
- Acho que será muito difícil em sua totalidade, devido aos pormenores dos
assuntos abordados. Claro que eu posso tentar, face à sua relevância,
dependendo também do tipo de apoio que o XPTO Voturuna puder me
conseguir, seja em equipamentos de gravação, seja em termos de trabalho
secretarial de transcrição. Mas enquanto eu não consigo qualquer resultado
concreto, gostaria de chamar a atenção de todos aqui presentes para a
97
importância daquilo que é chamado de Desenvolvimento Pessoal no processo
de reabilitação. Sem uma programação bem definida e persistente que desafie
reações de descrédito em seu conteúdo, quase nada acontecerá na buscada
inclusão social!
98
Capítulo Sétimo
IDADE MÉDIA - II
As Cruzadas e as Pessoas com Deficiência
Apesar de ter sido Urbano II o papa que verdadeiramente criou as Cruzadas e
que estimulou fortemente a realização da primeira delas, entre 1096 e 1099, é
muito importante que ressaltemos e prestemos a devida atenção ao papel de
um típico pregador popular daqueles dias, que ficou muito famoso no centro da
Europa: Pedro, o Eremita.
Vestido com uma longa túnica de lã parcialmente coberta por um manto escuro
com capuz, Pedro, o Eremita, andava descalço e apoiado em longo bastão.
Comia muito pouco, alimentando-se de peixe e vinho unicamente.
Ele teve muita influência no surgimento da chamada "Cruzada Popular", que se
caracterizava por bandos de pessoas do povo interessadas em peregrinar até
Jerusalém e ali lutar pela libertação da cidade santa, mesmo à custa da própria
vida.
Esse movimento quase espontâneo acabou levando à organização precária de
uma Cruzada do próprio povo contra os infiéis, bem dentro do espírito pregado
pelo papa Urbano II. E esse foi o seu mérito maior.
No entanto, procurando ordenar um pouco a incontrolável horda que já se
movimentava antes mesmo de os nobres terem se organizado, o papa tomou
uma posição enérgica: proibiu que participassem dessa peregrinação guerreira
desordenada os velhos, as mulheres solteiras e os deficientes físicos. Essa
posição do papa foi sacramentada pelo Concílio de Clermont, convocado para
discutir a questão das Cruzadas no ano de 1095.
Com essa ordem do chefe máximo da Igreja Católica, as pessoas com
deficiência física foram bloqueadas de lutar também pelos próprios postulados
da Cruzada, ou seja, a imediata reconciliação do pecador com a Igreja por
meio da confissão, mas sem os deveres da penitência (que seria a
peregrinação guerreira...).
99
A Cruzada Popular, como alguns historiadores a intitulam, acabou em total
tragédia nas proximidades de Nicéia e de Constantinopla, graças à
incompetência de seus chefes, e de não ter coincidido com o esforço guerreiro
dos nobres latinos de diversas partes da Europa, sob a liderança de um
delegado do Papa.
Barbeiros-Cirurgiões na Idade Média
Os clérigos e monges que viviam em mosteiros e abadias eram os detentores
dos melhores conhecimentos a respeito de doenças e doentes, e das
limitações físicas que sempre levavam as pessoas a situações de
miserabilidade e dependência. Logo após 1163, todavia, surgiria um outro
grupo de pessoas que muito se envolveu por séculos: os barbeiros. E por que
motivo?
Foi precisamente em 1163 que o Concílio de Tours proibiu todo o clero de
derramar sangue, seja em lutas, seja em hospitais ("Ecclesia abhorret a
sanguine").
Com a clara posição do Vaticano a respeito, a função passou aos poucos a
outras pessoas, sendo a mais indicada a do barbeiro, porque desde 1031 havia
obrigatoriamente barbeiros nos mosteiros e abadias. A partir desse ano todos
os monges e sacerdotes deviam respeitar um cânone do Concílio de Bourges
que afirmava que ..."todos os que forem empregados em funções eclesiásticas
portarão tonsura e terão a barba feita". Face aos instrumentos básicos que
utilizavam, ficou muito claro que o uso de navalhas e tesouras recomendava os
barbeiros para funções de sangria, lancetamentos e curativos.
Evolução dos Hospitais Medievais e as Deficiências
As Ordens dos Cavaleiros que se preocupavam de um modo especial com
doentes e com peregrinos, serviam também para socorrer as vítimas de
ciladas, os acidentados, os que sofriam de males mais graves e as vítimas das
intempéries à época dos rigorosos invernos. A primeira das Congregações
Religiosas que surgiu para dar atendimento direto só de enfermagem,
entretanto, foi a Congregação das Irmãs de Santo Agostinho, no ano de 1155.
Após a total desintegração do Império Romano Ocidental, sob a forte pressão
dos invasores bárbaros, os hospitais de diversos feudos e reinos da Europa
100
foram sendo instalados em cidades melhor organizadas ou mais ricas. Aos
poucos, com a ajuda de comerciantes abastados, bem como de médicos
formados em algumas das novas unidades de ensino chamadas de
"universidades", foram melhorando de padrão. E as cidades mais pujantes e
dinâmicas passaram de certa forma a competir para montar hospitais cada vez
mais sofisticados, dando assistência a um mais amplo número de pacientes,
sempre sob a custódia ou a manutenção de serviços de enfermagem por parte
de diversas ordens religiosas.
Durante os últimos séculos da Idade Média encontra-se notícias de
associações especialmente criadas que tentavam levantar e manter fundos
para a assistência a doentes e aos permanentemente deficientes que eram
mais pobres e que se mantinham alojados nas instalações dos hospitais, sem
qualquer esperança de cura.
A iniciativa tinha a intenção de evitar ou pelo menos de minorar as dificuldades
causadas pela superlotação perniciosa que estava ocorrendo nos hospitais,
onde esses pobres acabavam abrigando-se até a morte.
Não há notícia de tentativas bem sucedidas na construção ou mesmo na
simples instalação de entidades com finalidades muito específicas no
atendimento àqueles que tinham deficiências, a não ser nos casos de cegos e
também dos hansenianos, àquela época e por vários séculos futuros
reconhecidos por "leprosos", "lázaros" e outros apelidos, sempre temidos e
marginalizados em todo o mundo.
Do século XII em diante os hospitais, que conforme vimos eram organizados e
mantidos por religiosos recolhidos em mosteiros ou abadias, salvo raras e
muito honrosas exceções, ainda misturavam pessoas doentes com as que não
tinham meios de subsistência - e dentre estas ficavam sempre as pessoas com
deficiências físicas e sensoriais mais graves.
Esses hospitais foram a pouco e pouco sendo secularizados e, devido às
conseqüências cada vez mais sérias da concentração urbana, da falta de
cuidados básicos com a saúde e da inexistência de medidas de saneamento
básico e outras, um volume muito mais expressivo de doentes levou ao
aumento substancial de seu número.
Do século XII ao século XV, por exemplo, só a Inglaterra chegou a organizar
750 hospitais, dos quais 217 eram destinados às vítimas da temível "lepra".
101
Estigma da Hanseníase durante Toda a Idade Média
A lepra, hoje mundialmente conhecida como hanseníase, sempre causou
muitas mutilações e outros tipos de deficiências. Já existia no Egito e na Índia
muitos séculos antes da Era Cristã e foi conhecida dos gregos e dos árabes.
Levada para toda a Europa pelos soldados romanos, espalhou-se mais ainda
durante a época das Cruzadas.
Para combatê-la durante toda a Idade Média, foram tomadas muitas
providências concretas de separação do meio social por todos os povos, face à
periculosidade que apresentava e ao pavor de suas conseqüências.
Embora até hoje permaneça como um verdadeiro mistério o surgimento da
hanseníase no mundo, amedrontando por milênios a humanidade, é mistério
maior ainda o seu quase desaparecimento ao redor do século XVII na Europa.
Nos tempos bíblicos e nos primeiros dez séculos da Era Cristã já havia uma
certa variedade de males dermatológicos considerados como contagiosos.
Dentre eles destacava-se evidentemente a hanseníase, mas com ela
confundiam-se a psoríase, a escabiose e o ergotismo.
Na Idade Média, quando um homem era declarado "leproso" tinha apenas um
destino: banimento da sociedade e do convívio de seus familiares pelo resto da
vida. Para tal fim a sociedade armava-se de certas cautelas, sendo uma delas
o estabelecimento de uma comissão responsável pelo reconhecimento do mal.
Nessa comissão estavam obrigatoriamente incluídos um médico e um
hanseniano.
Muitos casos foram vítimas de diagnósticos mal formulados.
Os casos de ergotismo, por exemplo, apresentavam mutilações graves nos
dedos, devido à gangrena. Era um mal causado pelo uso continuado de farinha
de centeio com fungos venenosos e que em sua forma gangrenosa levava a
amputações muito sérias dos dedos.
Se o resultado do exame do doente suspeito de "lepra" fosse positivo, rezava-
se uma missa de Réquiem sobre ele, o que correspondia a um sepultamento
simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho o sacerdote,
acompanhado de um acólito que tocava uma matraca, dava orientações
básicas ao doente, repassando as proibições que iriam marcar sua vida futura.
Era-lhe proibido:
102
- entrar em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar público;
- lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte (devia saciar sua sede
usando uma caneca de sua propriedade exclusiva);
- sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e sem calçados;
- tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um bastão);
- tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos
cobertas);
- tocar ou ter relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive seu próprio
cônjuge;
- comer ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.
Com alguma sorte e com o apoio de sua família o doente poderia conseguir um
lugar num "lazareto" ou "leprosário". Caso contrário passaria a vida toda
espalhando o terror da doença, mendigando por comida e por bebida. Muitas
vezes identificando-se por roucos gritos de "impuro, impuro", o temido "leproso"
era também reconhecido por sinetas, matracas ou pequenas cornetas. A
esmola a eles destinada era colocada às carreiras no meio das vielas ou dos
campos.
Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas
que eram obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar chapéus ou
capuzes e às vezes faixas vermelhas.
Épocas houve na Europa, durante as quais eles eram obrigados a levar ao
peito um tecido vermelho com desenhos característicos.
Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de 2.000 "lazaretos" que se
destinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes.
Na Europa inteira, devido à extensão do problema, havia aproximadamente
19.000 desses abrigos, todos separando duramente seus doentes da
sociedade e deixando que morressem sem qualquer assistência.
Ricardo Coração-de-Leão e sua Vingança
Rei da Inglaterra, Ricardo Coração-de-Leão (1157 – 1199) esteve muito
envolvido com as Cruzadas e com diversos feitos heróicos que se tornaram
lendários. Ele tem sido citado como personagem quase que de ficção, tal a
quantidade de lendas e de histórias a seu respeito.
103
Segundo historiadores, um dos traços característicos desse rei famoso dos
ingleses era sua crueldade. Ricardo era valente, destemido, aventureiro, mas
muito cruel e vingativo.
Quando em guerra com a França, que procurava a todo custo desalojar os
ingleses da Normandia, Ricardo Coração-de-Leão chegou a praticar um dia
uma barbaridade inacreditável.
Devido ao extermínio de um grupo de seus melhores homens pelos franceses,
Ricardo mandou que trezentos cavaleiros franceses fossem atirados ao rio
Sena com suas armaduras, para ali morrerem afogados. Ainda não satisfeito,
mandou vazar os olhos de 15 outros cavaleiros que foram mandados de volta,
ao encontro do rei Felipe Augusto (1165 a 1223), guiados por um cujo olho
direito havia sido poupado, imitando de certa maneira a brutal atitude de Basílio
II, imperador bizantino.
Segundo Finlay, Felipe Augusto não se deixou ficar atrás: tratou quinze
cavaleiros ingleses aprisionados da mesma forma.
Finlay comenta em sua obra que vazar os olhos de soldados ou de pessoas
culpadas, em geral, foi um costume comum em toda a Europa, por diversos
séculos. Era visto, portanto, sem exagerado horror, como o fazemos hoje.
Na Inglaterra foi apenas em 1403, durante o reinado de Henrique IV, que o
Parlamento inglês aprovou um ato que considerava como crime as penas de
cortar a língua ou de vazar os olhos das pessoas (Apud Finlay).
Hospitais Proliferam no Oriente Próximo: Século XIII
Prosseguindo seus esforços para dar assistência aos doentes mais
necessitados, e para melhor desenvolver os conhecimentos médicos de então,
o governante turco Seljuk e seus sucessores (turcos otomanos) criaram
diversos hospitais e escolas de medicina.
Segundo o Professor Dr. A.Süheyl Unver, diretor do Instituto de História da
Medicina da Universidade de Istambul, os mais antigos desses
estabelecimentos de ensino teórico e prático foram os de Kayseri (1206) e de
Amasya (1205).
Ainda dentro do século XIII surgiram os hospitais-escolas de Sivas, no ano de
1214, Konya, em 1219, Çankiri, em 1235 e outros mais. É interessante notar
que os hospitais estabelecidos em Kayseri e Çankiri colocaram em sua entrada
104
a figura de uma serpente. Este símbolo, apesar de grego em sua origem,
graças aos templos de Asclépios, chegou aos turcos por influência dos
egípcios (Apud Unver).
Progressos da Medicina Até o Século XIV
Por volta de 1250, a Europa Ocidental e suas novas organizações ou
associações de ensino programado (universidades) começaram a absorver os
conhecimentos e as experiências médicas acumulados pelos árabes, quase
todos extraídos da cultura grega clássica.
Na Itália e na França a cirurgia começou a dar passos interessantes,
especialmente com o concurso de Guy de Chauliac (1300 a 1368) que chegou
a fazer operações de catarata com sucesso. A anatomia teve também seus
progressos marcantes com o médico italiano Mondino De Luzzi (1270 a 1326).
A dissecação de cadáveres, deixada de lado por aproximadamente dez
séculos, foi retomada, uma vez que os médicos tinham apenas noções de
anatomia retiradas das obras de Galeno.
Mondino De Luzzi escreveu uma obra intitulada "Anathomia" no ano de 1316, e
essa obra tornou-se padrão para ensino por mais de duzentos anos na Europa.
Evidentemente esses progressos todos beneficiaram toda a humanidade, e
dentro dela, de um modo especial pessoas que sofriam as conseqüências das
doenças crônicas ou que provocavam limitações na plena utilização do corpo.
Um dos resultados práticos da formação de médicos em universidades foi uma
pequena ampliação do número de hospitais mais dedicados a tratamento do
que a abrigo, como era de se esperar.
De acordo com o cronista italiano Giovani Villani, só na cidade de Florença
havia, pelo ano de 1300, trinta hospitais gerais e uma verdadeira rede de
assistência a doentes e deficientes pobres, com capacidade para 1.000 vagas.
Epidemias na Idade Média e suas Conseqüências: "Castigo de Deus"?
É preciso aqui relembrar que dos anos 500 até o século XVI - portanto, durante
toda a Idade Média praticamente - o mundo europeu viu decrescer muito os
cuidados básicos com a saúde e com a higiene na imensa maioria das cidades,
um pouco em decorrência do seu contínuo crescimento. Os aglomerados
urbanos menores também não tinham qualquer infra-estrutura ou recurso
105
voltado para a saúde de sua população. E por muitos séculos, os habitantes
das cidades medievais viveram sob o permanente receio das epidemias ou das
doenças mais sérias.
Devido à ignorância imperante, as epidemias ou pestes, as doenças mais
graves, as incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as
malformações congênitas eram considerados como verdadeiros sinais da ira
celeste e taxados como "castigos de Deus".
E, como não podia deixar de acontecer, e como nos relatam todos os
historiadores, ocorreram diversas epidemias de gravíssimas conseqüências,
grandes incidências de males não controlados pelos médicos que nem
chegavam a atinar com suas causas ou não dispunham de meios para debelá-
los com sucesso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e outros
males devastaram diversas vezes a Europa durante os vários séculos da Idade
Média e deixaram um significativo saldo de pessoas que sobreviveram. Muitas
delas conseguiram salvar-se, mas com sérias seqüelas, para ver o resto de
seus dias passar em situações de extrema privação e quase que absoluta
marginalidade.
Medicina Qualificada e Falta de Assistência Geral
Durante todo o período medieval, com exceções não levantadas mas que
certamente devem ter ocorrido, o trabalho do médico mais qualificado, isto é,
daquele formado pela prática ao lado de outros médicos ou daquele que depois
do século XI começou a ser formado pelas universidades, na grande maioria
dos casos continuava não sendo desenvolvido dentro dos hospitais. A
proliferação dessas casas especialmente destinadas a recolher os doentes
provenientes de famílias sem recursos, muitos deles com males incuráveis ou
defeitos físicos bastante limitadores, foi um fato comprovado e verificado em
todos os países europeus. Construções especiais eram raras e dentre elas
cumpre destacar o Hospital de São Bartolomeu, em Londres, que começou a
funcionar no ano de 1123.
E para nós, mesmo tão distanciados da Idade Média, não é nada difícil
imaginar que esses doentes não tinham a mínima condição de pagar, quer
pelos serviços do médico, quer pelas mezinhas ou pelos curativos feitos em
outros ambientes. Assim, hospitais continuariam por séculos sendo verdadeiros
106
depósitos de pessoas pobres, à beira da morte, ou vitimadas por males
crônicos e defeitos físicos graves que lá ficavam até morrer, sem família e sem
amigos.
Os médicos continuariam também por séculos como profissionais muito caros e
muito raros em muitas partes da Europa para a população mais pobre e
desprovida de recursos mínimos para encontrar soluções aos problemas
decorrentes de enfermidades ou de acidentes - a não ser aquelas advindas da
medicina caseira ou dos charlatães.
Soluções Populares e Crendices
Como em épocas mais antigas da História da Humanidade, as camadas mais
pobres da população tinham suas soluções para doenças. Muitas delas eram
multisseculares, enriquecidas com a experiência de certos núcleos
populacionais mais adiantados, mas empobrecidas pela falta de registro de
seus segredos. Benzeduras de um lado, exorcismo e ritos misteriosos de outro,
entremeados pelo uso de medicamentos extraídos de produtos naturais, tudo
isso fazia parte da medicina popular.
A crença generalizada nas maldições e nos feitiços, na existência das doenças
e das deformidades físicas ou mentais como indícios da ira de Deus, ou como
resultado da atuação de maus espíritos e do próprio demônio, sob o comando
direto de bruxas, era às vezes levada a extremos.
Acreditava-se, por exemplo, que a epilepsia era conseqüência de uma
possessão instantânea por um espírito maligno e o remédio era o exorcismo
por ritual ou pela tortura.
Destino das Pessoas com Deficiência na Idade Média
Durante toda a Idade Média e principalmente durante seus séculos mais
obscuros, crianças que nasciam com seus membros disformes tinham pouca
chance de sobreviver, devido às crenças e às histórias fantásticas transmitidas
pelas mulheres que praticavam a função de curiosas ou aparadeiras. Essas
crianças cresciam separadas das demais e eram ridicularizadas ou
desprezadas. Os exemplos de anões e de corcundas inseridos na sociedade
medieval com certo destaque são significativos.
107
As superstições da época medieval levavam a atribuir a essas pessoas
poderes especiais para uma espécie de contra-ataque aos efeitos deletérios de
feitiços ou de maldições, do mau-olhado e mesmo das pragas e das epidemias.
Com o tempo, essas pessoas disformes foram sendo objeto da diversão das
grandes moradas e dos castelos dos nobres senhores feudais e seus vassalos,
e mesmo das cortes de muitos reis, devido à sua aparência grotesca, aos seus
trejeitos e também a uma propalada sabedoria de que não dispunham. Esses
tipos de pessoas com deficiência - corcundas e anões - começaram aos
poucos a ter livre acesso a todos os ambientes - traziam sorte e afastavam os
demônios - podendo alguns inclusive participar de todas as conversas e falar o
que bem entendessem, pois eram supostamente tolos, divertidos e
inconseqüentes.
Os famosos indivíduos deformados e por vezes repelentes, segundo os
historiadores, extravagantemente vestidos, temidos por serem manipuladores
de situações embaraçosas e conhecedores de segredos delicados de alcova,
chantagistas e confidentes de seus senhores, na maioria dos casos acabaram
não passando de pessoas simplórias.
E a História do mundo conta-nos casos em que esses "bobos da corte"
cumpriam ordens criminosas de seus senhores, aos quais deviam servil
obediência. O bufão corcunda hindu conhecido por "Vidusala" (significa
atrevido) é certamente um dos primeiros a aparecer com destaque na literatura,
pois logo nos primeiros séculos da Era Cristã ele aparece em trechos de
dramas e mesmo em eventos da antiga sociedade da Índia.
Significado das Deficiências na Idade Média
Conforme verificamos anteriormente, por falta de conhecimentos mais
profundos quanto às doenças e suas causas, falta de educação generalizada e
o receio do desconhecido e do sobrenatural, ocorria na Idade Média uma
verdadeira necessidade no seio do povo e mesmo das classes mais abastadas,
de dar aos males que provocavam deformações uma conotação diferente e
misteriosa, muito mais diabólica e vexatória do que em qualquer outro sentido
mais positivo.
O significado religioso ou sobrenatural das deformidades mais marcantes,
durante essa época, pode ser perfeitamente notado em alguns quadros
108
pintados durante o seu transcorrer. Neles, tanto os espíritos malignos da
hierarquia imaginária de Satã quanto os seres lendários e de comportamento
malévolo e desumano são invariavelmente representados por seres com os
rostos monstruosos, os pés deformados, as cabeças enormes ou muito
pequenas, as orelhas desproporcionais, o nariz aquilino muito comprido,
corcundas, membros retorcidos...
E apesar dos esforços eventuais dos grupos religiosos - e mesmo da própria
doutrina cristã - o povo em geral acreditava que um corpo deformado somente
poderia abrigar uma mente também deformada. Caso contrário certamente não
teria havido necessidade das autoridades da Igreja Católica, por meio dos
preceitos canônicos, justificar a não aceitação de pessoas com deficiências ao
sacerdócio com estas palavras que bem mostram a atitude imperante, ou seja,
o reverso da medalha: . . . "essas restrições ao sacerdócio davam-se para
benefício da Igreja e não por considerar as pessoas como manchadas ou
indignas" (Apud Thomassin).
Dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios para
garantir sua sobrevivência de maneira digna, restou à pessoa com defeitos
físicos ou sensoriais a posição de elemento marginalizado e o recurso à
esmola diária, sistemática, para com isso ganhar seu sustento.
Pelas estradas, praças e caminhos mais importantes da Europa Medieval, por
onde passavam de quando em quando nobres cortejos e os bem ajaezados
cavaleiros e cruzados, sujos e por vezes asquerosos seres humanos, com seus
membros deformados ou suas feridas à mostra, defendiam-se como podiam
para garantir seu infeliz sustento. Chegaram a organizar-se em verdadeiras
redes para angariação de esmolas e de donativos.
De seu lado, a população ligada aos vassalos e seus senhores, aos reis e à
nobreza toda, bem como os comerciantes e homens enriquecidos pela sorte ou
pela aventura - e mesmo o povo mais simples - todos temerosos dos invisíveis
e fantasiosos poderes malignos que esses seres deformados poderiam ter,
faziam de tudo para os afastar, mantendo-os longe de si em todas as ocasiões
e por vezes até pagando por isso com comida ou com esmolas.
Na verdade algumas dessas situações não são de todo diferentes hoje. Se nós
observarmos, por exemplo, as ilustrações em histórias de quadrinhos e sem
dúvida alguma muitos dos desenhos animados apresentados em nossa
109
televisão para entretenimento de nossos filhos, além de peças teatrais e filmes,
notaremos que algo de medieval e, no fundo, de muito cruel existe em nossa
sociedade pretensamente cristã e humanista. Bandidos, bruxas, gente perversa
ou mesmo pervertida, por vezes são apresentados com seus corpos ou alguns
de seus membros deformados.
Privilégios para Cegos Durante a Idade Média
Sob diversos aspectos a situação era bem diferente para os cegos,
principalmente para aqueles que viviam na França durante o século XIII, por
exemplo. Já ao final do século XI e início do século XII, em Rouen, em Chálons
e perto da cidade de Orléans, havia abrigos que aceitavam os cegos mais
pobres. Também na cidade de Chartres havia um recurso para atendimento
aos cegos. Era uma verdadeira comunidade criada por Renaud Barroult e
conhecida como "Les Six-Vingts".
Sob o reinado de Luiz IX (1214 a 1270), conhecido como São Luiz de França,
foi criado um novo abrigo chamado "Hospice des Quinze-Vingts", por iniciativa
direta do rei, no ano de 1260. Sua criação chegou a beneficiar fortemente uma
confraria pobre de cegos cujos membros, à falta de outro local, reuniam-se no
Bosque de Garenne, em Paris. Quando o local foi descoberto pela coroa e pelo
povo em geral, ficou conhecido pelo apelido de "Champovri", de uma corruptela
para as palavras "Champ des Pauvres" (Campo dos pobres).
Qual teria sido o interesse direto de Luiz IX para dedicar tempo e dinheiro na
criação de uma organização dispendiosa só para cegos? Segundo consta,
quando Luiz IX foi aprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada,
trezentos de seus soldados tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por
ordem direta do sultão, à base de vinte por dia durante quinze dias, enquanto
aguardava os resultados da demorada negociação para pagamento do pesado
resgate exigido para libertação do rei da França. Quando de sua volta São Luiz
dedicou-se com seriedade e muito empenho ao problema do abrigo dos cegos
e mandou construir a famosa entidade para dar assistência de morada e
alimentação pelos menos a 300 cegos.
Entretanto, o incidente alegado para justificar o interesse de Luiz IX nos cegos
não é confirmado por vários de seus biógrafos.
110
O rei foi muito atacado ainda durante sua vida por ter dedicado tanto esforço
oficial aos cegos. Rutebeuf, trovador e satirista francês do século XIII, cantava
ironicamente pelas ruas de Paris: "Eu não sei porque o rei juntou trezentos
cegos em uma casa, só para eles saírem às ruas de Paris, o dia inteiro,
pedindo esmolas incessantemente. Eles dão encontrões uns com os outros,
machucando-se, pois, não há nenhum deles que os lidere" (Apud French).
Entre os reinados de Luiz IX e Luiz XVI os cegos emanciparam-se e receberam
privilégios tanto de reis quanto de bispos da Igreja Católica, chegando mesmo
a acumular riquezas enormes e a vestir-se de veludo, um dos tecidos mais
dispendiosos da época.
A Igreja ajudou significativamente dando-lhes permissão expressa e exclusiva
para esmolar nas escadarias e nas portas das igrejas. Tinham também
autorização eventual para vender grinaldas e flores dentro de suas naves.
Não é difícil imaginar que idéias de emancipação dos cegos nesses 500 anos
da História Francesa fossem tidas como uma espécie de questionamento da
autoridade da poderosa Igreja Cristã, ou talvez um sacrilégio. Os primeiros
bispos que deram as famosas autorizações exclusivas, tanto para mendigar
nas portas das igrejas quanto para comercializar flores, foram o de Paris e o de
Chartres. Não foram autorizações individuais, mas dirigidas às corporações dos
cegos.
A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações não
ocorria apenas na França. No ano de 1337 surgia em Pádua, na Itália, a
Congregação de Santa Maria dos Cegos. Uniam-se esses cegos sob a
liderança de um mestre, observando regras próprias e muito severas, por eles
estabelecidas, como, por exemplo, a proibição de dizer palavrões e blasfêmias.
Dois Heróis Históricos com Deficiência nos Séculos XIII e XIV
Podemos destacar duas personagens históricas, uma na Europa e a outra na
África, e ambas com deficiências físicas sérias. São elas:
Sundiata, um líder negro Mandingo que, após ter conquistado Gana, no Oeste
Africano, estabeleceu as bases de um novo e mais poderoso império
Mandingo, ou seja, o chamado "Império Mali", em pleno século XIII. Sundiata
era um homem com ambas as pernas paralisadas, segundo depoimento de N´
111
Kanza, alta funcionária da Organização das Nações Unidas e ex-diretora do
Centro das Nações Unidas para Assuntos Humanitários e Sociais de Viena.
João de Luxemburgo, também conhecido como João, o Cego, nascido em
1296, era rei da Boêmia, filho de Henrique VII. João de Luxemburgo ficou cego
em 1340, com 44 anos de idade, devido a um mal não identificado pelos
médicos de sua corte. Mesmo cego, sempre imbuído de um vivo espírito
aventuresco que o caracterizou fortemente até sua morte, continuou a
participar de diversas campanhas militares, em muitas partes da Europa. Foi
morto em plena batalha, em Crécy, no ano de 1346, lutando em prol de Felipe,
rei da França.
Hospitais Face às Pessoas com Deficiência - Séculos XIV e XV
Apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade das situações
encontradiças nos diversos países europeus que se formavam com o gradativo
esfacelamento do sistema feudal, o atendimento médico de um modo geral
progredia - o que seguramente muito significou para pessoas que sofriam as
conseqüências de males limitantes.
Dentre providências marcantes no sentido de ampliar o atendimento nos
hospitais existentes podemos citar aquela tomada por Carlos VI, da França
(1368 a 1422). Assinou uma ordem real estabelecendo uma coleta obrigatória
em benefício dos hospitais, por ocasião dos casamentos. Essa coleta ajudou
efetivamente na redução dos custos tanto dos hospitais quanto dos remédios, e
na construção de alguns novos hospitais para dar atendimento e abrigo a um
maior número de doentes, de pobres sem família e sem condições de
sobrevivência e também de pessoas com deficiências permanentes.
Uma outra iniciativa interessante ocorreu na Espanha. A rainha Isabela, a
Católica (1451 a 1504), mandou montar verdadeiros hospitais em localidades
próximas às frentes de combate. Eram hospitais transitórios e foram quase que
institucionalizados desde então, pois foram considerados como muito úteis
para o atendimento imediato e o conseqüente salvamento de vidas em grave
perigo. Durante o cerco de Málaga - talvez a primeira experiência desses
hospitais de campanha - receberam o nome de "ambulâncias".
Uma observação final quanto aos hospitais existentes na Idade Média:
Segundo diversos autores, eles existiam mais para o cuidado do que para a
112
cura das pessoas; menos para alívio do corpo e de suas dores do que para
assistência da alma e sua preparação, considerada indispensável pelas
religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.
Na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer
conhecimento científico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como
o amor ao próximo e a fé na outra vida, na vida após a morte.
Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as
inglesas, eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do
que se poderia supor. Dessa forma podemos também imaginar que, apesar
dos relatos transmitidos pelos historiadores menos avisados, todos os
pacientes internados em hospitais europeus de certa qualidade, seja por
doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves, recebiam
mais cuidado profissional do que o imaginado.
De outra parte pode-se também afirmar que ao final da Idade Média as
sociedades existentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do
reconhecimento de sua responsabilidade face aos pobres em geral. Inseridos
no contexto estavam todos aqueles que eram, além de pobres, deficientes e
impossibilitados de se sustentar.
No final do século XV os problemas específicos das pessoas com deficiência
ainda não eram nem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que
faziam essas pessoas parte de um grupo bem maior e de uma problemática
mais séria ainda, ou seja, aquela representada pelos pobres, pelos enfermos,
pelos mendigos. Ela marcou e chegou mesmo a caracterizar os ambientes das
cidades e dos campos europeus do final da Idade Média.
Na penosa história do homem com deficiência começava a findar uma longa e
muito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida os tempos
conhecidos como "Renascimento" - época dos primeiros direitos dos homens
postos à margem da sociedade, dos passos decisivos da medicina na área de
cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimento de uma filosofia humanista e
mais voltada para o homem, e também da sedimentação de atendimento mais
científico ao ser humano em geral.
113
Capítulo Oitavo
BRITT
Agostinho olhou com atenção cada um dos componentes do seu grupo de
assistentes especiais. Embora ainda incompleto devido à falta de apenas um
especialista buscado pelo sistema próprio adotado pela ONU, ele depositava
sua esperança de evoluir para a definição do pretendido projeto de aplicação
universal, destinado à verdadeira e efetiva inclusão das pessoas com
deficiência na sociedade.
Recebido o reforço esperado, seu grupo de assistentes especiais precisaria
transformar-se numa verdadeira força de trabalho, bem afinada e
especialmente preparada para tal fim.
Ao repousar os olhos sobre Britt, sentiu-se melhor, porque, no fundo da alma
ela era parte do reforço técnico para poder dar forma ao tipo de recurso de
atendimento a ser implantado. Ela chegara ao XPTO Voturuna com uma
imagem de competência praticamente perfeita e um tipo de experiência de alta
relevância para o projeto.
Aceita desde o início sem qualquer restrição pelo grupo original, hoje seria seu
dia de exposição pessoal para que os novos participantes tivessem uma idéia
de sua vivência anterior. O mesmo procedimento seria adotado, por sorteio,
com relação aos demais assistentes.
Quando notou que todos haviam se acomodado, explicou:
- Meus prezados, vocês sabem muito bem que reuniões que se iniciaram outro
dia com a exposição da Labda e que hoje será da Britt, correspondem a um
dos meios para garantirmos uma equipe de assistentes especiais cada vez
melhor entrosada. Vocês sabem melhor do que eu que cada um veio de
épocas e circunstâncias as mais variadas e precisaremos deixar
meridianamente claros os conhecimentos que temos de cada um, a fim de nos
tornarmos mais fortes e eficientes diante dos desafios que nos aguardam.
Baseados em várias das idéias aqui discutidas é que estaremos estabelecendo
os parâmetros de nosso projeto especial sobre condições para universalizar
114
meios práticos e economicamente viáveis de garantir a desejada inclusão
social de grupos marginalizados por motivos variados, inclusive as deficiências
físicas, sensoriais, mentais, múltiplas e - por que não? - sociais.
Levantando-se, caminhou na direção de Britt, tomou sua mão direita. Ela sorriu
e levantou-se para Mestre Agostinho levá-la até a frente do grupo.
- Hoje teremos, então, o depoimento pessoal da Britt, nossa assistente especial
e consultora em aspectos especiais de reabilitação latu sensu, cobrindo sua
experiência pessoal e profissional, como estaremos procurando fazer com
todos os assistentes especiais antigos. Fique à vontade, Britt. Conte a este
grupo aqui a seu respeito tudo aquilo que considerar relevante, nada mais,
nada menos.
Britt, em pé diante de seus colegas, agradeceu as palavras de Mestre
Agostinho e, sorridente, correu seus olhos de um em um, com intenso
interesse. Muito elegante em seu vestido longo azul claro, que tinha sutis
bordados noruegueses na gola em V e que ressaltava com muita classe os
contornos do seu corpo esbelto de fisioterapeuta em plena forma, Britt
começou a caminhar devagar de um lado para o outro do ambiente onde o
grupo estava acomodado, usando sapatilhas baixas e coloridas, mostrando
uma segurança e um controle físico e emocional dos mais apurados.
- A grande maioria de vocês sabe que eu sou norueguesa, não é verdade?
- Nasceu em Oslo mesmo, Britt? perguntou Labda.
- Sim, em Oslo, numa chácara muito linda, bem ao norte da cidade, perto
daquele restaurante famoso e mirante muito conhecido como Frognerseteren.
Minha educação básica ocorreu num ambiente suburbano bem adequado, mas
acabei estudando fisioterapia em Oslo. Logo depois de formada, isso nos anos
60, com meus 21 anos de idade, consegui um emprego muito positivo e muito
cobiçado para o meu desenvolvimento profissional, em Oslo, no State
Rehabilitation Centre. Era bem famoso e sem favor nenhum era o melhor
centro de reabilitação global de toda a Noruega.
Postou-se com as mãos sobre o espaldar de uma cadeira vazia e continuou:
- Neste levantamento das circunstâncias de vida de cada um de nós, para
melhor compor a equipe que deve trabalhar na próxima etapa do estudo não só
para revisão da História da Humanidade naquilo que se relaciona a pessoas
com necessidades especiais, mas também para montarmos um projeto viável
115
de aplicação universal para sua inclusão social, chegou a minha vez de
repassar a vocês meus dados pessoais e informações quanto à minha vivência
dos assuntos de nosso interesse comum.
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Sentindo o ambiente de alto interesse daquele grupo, Britt ressaltou a
qualidade dos profissionais da equipe do Centro onde trabalhara e a
serenidade com que atuavam, durante os primeiros anos de sua vida
profissional.
Além de seu trabalho diário, ela freqüentava, junto com uma colega do Centro,
muito interessada no seu crescimento profissional num ambiente tão
competitivo como era o da Noruega de então, uma Universidade no preparo de
seu mestrado. Havia tomado essa decisão não apenas devido ao seu interesse
pelo seu crescimento profissional, mas também porque dispunha de muito
tempo livre depois de suas atividades no trabalho - especialmente durante o
verão com seus dias muito longos - e não suportava a idéia de ficar presa a
uma televisão.
Ela havia se casado uns meses antes de seu contrato com um primo em
segundo grau e amigo de infância, por influência de uma de suas primas, na
qual depositava toda a sua confiança.
Mas, a partir de um determinado ponto de sua atuação no State Rehabilitation
Centre, a vivência que foi adquirindo por meio de contatos profissionais com
integrantes das equipes técnicas da ONU e da Organização Mundial de Saúde,
foi ampliando seu leque de interesses, escapando aos poucos dos objetivos
restritos da fisioterapia. Ficou seus primeiros cinco anos como fisioterapeuta e,
logo em seguida, assumiu a chefia do pequeno setor por rodízio. Isso
aconteceu logo após o desligamento de sua chefe e sempre amiga Ana
Cederholm, uma fisioterapeuta dinamarquesa de extrema competência.
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- Tive diversas oportunidades de ampliar meus conhecimentos não só da
fisioterapia, mas também e principalmente dos esquemas técnicos da
reabilitação global, principalmente por meio de cursos levados a efeito nas
universidades da região, depois da conclusão do meu mestrado. Eu não posso
deixar de enfatizar o significado dos meus contatos por correspondência e por
malote diplomático, com um dos maiores especialistas que atuava na ONU, Dr.
116
Marcus Monteiro, com o qual mantive uma contínua troca de pontos de vista
quanto à reabilitação em si e quanto aos seus indispensáveis requisitos. Tanto
ele quanto eu escrevíamos bastante e alguns de nossos artigos foram
publicados em revistas variadas. Para minha surpresa, no entanto, três anos
depois de assumir a chefia do Setor de Fisioterapia, por indicação da
Rehabilitation International fui convidada a participar do Programa de
Assistência Técnica da ONU, para atuar num projeto em parceria com a
Organização Mundial de Saúde e o UNICEF na Pérsia daqueles dias.
- Uau! Garanto que esse convite surpreendeu você, comentou Noelma.
- Surpreendeu a mim e até a Diretores do Centro. Os referenciais do projeto do
interesse das três organizações eram amplos e contavam com alguns
especialistas que a ONU e a Organização Mundial de Saúde já estavam
colocando à disposição desde alguns anos em Shiraz.
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A missão proposta pela ONU para Britt incluía o planejamento e a montagem
de um serviço de fisioterapia, usando recursos paralelos locais e substituindo o
setor que procurava dar cobertura aos pedidos dos técnicos em próteses e
órteses, com algum sucesso. Esse serviço pretendido precisaria ter condições
de evoluir com desenvoltura para ser ligado a um setor de formação de
fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais em Shiraz, para uma importante
unidade de saúde conveniada com a Universidade de Teheran, a ser planejada
e posta em funcionamento com sua consultoria, tanto nos aspectos teóricos
quanto práticos no que dizia respeito à fisioterapia.
Era intenção da Seção de Reabilitação do Bureau de Assuntos Sociais da
ONU, em contínua parceria com a Organização Mundial da Saúde, dar
cobertura a uma solicitação do governo persa, a fim de que, tão logo estivesse
engajada no projeto mais amplo, já em andamento por mais de três anos, Britt
também se dedicasse a colaborar com médicos iranianos para a montagem de
um esquema oficial de treinamento de fisioterapeutas, de natureza muito mais
ampla, voltado mais para casos hospitalares e beneficiando claramente
profissionais dos países do mundo árabe.
Era intenção dos coordenadores do projeto que, logo depois de contratada e
assim que fosse localizada em Shiraz, sua atuação dentro do grande projeto de
assistência técnica deveria fazer parte de um grande esquema para
117
desenvolvimento global da assistência plena a pessoas com deficiência no
país. Essas idéias faziam parte do projeto regional que era desenvolvido com a
coordenação do consultor geral da ONU para o mesmo, Otto Wandell Holm,
originário de Udense, na Dinamarca. A grande preocupação dele, como
profissional, sempre tinha sido garantir o atendimento global das pessoas, pelo
que lutava continuamente onde quer que atuasse.
O projeto em si tinha merecido o contínuo interesse de Farah Diba, imperatriz
da Pérsia, como era conhecido o Iran daqueles dias. Tinha sido iniciado por
meio de um esquema regional para treinamento de técnicos em próteses e
órteses originários de países árabes, preparado por um especialista em
próteses e órteses alemão, Werner Wille, também contratado pela ONU.
Tratava-se de um profissional muito sério e competente, herói alemão da
Grande Guerra, durante a qual havia sido piloto de um Stuka. Seu avião havia
sido abatido depois de metralhado por um Spitfire inglês sobre solo da Polônia.
Na queda do seu veloz “caça”, ele saltou do avião em chamas, mas por falta de
sorte, enquanto o seu paraquedas começava a abrir e ele era puxado para fora
da cabine, sua perna direita bateu fortemente no estabilizador do avião.
Atendido com certa precariedade no próprio local de sua queda, que era uma
área rural sem recursos, teve sua perna direita amputada dias depois, após
tentativas infrutíferas para a recuperação de toda a parte gangrenada da perna.
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- Como é que você conseguiu ser assim “pinçada” pelas Nações Unidas para
esse projeto, hein, Britt? Como é que isso aconteceu? quis saber Noelma.
Ela sorriu levemente e acabou afirmando:
- Ah... me desculpem por confessar, mas aí no meio há uma pequena história
de relacionamentos que ampliaram meu leque de contatos profissionais. Eu
acho que pode ter influenciado no momento de minha indicação, apesar da
missão ter tudo a ver com minha formação e atuação profissional.
Surpresa, Eurínome não teve dúvida em perguntar:
- Você não se importa de contar para a gente essa pequena história de
relacionamentos, como diz você, Britt? Ou ela é um segredo pessoal que você
prefere guardar?
- Não me importo nem um pouco, porque, foi tudo muito natural e positivo tanto
nas relações pessoais quanto profissionais. Não ocorreram conseqüências
118
pessoais ou profissionais desagradáveis em nenhum momento. Pelo contrário,
foi tudo muito objetivo e duradouro, tendo significado quase tudo de positivo em
minha vida pessoal e profissional e até a hora de minha morte, podem crer.
- Devem ter sido relacionamentos muito fortes e positivos mesmo! comentou
Sísifo demonstrando surpresa.
- Foi mesmo, Sísifo. Foram contatos muito espontâneos e muito autênticos.
Creio mesmo que especialmente um desses relacionamentos, com toda a
tranqüilidade, pode ser considerado eterno.
- Estou muito curiosa, Britt, afirmou Labda, sorrindo, com as mãos presas entre
seus joelhos, olhando-a com intensidade. Na verdade acho que todos
estamos... porque você deixou uma duvidazinha no ar...
- Pois eu vou contar então. Paciência comigo, meus amigos.
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Durante o verão do ano de 1970, o Centro de Reabilitação onde Britt atuava
recebeu um convite para demonstrar a um grupo de participantes do Seminário
das Nações Unidas sobre Administração de Centros e de Programas de
Reabilitação, o seu sistema de funcionamento, seu trabalho de equipe sem
uma coordenação específica, sua visão de reabilitação e as soluções de
trabalho que havia desenvolvido. O convite foi orgulhosamente aceito pelos
diretores e pela equipe toda, seis meses antes de sua realização, dando plenas
condições para a definição de uma estratégia de demonstração participativa.
O Seminário era financiado pelo Programa Expandido de Assistência Técnica
da ONU, de uma dotação do Governo Dinamarquês para projetos de sucesso
na Escandinávia. O grupo internacional de participantes selecionado pela
Seção de Reabilitação do Bureau de Assuntos Sociais, contava com
especialistas de 30 diferentes países em desenvolvimento. Era coordenado por
um especialista dinamarquês. Tinha como Co-Diretor pela ONU, um outro
especialista de seu quadro de pessoal técnico, Dr. Marcus Monteiro, médico
especializado em reabilitação global, que havia atuado em vários países e por
mais de cinco anos na Organização Mundial de Saúde.
Quando da efetivação dessa visita, a participação de Britt, ao lado de Ana, na
função de fisioterapeutas, foi demonstrar novas técnicas bastante efetivas de
tratamento para casos variados. Ambas tiveram que fazer alguns comentários
sobre os exercícios que estavam aplicando, num inglês um pouco truncado.
119
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- Isso tudo deu certinho? Você e a Ana saíram-se bem na demonstração,
então? perguntou Eurínome.
- Foi, na verdade, muito tranqüilo. No final do dia, todo ele voltado para
aspectos mais específicos das atividades demonstradas, os diretores do meu
Centro tinham programado várias visitas a pontos de cunho histórico e turístico,
passando pelo Museu Kon-Tiki e depois pelo famoso Parque Vigeland. O
grupo terminou suas visitas perto de uma stavekirke, que é uma igrejinha de
madeira localizada no Museu Folclórico, construída no século XI e que é um
orgulho dos noruegueses. A Ana e eu estávamos lá, vestidas com nossos
trajes próprios de nossos clãs, observando a reação de todos e o espanto que
causou a informação de que aquela igrejinha, muito elegante e de um estilo
marcante, era de madeira pura e apresentava-se impecável do lado de fora,
apesar de ter mais de 800 anos.
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Logo após a visita, a direção do Centro ofereceu um jantar típico, ali mesmo,
nas instalações do Museu Folclórico, servindo frios de todos os tipos e sabores,
fabricados na Noruega, como prato de abertura. Foi um jantar inicialmente
muito formal, com mais de 50 participantes sentados em três mesas toscas e
bem compridas, num antigo pavilhão construído séculos atrás por famílias
vikings com enormes troncos de pinheiro, colocados no sentido horizontal.
Como haveria a participação de todos os técnicos do Centro, a Ana e Britt
haviam sido solicitadas a ir com os vestidos formais de seus respectivos clãs.
Elas estavam muito atraentes, sempre rodeadas por participantes.
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- Num certo ponto do início do jantar, com todos devidamente localizados nas
compridas mesas muito toscas, para minha sorte, o Co-Diretor do encontro
pela ONU, o Dr. Marcus, da outra ponta da mesa onde estávamos, olhou para
o meu lado e coincidiu com o meu olhar eventual em sua direção. Nós dois, em
pontas opostas da mesa, sorrimos ao percebermos o encontro dos dois
olhares. Ele fez um gesto de alô com a mão e em retribuição, fiz um
semelhante, mas fechei meus dedos várias vezes seguidas, no sentido de
aproximação, esperando que ele entendesse. Acho que ele entendeu
120
perfeitamente bem, porque, para minha surpresa, na mesma hora ele se
levantou.
Segundo ele me contou depois, na hora informou Sandro, do outro lado da
mesa:
- Espera um pouco que eu vou ver se trago aquela garota para cá.
- Traga as duas, prezado, sorriu ele, muito interessado. Traga as duas. Você é
da ONU e pode usar sua influência.
Britt continuou sua narrativa:
- Seguido atentamente pelo meu olhar, Marcus foi caminhando devagar até o
local onde eu estava sentada no meio de um grupo de uns cinco alegres
participantes do evento. Dirigindo-se a todos que me cercavam e olhando
direto para os meus olhos, disse que, na outra ponta da mesa comprida, todos
estavam se queixando porque eu não ia ficar pelo menos um pouco com o
grupo de lá, uma vez que a Ana estava na mesma ponta de mesa.
Desculpando-se com os participantes que se sentavam ao meu redor, ele
tomou minha mão e passou meu braço pelo dele, enquanto Ana arregalava
muito seus olhos.
- Não se preocupem que eu a trarei de volta... se ela assim desejar, comentou
ironicamente para o grupo que havia sido pego de surpresa com o gesto.
- Obrigada pelo resgate, comentei baixinho e sorrindo, enquanto começava a
caminhar de braços dados devagar ao seu lado.
- Foi na hora certa, doutor... doutor...
- Marcus, Britt. Só Marcus, da ONU... Acho que eu percebi seu pedido de
socorro... Fique comigo e eu prometo que defenderei você...
Ele falava com seriedade, mas meio sorridente com a conquista que nem havia
esperado efetivar e que estava segurando seu braço com uma clara presença.
- Obrigada... disse eu sorrindo para ele e apertando um pouco sua mão.
- Muito obrigada, meu cavaleiro!...
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E, para espanto da Ana ainda de olhos meio arregalados de tanta surpresa, lá
foi indo Britt com seu vestido típico de seu antigo clã norueguês, devagar,
sorridente e muito feliz, de braço dado com Marcus, com uma postura muito
elegante, ao longo daquela mesa comprida, porque sua localização anterior,
apesar de ser bem em frente à de Ana, não estava satisfatória e ela estava
121
começando a sentir-se meio oprimida com certas indiretas ou diretas quanto a
sexo livre, alegadas liberdades sociais e coisas afins na sociedade
norueguesa, que provocavam algumas risadas da Ana, mas que deixavam Britt
um pouco aborrecida diante de preconceitos um tanto chocantes, sem poder
demonstrar.
Com alegria, os participantes da ponta da mesa abriram espaço para Britt
sentar-se e ela percebeu na mesma hora que o ambiente ali era bem outro.
Logo um dos presentes, que era professor de ortopedia na universidade de
Montevideo, pediu licença, chegou bem perto e perguntou se ela gostava de
música. À sua afirmativa com a cabeça e um largo sorriso, ele se levantou e
segurou levemente sua mão, dizendo:
- Marcus, agora você vai me dar licença porque quero agradecer a esta linda
fisioterapeuta do meu jeito, por ter vindo até o nosso canto meio masculinizado.
Olhando para os olhos azuis de Britt, ele sussurrou:
- Britt, você e o Marcus, venham comigo.
De braços dados com os dois, caminhou até o piano localizado num espaço
livre do salão, pediu licença ao encarregado do local e começou a tocar,
fazendo um dedilhado introdutório bastante refinado que chamou a atenção e a
admiração de todos.
Do piano, voltando-se para Britt e Marcus que o haviam acompanhado e que o
olhavam maravilhados com sua demonstração de domínio do instrumento,
afirmou dirigindo-se a Britt:
- Vou tocar umas músicas brasileiras para só vocês dois dançarem, está bem?
Ela concordou sorrindo, aparentando surpresa. Ele começou imediatamente,
com uma versão própria e floreada de Carinhoso.
Logo a música foi mudando o ambiente do jantar, até então muito formal, só de
vozes conversando. Num determinado momento, logo após o início da música,
Ana levantou-se imediatamente de seu lugar na mesa e foi quase correndo
juntar-se ao animado grupinho. Trocou olhares sorridentes com Sandro e saiu
dançando com ele, que se levantara para encontrar com ela. Por sugestão de
Marcus, Sandro começou a dançar, aproximando-se todo sorrisos de Marcus e
Britt. Logo em seguida, três outros pares foram formados com alegria pelos
participantes.
122
- Vocês dois são brasileiros, não são? São bem animados, graças a Deus. Eu
já estava achando esse jantar meio aborrecido. Dizem que vocês brasileiros,
além de animados, são românticos... Isso é verdade? perguntou Ana.
- Verdade verdadeira, Ana. Verdade absoluta... embora nem sempre
verdadeira, brincou Marcus. Veja, por exemplo, a letra dessa música gostosa
que o Gilberto está tocando. O título dela é Carinhoso.
- Carinhoso?! E ela diz o que, você pode me traduzir? perguntou Britt,
enquanto dançavam, olhando Marcus com curiosidade..
Marcus, em seus cuidadosos movimentos de dança, foi se afastando de
Sandro e de Ana e continuou:
- Que bom que você quer que eu traduza um pouco para você, Britt! É uma
música muito carinhosa mesmo.
- Quero, sim! Por favor, Marcus. Agora você me deixou curiosa... Lembre-se de
que agora você é o meu cavaleiro e tem que ser sincero comigo sempre.
Com uma pequena e sutil parada, que aproximou mais o corpo de Britt do seu,
ele esperou o momento certo da melodia e começou a traduzir, olhando muito
para os seus olhos azuis, enquanto dançavam vagarosamente.
- “Meu coração, não sei porque”...
- Sim?... fez ela intrigada.
- “Bate feliz, quando te vê... e os meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te
seguindo”...
Deram uma pequena parada e ele continuou:
“... Mas mesmo assim, foges de mim!”...
Ela olhava para ele como que encantada por encontrar alguém com aquela
desenvoltura e facilidade de comunicação, abraçado a ela num salão que a
partir daqueles momentos lhe parecia encantado, onde só os dois dançavam. .
- Mas que romântico!... fez ela. O que mais, o que mais?...
- “Ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso e o muito muito que te
quero”..
Ela não conseguiu deixar de sorrir meio sem jeito, diante do conteúdo da letra.
...”E como é sincero o meu amor, tu não fugirias mais de mim!... Vem,
vem...vem”...
Ela abriu muito os olhos, esperando o que viria depois da romântica letra.
- “Vem sentir o calor dos lábios meus, à procura dos teus”...
123
Neste ponto ela fechou os olhos por alguns instantes, sorriu um pouco
contrafeita e chegou seu rosto mais perto de seu ombro, para evitar um pouco
seus olhos castanhos muito diretos nos seus.
Num certo momento, os dois pares ficaram a uma curta distância um do outro e
o ponto da música requeria algo especial. Os dois brasileiros juntos pararam de
dançar por um instante, abraçados a suas damas e de costas um para o outro.
Na mesma hora cantaram com vigor, para regozijo do pianista:
- “Vem, vem, veeeeeemmmmm... vem sentir o calor dos lábios meus à procura
dos teus”...
Rindo muito, os quatro sairam rodopiando, formando dois pares ideais naquele
ambiente que de repente transformara-se num recanto de alegria. Naquele
ponto da canção já havia 7 ou 8 pares dançando.
Ao ser iniciada uma outra música, Ana e Sandro aproximaram-se e ela fez um
sinal para trocar de par com Britt, o que aconteceu com naturalidade.
- Que bom! Vocês dois são muito alegres... Será que os brasileiros todos são
assim? comentou Ana.
- Acho que não. Mas para nós é muito fácil, tendo a companhia de mulheres
tão lindas como vocês duas.
Ela riu da tirada dele e comentou meio matreira:
- Que pena que vocês vão embora! Na verdade a gente nem sabe quando
poderá se ver outra vez. Seria bom se a gente tivesse mais tempo para se
conhecer melhor. O Sandro me parece um médico muito gentil e bem
humorado.
- Ele é carioca e os cariocas são assim mesmo. Nós dois pensamos a mesma
coisa que você sobre esses contatos tão relâmpagos. Acaba ficando dentro da
gente uma espécie de frustração permanente. Dá vontade de esticar o
tempo.ou de mudar o destino...
- Vocês dois não gostariam de passar mais algumas horas com a Britt e
comigo, depois que tudo isso terminar? A gente poderia ir a uma danceteria ou
coisa parecida. Acho que seria divertido e daria um tom muito mais alegre ao
nosso conhecimento mútuo. O que é que você acha, Marcus?
- Acho uma excelente idéia, Ana. Garanto que o Sandro também gostaria. Nós
não conhecemos nada nada de Oslo.
- Vou tentar combinar...
124
Os dois pares voltaram a se encontrar, para um suspiro aliviado de Britt, que
não teve outro jeito a não ser sorrir com serenidade para Marcus.
Após o toque de um pequeno sino de mesa, a música foi interrompida e todos
os pares foram convocados para o prato principal daquele jantar.
Segurando a cintura de Britt com delicadeza, ele murmurou enquanto
caminhavam bem devagar para a mesa de refeições:
- Eu quero que você saiba, neste instante, que eu estou me sentindo muito feliz
em estar com você, tão linda que você é! E, apesar da gente se conhecer
quase nada... Olha, Britt. Devido ao fato que deveremos ficar lado a lado pelo
menos – pelo menos, hein – algumas horas, posso ser bem franco com você?
- Claro, Marcus. Por favor, eu gostaria que você fosse franco mesmo. Não
gosto de meias verdades muitas vezes usadas nos relacionamentos
humanos...
- Está bem, Britt. É que seu jeito todo, seu rosto, seu sorriso... e especialmente
seus olhos me encantaram... Em apenas alguns minutos juntos eu sinto que
preciso lhe dizer isso. É só isso que eu queria lhe dizer!...
Ela sorriu um pouco embaraçada e surpresa. Vários passos antes de chegarem
à mesa de jantar segurou seu braço e parou.
- Só isso?!...diz você. Obrigada, Marcus... Eu nem sei o que dizer diante dessa
sua franqueza. Se eu tivesse o mesmo dom que você demonstra ter com
palavras e pensamentos... além de meu inglês limitado, sei lá... talvez eu
estragasse tudo. Por favor me entenda e me perdoe se você não entender o
que eu quero dizer.
- Eu acho que eu entendo, sim. E a minha preocupação maior agora é que
você não se magoe nem entristeça por minha causa, porque depois deste
jantar a vida continua, não é mesmo?. Você tem a sua vida, eu sei... Não
permita que eu a magoe por uma passagem relâmpago por ela.
- Ora! Adorei essa sua preocupação comigo. Olha aqui, Marcus! Vamos viver o
pouco tempo que teremos juntos neste ambiente muito gostoso que nós dois
acabamos criando como num passo de mágica. O que está acontecendo
parece um verdadeira explosão de bem-estar, durante a qual eu vejo você e
você me vê. A mim parece que é só isso que importa. Nada mais.
Aproveitemos este jantar juntos, no meio dessa multidão...
125
- Está bem. Acho que ambos estamos felizes... Mas... você tem um bom
breque?
Ela riu da comparação e colocando a mão em seu ombro afirmou:
- Tenho, sim... mas, cuidado que eu acho que está meio desregulado, meio
quebrado... Espero que você tenha um e que saiba usá-lo. Mas, não se
preocupe. Procurarei ser bem natural e sincera com você, está bem? Mas, eu
lhe peço, me proteja desses homens sorridentes que procuram me cativar com
segundas intenções nesta festa... Eu notei pelos poucos que saíram dançando
comigo.
- Combinado.
Empostando um pouco a voz, ele parou, colocou a mão no peito e disse:
- Serei seu cavaleiro de honra!
Ela sorriu com ar de vitoriosa e, num impulso, aproximou-se rapidamente mais
dele e beijou-o no rosto.
Depois de servidos os pratos principais quentes e a sobremesa, quando o
jantar terminou e o grupo todo começou a se preparar para tomar o ônibus
fretado e ir para o hotel onde estavam todos alojados, conversando com Britt e
com Ana muito animadamente ficaram Marcus e Sandro.
Na dúvida criada com os momentos para combinar algo mais para aquela noite
que mal começara, o ônibus acabou partindo a um gesto sutil de Ana e só
ficaram os quatro, porque Ana havia liberado o motorista e sugerido que
poderiam se divertir um pouco na noite de Oslo. Com um táxi foram até o
apartamento dela para ver o que poderiam combinar pelo telefone, mas nada
parecia dar certo, porque era uma quinta-feira e Oslo era uma cidade quase
sem atrativos noturnos durante a semana.
- Lamento muito, Sandro! A gente poderia dançar em algum lugar...
- Você não tem uns discos aí? A gente dança aqui mesmo, um pouco na
surdina para não fazer barulho... mas pode dançar da mesma forma...
Devidamente combinados, ficaram lá os quatro, dançando algumas músicas
depois de terem tirado seus calçados e bebendo alguma coisa que Ana trazia.
Marcus tomou a iniciativa de acender a lareira da sala, ajudado de perto por
Britt que lhe passou a caixa de fósforos e vários pedaços de jornal e de
madeira própria para tal fim.
Ao dançar com Marcus em uma das oportunidades, Ana comentou:
126
- Você está enfeitiçando a minha amiga Britt, hein?
- Verdade? Ora, preciso então ter mais cuidado, porque no fundo eu é que
achava estar sendo enfeitiçado...
- Estou brincando. Eu estou começando a perceber o envolvimento dela e o
seu, e fico um pouco preocupada... É que, terminada esta noite vocês somem
do nosso mapa e sempre vem ao raciocínio da gente: Até quando? Até
sempre?...Será que ele me manda fotos? Será que telefona? Será que
escreve? E fica aquele vazio muito triste na gente.
- Mas, além disso, garanto que você está preocupada com mais alguma coisa...
Seria devido a que?
- Porque eu percebo pelos olhos dela e pelo seu sorriso feliz nesses poucos
minutos desta nossa noite, por exemplo, o encantamento dela ao olhar
disfarçadamente para você... A gente não está acostumada com homens como
vocês, sabia? Na Noruega os homens de um modo geral são muito distantes e
frios, apesar de muito alegres quando bebem um pouco demais. E muitas
vezes eles ficam inconvenientes.
- E ela, na sua opinião, Ana, não deve ser “enfeitiçada”, como diz você?
- Eu acho que não. Vou contar porque eu comento assim.. Ela se casou faz uns
três meses apenas. Eu fui sua madrinha de casamento. Não desejo que
aconteça nada inconveniente com ela.
- Ui... fez ele parando um pouco de dançar e olhando sério para ela. Isso é de
pensar, gente! De repente me vejo como um perigo à vista, pisando em ovos...
- Não é isso, não. Não chega a tanto... nem pensar!... Eu sei que ela tem os
pés no chão e leva sua vida muito a sério. Ela é uma garota de opinião.
Escreve muito e até já publicou um artigo numa revista cujo nome não sei.
- Eu entendo, Ana. Mas olha! Obrigado por me contar, porque procurarei ter
mais cuidado com ela. Prometo.
Num certo momento, Sandro e Ana dirigiram-se para a cozinha, depois de
algumas palavras dela em norueguês com Britt.
- Ela falou o que, Britt? perguntou Marcus.
- Ah... Ela disse para a gente ficar à vontade que ela ia ficar lá na cozinha para
servir umas coisinhas para o Sandro e acha que vai demorar.
- Sei... fez ele sorrindo com certa malícia e olhando meio de lado para ela..
Britt também sorriu enquanto continuavam dançando.
127
Um pouco depois, acomodados num sofá ao lado da lareira, com o som a meia
altura, os dois de quando em quando ficavam de mãos dadas, desfiando
assuntos pessoais.
- Está vendo? De repente você fica entalada aqui comigo e a gente nem se
conhece direito. Pois olha, Britt. Eu gostaria de conhecer você um pouco mais
porque o meu sexto sentido me diz que valerá a pena.
- Você acha?! Eu sou uma garota norueguesa muito simples que tem sonhos
bem limitados e que busca um refúgio nos momentos de folga para poder
escrever.
- Verdade isso?! Para escrever?!... Estou admirado.
- Pode parecer estranho, mas eu tenho uma certa veia para isso, segundo
professores que eu tive desde muito cedo. Depois que eu me matriculei no
curso de fisioterapia comecei a criar certos textos ou a escrever artigos sobre
alguns assuntos que me intrigavam.
- Me dá um exemplo, só para eu poder comentar com você.
- Já escrevi alguns artigos dos quais só um foi publicado numa revista só para
garotas solteiras. Era sobre minha idéia de amor eterno.
- Mas que idéia bonita! Amor eterno! Você defendeu a idéia do amor eterno, ou
criticou quem pensa assim?
- Como assim? Eu acredito muito nisso. Caso contrário eu não escreveria. Eu
acho que quando uma pessoa é atingida pela por vezes fantasiosa seta do
amor, se ela se voltar com seriedade para esse sentimento abençoado, será
dona dele até morrer.
- E sempre pela mesma pessoa?...
- Claro que sim! Mas eu falo de um relacionamento sério, bem pensado,
ponderado e bem avaliado. Eu acho o amor um sentimento que tem sido mal
compreendido e até deturpado. Mas se você parar para pensar e avaliar seu
significado, você concordará comigo.
- Sentimento eterno!... Você nem vai acreditar, mas quando eu estava na
faculdade, escrevi também um minúsculo artigo sobre isso. Claro que no meio
universitário onde eu interagia, recebi críticas sérias, a maior parte delas
irônicas e depreciadoras.
- Daí você deixou de acreditar...ou de escrever...
128
- Não, não... Nada disso. Para mim, com toda a seriedade do mundo, eu acho
que é um assunto de foro muito íntimo e sou um dos que defende a idéia de
que, de fato, o sentimento do amor é eterno. It is forever, como afirmam os
ingleses. Forever!... repisou.
Ela sorriu muito e abraçaram-se de puro júbilo, porque tinham a certeza de que
não estavam sozinhos, defendendo uma idéia poética, por uma palavra um
tanto banalizada e muitas vezes considerada como superada.
- Ah... Agora eu gostaria de voltar a dançar... E você? perguntou Britt, muito
animada, levantando-se e puxando Marcus pela mão..
- Claro que sim! Vamos estar cercados de anjinhos com seus arcos e setas
preparados. Cuidado, portanto!
Ela riu com gosto.
- Vou precisar de um escudo, isso sim.
- Eu estou meio desprotegido... acho... Em vez de escudo, acho que eu
precisaria de uma armadura medieval!...
- Eu mais ainda... murmurou ela.
No correr das horas, Marcus de quando em quando centrava seus comentários
nela, dizendo-se por vezes encantado por estar com ela, conversando sobre
assuntos que eram trazidos por alguma circunstância local e Britt, lutando com
o seu inglês um pouquinho limitado, procurando, sempre sorridente, neutralizar
seus pequenos avanços, em momentos mais descontraídos, sem qualquer
sombra de mágoa ou de ressentimento.
Quando o dia clareou pelas 3 ou 4 da madrugada, Marcus e Britt despediram-
se de Ana e foram para o meio da rua deserta esperar Sandro, que combinava
alguma coisa entre eles.
Na inexistência de qualquer transporte público àquela hora, começaram sua
caminhada por uma grande avenida, totalmente deserta, primeiramente na
direção do hotel onde estavam hospedados os dois e depois para o centro de
Oslo, onde Britt morava.
O caminho foi muito alegre, porque Britt parecia muito feliz e brincalhona,
explicando aqui e ali alguns pontos diferentes de sua cidade natal por onde
passavam ou do panorama visto de determinados pontos de uma Oslo que ela
amava demais desde criança.
129
De vez em quando ela se aproximava de Marcus e andava de braços dados,
olhando muito para ele com um rosto muito feliz e demonstrando carinho.
Quando chegaram ao prédio dela e entraram no saguão, ela informou que
morava ali ao lado, no andar térreo mesmo.
Na hora de se despedirem, porém, o ambiente foi ficando muito tristonho e
delicado, porque ambos sabiam que seria um adeus para sempre e aquelas
horas na sala, ao lado da lareira, tinham aproximado os dois muito mais do que
haviam imaginado.
Não eram mais dois estranhos que haviam interagido ao acaso, mas duas
pessoas que haviam aprendido a se expor, a descobrir interesses comuns, a se
conhecer bem e a se apreciar muito. Para esse adeus ele pedia um momento
mais íntimo com ela, antes de ir embora, para os dois poderem expressar o
carinho máximo que o relacionamento dos dois merecia.
No entanto, ela suavemente escapava, dizendo com um ar pesaroso para ele a
desculpar, mas que ela tinha se casado recentemente e o marido havia ido à
Inglaterra para resolver assuntos da empresa onde trabalhava, devendo voltar
no dia seguinte.
Entendendo bem a situação, mesmo relutantemente e com muito abatimento,
Marcus despediu-se com aquela idéia deprimente de um não desejado “adeus
para sempre”.
Abraçados com suavidade, beijaram-se então com o maior carinho e ela, ao
manter a porta do edifício entreaberta, sentiu uma lágrima descer pelo seu
rosto. Começou a soluçar baixinho quando ouviu Marcus, segurando a sua
mão na maçaneta da grande porta, sussurrar:
- Eu nunca esquecerei você, Britt, por mais tempo que passar e mais distante
que estejamos um do outro. Quero que você tenha certeza de que eu amo
você de verdade!... É o que estou sentindo neste momento... de verdade.
Adeus...
- Adeus, Marcus... Eu também amo você... Me escreva...Me escreva logo, por
favor. Adeus... Não deixe de me mandar fotos suas... Eu prometo sempre
escrever também...
Fechou a porta e, ainda segurando sua grande maçaneta de cobre, ela se
encostou na porta e, muito frustrada, começou a chorar copiosamente.
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131
Capítulo Nono
FOREVER Apesar de sentir-se muito indisposta, pelas oito horas da manhã Britt já havia
voltado a suas atividades previamente programadas no Centro, enquanto
Marcus, com pouco élan, participava, com o Grupo do Seminário internacional,
de visitas a recursos da comunidade de Oslo e circunvizinhanças.
Ela viveu com muita dificuldade o seu último dia antes das férias de verão, com
uma seqüência de avaliações do dia anterior totalmente dedicado que fora aos
participantes do Seminário da ONU sobre Administração de Centros e
Programas de Reabilitação.
No primeiro intervalo para o almoço, Ana procurou-a para saber como tudo
terminara em sua volta para seu apartamento de madrugada, acompanhada
por Marcus. Britt resolveu pela primeira vez em sua longa amizade com Ana,
não entrar em pormenores do seu relacionamento com Marcus e deixou-a com
a impressão de que tudo terminara em boa paz.
- Ele ficou de me mandar fotos do grupo... Só isso.
- Bom... É que eu fiquei um pouco preocupada, mas eu sei que você consegue
lidar com situações como essa, não é mesmo? Só estou achando você com
uma cara muito entristecida... muito abatida.
- É... Eu dormi muito pouco... Mas, fora o sono, para mim tudo correu muito
bem! Não se preocupe comigo.
Ao voltar para casa, no final da tarde, encontrou o marido datilografando algo
na saleta, como era costumeiro. Sem se levantar, muito sério ele apontou para
a mesinha de centro, em frente ao sofá da sala, indicando um vaso pequeno
todo envolto em celofane colorido, contendo uma plantinha ornamental de
qualidade especial.
- Acabaram de entregar! É para você, claro!
Ao lado havia um cartão assinado pelo Marcus, convidando-a para um almoço
no dia seguinte, ao redor do meio dia, antes de todo o grupo embarcar para a
Dinamarca pelas 16 horas.
132
Num PS ao seu recado, solicitou para ela telefonar para ele bem antes, a fim
de se encontrarem para ir ao local do almoço.
- Você pretende ir? Talvez seja bom porque, apesar de amanhã ser sábado, eu
precisarei ir trabalhar desde cedinho o dia todo na empresa por causa dos
meus contatos em Londres.
- Está bem. Vou ver se a Ana quer ir comigo.
Saiu imediatamente, levando o cartão consigo. Enquanto caminhava para uma
cabine telefônica do outro lado da praça, foi remoendo sua tristeza, agora com
algum aceno de volta ao seu normal otimista. Na verdade, não conseguia
aceitar a idéia de uma despedida como a que acontecera no saguão do seu
prédio. Ela achava que o seu adeus deveria ter sido diferente... menos triste.
Culpava-se um pouco, porque no mais íntimo de sua alma, achava que havia
calculado mal a despedida com Marcus naquela madrugada. Em vez de um
adeus sereno, tudo terminara numa emoção inesperada e muito envolvente
que atingira os dois em cheio.
Mas não tinha tido outra saída, a não ser dizer um não à sua proposta de entrar
e... Ela sabia muito bem o que teria acontecido, não só por desejo dele, mas
dela também. Estava ainda escondido lá no fundo do seu coração, mas
enquanto caminhava ela começava a reconhecer com muita clareza o que
desejara...
Mas ela continuava espantada com aquele sentimento que surgira dentro de si,
tão subitamente, como um raio, uma explosão... muito claro, muito facilmente
reconhecível. No começo ela tinha a impressão, mas agora ela vivia com a
certeza de que o amava... de verdade. Não tinha mais como negar.
Para seu alívio, Marcus demonstrara seu interesse e seu afeto, mandando
aquela plantinha e um recado cauteloso, na certa por causa de seu marido,
convidando-a para almoçar com o grupo no dia seguinte. Falar com ele poderia
ser a oportunidade de que precisava para acertar seus sentimentos. Acabar
com tudo ou... não saberia o que fazer. A não ser entregar-se a um sentimento
meio impossível.
Ligou com uma certa ansiedade e respirou fundo quando ouviu a voz de
Marcus. Sentiu um frio pelo corpo, mas procurou ser o mais natural possível.
- Marcus... Sou eu! Britt! Obrigado pela plantinha e mais do que ela, pelo
bilhetinho que eu tenho aqui comigo. Está bem aqui entre os meus dedos.
133
- Bom que você ligou, Britt!... Escuta, Britt. Eu não criei problema para você
com seu marido ao mandar a plantinha e o bilhete, criei?
- Não, não! Ele está envolvido com os relatórios dele da viagem a Londres. Não
se preocupe. Foi ótima a sua idéia de vir até a floricultura aqui por perto de
casa e escolher o vasinho lindo que me mandou. Obrigada, Marcus. Pode
acreditar que eu fiquei muito feliz.
- Que bom... Embora o convite mencione o grupo do Seminário, na verdade é
para você almoçar comigo! Só nós dois. Aceita?
- Claro que sim, Marcus. Claro que sim!... Para lhe dizer a verdade, eu sonhava
com uma nova oportunidade para conversar com você... Mas não sabia como
achar você! Eu acho que nós dois precisamos, de fato, refazer esse nosso
adeus! Eu achei a nossa despedida muito triste! Muito injusta... Ficaram
sentimentos no ar... Eu acho que nós dois merecemos essa oportunidade.
- Ótimo, Britt. Eu penso igual a você. Vamos reparar o nosso erro. Agora me
diga como eu apanho você para a gente ir a um restaurante tranqüilo que você
vai escolher, a fim de conversar bastante e deixar tudo o que a gente sente
num ponto mais justo.
Ela passou a orientação, sem titubear, confirmando cada referência, a fim de
não desencontrarem, o que facilitou localizarem-se com rapidez.
Lá pelas 10:30 horas, após um encontro suave e muito tranqüilo, com olhares
novos e carinhosos ela, vestida num conjunto saia e blusa parcialmente
cobertos por uma capa de chuva, acenando para um taxi, deu a ordem ao
motorista:
- Frognerseteren, por favor!...
Os dois pareciam muito leves e contentes, sempre de mãos dadas nos
ambientes muito especiais da área onde estava localizado desde muitas
décadas aquele restaurante e seus arredores famosos. Britt, comunicativa e
feliz como aparentava estar, correu para os binóculos destinados a turistas, nas
bordas do gramado em frente, para olhar Oslo lá de cima e convidou-o para
admirar sua cidade natal junto com ela. Ele a fotografou de longe e desceu
rapidamente, enquanto ela foi explicando com entusiasmo cada ângulo da
cidade.
Logo em seguida ela deixou de lado o pequeno telescópio e olhou para ele
bem de frente, dizendo:
134
- Você me surpreendeu com aquele vasinho e com esse convite para
almoçarmos juntos. Para mim eles foram demonstrações claras de um
verdadeiro carinho! Fiquei e estou muito feliz! Mas agora, quero lhe dizer que
eu tenho uma surpresa para você, Marcus. Ela é uma indicação muito clara do
quanto eu me envolvi e como eu me encontro, aqui dentro, com relação a você
e ao grande carinho que eu sinto por você.
- Outra surpresa? Este local já é uma grande surpresa para mim.
- Venha conhecer uma amiga e ex-colega do Centro de Reabilitação, que
trabalha aqui. É a Ingrid. Era terapeuta ocupacional nos bons tempos.
- E agora?
- Virou empresária e coordenadora de um projeto que considero sensacional.
Caminharam para a lateral do restaurante e numa porta que dava para uma
espécie de varanda ela entrou, fazendo-o acompanhá-la.
Ela e Ingrid encontraram-se quase que imediatamente, com sorrisos, beijos e
saudações felizes. Voltou com ela ao lado e apresentou Marcus:
- Este aqui é o Dr. Marcus, da ONU, a respeito do qual falamos ao telefone.
Nunca tinha estado em Oslo e hoje resolvemos almoçar aqui lá pelas duas da
tarde, mais ou menos, antes dele ir para o aeroporto, porque deve voltar para
Copenhague. Chegamos cedinho mais para fazer um tour por estes lados da
cidade.
- Prazer, Dr. Marcus. Sou terapeuta ocupacional. Britt me contou de seu
envolvimento em programas para pessoas com deficiência num nível
internacional. Ela e eu trabalhamos no Centro durante vários anos. No entanto,
eu desisti da reabilitação. Mudei meus planos por insistência do meu marido.
- Prazer, Ingrid. Espero que seus planos sejam um sucesso, como parece ser a
opinião de sua amiga Britt...
- Aqui nos arredores do Frognerseteren, Dr. Marcus, nós implantamos um
projeto que está dando certo. A Britt irá explicar em pormenores enquanto
vocês andam um pouco, porque terá mais tempo. Da minha parte eu lamento
muito, mas eu peço que me desculpe. Eu preciso acionar determinadas áreas
daqui do restaurante para que tudo fique em ordem para a hora do almoço.
Hoje é sábado, o senhor sabe, e fica tudo meio concorrido. A mesa de vocês,
no entanto, está super-reservada para as duas horas mais ou menos. Fiquem
plenamente à vontade.
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- Eu vou mostrar tudo para ele, está certo? comentou Britt.
- Claro. Sintam-se em casa, Britt. Teremos três horas mais ou menos até a
hora do almoço. Aproveite o tempo, disse ela sorrindo muito, piscando um olho
e apertando de leve seu braço, num toque meio secreto.
Os dois desceram uma pequena rampa gramada em degraus e chegaram
perto de uma pequena casa de troncos de uns três metros e meio de altura em
sua cumieira, com uma janela diminuta de madeira toda lavrada, e o teto
coberto de vegetação, descendo até um metro de altura ou pouco mais.
- Engraçado isso... Por que deixam o capim crescer em cima das casas, hein?
- Porque garante calafetação no teto e aquecimento. Além disso, a neve
derrete com mais facilidade, Marcus.
Ali parados, notaram que havia várias casas pequenas de estilo semelhante e
com as mesmas características espalhadas pelo terreno, todas construídas
perto de alguns pinheiros, com chapéus de sol coloridos, cadeiras reclináveis
espalhadas em diversos pontos e tetos cobertos de vegetação..
- Este foi o projeto que a Ingrid e o marido implantaram aqui neste terreno
cedido pelo restaurante. Alugado, claro. Essas casinhas são típicas da antiga
Noruega... estilo um pouco viking, um pouco norueguês... Casais que vêm a
Oslo como turistas ou visitantes eventuais, procuram Frognerseteren. Para
alguns que desejam passar alguns dias, um fim de semana, ou mesmo uma
noite podem alugá-las, porque elas estão bem equipadas e têm todo o
conforto, além de um silêncio quase absoluto. Fica sendo muito mais
confortável do que num hotel. Venha ver.
Levou-o até a porta da mais próxima, pegou a chave que estava pendurada
num pequeno enfeite do batente e abriu para ele observar dentro.
Dando alguns passos na pequena sala, quando Britt acendeu a luz, Marcus
notou que era de fato muito aconchegante, com lareira, toda mobiliada com
sobriedade, pé direito baixo, forro de madeira bem envernizada, janelas
pequenas pintadas de branco, cama de casal coberta com uma colorida colcha
e todo o resto das instalações em madeira pura de pinho. As paredes
mostravam os troncos horizontais de quase quinze centímetros de espessura
devidamente calafetados. Luzes indiretas suaves e bem posicionadas davam
tons adequados ao ambiente.
136
- Que belezinha, hein? Belo projeto... bela idéia. A Ingrid deve se orgulhar
dele...
- Sabe a surpresa que eu disse que tenho para você?
- Sim... Você me disse mesmo! O que é, hein?
- A Ingrid reservou uma destas casinhas para nós dois ficarmos de agora até a
hora do almoço... O que é que você acha?
- O que?! fez ele totalmente surpreso.
E continuou gaguejando:
- Esta maravilha aqui para a gente ficar... só nós dois... por três horas?! Você
está é brincando comigo, Britt! Eu nem acredito nisso.
- Não estou, não. É sério, disse ela sorrindo muito. A questão é saber se você
aceita ou não. E é de graça! Tem até um vinhozinho para a gente tomar na mini
geladeira. Gentileza da minha amiga!
- Eu seria um maluco se não aceitasse, Britt, disse ele abraçando-a com
carinho. Qual é a casinha nossa?
- É esta aqui! Esta, que abrimos e acendemos a luz!
- Vamos entrar um pouco mais então, minha linda! E... tranque a porta, por
favor!... disse rindo muito, demonstrando pressa.
Ela se sentia tão feliz que nem deu atenção às lágrimas que desciam pelo seu
rosto naquele instante. Voltando-se para ela com ar de surpresa, Marcus
gentilmente secou seu rosto com um lenço.
- Obrigado, minha querida! Obrigado por criar e nos dar esta chance!
Segurando suas mãos, ela se encostou num armário da pequena sala e
comentou:
- Em meu modo de pensar, Marcus, esta oportunidade que eu inventei hoje
cedo, depois de nosso telefonema, destina-se a várias coisas. Uma delas é
apagar a tristeza daquela nossa despedida infeliz outra noite de madrugada, lá
em meu prédio. A outra é confirmar com você que, de verdade, nós nos
amamos. Aqui, nesta casinha de sonho, bem... nós vamos ter um ao outro
com total exclusividade, sem sustos e sem barreiras. É a nossa chance!
- Então... Você que está com a chave, tranque a porta, por favor! Isso é
urgente! disse ele muito feliz, soltando-a de seu abraço apaixonado.
Em dois passos rápidos ela estava girando a chave na fechadura e num lance
sutil, colocou-a dentro de seu soutien.
137
Sorrindo com certa matreirice ela caminhou até ele, que a enlaçou com ternura
redobrada pela cintura.
- Pronto, meu cavaleiro! Pronto! Essa porta só será aberta se alguém... veja
bem o que estou dizendo... Vou repetir para que fique bem claro entre nós...
Essa porta só será aberta se alguém pegar a chave, que está bem guardada
aqui! Você viu.
- Esse lugar aí é seguro? perguntou Marcus, levantando um pouco a borda
superior do soutien com as duas mãos, sem tocá-la.
Ela bateu com carinho de leve em suas mãos, à guisa de reprovação fingida,
apertando-as em seguida contra seu seio.
- É, sim! Se eu não deixar, essa chave continuará aqui. Está bem?
- Eu acho é que essa chave está num lugar muito apertado e de difícil acesso.
- Ah!... Meu querido... Você vai ter que descobrir! Quero ver se você tem jeito
para uma manobra tão delicada!...
...............................................................................................................................
Ao redor das duas da tarde os dois desfrutaram um almoço muito tranqüilo,
olhando um para o outro com total serenidade e carinho e falando sobre os
sentimentos que os dominava completamente depois daquelas horas de puro
sonho na pequenina casa coberta de um verde permanente.
Antes da sobremesa, consciente de que o tempo corria célere e ele precisaria
seguir para o aeroporto, Marcus segurou suas mãos e disse com os olhos fixos
nos dela:
- Deixe-me repetir umas coisas, Britt. Primeiro, que você está muito linda e
diferente daquela Britt vestida com aquela roupa do seu clã, que usou a noite
toda. Você está muito mais livre e cheia de uma graça muito feminina que eu
nem havia percebido. Depois de nosso tão pouco tempo naquela linda casinha
de troncos, me parece que nós dois saímos de um outro mundo, isso sim!
Ela riu um pouco surpresa e retrucou, apertando sua mão:
- Mas eu sou a mesma Britt de antes de ontem, lembra? Pode acreditar,
Marcus! Eu estava meio empostada, meio escondida. Sou a Britt que curtiu
doidamente e que nunca irá esquecer as horas que acabamos de passar na
casinha e que está muito feliz de ter conhecido você e de estar aqui, tão
pertinho, com uma sensação de que não existe nada fora desta saleta. Só nós
dois.
138
- Eu gostaria de confessar a você que, antes de ontem e ontem eu me sentia
surpreso por ter encontrado alguém como você que, eu juro, eu achava que
nem existia de tanto que procurei. Hoje, aqui e agora, sinto-me o homem mais
abençoado da terra. Sei muito bem que daqui a pouco diremos adeus um para
o outro, mas com uma certeza que eu trago aqui comigo de que o meu
sentimento não se apagará nunca. Sei que ele será eterno. Tenho certeza
disso.
- Fico muito feliz com suas palavras, Marcus... De verdade! Como é que
poderemos fazer depois que você for embora? Eu penso como você e me vejo
pega de surpresa com um sentimento muito autêntico e profundo, cujo destino
é durar para sempre. Eu andei pensando muito e acho que nós dois
precisamos pisar com os dois pés firmes em nosso chão e continuar
enfrentando a vida como nos é dada. Nós fomos presenteados com nosso
encontro e nossa interação tanto daquela noite quanto das horas que
passamos sem barreiras na casinha de troncos da Ingrid.
- Vai ser difícil, Britt, mas eu acho que você tem razão. Da minha parte eu
quero que você saiba, no entanto, que eu não desejo abrir mão do que eu sinto
por você. Posso estar muito longe e demorar o que for, eu não desistirei nunca
dele. Mas a distância, as circunstâncias de vida e o tempo correm contra nós.
- Olha aqui, Marcus... Ouça-me um pouco só... Tenho uma idéia. As
circunstâncias que nos cercam parece que impossibilitam que possamos nos
ver ou comunicar com facilidade. Nós sabemos que a Noruega é
excessivamente longe de New York para pensarmos em uma presença
constante. Sei também que telefonemas são muito caros.
Apertando suavemente suas mãos, ela perguntou:
- Por que não voltamos a pensar naquela idéia de escrevermos? Escrevermos
sempre para manter nosso carinho aquecido. Conforme a gente conversou na
sala da Ana, nós dois gostamos muito de escrever... Temos essa facilidade!
Nada pode substituir a presença física, é claro. Mas... O que é que você acha?
Seja bem sincero comigo.
- Acho excelente! Você concordaria com isso? perguntou ele fixando-a com
intensidade.
139
- Claro que sim. Dos males, o menor, como dizem os antigos noruegueses.
Mesmo porque, na vida real, eu sei muito bem que você não se mudaria para
Oslo e eu não poderia morar em New York... Vamos tentar?
Ele a puxou devagar para mais perto e beijou-a nos lábios com muita ternura,
que ela retribuiu com um sentimento de um amor muito sereno, carinhoso e
profundo, soltando suas mãos e segurando seu rosto.
Ambos sorriram de felicidade.
- Está combinado e selado com esse beijo especial que acabamos de dar.
- Do meu lado, conte comigo e, por favor, desde já tenha paciência por causa
do meu inglês meio capenga.
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E assim ficou estabelecido entre os dois que acabaram se despedindo com um
sentimento tranqüilo, quando ela desceu do taxi próximo ao seu apartamento e
ele seguiu para o aeroporto.
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Britt retomou sua história pessoal depois de beber um copo de água trazido por
Labda:
- Eu só fui cair em mim de verdade sobre tudo o que havia acontecido naqueles
dias, durante a noite. Minhas férias começariam na segunda-feira, mas naquele
domingo mesmo, de comum acordo com o meu marido, logo cedo tomei um
ônibus com minha prima Bertha para a cidade de Bergen, a fim de ficarmos
hospedadas na casa da mãe dela, localizada nos arredores da cidade, num
lugar que tinha muitos encantos naturais.
Mudando de posição, foi sentar-se perto de Labda e continuou:
- No dia seguinte à nossa chegada, resolvemos passear de bicicleta para um
determinado ponto encostado nas montanhas, que era muito famoso, onde
Bertha havia explicado que ocorria muitos ecos para cada grito que era dado
ao redor. Chegamos com facilidade a um mirante de concreto existente no
local, na beira de um profundo abismo. Lá do alto dava para admirar trechos de
um fjord de águas escuras. Um número incontável de montanhas cercava o
local.
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Enquanto admiravam o ambiente maravilhoso, Britt perguntou:
- O famoso eco que você me contou ontem à noite acontece aqui, Bertha?
140
- É aqui mesmo, Britt. Oito ecos contadinhos. Aqui mesmo. Dizem aqui que ele
é mágico. Aos sábados e domingos este recanto aqui fica repleto de crianças,
jovens e adultos esperando para dar o seu grito. Todos por aqui acreditam que
esse eco muito repetido realiza seus sonhos.
Tomando suas mãos, provocou-a:
- Vamos lá, prima! Deixe a tristeza de lado e experimente. Estamos só nós
duas aqui nesta manhã ensolarada de segunda-feira. Grite um nome, fazendo
antes um desejo secreto...
Britt ficou surpresa com a brincadeira da prima e perguntou:
- Um desejo? Bom... deixa eu ver... Vou pensar num especial. E eu devo gritar
um nome com um desejo, certo?
Embora um pouco na dúvida, Britt riu de leve. Segurando suas mãos, Bertha
confirmou:
- É! Um nome de gente, claro. Por exemplo, no seu caso, o nome desse cara
da ONU que encantou você... Marcus, o nome dele. Mas não se esqueça de
formular em sua cabecinha um desejo a respeito dele. Desejo secreto que
ninguém pode saber.
- Está bem, Bertha. Vou tentar.
Concentrou-se, fechou os olhos, segurou firme a balaustrada lateral ali
existente, respirou fundo, pensou em Marcus deitado ao seu lado na casinha
de troncos, sorrindo para ela, segurando suas mãos e olhando fundo em seus
olhos. Determinada, abriu seus olhos e gritou com toda a força que conseguiu
o seu nome, com as duas sílabas separadas.
Soltando-se da mureta, ficou ali estatelada, sorrindo, ao ouvir ao lado de Bertha
a repetição de seu grito diversas vezes, cada vez mais fraco e mais longe.
Nos momentos que se seguiram teve que colocar suas mãos sobre o coração
enquanto ouvia seu grito apaixonado repetindo o nome de Marcus, com a
esperança de que os ecos iriam levar aquele momento até ele.
Bertha, que a observava sorridente, chegou bem perto e com carinho
murmurou, segurando suas mãos:
- O que foi, Britt? Você está chorando!
- É mesmo... Eu fiquei muito comovida, Bertha. Com esses ecos, que me
pareceram uma mensagem galopante na direção de Marcus, fiquei muito
141
consciente de que eu o amo de verdade, mas eu fiquei com a impressão muito
clara de que não mais o verei em minha vida.
- Parece uma perspectiva muito triste essa, prima. Quem sabe tudo se resolve.
Deixa o tempo passar. Ninguém sabe o dia de amanhã, como diz uma canção.
- É verdade, Bertha. É verdade. Mas eu preciso guardar esse segredo para
sempre, não é mesmo? Só nós duas saberemos a respeito.
- Você precisa, de verdade, guardar esse seu segredo com todo o cuidado e
carinho. Amor é um sentimento que precisa ser tratado com verdadeiro... com o
mais verdadeiro amor. Você me falou de um pequeno vaso com umas
plantinhas que ele mandou a você. É algo vivo! Guarde-o como um tesouro e
transfira a plantinha para um lugar mais permanente. Talvez aqui mesmo!
Assim que ela conseguiu controlar seus soluços, Bertha tomou suas mãos e
caminhou até próximo de uma pequena queda de água. Abraçou-a outra vez e
olhou bem fundo em seus olhos.
- Garota de sorte, esta minha prima! Eu invejo você, sabia? Um amor tão
profundo como esse que a domina dá um brilho especial a uma mulher. Veja se
você consegue passar um pouco desse brilho para mim, que até estou sem
namorado.
Em seu caminho de volta, Bertha comentou:
- Aqui no meu modo de pensar, eu acho que isso passa, mas como você é
muito sentimental, talvez você sofra por alguns anos com as lembranças dos
momentos que passaram juntos. O importante nisso tudo, Britt, é você ter
certeza de que o que você está sentindo é algo exclusivamente seu e ninguém,
ninguém mesmo, tem nada a ver com isso. Fique muito consciente disso e
nunca abra mão desse segredo. Certos sentimentos, prima, são muito
pessoais, muito individuais e não vêm à cabeça ou à memória da gente para ir
espalhando para os outros.
Deixaram as bicicletas estacionadas nas armações próprias que a prefeitura
mantinha em todas as ruas e foram caminhando devagar.
- Aproveite bem esses cinco dias que iremos desfrutar aqui em Bergen na casa
da minha mãe – sua tia, por sinal... Eu estarei por perto. Pense com
tranqüilidade em tudo o que aconteceu e que não aconteceu, mas que você
fica elaborando em sua cabecinha. Pense nas coisas que vocês dois apreciam,
como a música de Grieg, por exemplo. Comente comigo tudo o que quiser e
142
deixe para depois de muito pensar os aspectos de tomadas de decisão. Vá
com calma. Não estrague sua vida nem por precipitações, nem por
aborrecimentos.
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Eurínome, que não se conformava com a evolução daquele romance,
perguntou:
- Britt, me diga. Esse afeto, esse amor tão repentino e profundo perdurou por
muito tempo? Considerando esses conselhos tão maduros de sua prima
Bertha, com os quais eu concordo na totalidade, como é que a vida continuou,
especialmente para você?
- O amor perdurou e foi ficando cada vez mais forte, conforme eu ia tomando
posição quanto a meus planos. Minha correspondência foi ficando cada vez
mais preciosa, especialmente depois que eu me divorciei e tinha muito mais
privacidade.. Eu acredito com toda a convicção, Eurínome, que um amor,
quando surgido de bases sólidas e cuidado com esmero, nunca morre. Ele
segue sempre em frente e vai se fortalecendo, vai fazendo parte da pessoa. Eu
sei que há discordâncias a respeito, mas eu acredito com muita força que o
amor é um sentimento eterno. E graças aos céus, o Marcus sempre pensou da
mesma maneira. Nós nunca discordamos a respeito.
- E sua vida profissional?...
- Com relação ao Centro de Reabilitação, passei logo para a chefia do
Departamento de Fisioterapia que recebeu um incremento forte com os anos.
Com relação ao Marcus, meu relacionamento profissional continuou por anos
seguidos dentro de uma rotina até que saudável. Todos os dias eu ansiava por
sentar-me diante do computador e escrever muito, como se ele estivesse em
minha frente. Depois de alguns anos, fui sondada pela ONU se eu aceitaria
uma missão no exterior, ainda sem indicar qualquer país, mas mencionando o
Oriente Médio de um modo mais explícito e pedindo informações adicionais
sobre minha vida profissional. Sabendo pelos muitos contatos com o Marcus da
relevância do trabalho de assistência técnica que a ONU desenvolvia pelo
mundo por meio de especialistas nos mais variados campos, respondi que sim,
aceitaria.
143
- Que bom que você fez isso, porque era uma segunda consulta, não é
mesmo? Acho que com isso demonstraram que confiavam em seu potencial e
queriam confirmar para fazer uma proposta mais específica.
- Foi mais ou menos isso, Eurínome. Eu havia me divorciado uns quatro anos
antes e não tinha tido filhos. Estava juntando meu dinheirinho mês a mês para
financiar minha viagem a New York para passar uns dias de férias com Marcus.
- E a vida afetiva de vocês dois como se manteve? perguntou Labda.
- Ela se mantinha bem aquecida. Além das cartas pessoais, nossa contínua e
rica correspondência sobre assuntos profissionais manteve-se muito firme. O
que havíamos combinado em Oslo funcionou muito bem pelos anos afora.
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Logo depois de ter-se comunicado com o Serviço de Recrutamento de
Especialistas para o vasto programa de assistência técnica da ONU, Britt
recebeu um convite formal sobre um determinado projeto que estava sendo
desenvolvido no Irã e que caminhava no sentido de composição de uma equipe
multiprofissional para dar mais substância que seria indispensável face ao
apoio irrestrito do Governo, por intermediação da Imperatriz Farah Diba.
Como o projeto já vinha caminhando desde alguns anos no setor de próteses e
órteses, com Werne Wille, técnico da ONU, montando as oficinas, de um lado,
e o esquema de preparação de técnicos para países do mundo árabe, do
outro, um coordenador geral de assistência técnica para a prevista evolução do
projeto havia sido contratado e estava em plena atuação em Teherã. Era Otto
VanDel Holm, um consultor geral de Udense, na Dinamarca. Ele e a esposa
atuavam lado a lado e indicaram ao Serviço de Desenvolvimento Técnico do
Governo Persa que necessitariam logo de uma fisioterapeuta com experiência
em ensino e depois do primeiro ano de atuação dessa profissional, seria
necessário prever a inclusão no grupo de um médico fisiatra.
Acertados os pormenores administrativos de sua contratação, após o sinal
verde do Governo Persa, Britt recebeu a comunicação de que, face à incipiente
complexidade do projeto, ela deveria viajar para o Irã o mais cedo possível,
apresentando-se ao Otto Van Del Holm. Mas antes disso, deveria passar uma
semana em New York para um briefing especial sobre o sistema adotado e
sobre as expectativas da Seção de Reabilitação do Bureau de Assuntos
Sociais.
144
A idéia dos responsáveis da Seção era que ela chegasse a Teheran com pleno
conhecimento dos momentos de evolução do projeto, desde o seu início, com
os contatos de Werne Wille com a Imperatriz Farah Diba, e do raciocínio
vigente na sede da Organização, quanto à evolução do projeto, não correndo o
risco de perda do controle ou do enfoque principal que era basicamente
proporcionar meios para que as idéias de reabilitação chegassem a todos os
países árabes.
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- Mas essa necessidade de você ter que ir a Nova Yorque para essa semana
de briefing foi genial, hein? comentou Noelma.
- Nem diga, Noelma! Claro que no dia certo embarquei toda feliz, na esperança
de que a minha missão desse certo e que Marcus ficasse orgulhoso de sua
indicação do meu nome.
- Mas ele sabia muito bem de sua competência, não é mesmo? Você merecia
uma oportunidade como essa, comentou Labda.
- Acho que sim. Para a viagem, eu havia comprado um presentinho bem
norueguês para ele, além de um vestidinho bem elegante para eu encontrar
com ele. Por carta mesmo havíamos combinado alguns passeios fora dos
horários da ONU e aproveitando a enorme duração do dia. Escurecia mais ou
menos às nove da noite! Dava para passear bastante. E havia também um fim
de semana que a gente planejava passar juntos, viajando pelo Interior, no lado
Leste dos Estados Unidos. Depois, sim, eu embarcaria para Teheran.
- Que bom, hein? E tudo deu certinho? Como foi o encontro de vocês dois,
passados mais de 10 anos?...
- Infelizmente não deu nada certo... Nosso sonhado encontro e a semana de
briefing nunca aconteceram.
- O que?!... E... o que aconteceu? perguntou Noelma meio atônita com a
notícia.
- Porque devido a uma pane no motor da esquerda, onde eu estava, o avião
todo explodiu sobre a Groelândia. Claro que todo o mundo morreu antes de
chegar ao solo.
O grupo todo ficou meio traumatizado com o relato e um silêncio pesado caiu
sobre o ambiente. Depois de algum tempo, Labda perguntou:
145
- Britt... Puxa vida!!! Britt, você se lembra do momento do desastre que vitimou
todo o mundo no avião?
- A última coisa que ficou registrada em minha memória foi ter ouvido um som
cada vez mais agudo, vindo do motor ali do meu lado. Era um zumbido muito
estranho e cada vez mais fino. Naqueles momentos de perplexidade, durante
os quais você espera em Deus que nada de mal aconteça, eu lembro de ter
dito baixinho: “Marcus, meu querido... aconteça o que acontecer, por favor me
espere”... E não lembro de mais nada.
- Ora... Mas que coisa mais trágica, não? comentou Noelma.
- São os famosos percalços da vida, Noelma. Todos nós sabemos que nem
tudo o que você deseja pode tornar-se realidade. Mas, acreditem, hoje em dia
eu estou bem... muito bem, por sinal. Sei que tenho uma missão a cumprir aqui
e que minha experiência em reabilitação, muito enriquecida pela contínua
correspondência com Marcus será, no mínimo, de vital importância. Pelo
menos assim espero.
De seus respectivos lugares, todos olhavam para ela com plena admiração,
pois todos tinham plena convicção de que aquela moça bonita de olhos azuis
trazia em si não só sua beleza notável, mas um acervo de conhecimentos
inestimáveis e que certamente seria vital na evolução das providências que
estavam caminhando para acontecer.
- Segurando-se nos braços de Labda e de Sísifo, ela se fechou um pouco e
deu um soluço bem sentido.
Assim de perto como estava, deu para Sísifo ver duas lágrimas descendo pelo
seu rosto.
- Tenham um pouco de paciência comigo, meus caros. No fundo de minha
alma não sou nada mais do que uma garota que perdeu o seu amor lá longe no
tempo e no espaço. Além disso, ela sente uma falta imensa daquilo que não
conseguiu usufruir devido a todas as circunstâncias que nos cercaram.
Havia sido formado um círculo fechado ao seu redor,procurando passar a ela
um apoio incondicional.
Mestre Agostinho e Joshua chegaram devagar para repassar algo.
- Desculpem-nos por interromper, meus prezados, mas lá fora está uma tarde
ensolarada e muito bonita.Por que vocês não dão uma chegada lá no gramado
da entrada para desfrutar um pouco essa natureza exuberante que Deus
146
coloca à nossa disposição? Tenho a certeza de que esse tipo de intervalo fará
bem para todos que estiveram trabalhando a tarde toda.
- E agüentando esta Maria chorona aqui com tanta paciência, emendou Britt
rindo.
- Vamos lá, então, confirmou Eurínome com entusiasmo. Teremos quase uma
hora antes de nosso jantar. Vamos aproveitar, minha gente! Vamos aproveitar..
147
Capítulo Décimo
RENASCENÇA
Mestre Agostinho iniciou os trabalhos do Grupo de Estudos com a presença de
vários historiadores que haviam vivenciado situações nos séculos da Idade
Média e o grupo de assistentes especiais e profissionais convidados, sem
muitos rodeios, informando que entre os séculos XV e XVII havia ocorrido no
mundo europeu cristão uma inquestionável mudança, com o surgimento do
chamado "espírito científico", e com o parcial desmoronamento de muitas
concepções tradicionais de "natureza", de alguma forma afastadas que eram da
realidade.
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O que sucedia era que o homem estava vivendo num mundo difícil e repleto de
problemas, no qual aqueles que se mantinham ligados ao poder espiritual
taxavam muito do que era "natural" e relacionado ao dia-a-dia — ou seja, bens
e/ou comportamentos — como desprezível, miserável, pecaminoso, face ao
destino imortal do homem, sua vida eterna e as idéias de paraíso, purgatório e
inferno.
No entanto, no fundo de seu coração, o ser humano pertencente à plebe não
podia negar que achava bons, bonitos e agradáveis esses bens materiais e esses
comportamentos ou ações considerados como proibidos e pecaminosos.
Evidentemente que essa ambivalência tem sido multissecular, e dela alguns
homens da Idade Média procuraram escapar das mais variadas maneiras, sem
ferir seus princípios e seu modo de viver cristãos.
Alguns utilizaram-se da pintura, outros da poesia ou do canto, enquanto uns
poucos procuraram derivativos na arquitetura. O fato é que, gradativamente o
mero aceno do paraíso como recompensa por uma vida mortificada,
sacrificada e miserável, e a contrapartida das ameaças do inferno e do castigo
eterno, continuavam deixando na alma do homem medieval grandes e doloridas
dúvidas.
148
O mundo europeu foi sentindo de várias maneiras que era necessário alterar
essa situação e dar um corajoso mergulho na direção da luz, da cultura, das
coisas novas e desconhecidas e — por que não? — também das coisas tidas
como proibidas.
Há um versinho popular do século XII que expressa muito bem esse forte
conflito vivido pela Humanidade:
"Vita mundi, res morbosa,
Magis fragilis quam rosa;
Cum sis tota lacrimosa,’
Cur est mihi gratiosa?
(Apud Taylor)
(“Vida terrena, coisa doentia, mais frágil do que a rosa, por que me parece tão graciosa, se és toda lacrimosa?”)
Conforme a incômoda situação do homem medieval ia sendo definida, mesmo
que por meio de modinhas ou versinhos populares de um latim também popular
um tanto universalizado, surgiam contos em verso ou em linguagem corrente,
divulgados cada vez mais, não graças aos arautos que sempre se limitaram a ler
aos berros as ordens régias ou as imposições dos senhores e dos governantes,
mas graças à invenção da imprensa, por Gutenberg.
Pensadores começaram a ser mais popularizados e a se impor. A cultura, tão
confinada que era e tão restrita a certas áreas especiais do mundo feudal,
como os mosteiros de ordens religiosas, foi sendo espalhada por toda a
Europa. E com ela chegou também a sede pela sabedoria, na busca incessante
dos clássicos gregos e latinos, muito famosos e praticamente esquecidos pelo
povo, e que acabaram se transformando numa espécie de paixão dos
estudiosos.
Além disso tudo, outras alterações caminhavam celeremente pela Europa com a
descoberta de novas terras no final do século XV e início do século XVI; com a
contínua chegada de sábios fugitivos de Constantinopla, que não suportavam a
pressão dos turcos invasores; alem da proteção que reis e nobres davam aos
artistas da época.
Esses fatos de inegável valor foram — somados a muitos outros de menor e
menos significativo vulto — os verdadeiros incentivadores da nova onda
149
intelectual e cultural que, iniciada na Itália, passou logo para a França,
Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e alguns outros países.
Nomes famosos que antecederam imediatamente esse período foram os de
Dante, Bocaccio, Giotto e Petrarca. Durante essa importante onda de mudanças
e de progressos, depois universalmente aceita e batizada como "Renascença",
nomes destacados e muito representativos foram os de Donatello, Ariosto,
Machiavel, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Raffaelo, Calvino, Montaigne,
Erasmo, Cervantes, Camões e muitos outros escultores, escritores, pintores,
arquitetos, filósofos humanistas e homens voltados para a religião.
Nesse movimento novo e muito renovador, o reconhecimento do valor do
homem era a nota dominante — era o Humanismo que surgia e se fortificava.
Por meio dele, pelo menos no campo das idéias, o homem sentir-se-ia mais
livre, menos oprimido, mais valorizado, não mais um mero escravo dos
poderosos da Terra, nem mesmo preso à crença de que tinha que fazer o bem
para merecer o céu ou simplesmente para escapar às torturas do inferno.
Revolucionário sob muitos aspectos, esse modo de ser alteraria a vida do
homem menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião dos pobres, dos
enfermos, enfim, dos marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de
dúvidas, aqueles que tinham problemas físicos, sensoriais ou mentais.
A Renascença surgia no mundo para tirar o homem de uma era de trevas,
ignorância e superstição, que foram os séculos da Idade Média.
Problemas dos Hospitais e Abrigos no Início da Renascença
Dentro desse contexto, ao analisarmos o desenvolvimento dos hospitais e de
muitos abrigos destinados a enfermos pobres ao se encerrar a Idade Média,
verificamos que os cuidados prestados em muitos casos mostravam também
sinais de um indisfarçável e novo modo de ver e de considerar o ser humano
atingido por algum mal e não apenas os resultados de novas técnicas médicas
em experimentação ou em vias de aperfeiçoamento.
O cuidado para com as pessoas com deficiência, como um grupo especial e
sempre marginalizado, diferente da significativa massa atingida e marcada pela
pobreza, começava a se definir em pontos isolados do mundo, surgindo muito
vagarosamente por meio de providências bastante práticas.
150
Fato que não pode ser desmentido é que, apesar da baixa qualidade dos
serviços, nos últimos decênios da Idade Média a Europa estava praticamente
coberta por uma verdadeira rede — desarticulada, é verdade — de hospitais,
casas de abrigo a doentes, enfermarias em conventos e mosteiros e também de
casas montadas para abrigar pessoas necessitadas de tudo para poder
sobreviver. Corresponde a uma verdade histórica e não há exagero algum em
assinalar o desenvolvimento dos hospitais e a gradativa humanização das
atenções para com os doentes ou pessoas com deficiência, como um dos
marcantes feitos do final da Idade Média.
Tanto a provisão de serviços individualizados quanto a indispensável garantia e
manutenção permanente de serviços de saúde para as cidades, na Europa,
durante os séculos XVI e XVII, firmaram-se e permaneceram como uma
responsabilidade de cada comunidade e não do Estado como um todo.
Os poderes comunais, as paróquias, os mosteiros e abadias que já acumulavam
experiências das mais variadas naturezas, procuravam cuidar dos doentes
agudos e crônicos, prestando-lhes serviços de ordem cada vez mais eficiente. O
cuidado médico começara a ser prestado através de hospitais, em geral por
meio de médicos contratados ou pagos pelo poder público local.
No entanto, quanto aos homens de maior posse e suas respectivas famílias,
continuou a prevalecer o costume de serem tratados em suas próprias casas, e
nunca nos hospitais.
No século XVI foram dados alguns passos decisivos no atendimento a pessoas
com deficiências auditivas, que até então eram consideradas como ineducáveis,
quando não possuídas por maus espíritos.
Problemas dos Deficientes Auditivos no Século XVI
Com o aparecimento e fortalecimento de novas formas de ver o homem, que
vinham no próprio bojo do movimento renascentista, muitos esforços
começaram a ser desenvolvidos para compreender os problemas vividos por
seres humanos deixados à margem da sociedade por milênios. Dentre esses
esforços e movimentos destaquemos os relacionados às pessoas com
problemas de audição e da palavra, ou seja, os surdos-mudos.
151
Na verdade a luta chamara a atenção já no final do século XV, com a
publicação da obra "De Inventione Dialectica", de Rudolph Bauer (1433 a
1485). Nessa obra o autor faz menção a um surdo-mudo que se comunicava
por escrito. No entanto, foi apenas um século após que Jerônimo Cardan
(1501 a 1576), médico, matemático, astrólogo e, segundo alguns
contemporâneos, jogador e ardiloso ego-maníaco de origem italiana, surgiu no
panorama, questionando um princípio defendido por Aristóteles (O
pensamento é impossível sem a palavra).
Cardan inventou um código para ensinar os surdos a ler e escrever, â
semelhança do futuro código de escrita e leitura Braílle para os cegos, que
surgiria apenas no século XIX. Foi Cardan quem influenciou as idéias do
monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Léon (1520 a 1584), muito
dedicado à educação dos deficientes auditivos e que nunca escreveu sobre seu
método de trabalho.
Ainda no século XVI, o médico francês Laurent Joubert (1529 a 1582) inseriu
todo um capítulo sobre o ensino de surdos-mudos em sua obra "Erros
Populares relativos à Medicina e ao Regime de Saúde". Defendia um outro
princípio de Aristóteles (O homem é um animal social com habilidade para se
comunicar com os outros homens).
Desse ponto ele partiu para desenvolver todos os postulados que defendia, ou
seja, a habilidade existia em toda e qualquer criança, mesmo nas nascidas
surdas ou que mais tarde viriam a se tornar surdas. Segundo ele, o mestre
dessas crianças deveria agir com paciência e cuidado, pois da mesma forma
como uma criança aprende uma língua estrangeira poderá aprender a se
comunicar em seu próprio ambiente, se ela for surda. Devia o mestre começar
por palavras simples e pequenas, reforçando sempre as expressões faciais. E
acrescentava sua enfática opinião: a criança com deficiência auditiva aprenderia
a falar, mesmo sem se ouvir, desde que ensinada com paciência (Apud Mullett).
Pintura Renascentista e as Pessoas com Deficiência
Muitos pintores do conhecido Período Renascentista retrataram em suas obras
cenas em que aparecem pessoas com os mais variados males incapacitantes.
Alguns dos quadros mostram-nos com clareza a situação de miserabilidade em
152
que vi-viam; outros ressaltam cenas que deixam patente a inadequacidade de
atitudes; e vários outros são retratos encomendados.
Alguns exemplos serão aqui citados para propiciar ao leitor mais curioso
algumas indicações caso deseje aprofundar-se no assunto.
a) Anões retratados individualmente ou inseridos em grupos
"Retrato da família da Marqueza de Mãtua", de Mantegna (1431 a 1506);
"O Anão de Felipe IV", "Retrato de Dom Antônio, o Inglês" e "Menino de
Vallecas", de Velazques (1599 a 1660); "Conde Tomás Alveo e sua
mulher",de Rubens (1577 a 1640); "0 Anão de Carlos V" e "Retrato do
Bufão Péjéron", de Moro (1512 a 1578).
b) Anões inseridos em cenas variadas
"Os Anões", de Johann Van Kessel (1626 a 1679); "Cilene como a
Bacante", de Rubens (1577 a 1640); "A Ceia na Casa dos Fariseus", de
Moretto da Brescia (1490 a 1555); "Núpcias de Caná", de Paulo Veronese
(1528 a 1588); "Estudo sobre Anões", de Tiepolo (1693 a 1770).
c) Pessoas com deficiências físicas ou sensoriais
No tocante a deficiências físicas, um dos pintores mais célebres da
Renascença, Rafaello (1483 a 1520), desenhou uma interessante gravura
que se encontra no Museu de South Kensington, na Inglaterra. Ela nos
mostra um homem paralítico na porta de um templo, perto de São Pedro e de
São João, em seu trabalho de assistência a enfermos.
Fra Angelico (1387 a 1455), do Período Pré-Renascentista, sempre devotado à
arte sacra, é autor de um quadro muito famoso que se encontra na Capela de
Nicolau V, no Vaticano, intitulado "São Lourenço distribui bens aos pobres".
Nele aparecem diversas pessoas com deficiências: um amputado bilateral das
pernas usando apoios para as mãos e um cego usando um longo bastão.
Ambos levam grandes sacolas destinadas às esmolas angariadas, como era
costumeiro.
Outros quadros relevantes que conhecemos e que podem ser melhor estudados
são os seguintes:
- "Parábola dos Cegos", que retrata uma cena em que vários cegos vão caindo
numa valeta. É de autoria de Pieter Bruegel (1530 a 1569).
153
- "Combate entre o Carnaval e a Quaresma" do mesmo pintor. Nele são
retratadas diversas figuras com deficiências físicas, inclusive um amputado
da perna direita com guizos na perna esquerda.
- "0 Tocador de Alaúde", de Georges La Tour (1593 a 1652), no qual o
pintor retrata um tocador de alaúde cego.
- "A Briga dos Mendigos", do mesmo pintor e no qual podemos ver o mesmo
tocador de alaúde do quadro anterior numa violenta briga com outros
mendigos.
- "São ;Pedro cura os enfermos com sua sombra", de autoria de Masaccio
(1401 a 1428), também do período que antecedeu a Renascença nas artes.
0 pintor retrata em sua obra duas pessoas com deficiência física e seus
aparelhos para locomoção, ao lado esquerdo do quadro.
- "0 Pé Aleijado", quadro de Ribera, pintado em 1642 e exposto no Museu
do Louvre, em Paris. Mostra um sorridente jovem com seu pé direito e sua
mão direita com evidentes deformações.
- "Os Cegos de Jericó", de autoria de Nicolas Poussin e pintado no ano de
1651, no qual aparecem dois cegos sendo curados por Jesus.
- "A Fonte da Juventude", pintado por Lucas Cranach, o Velho, em 1546,
mostra-nos com clareza alguns meios de transporte de pessoas deficientes.
Nota: Procure no site do Centro de Referências FASTER (www.crfaster.com.br)
, sob “Variedades”, matéria ilustrada a respeito.
Ambroise Paré: Primeiros Passos da Futura Ortopedia
Foi nos meados do século XVI que a luta pelo estabelecimento de uma
especialidade médica, que tratava de ossos, foi iniciada. Nessa luta, Ambroise
Paré (1510 a 1590), dono de notável experiência, teve um papel relevante.
Paré começou a preparar-se para a medicina com um barbeiro de Angers e
continuou em Paris com um barbeiro-cirurgião, homem evidentemente mais
experimentado. Logo que sentiu ter adquirido experiência suficiente, procurou
emprego no hospital de atendimento geral da população parisiense, ou seja, o
Hôtel Dieu e lá permaneceu trabalhando como auxiliar durante três anos.
Engajado como cirurgião no exército do Marechal Montejan, introduziu muitas
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inovações, das quais duas são mais relevantes no tratamento de ferimentos
por projéteis, que no século XVI provocavam muitas mortes. Quando não
ocorria o óbito, ocorria em geral um acervo de seqüelas que podiam levar a
deficiências físicas. Esses tipos de ferimentos eram tidos como "queimaduras
envenenadas".
O tratamento original consistia na aplicação de azeite fervendo para sua
desinfecção e cicatrização. Caso ocorresse a necessidade de amputação do
membro atingido, o estancamento do sangue demandava o uso de ferro em
brasa.
Por ver-se em certa ocasião em dificuldades por não haver "azeite fervendo" à
sua disposição, Paré teve oportunidade de observar seus pacientes passando
muito melhor. Experimentou a ligação das artérias e vasos, prática que havia
sido abandonada e quase que esquecida pelos poucos médicos que faziam
cirurgia naquele século. Nas muitas amputações de membros que fez, Paré
teve oportunidade de tentar também o uso de retalhos da pele do doente,
junto ao coto, para recobrir a superfície da amputação.
Sempre lutando pela melhoria das condições de seus pacientes com seqüelas
de problemas ortopédicos, de amputações ou mesmo de males neurológicos,
Ambroise Paré chegou a propor o uso de coletes reforçados com tiras de aço
para problemas ocasionados pelos desvios da coluna vertebral, botas especiais
para pés tortos, dentre vários outros aparelhos. Acresce também lembrar que
Paré foi o cirurgião que lançou a expressão "Bec de Lièvre" (entre nós "lábio
leporino") e chegou a preparar obturações palatais para perfurações
traumáticas de ordem sifilítica ou congênita. Usava igualmente obturadores
para defeitos causados pelas armas de fogo.
Dentre os muitos aparelhos que desenhou, destacamos a assim batizada “Mão
do Pequeno Lorenense”, com idéias sobre um membro artificial articulado e
funcional.
Antonio de Cabezón: Compositor Cego
Um dos maiores e mais conceituados compositores de música para órgão da
Espanha, Antonio de Cabezón nasceu em Castrillo de Matajudios, no dia 30 de
março de 1500 e morreu em Madri no ano de 1566. Cego desde a primeira
155
infância, conseguiu a custo superar todas as dificuldades que se lhe interpunham
e em 1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia, interessando-se
sobremaneira por música. Alguns anos após, já com 26 anos de idade, foi
designado organista e clavicordista da Rainha Isabel da Espanha, tal a sua
competência na execução da música sacra nesses dois instrumentos.
Em 1548 passou a prestar serviços semelhantes ao próprio rei da Espanha Felipe
II. Viajou com a Capela Real da Espanha para a Itália, Alemanha, Holanda e
Inglaterra, tendo obtido um sucesso enorme e feito muitos amigos e
admiradores.
Foi um verdadeiro mestre da polifonia e influenciou decisivamente vários
organistas de seu tempo, inclusive o famoso Thomas Preston, da Capela de
Windsor, na Inglaterra, seu contemporâneo.
Goetz Von Berlichingen, o "Mão de Ferro"
São poucas as referências históricas a membros artificiais durante a Idade
Média e primeiros tempos da Renascença. Uma delas diz respeito a uma prótese
parcialmente funcional que foi utilizada durante muitos anos por uma figura um
tanto fora de moda em sua própria época — início e meados do século XVI —
durante a qual boa parte do mundo não estava mais preocupada com valores
predominantes na Idade Média, mas estava francamente à busca de um modo
de viver mais humano.
Trata-se de um famoso cavaleiro alemão apelidado de "Mão de Ferro", ou
seja, Goetz Von Berlichingen, nascido em 1480 e morto em 1562. Ele viveu
numa região da Europa que procurava manter um sistema feudal
absolutamente decadente e uma cavalaria em extinção, muito embora como
cavaleiro lutador tenha sido muito valoroso e útil para seus senhores.
O apelido de "Mão de Ferro" deve-se ao fato de Goetz ter recebido uma
profunda ferida na mão direita durante o cerco de Landshut. Complicações que
se seguiram ao acidente ocorrido durante a sangrenta luta levaram à
necessidade de amputação de sua mão. Estava então com menos de 30 anos
de idade.
Logo após sua recuperação, tomou todas as providências com pessoas
entendidas no assunto e principalmente com armeiros, para a fabricação de
156
uma mão de metal que mais tarde o imortalizaria. Ela foi tão bem planejada
que podia ligar-se com absoluta segurança e firmeza ao seu antebraço e tinha a
característica principal de poder manter sua espada firmemente presa em
posição de ataque ou defesa.
Por muitos anos mais Goetz envolveu-se em campanhas militares e
escaramuças, tornando-se quase lendário. Casou-se duas vezes e teve diversos
filhos. Foi sem dúvida um dos últimos cavaleiros medievais e da incipiente
Renascença, de soberbo renome. Não terminou seus dias sem antes escrever
sua biografia, intitulada: "Vie de Gotz Von Berlichingen, dit Main de Fer".
Problema da Mendicância Organizada nos Séculos XVI e XVII
Muito embora a teoria do humanismo renascentista procurasse valorizar o
homem, na prática as situações de vida continuavam muito abaixo do mínimo
aceitável. A necessidade de sobrevivência continuava levando muitos a recorrer
não apenas à esmola como a expedientes menos honestos, como o furto e o
dolo. Os mais ágeis e menos escrupulosos chegavam a tirar vantagens muito
acentuadas, ao passo que os doentes e os deficientes socorriam-se apenas das
esmolas e muito sofriam com a desleal concorrência dos falsos mendigos e
falsos doentes.
Havia para todos a obrigatoriedade estabelecida pelo imenso grupo dos
mendigos de se vincular a organizações ou a confrarias de miseráveis, pagando
taxas pré-estabelecidas.
Houve épocas, na História da Europa, em que a esmola pública foi explorada
dentro de uma forte organização na qual a figura do doente crônico e do
deficiente físico teve um relevante papel. Podemos verificar a veracidade dessa
afirmação pelo relato objetivo de historiadores.
A Grande Malha Organizacional dos Miseráveis na França
Liderados por um personagem conhecido pelo título misterioso de "Grand
Coesre", muitos grupos de mendigos (falsos e autênticos) reuniam-se em
grandes confrarias em diversos países europeus, no correr dos séculos XVI e
XVII. Reuniam nelas malfeitores, ladrões, bandidos, assaltantes de estrada,
157
alguns tipos de artistas e integrantes do mundo boêmio, além dos pobres
autênticos.
Paul Lacroix (1806 a 1884), literato e erudito francês, autor de importante
série de obras sobre usos e costumes da Idade Média e da Renascença,
apresenta-nos pormenores muito interessantes sobre os mendigos e miseráveis.
É ele que nos in-forma que na França existia a Ordem de Argot que congregava
diversos tipos de indigentes. Eles usavam um linguajar muito seu, repleto de
gírias exclusivas e matreiras, conhecido pelo nome de "le jargon".
Dentre esses grupos que mantinham identificação própria, nos quais estavam
invariavelmente inseridos pobres com deficiências evidentes, é importante
destacar alguns, tais como:
- os "Orphelins" - mendigavam chorando pelas ruas das cidades;
- os "Marcandiers" — errantes, andavam vestidos com um gibão velho, mas de
qualidade, fazendo-se passar por comerciantes arruinados;
- os "Malingreux" — cobertos de andrajos, mostravam suas feridas e chagas
(falsas muitas vezes) e pediam dinheiro para uma pretendida viagem de
peregrinação a um templo milagroso para sua cura;
- os "Piètres" — mendigos com deficiências físicas, locomoviam-se com
muletas ou pequenos apoios para as mãos e para os joelhos;
- os "Sabouleux" — pedintes em feiras, mercados e portas de igrejas, simulavam
ataques epiléticos e convulsões, espumando pela boca, graças a um pequeno
pedaço de sabão, rolando pelo chão e conseguindo polpudas esmolas.
Havia também outros grupos de mendigos filiados e especializados em seu
modo de se apresentar ou de atuar em determinados ambientes para angariação
de esmolas em dinheiro ou em espécie, tais como "Callots", "Coquillards",
"Hubins", "Polissons", "Francs Mitoux", "Ruffés", "Millards", "Convertis",
"Narquois" e muitos outros.
Em Paris todos eles pagavam uma taxa fixa por ano ao rei dos mendigos, o
"Grand Coesre", enquanto que nas maiores cidades da França havia seus
lugares-tenentes, conhecidos pelo título generalizado de "Cagoux", que
coletavam as taxas, além de serem os responsáveis diretos pelo treinamento
158
dos novos mendigos quanto à apresentação, aos apelos ao público e à
linguagem da Confraria.
Esses grupos reuniam-se diariamente, comiam, bebiam, inteiravam-se das
novidades e divertiam-se um tanto grotescamente naqueles famosos e
comentados "Pátios dos Milagres" ("Cours des Miracles"), que eram
logradouros mal iluminados e infectos da mais triste memória. À noitinha, aos
poucos iam aparecendo os mais variados tipos de verdadeiros e de falsos
mendigos: amputados, paralíticos, cegos, epiléticos — cada qual trazendo em
seus alforges ou debaixo dos braços algum alimento ou bebida.
Lá muitos abandonavam suas muletas ou bengalas, transformando-se em
pessoas bem dispostas, que dançavam todo tipo de música e que bebiam à
vontade, fartando-se sem a mínima preocupação com eventuais dificuldades no
dia seguinte. Sua diretriz maior era alimentar-se e divertir-se no Pátio dos
Milagres "ni foi ni loi" (sem fé nem lei).
Embora a França não fosse a única nação européia a viver esse problema, ela
tomou uma providência que iniciou os primeiros passos no sentido do
equacionamento do "modus vivendi" dos miseráveis daqueles séculos: foi
organizado o "Grand Bureau des Pauvres".
Mendicância Organizada em Outros Países
Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha e todo o resto da Europa viviam situações
quase que inteiramente semelhantes, durante diversos séculos, e que, devido ao
alheamento da nobreza, da burguesia e dos governantes, muito demoraram
para ser sanadas.
A Itália, por exemplo, tinha os seus mendigos e indigentes (conhecidos pelo
apelido de "Bianti" e também de "Ceretani") subdivididos em mais de
quarenta grupos reunidos numa só organização.
Dentre eles cumpre destacar os "Affrati" (vestidos com hábitos sacerdotais,
roubavam as esmolas das igrejas e santuários), os "Accatosi" (pareciam cativos
recém-libertos, com restos de algemas nos punhos e nos tornozelos), os
"Allacrimanti" (apresentavam-se chorando muito suas desgraças), e mais, os
"Morghigeri", os "Felsi", os "Vergognosi" e outros mais (Apud Lacroix).
159
Dentre os que obtinham mais e melhores esmolas, sempre estavam os mendigos
com deficiências físicas mais sérias ou que mais tocavam a população.
Deficientes Mentais no Século XVI: Entidades Não-Humanas
Até o século XVI as crianças com retardo mental profundo eram consideradas
em certos meios como entidades que se assemelhavam a seres humanos, mas
que não o eram. Havia a crença generalizada, principalmente entre alguns
religiosos, que essas crianças ocupavam o lugar e chegavam a substituir mesmo
crianças normais, através da atuação e interferência diretas de maus espíritos,
de bruxas ou de fadas maldosas, de duendes demoníacos e de tantas outras
entidades misteriosas.
É surpreendente verificar que mesmo intelectuais do mais alto nível
acreditavam sem qualquer sombra de dúvida nesses postulados. Exemplo dos
mais marcantes foi o de Martinho Lutero, que negou a própria natureza
humana de uma criança com deficiência mental de alguma seriedade. Eis o
que Martinho Lutero relatou a respeito desse caso:
"Há oito anos atrás havia em Dassau uma dessas crianças que eu, Martinho
Lutero, vi e examinei. Tinha doze anos de idade, usava seus olhos e todos os
seus sentidos de tal maneira que a gente poderia pensar que era uma criança
normal. Mas ela só sabia fartar-se tanto quanto quatro lavradores. Ela comia,
defecava e babava e se alguém tentasse segurá-la, ela gritava. Se alguma coisa
ruim acontecia, ela chorava. Assim, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse
o príncipe, eu levaria essa criança ao rio Malda, que passa perto de Dassau e a
afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe da Saxônia, que estavam
presentes, recusaram-se a seguir meus conselhos. Eu disse, então: Bem, então
os cristãos rezarão o Pai Nosso nas igrejas e pedirão que Deus leve o demônio
embora. E assim foi feito diariamente em Dassau, e o retardado morreu um
ano depois".
Lutero chegou a afirmar que estava convencido de que aquele deficiente mental
de doze anos de idade era apenas uma espécie de massa de carne ("massa
carnis") sem alma. "0 demônio possui esses retardados e fica onde suas almas
deveriam estar".
160
"Lei dos Pobres" e as Pessoas com Deficiência na Inglaterra
Passos muito importantes foram dados durante os séculos XVI e XVII na
Inglaterra, quanto ao atendimento a alguns grupos especiais de pessoas
incluídas num grupo muito maior: o dos miseráveis. Com o esfacelamento do
regime feudal e a posterior dissolução dos conventos, dos mosteiros e das
abadias, por expressa determinação do rei Henrique VIII (1491 a 1547), logo
após seus desentendimentos com o Vaticano, todos os religiosos foram
expulsos da Inglaterra. Houve uma parcial paralisação e mesmo destruição do
sistema de abrigo e de tratamento de doentes, bem como de assistência
vigente, organizado pelo catolicismo sob a forma de caridade. A maioria desses
edifícios religiosos foi sendo ocupada e utilizada para outros fins.
Entre essa época (1536 a 1539 aproximadamente) e o século XVII, poucos
estabelecimentos hospitalares foram criados no Reino Britânico. Durante esses
séculos da Renascença, muitos hospitais não sofreram alterações substanciais
na Inglaterra, uma vez que continuaram com suas características básicas de
abrigo ou de mero asilo para doentes até a sua morte, ou também para
deficientes físicos sem condições de sobrevivência e mesmo para velhos
abandonados. 0 pauperismo na Inglaterra agravou-se com o fechamento dos
mosteiros e abadias.
A deterioração das condições de vida das populações mais pobres, dos
enfermos e dos doentes ou deficientes em geral levou o próprio Henrique VIII
a promulgar a primeira "Lei dos Pobres", pela qual todos os súditos eram
obrigados a recolher o que foi chamado de "taxa da caridade".
As famosas "Leis dos Pobres" da Inglaterra começaram a ser aplicadas na prática
apenas no ano de 1531, pois foi exatamente nesse ano que surgiu um
primeiro ato oficial, autorizando juízes a dar licenças para velhos abandonados e
para pessoas com defeitos físicos sérios pedir esmolas, mas apenas em suas
próprias comunidades ou, no máximo, em áreas circunvizinhas.
O problema dos pobres passou a ficar tão sério na Inglaterra que em 1535
iniciaram-se discussões gerais para encontrar soluções aos seus múltiplos
aspectos, sendo uma delas a inserção dos pobres "sem deficiência física" em
trabalhos que eram pagos pela Coroa Inglesa.
161
No ano seguinte, a pressão continuava a mesma, senão maior do que antes, de
tal forma que fundos privados foram organizados para de certa maneira forçar a
participação do povo na solução do problema. A contribuição para a
necessária ajuda aos pobres passou a ser, então, uma obrigação social em
toda a Inglaterra. Essa contribuição, estabelecida no ano de 1576, levou ao
desaparecimento do caráter voluntário daquela anteriormente existente.
Mesmo antes dessa contribuição decorrente de uma determinação legal, porém,
a Inglaterra já vinha estudando as miríades de ângulos da questão da pobreza
e montava instituições em diversos centros urbanos dos mais pujantes, para o
atendimento separado dos pobres devido a incapacidades físicas ou mentais e
pobres devido a circunstâncias de vida, tais como acidentes e doenças.
Estavam incluídos nessas considerações os pobres por mero desleixo ou por
falta de condições para a necessária auto-suficiência.
Atendimento a Crianças com Deficiência na Inglaterra do Século XVI
As crianças inglesas abandonadas, doentes ou com males incapacitantes
começaram então a ser assistidas por organismos vinculados à Coroa Britânica
e também por iniciativa das comunidades que procuravam manter seus
esquemas com alguns objetivos mais ou menos bem definidos e que por vezes
chegam a surpreender-nos em pleno século XX, pois já no século XVI
incluíam, pelo menos na teoria ou nos seus postulados, o seguinte:
—a obtenção de trabalho para essas crianças ao chegarem à idade
requerida para uma atuação rentável;
—a definição de alguma proteção para elas fora dos orfanatos e dos abrigos
provisórios, ficando aos cuidados de famílias que delas se dispusessem a
cuidar por baixo custo para o governo ou para instituições privadas bem
organizadas;
internação definitiva em orfanatos, caso nenhuma dessas duas alternativas
chegasse a se concretizar ou a se mostrar viáveis.
"Grand Bureau des Pauvres" da França
No ano de 1544 foi fundado o "Grand Bureau des Pauvres" na França, sob o
reinado de Francisco I (1494 a 1547), um monarca seguidor de uma filosofia
162
aparentemente humanista, além de muito voltado para as inovações da
Renascença na Europa. 0 "Grand Bureau" era composto de burgueses
ocupantes das mais importantes posições em Paris e ficou conhecido pelo
apelido de "Aumône Générale" (Esmola Geral).
Com as contribuições que recolhia, conseguia manter os hospitais da Trindade e
das "Petites Maisons", atendendo a doentes pobres, incluindo aqueles com
paralisias, amputações, deformações e cegueira. Organizações semelhantes
existiam em diversas importantes cidades francesas, dando alguma cobertura
aos desamparados em geral, quando em situação de doença ou de
impedimento contínuo para ganhar a própria vida.
Classificação de Indigentes na França - Século XVI
Henrique II (1519 a 1559), rei da França, casado com Catarina de Médicis,
tomou a sério e resolveu prosseguir os esforços de Francisco I. Assinou um
decreto em 1547 através do qual impôs aos parisienses uma coleta em favor
dos indigentes.
Eles eram, àquela época, classificados em três categorias principais:
"Robustes" — os que não eram doentes ou deficientes e podiam trabalhar
"Invalides" — com problema sério de invalidez, mas com domicílio
"Invalides sans feu ni lieu" — deficientes sem abrigo nem domicílio
A primeira categoria tinha direito a empregos sem dificuldades; a segunda
recebia ajuda em seu próprio domicílio; a terceira - a dos inválidos sem lar - era
recolhida a um abrigo.
Luís de Camões - Poeta Épico Português
0 "cavaleiro-fidalgo" Luís de Camões (1524 a 1580) engajou-se na vida militar,
servindo em Marrocos entre os anos de 1545 a 1548. Ali perdeu um de seus
olhos em escaramuças com os marroquinos. Pouco depois voltou a Lisboa e
aos ambientes da corte. Tendo lá chegado, a notória deficiência passou logo a
ser motivo de algumas brincadeiras e zombarias por parte de uma jovem por
quem Camões sentia forte atração. Segundo amigos mais próximos do poeta,
ela se referira a ele como "cara sem olhos".
163
Luís de Camões, em seus 25 anos, sentiu a agulhada do comentário. Mas
acabou por transformá-lo em um galanteio, com o seguinte verso dirigido à
mimosa dama:
"Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu:
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam
Vendo-os, olhos sobejam,
Não vos vendo, olhos não são" . . .
A deficiência, que poderia ter arruinado a vida de um jovem galante, não
prejudicou nem a vida guerreira e aventuresca, nem a vida literária de Luís de
Camões que, muitos anos mais tarde, após infindáveis viagens para Goa,
Malabar, Meca, India, China, Málaca, llhas de Malásia, Moçambique e outros
lugares, escreveu a epopéia portuguesa que intitulou de "Os Lusíadas".
Pintor Mudo Decora El Escorial, na Espanha
Navarrette, conhecido pelo cognome de "El Mudo", foi pintor da Escola
Espanhola. Nasceu em 1526 em Logrono e faleceu em Toledo em 1579.
Recebeu lições de Ticiano e com 42 anos de idade foi convidado pelo rei
Felipe II (o mesmo rei que tinha um organista cego) a decorar El Escorial. A
incapacidade de falar não o inibiu em seus múltiplos relacionamentos durante o
empreendimento. Cita-se entre suas obras mais famosas o quadro intitulado
"São João Escrevendo o Apocalipse". Outra obra sua muito conhecida é o
quadro "Martírio de São Tiago, o Maior".
A grande Saga dos Hospitais nos Séculos XVI e XVII
Ainda dentro do século XVI, a situação dos hospitais continuava extremamente
ruim nos países do continente europeu, apesar dos muitos esforços feitos
pelas ordens religiosas. Havia enorme falta de higiene, negligência e às vezes
até crueldade por parte de atendentes mal preparados.
E foi nessa situação que surgiu no cenário dos hospitais a figura de Camilo De
Lélis (1550 a 1614) que, com 25 anos de idade, resolveu devotar-se a doentes
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hospitalizados. Trabalhou inicialmente com doentes crônicos internados no
Hospital de São Tiago para Incuráveis, em Roma. Fundou uma congregação de
religiosos para o serviço hospitalar que preparava ministros para os enfermos,
a fim de dar a requerida atenção ao corpo e à alma do doente. Ele mesmo foi
mais tarde vítima de ulcerações malignas numa das pernas, que o tornaram
parcialmente deficiente até o final de sua vida. Os "Camilianos", como
passaram depois de muitos anos a ser reconhecidos, contribuíram muito,
através dos vários séculos de sua existência, para a melhoria dos padrões de
atendimento nos hospitais e nas casas de saúde onde tiveram oportunidade de
atuar.
Com raras e honrosas exceções muitos hospitais da Alemanha e da França
começaram, já no século XVII, a passar gradativamente para o controle dos
governos locais. Sob a firme orientação do cardeal francês Jules Mazarin (1602
a 1661), alguns esforços especiais foram coordenados pelo governo francês
para colaborar na solução ou pelo menos na diminuição dos sofrimentos e das
dificuldades vividas pelos mendigos e pelos doentes pobres e incuráveis, e no
meio deles sempre inseridos, por não terem outro destino, aqueles com
deficiência física e mental.
Foram também criados na França, em 1656, os chamados Hospitais Gerais
(Hôpitaux Généraux) que eram uma combinação de asilo e de hospital, mas
bem melhor organizados e onde os serviços médicos estavam sempre
presentes e a medicação era melhor controlada e administrada. Foi nesses
hospitais gerais da França que pessoas com deficiência foram também
atendidas e passaram a ser objeto não só de abrigo e alimentação, como de
assistência médica.
Galileo Galilei, Matemático, Astrônomo e Físico
Nascido em Pisa no ano de 1564, Galileo foi o primeiro homem a usar um
telescópio. Após anos de contínuos e dedicados estudos, provou que a terra
não era o muitas vezes pretendido "centro do universo", e que ela girava em
torno do sol. Era uma teoria muito ousada para a época da incipiente
Renascença e principalmente para as autoridades da Igreja Católica. Face à
gravidade das suas afirmações que, no conceito de muitos poderia atingir
duramente a posição até então assumida e defendida pela Igreja e seus
165
doutores, Galileo foi preso e formalmente acusado pela Inquisição.
Devidamente julgado, foi condenado a se desdizer e a passar seus últimos oito
anos de vida em casa, sob custódia. No entanto, continuava a crer em sua
teoria e morreu em 1642 balbuciando suas famosas últimas palavras: "Eppur, si
muove" (no entanto, ela se move ...).
Galileo sofria de um problema reumático sério e em conseqüência dele acabou
ficando cego nos últimos quatro anos de sua vida. Continuou, todavia,
estudando e mantendo correspondência científica, ditando seus trabalhos e
suas cartas a dois de seus alunos: Viviani e Torricelli.
No dia 4 de julho de 1637 o grande cientista escreveu uma carta a Donati, seu
antigo companheiro, na qual se queixava: " . . . Encontro-me acamado há cinco
semanas... ... Acrescente-se, oh dor!, a perda total de meu olho direito que é
aquele que fez tantos, tantos e tantos, seja-me lícito dizer, trabalhos gloriosos!
Ele está agora, meu senhor, cego: o outro, que era e é imperfeito, mantém-se
ainda sem o pouco uso que dele poderia fazer se o operasse, uma vez que um
lacrimejar contínuo me tira a possibilidade de fazer qualquer, qualquer, qualquer
das funções que se espera da visão”. (Apud Germani).
Contínuo Problema dos Soldados Mutilados
No atendimento ao soldado doente ou mutilado devido a atividades
relacionadas às lutas armadas ou em atividades afins, sabe-se que, por ordens
diretas de Henrique IV, da França, que reinou entre 1589 e 1610, foi organizado
na Maison de la Charité, em Paris, um abrigo para os soldados franceses de
todos os níveis. Era uma das primeiras e notórias tentativas européias
destinadas a dar cobertura de assistência aos problemas daqueles homens que
arriscavam sua integridade física e sua saúde em benefício de sua terra, de sua
gente e de seu rei.
Trabalhos com Deficientes Auditivos no Século XVII
As idéias defendidas no correr do século XVI sobre os surdos e surdos-mudos
não eram na maioria dos casos passadas para a prática e foi Juan Pablo Bonet
que deu os primeiros passos nesse sentido. Escreveu sua obra intitulada
"Reducción de las Letras y Arte para Enseñar a Ablar los Mudos", levantando
questões a respeito das causas das deficiências auditivas e dos problemas da
166
comunicação oral. Chegou a indicar qual a idade mais recomendável para
crianças mudas poderem beneficiar-se do aprendizado para falar.
Concluiu que havia basicamente duas causas para o mutismo: a primeira e
mais importante era a surdez; a segunda era algum eventual defeito na língua.
Quanto à melhor idade para a criança surda aprender, achava que seria entre
6 e 8 anos, apesar de reconhecer as dificuldades de fazer as crianças
exercitar-se para tornar a língua mais ágil para articular palavras: elevá-la até o
palato, entortá-la, baixá-la, curvá-la para a direita e para a esquerda, colocá-la
para fora da boca em posições diversas, atritá-la ou raspá-la contra os dentes,
enfim, todas as posições indispensáveis para alguém falar.
Além disso, Bonet condenava métodos brutais de gritarias e de
enclausuramento em caixas que provocavam ressonância, defendendo sempre
a necessidade de se garantir a compreensão dos alunos quanto ao que deles se
esperava. Achava que o mestre e o aluno deviam ficar a sós e num ambiente
bem iluminado porque a instrução exigia toda a concentração possível e o
aluno precisava também observar bem a boca de seu mestre tanto do lado de
fora quanto do lado de dentro.
Outro autor que marcou época no século XVII no campo da surdez foi o inglês
John Bulwer (1600 a 1650), com sua obra intitulada "Philocophus" e que tinha
como subtítulo elucidativo a pouco modesta intenção do autor: "0 amigo dos
homens surdos e mudos, mostrando a verdade filosófica da sutil arte que pode
capacitar alguém com olhar observador a ouvir o que qualquer homem fala
pelo movimento de seus lábios. Provando aparentemente que um homem
nascido surdo e mudo pode ser ensinado a ouvir o som das palavras com seu
olhar e daí aprender a falar sua língua" (Apud Mullett).
Bulwer foi um dos primeiros educadores que defendeu um método de ensino da
leitura labial, apesar de ter escrito também sobre a linguagem dos sinais.
Há outros autores e educadores que atuaram com determinação e competência
nesse campo no correr do século XVII e dentre eles cumpre chamar a atenção
para Kenelm Digby, John Wallis, William Holder, John Wilkins e Francis
Mercury van Helmont.
Johannes Kepler, Astrônomo Alemão
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Nascido em 1571 e falecido em 1630, Kepler desenvolveu importantes estudos
sobre o movimento dos planetas, que muito ajudaram na elaboração das bases
modernas da astronomia.
O que poucos sabem, todavia, é que Kepler tinha uma séria deficiência visual,
causada pelo sarampo, contraído aos quatro anos de idade. As dificuldades
causadas pela severa redução da acuidade visual, entretanto, não afetaram sua
forte vontade de aprender e de estudar. Apesar de pobre, superou os problemas
e mil dificuldades que se interpunham aos seus propósitos e trabalhou muito.
Kepler legou ao mundo três leis básicas da astronomia, conhecidas pelo seu
nome, das quais a mais popular é esta:
"As órbitas dos planetas são elipses, tendo o sol como um dos seus focos"
Novas Formas de Utilizar os Hospitais
A permanente luta para a criação de entidades hospitalares, ou pelo menos de
organizações destinadas ao atendimento de pessoas com problemas crônicos ou
gravemente incapacitadas para a vida independente, na época da Renascença,
refletia o crescente papel que o Estado assumia para encontrar soluções para
problemas sociais e econômicos de sua população, ou também de algumas
entidades privadas, em muitos países europeus.
Na Alemanha, por exemplo, a responsabilidade pela manutenção de hospitais,
após a reforma protestante, passou durante muitos anos para as mãos das
corporações municipais.
Devido à precariedade de recursos para o aprendizado da medicina, além das
dificuldades dos médicos em adquirir experiência de ordem mais significativa na
proximidade e mesmo convívio com colegas de profissão e de trabalho, uma
importante e muito auspiciosa tendência começou a surgir no século XVII: a
de considerar os hospitais não mais como meros depósitos de doentes pobres
e nos quais os médicos quase nem compareciam ou davam atendimento, nos
de organizações destinadas ao atendimento de pessoas com problemas crônicos
ou gravemente incapacitadas para a vida independente, na época da
Renascença, refletia o crescente papel que o Estado assumia para encontrar
soluções para problemas sociais e econômicos de sua população, ou também de
algumas entidades privadas em muitos países europeus.
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Na Alemanha, por exemplo, a responsabilidade pela manutenção de hospitais,
após a reforma protestante, passou durante muitos anos para as mãos das
corporações municipais.
A Holanda, liderando o ainda mal definido movimento, e reconhecendo a
necessidade de poder contar com médicos melhor preparados, instalou no
ano de 1626, na cidade de Leyden, o primeiro sistema de treinamento prático
e bem orientado de médicos nos hospitais, o que sem dúvida acabou levando a
medicina a prestar muito maior atenção, não apenas aos doentes vitimados por
males curáveis e comuns, mas também por males ainda pouco conhecidos que
levavam à permanente vinculação ao leito, ou ainda a problemas incapacitantes
do físico e do mental.
Deficiências Físicas em Peças de William Shakespeare
Nascido no ano de 1564 e morto em 1616, William Shakespeare foi o maior
poeta e dramaturgo inglês de todos os tempos. Tal é sua versatilidade que
para muitos ele dá a impressão de ter formação médica, devido à
demonstração que faz de seus conhecimentos de anatomia, neurologia,
fisiologia e outras áreas afins, colocados em diversas de suas peças. O volume
de citações que faz de males incapacitantes é bastante expressivo.
Em diversas de suas obras o leitor poderá encontrar casos de fraturas graves, de
mutilações, de deformidades congênitas ou adquiridas.
Como todos sabem, Shakespeare escreveu peças imorredouras, tais como
Romeu e Julieta, Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão, Rei Lear, Macbeth e
outras. Há diversas que são pouco conhecidas entre nós e que têm muita
importância em sua imensa obra literária, e nas quais o genial escritor insere
personagens com deficiências, como em Ricardo III, Henrique IV, Henrique VI,
Henrique VIII, Tróilus e Créssida, a Tempestade, Titus Andronicus, Péricles e
Otelo.
Vejamos alguns exemplos ilustrativos, iniciando pela peça Titus Andronicus.
Trata-se de uma tragédia de proporções vastas. Um dos personagens, Lavínia,
filha de Titus, teve seus braços cortados e sua língua decepada em dramáticas
circunstâncias. O autor explora muito bem o fato narrado e suas
circunstâncias, dando cores muito vivas a todas as cenas em que Lavínia
169
aparece. Esse realce é mais evidente na cena em que, de certa forma imitando
a lenda de Filomela, Lavínia consegue indicar os culpados pela sua situação,
mesmo sem ter mãos para escrever ou língua para falar.
Na tragédia Otelo, o personagem Cássio é ferido traiçoeiramente na perna pelo
pérfido lago e grita desesperado na escuridão de uma rua cipriota:
- "Estou aleijado para sempre! Socorro! Assassinos!" . . .
Ao leitor não fica muito clara a extensão da lesão, principalmente devido a
algumas frases dos diálogos que seguem. Da boca de Cássio temos, por
exemplo, estas duas frases:
—. . .”Fui inutilizado, aniquilado por vilões" . . .
—"Minha perna foi cortada em duas" . . .
Já na tragédia Ricardo III, Shakespeare associa o defeito congênito com
maldade, perfídia, malícia, o que sucede também na peça Tróilus e Créssida,
com a indefinível figura de Térsites. Ricardo III (rei que existiu de fato, mas
certamente sem muitas das aberrações alegadas por Shakespeare) é
identificado na peça como "montão de ódio", "massa ignóbil e disforme", "tão
disformes de maneiras quanto de corpo", "rochedo fatal e disforme" e "sapo".
Essa peça é iniciada com um monólogo muito revelador desse rei
controvertido, a respeito de cuja figura histórica surgem muitas dúvidas:
— "Mas eu, que não fui talhado para habilidades esportivas nem para
cortejar um espelho amoroso; que, grosseiramente feito e sem a majestade do
amor para pavonear-se diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, privado
dessa bela preparação, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza;
disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos
vivos; terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que
os cães ladram para mim quando paro perto deles; pois bem, eu, neste tempo de
serena e amolecedora paz, não acho delícia em passar o tempo, exceto espiar
minha sombra no sol e dissertar sobre a minha deformidade" (Apud Miller e
Davis).
Exemplos de Superação de Deficiências no Século XVII
170
Por toda a história do homem na Terra certamente que esforços individuais de
naturezas as mais variadas foram desenvolvidos, para a eliminação dos
bloqueios e das muitas dificuldades causados por limitações físicas e
sensoriais. Bengalas ou bastões de apoio, calçados especiais, muletas, coletes,
próteses, macas e camas móveis, cadeiras especiais, carros adaptados, liteiras
e muitas outras idéias devem ter surgido em ocasiões e épocas variadas. No
entanto, por milênios, essas adaptações e criações não causaram maior
impacto sobre os homens detentores do poder ou do dinheiro, uma vez que o
problema sempre foi considerado como puramente individual e não dos
governantes.
Conforme percebemos até este ponto da existência do homem, diversos casos
de pessoas com deficiências foram até passados para a imortalidade da História.
Relembremos aqui os nomes de Homero, de Dídimo de Alexandria, dentre
tantos. 0 primeiro, apesar de cego escreveu fabulosos poemas épicos que
integram até hoje o acervo dos melhores trabalhos já produzidos pelo homem.
E quanto a Dídimo, também foi um exemplo digno de nota, chegando o
ilustre diretor da Escola de Alexandria — também cego — a utilizar-se de um
recurso até hoje muito usado pelos cegos que pretendem estudar ou manter-se
atualizados: os ledores.
Pela metade do século XVII, na Europa, alguns homens notáveis procuravam
também solucionar problemas de ordem prática para pessoas com deficiências
físicas sérias, especialmente nos casos daquelas que tinham posses e podiam
pagar pela criatividade dos artesãos.
E um dos homens inventivos e de grande iniciativa foi o alemão Stephen
Farfler, que havia sido vítima de algum tipo de paralisia nas pernas. Segundo
nos conta Pecci, foi ele "o primeiro a se locomover numa cadeira de rodas.
Paraplégico desde os três anos, ele mesmo a idealizou e construiu quando
tinha 22 anos, em 1655. Era uma cadeira baixa, pequena, toda de madeira,
com duas rodas atrás e uma na frente. A da frente era acionada por duas
manivelas giratórias. O próprio Stephen a movimentava. Ele utilizava essa
cadeira não apenas em casa, mas saía com ela, trabaIhava e passeava. Usou-a
até a sua morte, aos 56 anos, ocasião em que o veículo foi levado à Biblioteca
171
Municipal de Nuremberg, onde ficou exposta até 1945, quando um bombardeio
a destruiu ("Minha Profissão é Andar", de Pecci)
Outros homens do século XVII superaram sua deficiência e deixaram legados
brilhantes. Milton (1608 a 1674), um dos maiores poetas ingleses, ficou cego
com aproximadamente 45 anos de idade. Conseguiu ajuda e continuou suas
obras, tendo escrito o monumental "Paraíso Perdido" e outras obras mais, após
a instalação da cegueira.
John Milton: o Significado de sua Cegueira
Alguns autores têm escrito sobre a cegueira desse grande escritor inglês e têm
arriscado um diagnóstico da causa desse grave problema que mudou a vida de
John Milton. Dentre esses diagnósticos cumpre destacar os seguintes: castigo
de Deus devido à sua participação na revolta de Cromwell, catarata, glaucoma
crônico, complicações de miopia, descolamento de retina, glaucoma agudo
devido a crises emocionais, albinismo, neuroretinite de origem sifilítica
congênita, e também "fraqueza natural".
A fonte mais preciosa de informação quanto às reações de Milton à perda da
visão é uma carta que ele mesmo escreveu a seu amigo Leonard Philaras.
Dentre os muitos ângulos abordados pelo escritor cego, convém ressaltarmos as
belas frases em que mostra a forma como aceita sua cegueira.
Diz ele: " . . . minha escuridão, por singular misericórdia de Deus, com a ajuda
de estudos, lazer e a bondosa conversação de meus amigos, é muito menos
opressiva do que a mortal escuridão à qual se alude. Porque se, conforme está
escrito, o homem não vive só de pão, mas de cada palavra que vem da boca de
Deus, porque um homem não pode realmente aceitar isso, pensando que só
pode obter a luz de seus próprios olhos, julgando-se, todavia, suficientemente
iluminado pela orientação e providência de Deus? Portanto, já que Ele prevê as
coisas e me dá cobertura, como faz, e me leva para diante e para trás pela Sua
mão, como se o fizesse pela vida toda, não poderei eu dar uma folga a meus
olhos, já que esse parece ser o Seu prazer?"
Na verdade, durante os 22 anos de sua cegueira, Milton tornou-se bem mais
ativo e sua atividade de trabalho cresceu como nunca antes ocorrera. Os
primeiros oito anos de sua vida como cego ele os dedicou a Cromwell, como
172
Secretário para Línguas Estrangeiras. Traduzia cartas do latim para o inglês e
vice-versa. Milton trabalhava com a ajuda de secretários e amanuenses.
Organizou um dicionário de latim, preparou uma história da Inglaterra para
publicação e chegou a publicar um estudo muito sério sobre a doutrina cristã.
Além disso, sempre manteve extensa correspondência, como era costumeiro.
Conforme nos diz Snyder, o fato de Milton ser lembrado pelos seus escritos
quase desconhecidos nos dias de hoje não é tão significativo. 0 fundamental é
nos lembrarmos que suas lindas declarações de fé foram compostas por um
homem que era cego. Milton, que sempre se sentiu nas mãos de Deus,
conseguiu no seu mundo de escuridão o que muito poucos homens que vivem
na luz conseguiram sequer igualar.
John Milton casou-se três vezes. Sua terceira esposa era uma mulher muito
bela, mas dona de um temperamento difícil e muito violento. Dizem que
quando o Lord Buckingham comentou com ele que considerava que ele havia
casado com uma verdadeira rosa, Milton respondeu: "Não posso julgar pelas
cores, Lord, mas sinto-o pelos espinhos".
São Vicente de Paulo: Suas Obras Face às Tendências do Século XVII
Nas muitas tentativas de atendimento à vasta população mais pobre em
diversos países da Europa, começaram a surgir novidades e alterações
significativas, quando em 1634 apareceu um abnegado e obscuro sacerdote:
Padre Vicente de Paulo (1581 a 1660), nascido em Pouy, na França. Fundou
instituições para crianças pobres e abandonadas, doentes e defeituosas e que
em muitos casos estavam sendo exploradas para mendigar. Sua atuação levou à
criação de congregações religiosas que se destinaram ao cuidado do doente
pobre, como os Padres Lazaristas e as Irmãs de Caridade.
Assim como em outras áreas do desenvolvimento humano e científico
incrementado durante a Renascença, no século XVII começara a brilhar muito
tenuemente um pouco de justiça para pessoas fisicamente limitadas, bem como
para toda a parcela da humanidade que se encontrara até então subjugada pela
miséria e pela doença, pois durante quase toda a sua duração o mundo
caminhou com firmeza para melhores condições de vida.
173
Velha Lei dos Pobres da Inglaterra
Toda a legislação relacionada aos pobres que "infestavam" a Inglaterra foi
revista e re-editada em 1601, sob a rainha Elizabeth I (1533 a 1603). Esse
acervo de leis e de normas, que levou muito em consideração os
incapacitados devido a qualquer tipo de mal, foi de certa forma codificado no
ano de 1623, tendo a partir daí sido reconhecido como "A Velha Lei dos
Pobres".
Nessa codificação nova, as paróquias foram reconhecidas definitivamente corno
unidades básicas para sua administração e coordenação. Essa função adicional
aos trabalhos da Igreja coube a supervisores designados por juízes locais que
tinham a função de avaliar o montante de contribuição destinada a cada pobre
e o volume de ajuda que cabia a cada cidadão. Quando estabelecida e
ratificada pelo juiz local, essa ajuda tornava-se obrigatória para a comunidade.
Pois bem, foi com esses fundos que os velhos e os deficientes foram atendidos
e receberam abrigos em áreas pouco povoadas; crianças pobres receberam
treinamentos; os pobres sem deficiência foram encaminhados para empregos.
0 período de vigência da "Lei dos Pobres" (Poor Law) que vai até o ano de
1644 foi muito importante. Foi iniciado um sistema centralizado de cobrança
de providências a nível local, pois era notório o fato de que, mesmo onde não
havia pressão de trabalho, onde esquemas assistenciais funcionavam bem, nas
paróquias muito distantes e onde a supervisão tomava-se impraticável, muitas
vezes os pobres eram assistidos sem qualquer relação aos preceitos da lei que
forçava a isso.
Houve também uma chamada "lei de localização e de remoção", de 1662,
definindo melhor o papel de cada paróquia. As leis iniciais indicavam que o
direito à assistência era local e da comunidade. Assim, as paróquias tinham que
se prevenir contra a presença de estranhos ou de pessoas que poderiam se
beneficiar de mais de um programa assistencial ou dispensarial. 0 preâmbulo
dessa "lei de localização e de remoção" dizia que pessoas pobres não eram
impedidas de se mudar de uma paróquia para outra e podiam assim
estabelecer-se naquelas em que havia melhor estoque de matéria prima (para
os trabalhos destinados aos pobres), os maiores terrenos para construir
174
barracos e o maior volume de madeira para queimar durante o inverno e
também para outros usos.
Essa nova legislação dava às paróquias até poder para remover pessoas idosas,
defeituosas e incapacitadas, com menos de três anos de residência.
Dessa maneira, nenhuma ajuda poderia ser dada aos pobres, aos aleijados e
aos mendigos quando fora de suas paróquias, a menos que houvesse
autorização especial de um juiz. Os nomes desses pobres, seguidos de dados
de identificação, eram lançados num livro especial que era revisto
cuidadosamente uma vez por ano.
Ao final do século XVII, formalizou-se na Inglaterra a estigmatização dos
pobres - velhos, órfãos, deficientes — pois aqueles que eram "autorizados" a
receber ajuda mensal das paróquias, eram obrigados - a partir de 1697 - a
usar em sua roupa externa (casaco, capa, manta, abrigo) um grande "P"
vermelho ou azul.
Capítulo Décimo Primeiro
MARCUS
175
Colocando com cuidado sua bandeja no ponto próprio de seu recolhimento no
refeitório, Noelma contornou algumas cadeiras ainda ocupadas e chegou perto
de Britt para passar o recado escrito que tinha em suas mãos.
- Britt, Mestre Agostinho me pediu para avisar que ele precisa falar com você
agora cedo, lá na sala dele, cochichou ela com delicadeza.
Deixando de lado todos os seus planos de atividades para aquele começo de
dia, Britt foi até seu quarto e trocou de vestido, colocando o azul claro
comprido, que suas colegas tinham elogiado tanto. Deu uma leve escovada
nos cabelos e dali caminhou diretamente para a sala de Mestre Agostinho.
Bateu de leve e entrou devagar, vendo que ao lado de sua mesa estavam
sentados Mestre Joshua e Heródoto, que sorriram ao vê-la entrando.
- Bom dia, mestres. Espero não estar atrapalhando o trabalho que estão
desenvolvendo.
Agostinho levantou-se e deu a volta em sua mesa, informando:
- Bom dia, Britt. Que bom que veio logo, porque acabamos de receber uma
comunicação codificada informando que, como resultado de um levantamento
internacional, já foi selecionado, alguns dias atrás, o especialista que estamos
aguardando e que ele já está pronto para vir hoje para cá, até os meados da
manhã. Virá pelo sistema de transferência implantado pela NASA, que temos
usado faz um bocado de tempo, como você está sabendo desde o dia em que
aqui chegou.
- Estou sabendo mesmo, Mestre Agostinho. É um recurso realmente
espantoso... que também foi usado por mim, quando vim para cá.
- Isso mesmo.
Acompanhou-a até a ponta da mesa de reuniões e esperou que ela se
acomodasse na cadeira que ele afastou delicadamente. Heródoto e Joshua
aproximaram-se também e sentaram-se nas proximidades.
- Britt, como você está sabendo, é costume desta nossa organização manter
alguém lá na sala XPTO Voturuna, como é conhecida internamente aquela
área toda, para que a pessoa recém-chegada não se atrapalhe, nem apresente
qualquer dúvida a respeito daqui. Como esse especialista que estamos
esperando é da sua área de atuação, peço que desça até lá e aguarde um
pouco. Pode até ser que você o conheça devido a participações em seminários
176
ou congressos da Rehabilitation International e também à identidade com sua
área de trabalho por muitos anos, não é mesmo? Se vier alguma comunicação
informando qualquer alteração de planos, a Noelma irá comunicar a você, está
certo?
- Está combinado, sim. Vou ficar esperando lá embaixo. Alguma orientação
quanto ao seu destino por aqui logo depois de sua chegada?
- Peço que você o acompanhe até aqui e, se for o caso, a Noelma nos
encontrará onde estivermos. Na verdade, conforme acabamos de discutir aqui
com Mestres Agostinho e Heródoto, podemos ter certeza de que estaremos
enriquecidos com a presença dele, da mesma forma que todos nos sentimos
muito felizes com a sua chegada alguns dias atrás, Britt¸ comentou Joshua.
- Ah... Obrigada, Mestre Joshua¸ fez ela meio sem jeito, olhando para ele com
simpatia e percebendo pela primeira vez as perfeitas características de seu
rosto. Obrigada mesmo por suas palavras.
- Que são nossas, Britt, não duvide disso, afirmou Heródoto. Nós contamos
muito com você. Mas a vinda desse especialista deverá ser um grande reforço
para todos nós. Claro que eu sei muito bem dos cuidados esmerados que a
Divisão de Recrutamento e Seleção da ONU, em New York, tem quando
enfrenta a missão de escolher alguém para um projeto especial como o nosso.
A ONU tem pleno conhecimento de nossas características e tem colaborado de
uma forma exemplar.
Agostinho levantou-se e chegou mais perto dela com a idéia de transmitir mais
segurança na pretendida ação internacional.
- Com a chegada dele, Britt, vocês dois poderão iniciar os trabalhos sobre os
quais temos falado de vez em quando. Você sabe também que tanto a ONU
quanto o governo do Líbano estão desejosos de que o projeto comece o mais
cedo possível. Estamos informados que a ONU pretende garantir um esquema
contínuo de assistência técnica baseado no protótipo a ser montado pela nossa
equipe com o apoio da família de organizações vinculadas à ONU. A idéia um
tanto quanto ambiciosa é fazer com que o projeto, assim que implantado,
funcione como uma unidade de demonstração. Essa é a intenção clara do
projeto, por sinal.
Destacando uma publicação de uma pasta sanfonada ao seu lado, mostrou-a
a todos e informou:
177
- Na verdade, essa tentativa será a segunda das organizações internacionais
nesse mesmo campo, uma vez que no final da Década de Cinqüenta
ocorreram anos de tentativas para implantar centros de reabilitação de caráter
demonstrativo e multiplicador em cinco países diferentes. Foi uma experiência
válida, pelo que nos dizem os relatórios daqueles longínquos anos, mas sem
os frutos multiplicadores desejados.
Tomando a cópia que Mestre Agostinho começou a passar aos três, Britt
comentou:
- Em nosso Centro lá em Oslo desenvolvemos diversos projetos de curta
duração no sentido de analisar os esforços de implantação e os resultados
obtidos principalmente por um desses centros que estava localizado em
Skopje, na antiga Iugoslávia. Pena que, dentre várias dificuldades, devido ao
seu alto custo operacional, o centro não durou muitos anos.
- E parece que esse também foi o destino de outros desses centros de
demonstração, apesar dos investimentos nos esquemas de assistência técnica
garantidos pela Organização Mundial de Saúde, Organização Internacional do
Trabalho e pela própria ONU. Elas chegaram a garantir por anos a fio
especialistas especialmente designados para dar cobertura aos aspectos de
medicina física, de fisioterapia, de terapia ocupacional, de próteses e órteses,
além de atuações especiais no campo da reabilitação profissional. Claro que na
realidade atual precisaremos evitar a todo o custo os fatores que levaram essa
experiência a um fim tão melancólico.
Britt aproveitou o comentário final de Mestre Agostinho para acrescentar:
- Os senhores estão sabendo, é claro, que eu tenho acompanhado de perto
essas preocupações. Nesse sentido, eu já tenho adiantado meus estudos a
respeito e terminei ontem mesmo de colocar tudo numa minuta, de acordo com
aquilo que a nossa equipe fazia todos os dias em Oslo e com alguns pontos
captados em material inédito mais recente e nunca publicado, que eu vinha
recebendo durante vários anos antes de eu vir para cá. Nesse mesmo sentido,
de memória levantei pontos que eram também defendidos pelo Bureau de
Assuntos Sociais da ONU. Mas a presença de um especialista com uma
experiência moderna mais ampla é fundamental para termos mais segurança e
para coordenar os esforços a respeito.
178
- Você já conseguiu redigir alguma coisa sobre a composição e sobre os
aspectos do bom entrosamento da equipe multiprofissional básica, por
exemplo? perguntou Heródoto.
- Redigi, sim. Mas confesso que só consegui me limitar com muito mais
segurança à área de condicionamento físico, discutindo as relações inter-
profissionais de médicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais,
profissionais da área de próteses e de aparelhos ortopédicos conhecidos como
órteses... basicamente isso. Lá em Oslo, a gente conseguiu um sistema
bastante adequado e bem vivenciado desse entrosamento até o ponto em que
todos os membros da equipe sentiram que podiam atuar sem uma
coordenação formal. Embora eu ache que a atuação, mesmo de uma equipe
bem estruturada como a nossa de Oslo, possa ter facilidade de bom
entrosamento, a atuação completa com profissionais do desenvolvimento
psico-social e profissional deve ser bem mais complexa e demanda uma
vivência que eu nunca tive.
- Que bom que você tem trabalhado nesses assuntos . Diga-me o seguinte,
Britt. No volume que ficou perdido, com a explosão do avião em que você
viajava, esses pormenores todos estavam claros? perguntou Joshua.
- Muito claros mesmo, Mestre Joshua. Eu estou procurando resgatá-los de
memória.
- E não existe nenhuma cópia disso, Britt? quis saber Mestre Agostinho. Você
chegou a fazer alguma cópia de segurança, como dizem?
- Que eu saiba não existe cópia. O autor de um grande volume de materiais a
respeito, que durante anos me encaminhava suas idéias, nunca comentou isso
comigo. Mas o material que eu recebi já era uma cópia em papel carbono.
Tenho certeza de que o autor tinha o original. Do meu lado, eu nunca fiz cópia
daquele material por achar desnecessário, porque era para meu uso. Apenas
juntei as matérias oriundas de três ou quatro autores e mandei encadernar
numa papelaria para conservar melhor e para ser mais fácil de ser consultado.
- Eu não faço idéia dos tipos de materiais que você recebeu e que mandou
encadernar. Entretanto, eu fiquei sabendo de outra parte que um estudo sobre
o mesmo assunto que nos preocupa, estava sendo preparado não me informei
onde para divulgar o seu conteúdo completo, como um documento oficial da
ONU. Deveria ser uma espécie de encaixe na série conhecida como
179
Equipamentos e Serviços Básicos para Centros de Reabilitação de décadas
atrás. Claro que documentos dessa natureza, quando não têm o caráter oficial,
acabam recebendo colaborações as mais variadas, dependendo do profissional
encarregado de sua preparação final e dos seus contatos pessoais, técnicos e
de vivência profissional. Eu conheci bem diversos dos oficiais que atuavam no
Bureau de Assuntos Sociais da ONU e penso às vezes até que eu possa ter
conhecido o coordenador desse estudo.
Britt assustou-se um pouco com sua declaração, porque sentiu na hora que
estavam falando da mesma fonte de informação. Disfarçando um pouco,
comentou, olhando para um globo terrestre sobre a mesa de Mestre Agostinho:
- Mas que bom, Mestre Agostinho! Boa parte do material que eu mandei
encadernar junto com várias apostilas oriundas da Suécia, do Brasil e da
Dinamarca, veio também lá da ONU.
- Verdade? Estou um pouco curioso para saber como é que esse material da
ONU chegou às suas mãos. Posso saber ou é muita indiscrição minha?
- Claro que pode saber, sim. O próprio coordenador do projeto me mandou,
após vários anos de troca de idéias e da própria finalização do mesmo que ele
estava preparando. Ele havia conhecido nosso centro e observado o
funcionamento de nossa equipe praticamente sem uma liderança formal. Ficou
intrigado com tudo aquilo e achou que o sistema poderia até ser usado numa
equipe menos complexa e mais específica de reabilitação profissional.
Sabedora do potencial que poderia haver no relacionamento com a ONU, com
a OIT, com a UNESCO e com a OMS, a diretoria do nosso centro em Oslo,
face à natureza do projeto e minha incipiente fama de autora de muitos artigos,
indicou meu nome como sua representante para contatos de desdobramento.
Foi após essa indicação que ele me pediu para estudar o esquema proposto
por ele na minuta inicial do documento que estava preparando para analisar
com cuidado os eventuais bloqueios que ele tinha certeza de que existiriam.
Ele se manteria disponível para viajar para Oslo, se necessário e se a ONU
considerasse indispensável, a fim de ajudar na implantação daquilo que
poderia ser proposto, envolvendo não só a equipe de desenvolvimento psico-
social e profissional, mas também recursos específicos da comunidade. No
fundo eu acho que a intenção era experimentar a dinâmica proposta em nosso
Centro de Oslo. Mas não deu tempo, porque logo eu fui sondada pela ONU
180
para uma missão no Iran na área de fisioterapia, de um lado e de treinamento
de equipes de outro.
- Pelo que você está nos relatando você trabalhou diretamente com esse
especialista. É isso mesmo? quis saber Heródoto.
- Não foi um trabalho direto e contínuo, mas conseqüente a relacionamentos
pessoais que caminharam nessa direção. Toda a equipe de nosso centro
conheceu esse especialista, Mestre. Ele pertencia ao quadro de funcionários
técnicos do Bureau de Assuntos Sociais da ONU em New York. Estava
coordenando, como Secretário Técnico, um Seminário Internacional sobre
Administração de Centros e Programas de Reabilitação que estava
acontecendo na cidade satélite de Copenhague, que era Holte, destinado a
participantes de 32 países em desenvolvimento.
- Mas que coincidência, Britt... Eu me encontrei várias vezes com o pessoal da
ONU de New York. Vai ver que eu conheci esse especialista aí de quem nós
dois estamos falando, afirmou Agostinho bastante animado.
Voltando-se para Heródoto e Mestre Joshua, segurou o braço de Britt e trouxe-
a para perto, afirmando:
- Meus caros, a ONU, em seu Bureau de Assuntos Sociais, contava com uns
poucos profissionais do mais alto gabarito nesses assuntos. Esse Bureau era
todo ele organizado com Unidades técnicas bem específicas sobre
desenvolvimento social. O interessante é que mantinha uma Unidade de
Reabilitação do Deficiente, na qual fiquei conhecendo o Kurt Jansson que foi o
seu primeiro responsável. Conheci também o Dr. Aleksander Hulek, sempre
muito controvertido e combativo, o Otto, o Marcus e o Esko Kosunen, um
finlandês muito dedicado. Além disso conheci também técnicos da Organização
Internacional do Trabalho, dentre os quais o Norman Cooper, o Sam Niwa e o
Antônio Lacal Zuco, da América Latina. Tive também contatos variados com o
Dr. Robin Hindley-Smith, da Organização Mundial de Saúde, que, como o
Lacal, atuava em países latino-americanos, graças a um contrato com a
Organização Pan-Americana da Saúde... Todos eles trabalhavam muito e
acumulavam uma larga experiência no mesmo campo. Era um grupo notável,
mas todo espalhadão pela América Latina e Europa e com missões de
enfoques variados. Vai ver que conheci o coordenador desse projeto de
publicação técnica de que estamos falando, Britt.
181
- Vai ver que conheceu mesmo, Mestre Agostinho, afirmou Britt com animação,
porque você acabou de dizer o nome dele. O nome todo dele é Marcus
Monteiro... É um nome romano com um sobrenome bem brasileiro, segundo
ele comentou numa primeira reunião conosco.
- Ora vejam só! fez Agostinho muito contente, levantando-se. O Marcus!...
Claro que conheci depois de minha visita à ONU em New York. A gente
encontrou-se durante as reuniões de uma das Inter-Agency Meetings sobre a
atuação da família de organizações da ONU no desenvolvimento de projetos
em reabilitação de pessoas com deficiência no mundo todo. Isso foi em
Genebra em 1970, acho. Eu representava a UNESCO e ele representava a
Unidade de Reabilitação do Bureau de Assuntos Sociais da ONU. Almoçamos
duas vezes em companhia do Sérgio Vieira de Melo, que representava a
Organização pró-Refugiados da ONU e o Sam Niwa da OIT e discutimos
bastante os variados ângulos especiais do processo de reabilitação, que na
maioria dos centros não funcionam bem. E ele tinha umas idéias originais para
eliminação de arestas entre os profissionais de uma equipe.
Animada, Britt aproveitou para ampliar um pouco mais o assunto, que
dominava bem:
- O doutor Marcus achava que eram esses posicionamentos de conflito em
potencial, muitas vezes provocados não só por motivos de ordem pessoal, mas
também devido a questões de prestígio profissional, que distorciam o processo
de reabilitação, tornando-o bem problemático, apesar de teoricamente ideal.
Mas eu soube, Mestres, depois de alguns anos, que ele aceitou um convite do
Sérgio Vieira de Mello para um trabalho muito delicado em nome da ONU no
Iraq, onde deveria coordenar esforços para organizar oficinas para a produção
de próteses destinadas à população civil de Bagdá com amputações devido a
acidentes com a guerra. Trabalhava muito em colaboração com o Sérgio que
coordenava todas as ações que insistia em caracterizar como iniciativas da
ONU. Apenas da ONU. Nada a ver com os norte-americanos. Estava no prédio
que havia sido cedido para a base de trabalho da Organização lá em Bagdá
quando o fatídico caminhão repleto de dinamite bateu de frente com sua
entrada principal, provocando sua destruição completa e a morte de diversos
funcionários graduados da ONU, inclusive a do Sérgio. O Marcus, que tinha ido
182
naquela hora até sua sala no andar térreo, também foi uma das vítimas, tendo
falecido no hospital militar norte-americano algumas horas depois..
- É verdade. Eu fiquei sabendo disso e fiquei chocado. Marcus e eu chegamos
a trocar algumas mensagens e telefonemas, comentou Agostinho.
Britt continuou:
- Sua ausência no Bureau de Assuntos Sociais fez com que a coordenação do
projeto de publicação sobre equipes de reabilitação ficasse numa espécie de
ponto morto. Na verdade, precisaria de um outro coordenador. Claro que podia
também ser passada para outro especialista após sua morte, o que não
aconteceu. O motivo principal para essa espécie de parada no projeto foi
devido ao fato de que as prioridades do Bureau de Assuntos Sociais haviam
mudado um pouco.
- É verdade, Britt. Alguém me contou isso, afirmou Agostinho.
- O Marcus, como era conhecido em todos os ambientes, escreveu muito,
Mestre Agostinho. Eu sabia que um dos ângulos de seus interesses levaram-no
também para o lado da Historia, o que provocou nele uma espécie de desafio
para pesquisar cada vez mais e escrever com muito cuidado sobre esses
tópicos. Ele queria muito mostrar que muitas pessoas com deficiência tiveram
destaque na História do Mundo. No entanto, a morte impediu que continuasse.
- É verdade tudo isso. Eu fiquei sabendo e lamentei muito, porque era uma
área que me fascinava desde antes daqueles tempos, quando eu estudava em
Viena e fazia um período de prática em Genebra. E, apesar de nos
conhecermos pessoalmente muito pouco, foi exatamente da mesma idéia dele
que, da minha parte, comecei a vasculhar a História e a peneirar fundo na
Internet para encontrar personalidades, leis, organizações, com o intuito de
saber se esse objetivo de destacar pessoas com deficiência na História era
realmente válido. Foi o Marcus que conseguiu para mim, nos escritórios da
Rehabilitation International, com o Donald Wilson, uma cópia de um livrinho
pouco conhecido assinado pela Dra.Aguero sobre pessoas com deficiência na
História. Além disso ele também me despachou uma cópia da Epopéia
Ignorada, que todos nós conhecemos.
- E concluiu que era válido trabalhar esse assunto, não é mesmo, Agostinho?
comentou Heródoto.
183
- Sem dúvida alguma. Foi com ele que acabei conhecendo Heródoto e o
pretendido projeto do Centro de Estudos daqui do XPTO Voturuna.
Britt levantou-se para apanhar um copo de água, procurando distrair um pouco
e baixar seu nível de emoção que ia tomando conta de seu coração por falar
em Marcus. Ao encher seu copo de água no bebedouro, voltou-se para o grupo
e encontrou os olhos de Joshua seguindo-a com atenção. Sorriu, levantou um
pouco seu copo e fez um gesto para perguntar se ele queria água. Diante de
sua recusa sorridente, ela sorveu uns goles de água, voltou rapidamente
sde3para sua cadeira e afirmou:
- A gente trocou correspondência por vários anos, Mestres. Foi por isso que ele
me mandou esse material de que estávamos falando.
- Pena que ele não divulgava quase nada do que escrevia. Aliás, o Marcus era
muito modesto mesmo... Leve no relacionamento... Um grande ser humano!...
Parece que sua esposa faleceu alguns anos depois deles terem se instalado
em Middle Town.
Britt conseguiu ir segurando com dificuldade sua emoção ao ouvir Mestre
Agostinho falar sobre o homem que amara tanto e por tanto tempo, no mais
absoluto segredo, mesmo em sua ausência.
Ela pensava que só ela achava Marcus um ser humano especial, um homem
idealizado... por analisá-lo com os olhos carinhosos de um amor verdadeiro. No
entanto, um homem respeitável como Mestre Agostinho, pensava a mesma
coisa dele.
Ela percebia que, conforme os anos foram passando, ela ia vivenciando cada
vez mais a impressão de que ele ia fazendo parte dela... Ele ficava sempre e
cada vez mais profundamente “sob sua pele”, como diz a canção de Frank
Sinatra.Ela às vezes, quando sozinha em casa, cantarolava sorrindo: I got you
under my skin...
- Que bom falarmos sobre esse universo comum que ambos conhecemos de
ângulos diferentes, não é mesmo? Olha, Britt, leve lá para baixo alguma coisa
para ler e se distrair, porque a gente nunca sabe quanto tempo irá demorar
para uma transferência acontecer, está certo? E espero que a pessoa
escolhida que estamos aguardando seja o tipo de profissional de que todos nós
precisamos, não é mesmo?
184
Agostinho, balançando afirmativamente a cabeça várias vezes, olhou com
insistência para seus olhos, como a afirmar: “Você sabe o que eu quero
dizer”...
Ela retribuiu o olhar, na esperança de que falavam a mesma língua, com o
mesmo referencial e, sem dúvida, a mesma esperança.
- Verdade, Mestre, afirmou ela comovida e com a voz meio embargada.
Percebendo a emoção em seus olhos um pouco marejados de lágrimas, ele
completou:
- Vamos confiar, não é mesmo? Fique tranqüila que, se demorar muito, a
Noelma levará um lanche para você.
Saindo da sala, bastante emocionada, Britt lavou o rosto no toilette e foi até sua
mesa de trabalho, perto de onde Labda trabalhava.
- Labda, devo ir correndo até a Sala XPTO para esperar o especialista que a
ONU selecionou para o nosso projeto. Por favor, só peço para avisar a
Eurínome, está bem? Eu devia ter uma pequena reunião com ela hoje cedo.
- Claro! Finalmente, hein? Espero sinceramente que ele possa ser útil nesses
estudos que estão sendo feitos. Fique sossegada lá... e curta a tranqüilidade
do lugar... Lembre-se de que eu já contei a você sobre essa sala, que é uma
espécie de cópia quase perfeita da Sala da Meditação da ONU.
Britt pegou o livro de um autor sueco que estava lendo e dirigiu-se para a
escada que levava para o andar de baixo.
A porta da sala XPTO estava fechada, como era costumeiro. Entrou, acendeu
as fracas luzes do interior e sentou-se num banco envernizado encostado na
parede, bem perto da porta.
Logo percebeu que não conseguiria ler nada ali. Além da luz muito fraca no
local, uma saudade doída entrou em seu coração, fazendo-a suspirar fundo.
Ficou com vontade de chorar e apertou o peito com as duas mãos, recordando
vivamente o rosto abatido de Marcus na sala da Meditação, no prédio da
Assembléia Geral da ONU. Procurando concentrar-se para dominar aquela
eterna sensação de saudades de Marcus, notou que, apesar de ter chegado ao
projeto naquela mesma sala, ela não conseguia identificar quase nada por ali.
Naqueles momentos lembrou-se, sim, da sala original da ONU, que ficou
conhecendo só após a sua morte, porque havia combinado com Marcus que,
185
se acontecesse algo com ela, seria lá que ela procuraria estar para encontrar
com ele.
No fundo da alma achava que tinha sido uma combinação sem realismo, de
amantes que não querem perder os contatos.
Marcus havia mencionado o verdadeiro encanto que ele sentia por essa sala
especial das instalações da Assembléia Geral, onde de quando em quando se
refugiava. Ele havia contado a ela por carta que era lá que ele conseguia
pensar com muita calma a respeito dela e do amor sempre presente que
sentia. Numa das suas cartas ele comentou que, ao final de alguns minutos ali,
ele suspirava fundo, olhava fixamente para a luz estreita projetada sobre a
pedra negra, elevava o pensamento a Deus e orava quietamente, de olhos
fechados: “Guarde-a, Senhor, por favor, guarde-a... Não importa por onde ela
puder andar, proteja-a sempre, sim?”...
Durante sua vida ela nunca imaginara que esses contatos após a morte
poderiam de verdade acontecer. E ela esteve ali, ao seu lado, logo após sua
morte, sem que ele percebesse, olhando com suavidade, por longo tempo e
bem de perto seu rosto amado, que não via desde tanto tempo, desejando
beijar seus lábios sem poder, acariciando seu rosto sem ele sentir seus dedos,
observando algumas lágrimas descendo pela sua face sem poder enxugá-las,
mergulhando em seus olhos tristes e indo até a sua alma para dizer sem som,
naquele silêncio respeitoso, esperando que ele entendesse os recados
silenciosos que passava: “Cuide-se, meu querido... Cuide-se muito, sim? Eu
esperarei você... Nunca duvide do meu amor. Eu te amo muito, muito. Continue
lutando pelos nossos ideais. Eu estarei ao seu redor, querido”.
Naquelas horas ela sentia que seu amor crescia muito e que continuava
amando-o com tudo o que seu coração podia dar.
Olhando melhor agora, ela percebeu que aquela sala onde estava acomodada,
tinha de fato alguma semelhança com a Sala da Medicação da ONU.Era quase
triangular, não tinha janelas e tinha um grande bloco de pedra negra com sua
parte superior bem lapidada e polida quase no centro, à guisa de altar, sobre a
qual incidia um facho de luz bem estreito, como na ONU. Apenas isso. No
entanto, na parede mais estreita, que tinha pouco mais de um metro de largura,
havia apenas uma cortina de cor suave, com rodízios.
186
Passados alguns minutos e já dona de seus sentimentos, ela enxugou seus
olhos e passou um lencinho úmido pelo rosto.
Logo em seguida ouviu a cortina abrir-se com um leve ruído típico de rodízios
de metal em movimento e no vão mal iluminado que foi criado, apareceu a
figura de um homem num terno azul escuro, camisa branca e gravata com
cores suaves, segurando a alça de uma pequena mala de viagem, provida de
rodinhas.
Na penumbra, por mais que tentasse, ela não distinguiu quem era, mas
levantou-se imediatamente e deu uns poucos passos em sua direção, dizendo:
- Bem vindo às nossas instalações...
O homem ficou ali parado, soltou a alça de sua maleta, aos poucos abriu os
braços e interrompeu-a, sorrindo muito e murmurando num tom emocionado:
- Britt... Britt! É você?!...
Ela se assustou muito, mas logo se recompôs e percebeu que era Marcus que
ali estava.
Correu para ele totalmente surpresa. Depois de uns instantes de
reconhecimento visual, tocando-o de leve no peito, com muita surpresa
abraçaram-se demoradamente, com emoção, murmurando palavras de afeto,
entrecortadas de soluços e beijaram-se com muito carinho.
Instantes depois, com o coração acelerado, mas já um pouco refeita da
surpresa, ela segurou seu rosto com ambas as mãos.
- Não posso dizer que eu não sonhava em encontrar você aqui. Na verdade,
por mais que eu pudesse desejar, eu não esperava encontrá-lo neste lugar,
meu querido. Por mais que desejasse! Eu achava simplesmente um sonho
impossível pelo número de candidatos que deveria existir lá na ONU.
- Que bom ver você! Isso depois de tanto tempo... tanto tempo! Meu Deus do
Céu! Você está tão linda, Britt! Está igualzinha àquela linda fisioterapeuta que
eu conheci em Oslo faz tanto tempo... Isso foi a mais de 40 anos!... E você aqui
está, em meus braços...Não dá nem para acreditar... Deixa eu ver bem seus
olhos que eu sempre adorei.
- E você está igualzinho ao Marcus que eu conheci naquela época, naquela
sala da Ana, naquela casinha romântica de Frognerseteren, meu lindo amor.
Ah, eu senti tanto a sua falta!... Você nem imagina! Deus do Céu!... Houve dias
em que eu cheguei a chorar de saudade. Eu ouvia sempre a Suíte Peer Gynt,
187
de Grieg e pensava muito em você, especialmente quando entrava a triste
melodia da Morte de Aas, porque eu sabia que era uma de suas músicas
preferidas.
Tomando as mãos dele nas suas, trouxe-as para seu peito e apertou-as contra
o coração.
Passados os momentos de forte emoção, começou a caminhar lado a lado com
ele na direção da porta de saída e da escada para o nível superior. Ele
caminhava como um autômato, sorrindo muito feliz, olhos fixos no rosto amado
dela.
- Deixa eu informar que vou levar você para a sala de Mestre Agostinho, que é
o coordenador do nosso projeto, está bem? Parece que você o conhece, não
se preocupe.
Ele quase nem ouvia o que ela informava. Já refeito da surpresa, ele parou
logo antes da escada, colocou sua maleta em pé e puxou-a pela cintura.
- Antes vem cá, minha querida loirinha. Eu nem consigo acreditar que estou
abraçando e beijando você. Estou sentindo suas costas em minhas mãos!...
Estou com o seu corpo inteiro encostado no meu...
Abraçou-a com ternura. Com redobrado carinho, beijou-a com suavidade e com
verdadeiro amor.
- Deixe-me olhar bem para você para saciar a vontade que eu sempre tive de
rever seu rosto e sentir seus olhos em mim, disse ele sem afrouxar seu abraço.
Ela se afastou um pouco dele, olhou-o intensamente nos olhos, como se
quisesse mergulhar em sua alma, como ele dizia na casinha de seus sonhos a
tantos anos atrás, sorriu e disse:
- Quero que você acredite em mim quando repito que estou muito, muito, muito
surpresa por estar aqui abraçada a você, porque eu não tinha esperança
alguma de encontrar você aqui, Marcus. Estou ainda completamente surpresa
e muito feliz. Muuuuuito feliz mesmo. Estávamos esperando alguém
especializado nos assuntos que gravitam em torno da reabilitação global e que
nenhum de nós sabia quem era, essa é que é a verdade. E dentre tantos
existentes, você... justo você, meu grande amor, foi indicado. Que bom! Vamos
trabalhar juntos, você sabia? Estou muito feliz. Isto parece mais um sonho.
Segurando sua cintura, Marcus iniciou a subida dos degraus que levavam ao
piso superior. No alto, parou um pouco, admirando o inesperado ambiente,
188
enquanto Britt afastava-se um pouco, subia mais dois degraus que faltavam e
ia até Noelma, que logo foi avisar Mestre Agostinho.
Interrompendo sua reunião com alguns assistentes, Agostinho caminhou direto
para Marcus, sorrindo muito e abraçando-o efusivamente como velhos amigos.
- Marcus! Meu caro amigo! Então era você o esperado especialista? Isso é
magnífico. Por favor, Marcus, aguarde um pouco aqui que eu vou buscar
Heródoto. A Britt cuidará de você, está bem? Você a conhece, não é mesmo?
Eu voltarei logo...
Enquanto Britt acomodava-se no sofá, Marcus esperou Agostinho afastar-se e
caminhou até a parede à sua direita para admirar um quadro de Chagall, o
mesmo que ele admirara tanto durante muitos anos no andar térreo do prédio
do Secretariado da ONU, em New York.
Passando pelo local rapidamente, Labda não notou a presença de Marcus em
frente ao quadro. Parou e foi falar com Britt, que estava sozinha no sofá, com
um rosto que irradiava felicidade.
- Deu tudo certo lá na sala XPTO, pelo que estou notando pelo seu ar de
felicidade... afirmou ela muito interessada. Afinal chegou seu novo colega... o
especialista selecionado pela ONU? Foi isso mesmo? Você o conhecia?...
Britt levantou-se rapidamente com um rosto muito feliz, tomou o braço de
Labda com carinho e levou-a na direção do quadro de Chagall.
- Deu sim. Você nem vai acreditar, mas para surpresa minha recebi lá o
Marcus, que aqui está, Labda. Apresento.
- O que?! fez ela boquiaberta, colocando a mão direita sobre os lábios e
olhando Marcus com admiração. Estou surpresa demais! Então você é que é o
Marcus?!...
Estendeu a mão para cumprimentá-lo muito sorridente. Mantendo-se muito
perto de Britt, não se conteve e abraçou-o com animação incontida e lágrimas
nos olhos.
- Seja bem vindo ao nosso meio, Marcus. Desculpe minha emoção...
- Muito prazer... Meu nome inteiro parece complicado, de forma que é melhor
mesmo me chamar de Marcus. Você é...
- Sou Labda... disse ela enxugando as lágrimas que ameaçavam descer pelo
seu rosto.
189
- Sim... Labda. Obrigado pelas boas vindas. Acho que a gente vai se encontrar
muito por aqui, não é mesmo?
Ela levantou um pouco os papéis que estavam em sua mão esquerda e
afirmou:
- Desculpe-me neste instante, mas eu preciso correr para entregar estas
minutas.
- Tudo bem, Labda. Pode ir sossegada que estou em boas mãos...pode crer!...
- Sem dúvida, fez ela sorrindo muito e olhando rapidamente o rosto de Britt.
Minutos depois, ao passar por Britt, que voltara a sentar-se no sofá, Labda
baixou os cantos de sua boca, chegou bem perto de seu ouvido e sussurrou,
enquanto a beijava no rosto:
- Que gato, hein? Danada, você!...Agora entendo bem sua paixão sem limites...
Disfarçando bem e sorrindo muito, Britt pediu:
- Você viu só?! Mas, Labda, por favor, avise a Eurínome que vou levando
Marcus para a sala de Mestre Agostinho, sim?
- Claro... Fique tranqüila. Vou indo para lá agora.
Num tom meio malicioso acrescentou:
- Quer que eu sugira a ela que você leve esse seu grande amor ao alojamento
que ele deve ocupar? Seria bom... seria... na verdade seria fantástico vocês
dois sozinhos, depois dos séculos longe um do outro...Imagine só, minha
querida...
Saiu com rápidas passadas na direção de sua mesa de trabalho.
Noelma veio mais ou menos na corrida, cumprimentou Marcus efusivamente,
segurando suas mãos e avisou que Mestre Agostinho e Heródoto pediam para
Britt levá-lo até a sala de reuniões, bem ao lado de onde estavam.
Levantando-se, Britt segurou o braço de Marcus.
- Desculpe por repetir, mas eu ainda não encontro meios para acreditar que
você está comigo aqui, Marcus. Parece que estou no meio de um sonho lindo...
Estou até com vontade de chorar ou de sair gritando por aí... Acho que eu
preciso de um beliscão para acordar...
Ele riu da idéia e abraçou-a levemente com carinho.
- Onde é que você quer que eu belisque? brincou ele, voltando-se inteiro para
ela, com certa malícia nos olhos. Posso escolher?
190
Enquanto ele movimentava vagarosamente sua mão direita de suas costas na
direção de seu seio, Britt fingiu não perceber o lance dele, apesar de notar seu
olhar passeando pelo seu busto, e afirmou:
- Pode, claro... Por favor, Marcus. Eu quero ter certeza de que não estou
sonhando. Só tenha cuidado para não beliscar onde pode doer muito ou ficar
roxo.
Ele se afastou um pouco dela, sorrindo com suavidade, olhou ao seu redor,
acariciou e apertou de leve seu seio esquerdo e com cuidado beliscou e torceu
um pouco a pele das costas de sua mão. Ela sorriu, muito feliz. Levou sua mão
ao peito, apertando-a com carinho e confirmou com a cabeça que estava
acordada.
Britt olhava para ele em silêncio e no fundo da alma pensava como era bom ter
ali com ela aquele homem adorado, que a conquistara totalmente, sem
qualquer reserva. E o pior é que ela não podia ficar com ele nem mais um
minuto... Só depois... Claro... Só depois. Será que iria demorar?
Heródoto e Agostinho estavam à espera de Marcus, num conjunto de sofá e
poltronas na sala de reuniões.
- Obrigado por ter aceito sua indicação, Marcus. Estamos felizes com isso,
afirmou enfaticamente Agostinho.
Sorridente e bastante à vontade, Heródoto comentou:
- Estávamos aflitos para conhecer o novo especialista para nos ajudar nesse
projeto que o governo do Líbano dispõe-se a montar. A sua indicação deixou-
nos muito tranqüilos, porque eu soube que você e Mestre Agostinho já se
conheciam desde muito tempo.
- É verdade, mas devo dizer que fiquei muito surpreso com o convite da ONU
para comparecer a um briefing especial sobre esse projeto que vocês estão
vivenciando. Fico feliz por ter um antigo amigo aqui, que é Mestre Agostinho.
Fico contente também por contar com uma antiga colega e amiga que comigo
se correspondeu por anos a fio, que é a Britt, fisioterapeuta do State
Rehabilitation Centre de Oslo.
- Ótimo, Marcus, afirmou Heródoto levantando-se. Já chamei minha assistente,
a Eurínome, para mostrar onde você deverá ficar alojado e para visitar também
seu local de trabalho numa sala separada, onde você e a Britt poderão
191
trabalhar em paz, afirmou enquanto tomava a mão de Britt e a fazia aproximar-
se mais.
- Vocês contarão com a ajuda de um assistente exclusivo para digitações,
cópias, arquivamentos, revisões e tudo o mais. Funcionará como secretário dos
dois. Seja muito bem vindo ao nosso meio. Eu sei que sua cicerone, que está
sendo a Britt, que você conhece bem, fará tudo para que você se familiarize
não só com todos os componentes de nosso grupo, todas as instalações, mas
também se inteire dos esquemas próprios de nosso funcionamento diário.
Enquanto Britt se afastava para voltar à sua mesa de trabalho, Eurínome
apresentou-se pressurosa e, muito sorridente, acompanhou Marcus para fora
da sala. Levou-o para conhecer em primeira mão o seu alojamento. Ao passar
por Britt, Marcus fez um sinal breve de até logo, com um grande sorriso.
Ela tentou imediatamente retomar sua redação que fora interrompida no dia
anterior, mas ficou com as mãos repousando sobre o teclado de seu
computador, olhando absorta uma foto aérea do Morro do Voturuna, que
estava fixada bem ao lado de uma cópia bastante ampla de um mapa-mundi.
Joshua estava de costas para ela, ao lado direito do mapa, procurando algo
com o dedo indicador sobre a imensa área da Sibéria.
Britt notou que, terminada sua busca, ele bateu duas vezes seu dedo indicador
sobre a carta geográfica. No mesmo instante, Joshua voltou-se para pegar uma
pasta que deixara numa escrivaninha próxima à parede e seus olhos
encontraram os de Britt fixos nele. Ambos sorriram e ele foi se aproximando
devagar.
- Então, Britt... Você ficou contente com o novo especialista que a ONU
indicou?
- Muito, Mestre. Muito mesmo. Eu ainda não consigo avaliar nem como nem
quanto. Sinto-me um pouco fora de mim mesma, não sei... Sou agradecida a
Deus por ter essa consideração para comigo e para com ele. A gente se
conhecia faz tanto tempo... tanto tempo... Acho que mais de 40 anos!...
- Espero que a presença dele possa fazer você e todos nós muito felizes, Britt.
- Meu Deus... Como estou feliz. O senhor nem pode imaginar. Sabe, Mestre
Joshua. Embora seja um segredo muito meu que eu lhe conto agora, eu
gostaria que você soubesse que o meu afeto, que eu achava impossível, está
se transformando numa realidade. E o meu coração bate forte de pura
192
felicidade. Acredite em mim. Passamos tantos anos longe um do outro... e a
morte nos surpreendeu antes que pudéssemos nos ver uma segunda vez.
- Fique feliz e aproveite bem esse verdadeiro presente. Vocês dois merecem...
Joshua estendeu sorridente a mão direita para cumprimentá-la. Ao retribuir o
gesto, Britt segurou sua mão estendida com as duas mãos. e sentiu na ponta
dos dedos uma forte cicatriz em seu punho. Levantou os olhos sorrindo, mas
muito surpresa e encontrou os dele fixos nela. Com um arrepio geral ela sentiu
seu coração pular forte em seu peito. Ele apenas piscou um olho para ela com
um grande sorriso. Ela mal conseguiu sussurrar:
- Obrigada, Mestre Joshua, pelo que fez por nós dois. Eu imagino que houve
uma indicação de Marcus para o sistema de Recrutamento e Seleção da ONU
por alguém que conhecia bem o seu valor. Tenho a mais absoluta certeza de
que esse alguém jamais se arrependerá do que fez. E, é claro, sou muito
agradecida a Deus pela sua confiança em nós.
- Não se preocupe e procure manter-se bem. As coisas agora vão começar a
mudar em sua área e nesta nova vida sua. Trabalhe em paz. Assim que as
coisas se acomodarem e tudo estiver em ordem, eu gostaria de encontrar
vocês dois, para trocarmos algumas idéias não só sobre o projeto atual, mas
também sobre assuntos que vocês desejem comentar.
Ainda sorrindo, ele se voltou e deixou-a ali, em pé. Colocou sua pasta de
documentos debaixo do braço e foi caminhando com determinação na direção
dos alojamentos e da área de lazer.
Britt permaneceu ali em pé, ainda sentindo o suave aperto da mão de Joshua.
De olhos fixos em sua figura que se afastava, sentou-se pesadamente em sua
cadeira, esfregando de leve as costas de sua mão e nem percebeu a
aproximação de Labda que ali chegara antes de Mestre Joshua atingir o
corredor de acesso.
- O que foi, Britt? perguntou ela, ao perceber o ar suave e absorto que ela
demonstrava ali sentada, como se estivesse num mundo diferente.
- Nem sei o que dizer, Labda... Que homem incrível esse Mestre Joshua, meu
Deus!... Estou aqui meio pasma sem saber o que pensar, minha amiga... Bem
que a Eurínome acha que ele deve ter vindo do Olimpo.
As duas riram um pouco e Labda comentou:
- Eurinome acha que ele se parece com Apolo!
193
- E você? Eu já notei que, quando você olha para ele, seu rosto muda um
pouco... Você fica meio... como direi?... com olhos de deslumbrada. Será que
todas nós avaliamos as pessoas com os mesmos referenciais? Todas nós
ficamos meio pasmas com homens como ele, é isso?
- Eu tenho pensado exatamente assim... Para mim, Britt, ele é uma prova
irrefutável de que existem possibilidades de perfeição no ser humano. Todas
nós que temos eventuais acessos a ele precisamos nos sentir igualmente
abençoadas. Eu tenho certeza de que ele nos encanta a todas.
Ali parada e sem se mover para nada, nem percebeu que na tela de seu
computador havia uma bandeirola colorida piscante, indicando uma nova
chamada para os e-mails.
Labda apertou de leve o braço de Britt e apontou para o monitor do
computador.
- Olha ali... Alguém mandou algum recado...
- É mesmo... Estou vendo agora... E é um recado de uma tal de Labda! Você a
conhece? riu ela muito feliz.
- Que diz o que?
- Diz assim: “Fiquei muito feliz por você, Britt! Aproveite esses momentos
iniciais de felicidade muito merecida nesta nova vida, que será muito melhor do
que a anterior”.
Britt levantou-se rapidamente e as duas abraçaram-se muito felizes.
- Vamos conversar mais sobre isso, está bem? Só me dá um tempinho porque
eu me sinto um pouco fora dos meus trilhos normais, Labda... Você entende,
claro. Estou com a cabeça a mil por hora. Vou correndo para ver se o Marcus
achou legal o seu alojamento. Eu preciso muito ficar perto dele, Labda. Você
me entende...Eu ainda estou com dificuldade para acreditar de verdade que ele
está aqui...
- Seja muito feliz com o Marcus por perto... Que bom que ele veio e que vai
ficar...
194
Capítulo Décimo Segundo
IDADE MODERNA
O Nascer da Ortopedia como Especialidade Médica
Dentre os muitos progressos e melhoramentos ocorridos no século XVII, é de
se ressaltar o que sucedeu na área da medicina, praticamente em
conseqüência do que vinha sendo feito desde vários séculos antes. Na
França, por exemplo, no ano de 1662, foi determinado pela coroa real que
cada cidade deveria criar o seu próprio hospital. As especialidades médicas
começaram também a se definir, tendo a ortopedia sido, sem qualquer dúvida,
a primeira a ser estabelecida como tal, apesar de não ter sido.de início
reconhecida pela nomenclatura de "ortopedia". Dessa forma, foi durante a
Renascença que ficou registrado um dos primeiros avanços muito sérios na
medicina, desde as remotas épocas clássicas greco-romanas.
Dentre os muitos motivos que podem ter levado à definição de uma
especialidade médica que cuidava dos problemas de ossos e de mutilações, não
se deve menosprezar o fato de a ortopedia ter se desenvolvido mais
rapidamente devido à obrigação de o Estado manter serviços médicos para
seus soldados feridos ou amputados em bataIha, desde tempos os mais
remotos. A proteção a soldados mutilados ou inválidos pelos azares das
batalhas mereceu a atenção de toda a Europa Renascentista, e de um modo
especial da França que, por determinação do rei Luiz XIV (o Rei Sol), em ato
assinado no dia 15 de abril de 1670, mandou construir um verdadeiro palácio
(Hôtel, em francês) para alojamento e tratamento de seus oficiais e soldados
feridos e inválidos para o serviço militar. Temos hoje, no centro de Paris, o
famoso "Hôtel des Invalides", um monumento do passado que é ainda hoje um
orgulho dos franceses.
Certamente dentro dessa linha de pensamentos e de preocupações, e por certo
para não ficar numa posição de desequilíbrio de prestígio com a França, o rei
Carlos II, da Inglaterra (1630a 1685), fundou em Chelsea um lar para o que
195
chamava, em sua linguagem pitoresca, de "worthy old soldiers, broken in the
wars" (velhos valorosos soldados, batidos pelas guerras). Tratava-se do Hospital
Real de Chelsea que teve suas instalações concluídas em 1692.
0 imprevisível Carlos II mandou abrir uma lista de subscrições para a
construção, para a qual cedeu o terreno. Muitos contribuíram, inclusive Sir
Stephen Fox, Diretor Geral das Finanças do Reino, que foi nomeado pelo rei
como administrador geral dos edifícios.
O arquiteto que planejou e construiu o Hospital Real de Chelsea não conseguiu
disfarçar a forte influência das idéias contidas no Hôtel des Invalides e no
Hospital de Kilmainham, de Dublin, na Irlanda. Compõe-se ele de dois edifícios
principais, podendo abrigar até seis companhias, num total de 558
pensionistas. Cada homem tinha e tem até os dias de hoje um alojamento
(quarto) próprio, pequeno mas totalmente individualizado. Os pensionistas
enfermos eram alimentados e medicados na enfermaria que foi
completamente destruída durante um bombardeio alemão na Segunda Guerra
Mundial. Desde a sua criação até os dias de hoje os pensionistas devem ter
mais de 55 anos de idade, ter uma deficiência física e ser auto-suficientes em
seus cuidados pessoais.
O visitante desse antigo abrigo e hospital para soldados com deficiências físicas
poderá ainda hoje apreciar uma interessante coleção de quadros, de fotos, de
medalhas e de condecorações, expostos no espaçoso salão de entrada da
organização. Troféus e bandeiras capturados durante as muitas batalhas em
que pensionistas participaram não podem, entretanto, ser mais apreciados ali,
uma vez que foram todos devolvidos às unidades de origem dos homens ali
internados.
Quatro Cegos Brilhantes: Saunderson, Metcalf, Euíer e Blacklock
Nicolas Saunderson (1682 a 1739), apesar da cegueira, chegou a inventar uma
prancheta de calcular e publicou várias obras, dentre as quais destacamos
"Elementos de Álgebra". 0 primeiro volume desta obra expõe um método que
ficou conhecido como "aritmética palpável" e que permite ao usuário fazer
todas as operações de aritmética com o uso do tato. Saunderson tornou-se
professor brilhante na Universidade de Cambridge e foi um dos grandes
196
expositores das teorias de Newton, dedicando-se de um modo todo especial às
teorias da luz e das cores.
John Metcalf (nascido em 1717) perdeu a visão aos 7 anos. Sempre foi muito
hábil e de quando em quando as pessoas desconfiavam que não era cego
devido à sua extrema facilidade em se movimentar, cavalgar e em nadar. Sua
genialidade levou-o a dedicar muito de seu tempo à construção de pontes e de
estradas. Foi conhecido nos meios oficiais ingleses como "Blind Jack". Sua
competência comprovada na remodelação de estradas em péssimas condições
e na construção de pontes tornou-o uma figura imortal na história das
estradas em todo o mundo.
Leonhard Euler (1707 a 1783) foi um geômetra suíço que perdeu a visão aos 58
anos de idade. Adaptou-se bem à nova situação e prosseguiu com extremo
afinco em suas atividades científicas. Escreveu "Elementos de Álgebra" e três
volumes sobre dióptrica, que é a parte da física que estuda a luz de acordo com
os elementos que atravessa. A Academia de Ciências de Paris chegou a premiar
várias de suas obras.
Thomas Blacklock (1721 a 1791) perdeu a visão aos 6 meses de idade devido
ao sarampo. Desenvolveu muito bem seus estudos e chegou a se formar na
Universidade de Edinbourgh. Tornou-se ministro evangélico em 1759 e
destacou-se nas letras como um dos melhores poetas escoceses. É conhecido
como "O Poeta Cego". Redigiu diversos tratados de teologia e foi colaborador
da Enciclopédia Britânica, escrevendo um artigo sobre a cegueira. Escreveu
também: "Consolações Tiradas da Religião Natural e Revelada", o poema épico
"Graham" e "Observações sobre a Liberdade". Thomas Blacklock deu também
apoio a poetas mais jovens, sendo Robert Burns o exemplo mais marcante.
Alexandre Pope: Poeta com Deficiências Físicas
Alexandre nasceu em Londres no ano de 1688, de pais católicos e bastante
idosos, tendo sido considerado por todos que o conheceram um poeta nato.
Além de suas obras originais (as "Pastorais", a "Floresta de Windsor", o "Tratado
sobre a Crítica", o "Tratado sobre o Homem" e várias outras) Pope traduziu o
poema épico Ilíada, de Homero, pelo que recebeu um total de £5.000. Segundo
diversos críticos, foi a mais nobre versão de poesia épica que o mundo jamais
apreciou. 0 sucesso foi tão grande que Pope traduziu também a Odisséia, com
197
o que ganhou mais £3.000. Com isso, tornou-se financeiramente
independente.
Ele foi o mais famoso poeta de seu tempo na Inglaterra, tendo mostrado forte
predileção pela crítica mordaz, com a qual agredia seus desafetos, dando
vazão à sua agressividade.
No entanto, cabe notar que Alexandre tinha sérias limitações físicas desde o
nascimento. Existe a seguinte descrição de Pope, feita por um brilhante pintor
inglês, Sir Joshua Reynolds: "Ele tinha aproximadamente 4 pés e 6 polegadas
de altura" (1,37 m), "muito corcunda e deformado. Usava um casaco preto e,
de acordo com a moda de então, usava uma pequena espada. Tinha olhos
grandes e bonitos, e um nariz longo simpático; sua boca tinha aquelas marcas
peculiares que sempre são encontradas nas bocas de pessoas falsas;e os
músculos que Ihe corriam pela face eram tão fortemente marcados que
pareciam pequenos cordéis" (Apud MacNalty).
Sempre doentio, dizia que sua musa ajudava-o na sua longa doença, ou seja,
sua vida. Na infância sofreu severamente com raquitismo e por causa desse
mal ficou corcunda, com acentuada curvatura da espinha dorsal. A parte da
frente da caixa toráxica também era deformada e um dos lados do corpo era
afetado por uma forte contração.
Dizem seus biógrafos que a amargura de suas poesias e a agressividade de
muitos momentos seus são devidos a essas deformações e aos muitos dias de
tensão que traziam à sua vida.
Adicionando aos seus problemas já tão graves, Pope teve um dia os tendões
de dois dedos da mão direita gravemente prejudicados durante um
acidente.
Pope morreu em 1744, após uma contínua e heróica luta contra doenças e
dificuldades causadas por suas deficiências físicas. Sua vitória maior e
inquestionável está retratada em sua poesia. E foi exatamente esse produto de
sua inteligência, criatividade e sentimentos que garantiram a Alexandre Pope
um imorredouro lugar na literatura inglesa, sendo o representante principal de
seu classicismo.
Reformulação Hospitalar Inglesa do Século XVIII
198
Ainda no início do século XVIII, em conseqüência dos atos que levaram ao
confisco e à destruição dos mosteiros e conventos e à expulsão dos religiosos
que estavam vinculados à Santa Sé, em Roma, atos esses iniciados
aproximadamente nos anos de 1536 a 1539, sob o reinado de Henrique VIII,
poucos hospitais existiam. A maioria deles encontrava-se localizada em
Londres e quase todos dispunham de instalações muito precárias. Nessa
situação continuavam eles a receber doentes crônicos e pessoas seriamente
incapacitadas por deficiências físicas e por problemas mentais, uma vez que
fora de suas instalações não conseguiriam sobreviver.
Pela metade do século XVIII, quando Londres contava apenas com 7 (sete)
hospitais gerais, alguns hospitais especializados foram construídos ou
montados em instalações adaptadas. Um deles passou a servir pessoas que até
hoje são marginalizadas da sociedade maior, ou seja, as vítimas de problemas
mentais graves. Tratava-se do Hospital Saint Luke. Foi mais ou menos por essa
época que outras áreas da medicina começaram a melhor definir-se como
especialidades médicas também na Inglaterra, em adição àquela que cuidava
dos problemas dos ossos, das amputações e dos males deformantes, que
era a ortopedia.
No atendimento à população civil, surgiram algumas instituições em diversos
países europeus, seguindo exemplo na Inglaterra, financiadas pelo poder
governamental, somando esforços com muitas contribuições obrigatórias, ou
mesmo por doações avulsas e eventuais de ricas famílias ou nobres abastados,
como sucedeu no caso do Conde Baden, que no ano de 1722 criou um lar para
inválidos em Pforzheim.
A "Ortopedia" de Nicholas Andry
No ano de 1741 Nicholas Andry, um professor da Universidade de Paris, adotou
um neologismo para identificar a mais antiga das especialidades médicas:
"Ortopedia". Segundo seus esclarecimentos, essa nova e jamais anteriormente
utilizada palavra derivava de "orthos", que significa "direito" ou "reto", e "pais,
paidós", que corresponde a "criança", na língua grega.
Segundo o próprio Andry, tratava-se de uma nova "arte de prevenir e de
melhorar nas crianças as deformidades do corpo". Outros autores e médicos
199
que viveram muito mais tarde, verificando o alcance da especialidade e notando
que ela não se limitava a atender apenas crianças mas a adultos também, de
todas as idades, mantiveram a mesma designação para a especialidade, mas
questionaram a derivação proposta para composição daquele neologismo
pelo seu criador. Achavam que a raiz adequada não estava relacionada a
"criança", mas a "educação" (da palavra "paidéia", em grego).
0 que nos resta como certo é que muitos séculos antes de surgir a palavra
"ortopedia", dentro da especialidade que recebia esse nome existiam já muitos
de seus diversos componentes, porque doenças e acidentes que deformam o
homem e o desviam de sua aparência original sempre existiram e já tinham
recebido muita atenção por parte daqueles que se dedicavam à arte médica
desde os primeiros tempos da vida do homem na Terra.
Tanto isso é verdade que as noções fundamentais já eram encontradiças em
trabalhos egípcios, em tratados de Hipócrates, e nos muitos outros autores.
De sua parte, Nicholas Andry procurava sempre atender bem os seus doentes,
mas adicionava a essa atitude prevista no código de ética médica uma perfeita e
fortemente humana compreensão dos males que levavam a uma deformidade
do corpo humano, dedicando-se exclusivamente ao cuidado de crianças.
Procurava pautar bem suas atividades e restringi-las a problemas passíveis de
uma correção por meio de aparelhagem simples e de natureza prática.
Quando, em 1781, Jean André Venel, um médico de Genebra, fundou na vila
de Orbe-de-Vaux, na Suiça, o primeiro centro especializado de atendimento
ortopédico, lançou o marco mais importante não só para o desenvolvimento
mais criterioso e pormenorizado de técnicas de aparelhagem e de correção,
como também para o desenvolvimento mais aprimorado da cirurgia
ortopédica, que tanto tem contribuído desde aquela época para a eliminação
ou para a redução de deficiências físicas. A esse instituto de tratamento
ortopédico acorriam não apenas crianças, mas adultos também, acometidos
por males das mais variadas origens. A partir de então, a fabricação de próteses
e de aparelhos de suporte e outros mais alcançou o esplendor de seu
desenvolvimento.
No entanto, cumpre ressaltar que todos esses progressos e indicativos de
aprimoramento técnico e científico atingiam apenas a pessoas ricas ou àquelas
200
que dispunham de meios para cobrir as despesas enormes incidentes sobre os
mesmos. A grande massa dos pobres continuava à parte e sem qualquer
acesso a esses melhoramentos ou benefícios.
Ainda no que diz respeito a deficiências físicas, vale a pena ressaltar que, ao
encerrar-se o século XVIII, dois irmãos — os Hunter — muito contribuíram para
o desenvolvimento e para o aprimoramento da cirurgia ortopédica, com
estudos especiais a respeito da estrutura das juntas e do crescimento dos
ossos.
Maria Tereza von Paradis: Pianista e Compositora Cega
Maria Tereza von Paradis (1759 a 1824) foi uma música austríaca que nasceu
e morreu em Viena. Ficou cega aos 5 anos de idade. Tendo aprendido piano e
se transformado numa excelente concertista, percorreu toda a Europa e foi
ouvida em diversas oportunidades pelo público de Paris.
Ao voltar a Viena dedicou-se à composição. Três óperas dessa compositora
cega devem ser ressaltadas: "Ariane em Naxos", "Ariane e Baco" e "0
Candidato Instrutor".
Maria Tereza conheceu Valentin Haüy, o “Pai e Apóstolo dos Cegos”, em Paris e
manteve com ele sólida correspondência a respeito dos problemas dos cegos.
Assistência aos Cegos no Final do Século XVIII
Um opúsculo interessante intitulado em sua versão original de "Lettre sur les
Aveugles à l' Usage de Ceux qui Voient" (Carta sobre os Cegos para Uso
daqueles que Enxergam) surgiu na França em 1749. Seu autor foi Diderot
(1713 a 1784). Chegou a ficar confinado na prisão de Vincennes por três
meses devido a esse corajoso trabalho, no qual enfatizava a dependência do
homem das impressões sensoriais e dava um audacioso passo na direção do
ateísmo.
Diderot, filósofo e homem de letras, foi um dos mais brilhantes pensadores de
sua época e foi o editor da "Enciclopédie", o mais importante testamento da
era do lluminismo. Sua famosa e discutida "Carta sobre os Cegos" foi muito
importante também devido à sua proposição para o ensino do cego a ler pelo
uso do tato.
201
No ano de 1751 publicou também uma carta a respeito dos surdos e dos
mudos, sem maiores repercussões. Diderot procurou mostrar em sua "Carta
sobre os Cegos" que as idéias dos cegos quanto a assuntos, ou mesmo quanto
a coisas de natureza abstrata, são diferentes daquelas dos videntes. Afirma, por
exemplo, que essas idéias a respeito de religião e de Deus não são idênticas
às das pessoas videntes, sugerindo daí que as idéias religiosas daqueles que
enxergam e não sentem a limitação causada pela perda da visão são
conseqüentes às convenções estabelecidas pela sociedade.
Entretanto, o preocupado trabalho de Diderot não levou a nenhuma
conseqüência prática detectável, a não ser talvez influenciar os pensamentos e
as preocupações de Valentin Haüy, que viveu um pouco mais tarde.
Em termos de trabalho prático de assistência, mesmo que segregativa, ou de
ajuda mais concreta a cegos, devemos ressaltar que no ano de 1780 o famoso
e antigo "Hospice des Quinze-Vingts" foi transferido de sua localização original
no Faubourg de Saint-Honoré para instalações mais amplas e melhores no
Faubourg de Saint-Antoine, em Paris, no prédio do Hospital dos Mosqueteiros
Negros. Inicialmente dependente do Ministério do Interior, sobreviveu esta
organização até os dias de hoje, mantendo-se com seus próprios recursos.
Abriga aproximadamente 300 cegos — de acordo com seus objetivos originais
— dos dois sexos, com mais de 40 anos de idade, que lá vivem. Solteiros ou
casados ocupam instalações separadas, mas mobiliadas por eles mesmos. Além
desse abrigo, o Hospice provê uma pensão mensal a mais de 2:000 (dois mil)
cegos franceses, com pelo menos 21 anos de idade. Foi em suas instalações
que em 1880 foi montada uma clínica nacional de oftalmologia (Apud
"Larousse du XXe. Siècle”)
No ano de 1784, setenta anos após a rainha Ana, da Inglaterra ter concedido
uma patente a Henry Mill, engenheiro inglês, "por uma máquina ou método
artificial para a impressão ou transcrição de letras separadamente ou
progressivamente, uma após a outra, como na escrita", foi inventada na França
uma outra máquina para imprimir letras especialmente para cegos.
Ressaltemos que muitas outras máquinas eram também destinadas a produzir
cópias para que os cegos pudessem ter acesso à leitura pelo tato (Apud
“Encyclopaedia Britannica”)
202
Valentin Haüy, “Pai e Apóstolo dos Cegos"
Surgiram na mesma época dos eventos citados acima, os primeiros esforços
sistemáticos para a melhor educação dos cegos. Valentin Haüy (1745 a 1822),
o homem que mais tarde seria reconhecido como "Pai e Apóstolo dos Cegos",
teve sua atenção atraída para as questões ligadas à educação dos deficientes
visuais, não só graças ao estudo das idéias de Diderot. Um momento decisório
surgiu em sua vida quando, levado pelas circunstâncias, fez uma comparação
entre apresentações musicais da pianista e grande concertista e compositora
Maria Tereza Von Paradis de um lado, e de outro, os entristecedores e
grotescos espetáculos dados por alguns cegos, muito inadequados em seu
modo de trajar ou se comportar, tentando executar música na rua para chamar a
atenção dos transeuntes e com isso angariar esmolas.
Haüy, depois de estudar muito bem o problema, fundou em Paris uma nova
organização que levou o nome de "Institute Nationale des Jeunes Aveugles"
(Instituto Nacional dos Jovens Cegos), em 1784. Essa organização provocou
reações muito positivas e fez um grande sucesso desde o seu início.
A causa principal dessas reações foi esta: o Instituto não asilava simplesmente
o cego, mas procurava ensiná-lo a ler, tendo a Academia de Ciências de Paris
examinado e aprovado os tipos em relevo que o Instituto utilizava. Com o
passar dos anos o seu sucesso foi tão grande, que Haüy acabou sendo
convidado a comparecer à corte de Luiz XVI, para fazer uma detalhada
exposição quanto ao empreendimento, um pouco antes da eclosão da
Revolução Francesa que desacelerou ou eliminou muito do que fizera antes a
França com o apoio da nobreza.
Mas logo após a regularização da vida do país, novas escolas para cegos foram
abertas. E isso aconteceu também em diversos outros países da Europa, quase
todas elas seguindo o novo modelo apregoado por Haüy. Os exemplos mais
positivos dessas escolas foram as de Liverpool em 1791, de Londres no ano de
1799 e, já no século XIX, de Viena em 1805 e de Berlim em 1806.
Educação dos Deficientes Auditivos no Século XVIII
203
De outra parte, envolvendo diferentes segmentos da sociedade mais esclarecida,
notaremos a marcante evolução dos sistemas montados para a educação dos
deficientes auditivos em geral.
E no começo do século XVIII, encontraremos o nome de John Conrad Amman
(1699 a 1724), publicando sua "Dissertatio de Loquela", que recebeu em
inglês um título enorme: "Uma dissertação sobre a fala, na qual não só a voz
humana e a arte de falar são analisados desde a sua origem, mas são descritos
os meios pelos quais aqueles que são surdos e mudos desde o nascimento
podem conquistar a palavra, e aqueles que falam imperfeitamente, podem
aprender como corrigir suas dificuldades".
Foi por essa época — início do século XVIII — que os educadores concluíram
que era necessário um alfabeto manual para que o surdo pudesse melhor se
comunicar e melhor entender o que precisava ser a ele repassado. Grande
colaboração foi dada para a definição do alfabeto manual por membros da
família Wren, da Inglaterra.
Fato importante na gradativa definição da realidade em que viviam os surdos-
mudos foi a publicação de Diderot intitulada "Carta sobre o Surdo e Mudo
para Uso daqueles que Ouvem e Falam".
Em 1755 o abade Charles Michel Epée (1712a 1789) reconhecia que a
psicologia do surdo era diferente daquela da pessoa que ouvia. Fundou uma
escola para educação dos surdos em Paris, aperfeiçoando a linguagem por
sinais como meio para instrução e comunicação de seus alunos. Acreditava que
era necessário fazer entrar pelos olhos dos surdos tudo o que o restante da
sociedade absorvia por meio do som, pela audição.
O abade Sicard (1742 a 1822) ampliou as idéias de Epée no trabalho intitulado
"Relato sobre um Menino Nascido Surdo e Mudo".
Primeiros Sinais de Assistência nas Américas
Enquanto todos esses desenvolvimentos ocorriam na Europa, nas Américas as
mesmas tendências eram reconhecíveis com facilidade uma vez que todos os
núcleos de colonização recebiam direta influência da respectiva Pátria-Mãe.
204
Na verdade, os hospitais haviam há tempos surgido nas Américas. De fato,
logo após o descobrimento por Cristóvão Colombo ocorreram diversos
esforços para dar cobertura à população colonizadora.
Os conquistadores espanhóis procuraram, é natural, seguir mais ou menos os
padrões estabelecidos e encontradiços na Europa, nos seus esforços de
criação de casas de tratamento e mesmo de hospitais. Esses recursos primitivos
foram organizados pelos religiosos que haviam acorrido ao Novo Mundo (às
Índias Ocidentais) para a ingente tarefa de catequização dos selvagens, com
forte subsídio da coroa espanhola.
Assim é que já em 1524 havia surgido o Hospital Jesus de Nazaré, a mais antiga
organização de assistência médica do continente, no México. 0 mesmo sucedeu
nas colônias mais tarde estabelecidas pelas coroas francesa, holandesa, inglesa
e portuguesa.
Ressaltemos, entretanto, que só dois séculos após é que podemos localizar nas
Américas um primeiro esforço de organizada assistência médica e hospitalar,
com sucesso absoluto. Tratava-se do hoje conhecido Hospital de Pennsylvania,
na Philadelphia, inaugurado no ano de 1751.
É bastante válido chamar a atenção para o fato de que os descobridores e
colonizadores espanhóis já encontraram verdadeiros hospitais em nosso
continente. Segundo nos conta De La Vega, as expedições espanholas
comandadas por Cortés, conheceram hospitais mantidos pelos Aztecas nos
locais conhecidos como Cholula, Tlescoco, Tlaxcala e na sua mais importante
cidade, Tenochtitlán (hoje, Cidade do México).
Falando sobre a mesma questão junto aos Incas, no Peru, Poma de Ayala, citado
por De La Vega, afirma: "Nas grandes cidades havia verdadeiros hospitais que
admitiam os anões, os corcundas e os indivíduos com lábios leporinos".
Tinham eles também hospitais destinados a doentes incuráveis ou enfermos de
aspecto repugnante, segundo o mesmo autor. Ele acrescenta também a
peregrinos, loucos, velhos e desvalidos (Apud De La Vega).
Finalmente, ao terminar o século XVIII foi inaugurado o Hospital de New
York, mas relativamente poucos foram os hospitais criados na América do
Norte, seja pelos ingleses, seja pelos franceses, antes do século XVIII, devido ao
fato de haver muito poucas comunidades de porte suficiente para mantê-los
205
com a indispensável propriedade. Como sucedia na Europa, esses hospitais das
colônias caminhavam para a implantação de especialidades médicas e dentro de
algumas delas ocorriam os atendimentos às pessoas deficientes, como não
poderia deixar de acontecer.
Desencontro de Atitudes na Europa
Durante o século XVIII atitudes as mais desencontradas são relatadas por
estudiosos do desenvolvimento hospitalar em alguns países da Europa. No
Hospital Real de Bethlehem, de Londres, popularmente conhecido na época
pelo apelido de "Bedlam" (que significa manicômio ou confusão) muitas
pessoas de baixa cultura e possuidoras de doentia curiosidade chegavam a
pagar algumas moedas a vigias ou a atendentes do hospital para observar e
para rir de certos doentes acorrentados, de seus gritos e dos seus rostos
desfigurados e contorcidos, especialmente quando apresentavam
deformações sérias ou deficiências físicas e mentais, segundo nos relata
Wolfensberger.
De um modo geral, todavia, a sociedade do século XVIII dos países europeus,
embora não homogeneamente, organizava-se para continuar a dar cobertura
cada vez melhor, pelo menos de abrigo e de alimentação mais humanos
àqueles que não dispunham de meios para se manter vivos fora dos hospitais, e
que não apresentavam mais problemas de natureza médica.
Abrigos e asilos mais modernos foram organizados, alguns já com os primeiros
indícios de valorização real do ser humano, a despeito das suas
malformações, da sua aparência ou das deficiências que apresentavam.
Inovações nas "Leis dos Pobres" da Inglaterra
No ano de 1723, na Inglaterra, foram aprovadas algumas alterações
operacionais nas conhecidas "Leis dos Pobres". Foi autorizado, por exemplo,
que cada paróquia construísse e colocasse em funcionamento casas de
trabalho ou oficinas ("work-houses") e que recusasse prestar ajuda aos pobres
que dela não participavam. Dessa forma, a situação das pessoas com
deficiências físicas ou sensoriais deteriorou muito. Passaram a ficar
bloqueadas dessa participação através do trabalho, uma vez que a prioridade
206
para atuar nessas casas de trabalho recaía sobre os pobres com dificuldade de
obter trabalho, mas sem qualquer tipo de deficiência. A experiência foi um
fracasso, pois não eliminou nem a mendicância nem a pobreza.
Apesar do objetivo original ter sido bom, ou seja, eliminar a inatividade e
dependência da assistência prestada pela comunidade, selecionar melhor os
candidatos ao recebimento de ajuda, abrigar as pessoas realmente enfermas,
os velhos e as crianças, e dar trabalho real aos fisicamente habilitados, essas
oficinas degeneraram completamente e com grande rapidez, tornando-se
verdadeiros depósitos de pessoas em situação de miserabilidade.
Esse fragoroso insucesso não nos permite, porém, esquecer algumas tentativas
válidas para tornar as casas de trabalho um recurso útil para o atendimento à
pobreza generalizada do século XVIII na Inglaterra. Seu eventual sucesso,
entretanto, foi efêmero e sem muito significado.
Bloqueios ao Sacerdócio para Pessoas com Deficiência
Os bloqueios interpostos pela Igreja Católica para pessoas com deficiência
física tornarem-se sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século XVIII.
Alguns exemplos práticos nos são relatados por M.André, doutor em direito
canônico e membro de diversas sociedades de sábios do final do século XIX,
em adição à obra de Thomassin ("Ancienne & Nouvelle Discipline de l'Église")
que fora escrita ao final do século XVII.
Alguns dos mais significativos são os seguintes:
- No dia 20 de janeiro de 1789, a Sagrada Congregação recusou concordar com
a ascensão às santas ordens de um clérigo "manco" da Diocese de
Albenga, na Ligúria;
- O padre François Pujol, da Diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido
um acidente vascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos;
solicitou ao bispo a dispensa da irregularidade para exercício das funções
sacerdotais e para celebrar a missa numa capela privada. Embora seu bispo
tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou o pedido, no dia
19 de agosto de 1797;
- O seminarista Ambroise Lamberti, da Diocese de Albenga, tinha um problema
de movimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o
207
apoio continuo de uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito e
opinou que haveria graves inconvenientes em promovê-lo às sagradas ordens,
no que foi apoiado pela Sagrada Congregação no dia 20 de janeiro de 1798;
- O sacerdote Philippe Maggiorani, da Diocese de Borgo San Sepolcro, na
Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão
de espingarda excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi
necessário amputar parte do braço para evitar sua morte. Solicitou dispensa da
irregularidade para prosseguimento de seus trabalhos como sacerdote e esta
lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma nova e
humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispo e do total
apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois de
haver submetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a recusa
à dispensa de irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787.
Outros casos poderiam ser acrescentados, mas os citados acima mostram a
posição quase que inalterada da Igreja Católica na aceitação de pessoas com
deficiência para o exercício do sacerdócio até o século XVIII.
Hospitais Públicos na França no Final do Século XVIII
Na segunda metade do século XVIII, os hospitais públicos da França haviam
decaído tanto na qualidade de seus atendimentos, que já estavam sendo
abominados até pelos pobres. É Voltaire que comenta a respeito no ano de
1768:
"Temos em Paris um Hospital ("Hôtel-Dieu") onde reina o perpétuo contágio,
onde inválidos pobres, amontoados uns sobre os outros, contagiam seus
vizinhos com a praga e com a morte".
0 historiador francês Michelet também comenta a respeito do mesmo
problema, dizendo:
"Os doentes pobres e os prisioneiros ali confinados eram geralmente
considerados como condenados, atingidos pela mão de Deus, cujo primeiro
dever era expiar seus pecados e eram sujeitos a tratamentos cruéis. Caridade
desse tipo pavoroso faz-nos sentir horror. No entanto, foi feita uma tentativa
para eliminar a sensação de pavor dos hospitais: começaram a dar-lhes nomes
sugestivos: Hotel de Deus, A Caridade, A Piedade, O Bom Pastor, etc. Mas
208
isso não convenceu os doentes e os inválidos pobres que se escondiam em
casa para morrer, tão horrorizados estavam face à possibilidade de serem
levados pela força para esses lugares" (Apud "Encyclopedia of Religion and
Ethics").
Foi nessa mesma época que os doentes mentais eram acorrentados em suas
celas, pois acreditava-se que eram possuídos pelo demônio. 0 Dr.Philippe
Pinel (1745 a 1826) tomou uma iniciativa revolucionária entre os anos de 1792
e 1826: quebrou as correntes que prendiam esses doentes às celas,
substituindo o chocante tratamento anterior por um trabalho científico, onde
prevalecia uma enorme dose de bondade e de doçura.
Progressos no Campo do Atendimento aos Cegos no Século XIX
Em 1819 um oficial do exército francês de nome Charles Barbier procurou o
Institute Nationale des Jeunes Aveugles, de Paris, com uma novidade que
esperava ser útil aos seus professores e alunos. Barbier pretendia adaptar o que
chamava de "sonografia" para o uso dos cegos. Era, na verdade, um processo
de escrita codificada e expressa por pontos salientes, chegando a ter
representados os 36 sons básicos da língua francesa. Fora idealizado pelo
oficial para ser usado na transmissão de mensagens no campo de batalha à
noite, sem chamar a atenção do inimigo pelo uso de qualquer ponto de luz.
A idéia interessou sobremaneira alguns professores do renomado Instituto de
cegos e logo começou a ser adaptada para uso dos alunos ali internados.
Em 1833 surgiu nos Estados Unidos da América do Norte o primeiro livro
para cegos de que se tem notícia. Adotava um alfabeto idealizado pelo
educador Frielander. De outra parte, na Inglaterra, havia informações de que
o primeiro livro para cegos surgira já em 1827, usando letras comuns em
relevo, o que não era muito inovador. Desde o século XVIII havia máquinas de
escrever em relevo essas mesmas letras comuns.
Foi alguns anos mais tarde que um jovem professor cego do Institute Nationale
des Jeunes Aveugles - Louis Braille (1809 a 1852) - baseado na idéia de Charles
Barbier e na experiência acumulada com a utilização diuturna daqueles
pontinhos em relevo, desenvolveu um sistema seu, já pelo ano de 1825,
também de pontinhos em relevo, que podiam não apenas ser lidos como
209
também produzidos com facilidade pelos cegos com instrumentos bastante
simples. Na combinação de apenas seis pontinhos em relevo, Louis Braille
garantia noventa e seis símbolos para letras comuns e acentuadas, números,
pontuação e outros mais. A adoção do novo sistema em toda a França só
ocorreu em 1854, dois anos após a morte de seu idealizador, Louis Braille.
Ludwig Van Beethoven e sua Trágica Surdez
Em 1827 morria Ludwig Van Beethoven, que nascera em 1770 e que se
transformara num dos maiores gênios da música erudita, apesar de ter sofrido
imensamente com a gradativa perda da audição, em seus últimos anos de vida.
A surdez o isolara do restante do mundo, mas não o impedira de continuar sua
obra criadora.
A surdez de Beethoven começara em seu ouvido esquerdo quando estava com
27 anos de idade. Logo a perda se transformara numa dificuldade bilateral de
ouvir bem, principalmente os sons de alta freqüência. Usava o grande
compositor o auxílio de trompas de ouvido e outras adaptações próprias para
seu trabalho quando ao piano.
Em algumas de suas cartas a amigos e confidentes, principalmente ao Dr. Franz
Gerhard Wegeler, nota-se sua aflição pelo mal que o atingia.
Com 31 anos de idade escrevia o seguinte: " . . . minha faculdade mais nobre,
minha audição, tem piorado muito”... ...”esse problema causa-me as
dificuldades menos significativas ao tocar ou ao compor e as maiores quando
em contato com os outros"... ..."meus ouvidos assobiam e fazem barulho
sempre, dia e noite. Em qualquer outra profissão isso poderia ser mais
tolerável, mas na minha, essa condição é verdadeiramente atemorizante. Posso
Ihe dizer que vivo uma existência miserável” (Apud Landon).
A surdez gradativa influenciou o próprio estilo de Beethoven. Com a plena
consciência de sua surdez total próxima, tornou-se fortemente deprimido.
Parece até ter pensado no suicídio. E aos 52 anos de idade estava surdo. Foi
na fase inicial de sua perda de audição que o grande mestre compôs suas
obras mais românticas e de melodia da mais alta suavidade: "Apassionata" e
"Sonata ao Luar", em 1804.
210
Contam seus biógrafos que ele foi o maestro honorário na primeira
apresentação de sua 9a Sinfonia, mantendo-se sentado ao lado do maestro
regente. Não ouvia nada de toda a execução da magnífica peça musical, mas
seguia sua evolução pela partitura em suas mãos. Próximo ao final estava
atrasado alguns compassos e não notou quando a orquestra terminara. Um dos
solistas veio imediatamente até ele e virou-o para a platéia que aplaudia
delirantemente a obra e seu compositor.
Nelson, Herói da Marinha Britânica
Nascido no ano de 1758, o Visconde Horácio Nelson tornou-se o mais famoso e
talvez o mais querido dos heróis ingleses. Ele era mais do que um brilhante
dominador de táticas da guerra naval — era um líder sob todos os aspectos. Há
uma famosa frase de Nelson que passou para a História da Inglaterra e que é a
seguinte: "A Inglaterra espera que cada homem cumpra o seu dever". Ela não
foi dita por Nelson em reuniões ou em pronunciamentos a seus subalternos.
Ela foi transmitida de seu navio capitânia, o "Victory", por sinais, a toda a frota
que navegava para a grande batalha de Trafalgar.
A estratégia tática que Nelson imprimiu na luta contra a esquadra dos
poderosos navio das forças napoleônicas (os franceses e os espanhóis),
consagrou-o para sempre.
Mas foi exatamente nessa batalha que Nelson foi atingido por um projétil que
fraturou sua espinha dorsal. Sem recursos médicos de grande monta que
talvez pudessem ter salvo pelo menos sua vida, o grande herói inglês faleceu
no meio do fragor da batalha que se desenrolou no dia 21 de outubro de 1805.
Segundo alguns autores, se tivesse sobrevivido Nelson provavelmente teria
sido vítima da paraplegia por secção da medula.
Progressos no Atendimento dentro dos Estados Unidos
As primeiras providências observadas nos Estados Unidos da América do Norte
com relação à assistência mais organizada aos soldados feridos ou mutilados
parece terem acontecido em 1811, quando o Congresso autorizou o
Secretário da Marinha a construir um lar permanente para seus oficiais. Esse
novo recurso logo começou a aceitar marinheiros e fuzileiros navais com
211
problemas físicos sérios e outros problemas limitadores da independência
individual.
Foi construído na cidade de Philadelphia e só entrou em funcionamento em
1831. E no ano de 1867 surgiu um outro recurso: o Lar Nacional para
Soldados Voluntários Deficientes, assim que terminou a Guerra Civil
Americana, com o seu primeiro núcleo na cidade de Togus, Me. (Apud
"Encyclopaedia Britannica").
Sinais de Melhor Compreensão dos Problemas
Foi no século XIX que a sociedade começou a assumir a responsabilidade
sobejamente reconhecida para com as pessoas com deficiências. Até o século
XVI, durante o fortalecimento da Renascença, os homens em geral ainda
relacionavam muito do que acontecia ao ser humano à força das superstições,
das diversas crendices dominantes e do sobrenatural. Mas, do século XVI em
diante, o mundo já se acostumara a examinar fatos em termos mais práticos e
naturais.
Precedida pela Revolução Industrial, a Revolução Intelectual fez com que a
sociedade de muitos países europeus pensasse um pouco nos seus grupos
minoritários e marginalizados como uma de suas muitas responsabilidades e
não apenas como objeto de promoções caritativas e de caráter voluntário.
Chegou-se à conclusão de que a solução para esses problemas não era apenas
uma questão de abrigo, de simples atenção e tratamento, de esmola ou de
providências paliativas similares, como sucedera até então.
Ao se dar maior volume de atenção, por exemplo, aos cegos, aos velhos, aos
surdos, aos mutilados de guerra, aos doentes crônicos e aos deficientes de um
modo mais amplo, chegou-se a pensar que eles na verdade não precisavam
tanto de hospitais de caridade ou de casas de saúde, mas de organizações
separadas, o que tomaria seu cuidado e seu atendimento mais racional e
menos dispendioso.
Foi em boa parte devido a esse tipo de raciocínio e à troca de experiências
que a sociedade de alguns países europeus, quase que exclusivamente por
iniciativa de particulares, fundou algumas entidades especializadas, sem
lembrar nem mencionar talvez que Constantinopla havia acenado para essa
212
posição desde o alvorecer do Cristianismo, ou seja, há muito mais de 15
séculos.
Essas novas organizações, todavia, não se destinavam apenas á assistência e
à proteção desses grupos marginalizados, mas também para estudo de seus
problemas e dificuldades, para o estabelecimento de algumas alternativas de
atendimento e também para o tratamento de situações concretas. Surgiram
abrigos para crianças (orfanatos, em geral) e para velhos (asilos), lares para as
crianças com defeitos físicos e muitas outras organizações separadas dos
hospitais gerais oficiais ou particulares.
Embora no século XIX ainda não se pensasse na integração do homem
deficiente à sociedade aberta ou mesmo à sua família, ele passou a ser visto
como ser humano (infeliz, desafortunado e coitado para aquela época, é
evidente) dono de seus sentimentos e capaz de viver ou de pretender levar uma
vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso.
Para um bom volume de casos a questão acabava restringindo-se à redução de
uma situação de miserabilidade a um mínimo suportável, dando ao indivíduo
atingido um restante de vida mais tranqüilo, desde que possível.
Iniciativa de Napoleão Bonaparte
Pensando mais avançada e utilitariamente, o arguto Napoleão Bonaparte, que
nasceu em 1769 e morreu em 1821, exigia de seus generais que olhassem os
seus soldados feridos ou mutilados como elementos potencialmente úteis, tão
logo tivessem seus ferimentos curados.
Os exércitos franceses passaram, em muitas de suas unidades, a utilizar esses
soldados nos esforços de guerra de tal forma que conseguiam ainda tornar-se
produtivos e diretamente ligados às suas unidades.
Napoleão procurava utilizar seus esforços conforme as circunstâncias o
permitiam.
E muitos soldados em convalescença foram usados em serviços de
manutenção montados na retaguarda, de acordo com suas capacidades físicas,
conservando fardamentos, trabalhando em selaria, cuidando dos equipamentos,
de alimentação, de limpeza de animais e outras atividades.
213
Madre Agostinha, Fundadora das Irmãs Irlandesas da Caridade
Mary Aikenhead (1787 a 1858), por solicitação do bispo Murray, de Dublin,
na Irlanda, fundou a congregação religiosa conhecida como Irmãs Irlandesas
da Caridade. As irmãs religiosas não eram enclausuradas e visitavam famílias
pobres em suas próprias casas.
Devido às características de desenvolvimento daquela época, durante a qual
não havia a emancipação dos católicos na Irlanda, Mary adotou o nome
religioso pelo qual ficou sendo conhecida (Madre Agostinha) apenas para
contatos com outras religiosas, e o seu nome leigo para todos os demais
contatos externos.
Um dos trabalhos mais notáveis dessas religiosas ainda durante a vida de
Madre Agostinha ocorreu durante uma epidemia de cólera. Madre Agostinha
ficou muito enferma em 1831 e impossibilitada de se locomover até a sua
morte, no ano de 1858.
Dirigia sua comunidade mesmo com a desvantagem da deficiência que a
bloqueava e impedia de uma participação maior e mais efetiva.
Lord Byron, Poeta e Satirista Inglês
George Gordon (1788 a 1824), barão e o sexto Lord Byron, teve uma Vida
que cativou a imaginação de toda a Europa. De um lado era profundamente
melancólico e de outro era um homem repleto de aspirações políticas.
Nasceu com um problema físico (pé torto) e sempre foi muito afetado por
essa deficiência. Tratado como "garoto aleijado" por uma linda jovem da qual
estava enamorado, alimentou sua mágoa com poemas de profunda tristeza,
muitas vezes relacionadas a amores inatingíveis.
Dedicou muito de seu tempo e fortuna à causa da libertação da Grécia e lá
morreu.Foi considerado e até hoje muitos o consideram um"herói nacional
grego".
Antonio Feliciano de Castilho, um dos Maiores Literatos de Portugal
Castilho (1800 a 1875) tem sido indicado como poeta, prosador, ensaísta,
escritor e pedagogo, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes figuras
literárias nascidas em Portugal.
214
Perdeu a visão aos 6 anos de idade, mas seu denodado irmão Augusto,
percebendo sua incrível memória, ajudou-o a estudar e a inteirar-se do mundo
que o cercava. Já prestes a finalizar seu curso em Coimbra, publicou em 1821
seu primeiro trabaIho de verdadeira importância: "Cartas de Eco e Narciso".
Com a publicação de seu livro de poesias "O Outono", após uma viagem ao
Brasil e seus anos em Açores, despertou nos meios literários lusitanos uma
violenta polêmica que ficou conhecida como "Questão Coimbrã"". Nela
estiveram envolvidos nomes famosos, como Antero de Quental, Camilo
Castelo Branco e outros.
A cegueira não impediu Antonio Feliciano de Castilho de se transformar num
dos mais respeitados nomes de toda a literatura portuguesa.
Cegos do Século XIX que Ficaram Famosos
Embora numa brevíssima nota, é importante que nos lembremos de três
cegos que ficaram famosos pela sua competência em pleno século XIX:
Jacques Nicolas Augustin Thierry (1795 a 1856) um grande renovador da
ciência histórica francesa e autor de "Narrativas dos Tempos Merovíngios",
"Considerações sobre a História da França" e "Ensaio sobre o Terceiro
Estado".
William Hickling Prescott (1796 a 1859), historiador inglês, autor de
"História do Reino de Fernando e Isabel" e "Conquista do México".
Henry Fawcett (1833a 1884), economista e político inglês, autor de "Manual de
Economia Política" e catedrático na Universidade de Cambridge. Foi casado
com a famosa Millicent Garrett.
Ortopedia do Século XIX e as Deficiências Físicas
Já nos primeiros decênios do século XIX foi surgindo a própria base da
reabilitação de pessoas com lesões físicas. Essa base, ainda não estabelecida,
defenderia a idéia de que as pessoas que apresentavam deficiências físicas
deveriam receber, além dos cuidados médicos de que precisassem, serviços
especiais para poder continuar uma vida de acordo com suas aspirações e a
própria dignidade do homem — conceito esse derivado da filosofia humanista
215
somada às experiências práticas advindas do forte progresso da ciência
médica.
Dentro dessa corrente de raciocínio, muito maior e melhor volume de
atendimento médico-cirúrgico e/ou ortopédico surgiu em poucos anos na
Europa e em diversas outras partes do mundo. Vejamos alguns progressos mais
significativos:
1812 — Johann Georg von Heine criou um hospital só de atendimento
ortopédico na cidade de Würzburg, na Prússia.
1817 — Foi criado na cidade de Birmingham, na Inglaterra, um hospital
dedicado apenas a casos de ortopedia, ou seja, o chamado Orthopaedic
Hospital.
1818 — Em Lübeck, Alemanha, foi também fundado um hospital destinado a
pacientes que apresentassem males ortopédicos, por influência do
médico Lesthof.
1821 — Foi fundado na cidade de Bar-le-Duc, na França, um hospital
semelhante;
1826 — São construídos em Berlim, Alemanha, dois hospitais para ortopedia,
enquanto que no mesmo ano em Paris dois outros são também organizados.
1828 — Um hospital ortopédico é inaugurado na cidade de Montpellier,
França.
1830 — Inaugurado na cidade alemã de Hannover o famoso Stromeyer
Hospital, destinado exclusivamente ao atendimento de casos de ortopedia.
Muitos outros evidentemente surgiram à mesma época ou durante a segunda
metade do século XIX, não só na Europa como nos Estados Unidos, e dentre
eles cumpre que destaquemos os de Haia, Londres, Copenhague, Praga,
Florença, Petrogrado e New York.
Este avanço fulminante da ortopedia, aliada a outras áreas do atendimento
médico, levou a uma atenção muito mais apropriada a males diretamente
relacionados a deficiências físicas, conseqüentes a fraturas, amputações,
deformações e outros males do esqueleto.
Atendimento Mais Especializado aos Cegos
216
Verifiquemos alguns desenvolvimentos adicionais ocorridos no século XIX no
campo da cegueira:
Três escolas destinadas ao atendimento especializado de cegos foram
organizadas nos Estados Unidos, sendo a mais famosa delas a New England
Asylum for the Blind, inaugurada no ano de 1832, hoje reconhecida no mundo
todo com o famoso nome de "Perkins School for the Blind". Está localizada
em Boston, Masachussets. As outras duas foram organizadas em 1832 e
1833, nas cidades de New York e Philadelphia respectivamente.
Em outros países o atendimento mais específico e mais cuidadoso de cegos
gradativamente se implantava:
1863 — Em Lisboa, Portugal, no Castelo de Vide, foi iniciado o ensino
profissionalizante para alunos cegos.
1866 — Na Cidade do México foi criada e instalada a primeira escola para
cegos mexicanos.
1876/1880 — Em Kyoto e em Tóquio foram criadas duas modernas escolas
para receber somente alunos cegos.
1882 — Foi criada em Londres a Sociedade de Prevenção da Cegueira —
entidades semelhantes foram também organizadas em outros países logo após.
1888 — Criada em Buenos Aires, Argentina, a Escola para Cegos e para
Surdos.
1890 — Em Santiago de Chile foi também criada uma escola para
cegos.
De uma certa forma o Brasil foi pioneiro nas Américas Central e do Sul, com a
criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, no ano de 1854, no Rio de
Janeiro.
Ainda no atendimento a cegos, dentro do Continente Asiático, ocorreu o início
da primeira escola para cegos da China em 1876, por iniciativa do missionário
William Hill Murray, da Sociedade Escocesa da Bíblia. Murray dedicou-se muito
a esses empreendimento e chegou mesmo a inventar um sistema Braille para
a língua chinesa, mais tarde substituído pelo Braílle Union Mandarin, aceito em
todas as regiões da vasta China, onde o Mandarin era falado.
217
Um pouco antes disso, no ano 1868, durante a restauração Meiji, no Japão,
os privilégios especiais até então dados aos cegos para se dedicarem com
exclusividade à massagem e a certas áreas da acupuntura foram suspensos. A
tradição, porém, manteve-se e até hoje o número de massagistas cegos é muito
grande no Japão e em muitas outras partes do mundo.
Pessoas com Deficiência Vistas com Potencial para o Trabalho
A partir da segunda metade do século XIX houve um forte incremento às
atenções destinadas às pessoas com males limitadores de sua atuação, mais em
concordância com as características individuais, tornando-se, portanto, mais
humanas no mundo todo mais atualizado. Em alguns países nórdicos surgiram
preocupações muito sérias quanto ao aspecto do potencial da pessoa deficiente
para a produção de bens e para desenvolvimento de serviços, pelo menos para
cobrir as próprias necessidades de sobrevivência.
Como resultado prático dessa preocupação, no dia 10 de maio de 1863, um
grupo de pessoas influentes da sociedade novaiorquina criou a New York a
Society for Relief of Ruptured and Crippled, em plena Segunda Avenida, no
distrito de Manhattan. Hoje essa mesma sociedade foi transformada no New
York Hospital for Special Surgery, um dos melhores do mundo todo no
atendimento a casos de deficiências físicas das mais variadas ordens.
A Dinamarca também entrou na luta para um melhor aproveitamento da mão-
de-obra em potencial das pessoas deficientes, fundando uma organização
especial para atendimento social e profissional, em 1872, ou seja, a Sociedade
e Lar para Defeituosos (Society and Home for Cripples), seguindo
praticamente exemplo sueco que, segundo parece, havia sido divulgado alguns
anos antes de seu estabelecimento.
Outro exemplo de tentativa para encontrar uma solução de trabalho para
pessoas com limitações físicas surgiu com a iniciativa do Pastor Hoppe, um
alemão que em 1885 organizou uma sala de aulas para ensino de um ofício para
crianças deficientes. Sua iniciativa encontrou um sucesso muito grande, pois
toda aquela escola foi transformada num lar para pessoas com deficiências
aprenderem profissões diversas.
218
Problemas dos Surdos e dos Surdos-Mudos e suas Soluções
0 atendimento aos surdos e aos surdos-mudos também progrediu muito no
século XIX. Exemplos desse progresso são os seguintes:
- Na Inglaterra, ao final do século XVIII e início do século XIX, o educador
Thomas Braidwood (1715 a 1806) organizou uma escola para surdos em
Edinbourgh e logo após uma outra em Londres. Eram escolas particulares e a
pagamento, que tiveram o condão de despertar a atenção para o problema dos
surdos e para as soluções que se apresentavam viáveis. A primeira escola para
surdos pobres havia já sido aberta em 1792, em Londres (Old Kent Road)
mudando-se mais tarde para Margate.
- Durante o século XIX muitas outras escolas para surdos foram organizadas na
Inglaterra, tanto assim que em 1870 havia dez escolas residenciais dessa
natureza. 0 governo inglês finalmente assumiu a responsabilidade pelo ensino
oficial dos surdos e dos cegos em 1893, tornando-se obrigatório entre os 7 e 16
anos de idade, como parte integrante do ensino oficial.
Na Alemanha, Moritz Hill (1805 a 1874) desenvolveu um método próprio de
educação para crianças surdas, usando a comunicação oral e seguindo
exemplo do educador alemão Samuel Heinicke (1727 a 1790). Hill sempre foi
considerado um dos melhores educadores de surdos de todos os tempos.
- Nos Estados Unidos, em 1803, Francis Green de Boston já fizera juntamente
com alguns religiosos protestantes, uma tentativa de recenseamento de
surdos em todo o Estado de Masachussets, encontrando 75 surdos. Supondo,
pelo seu levantamento, que no país todo deveria haver bem mais do que 500
surdos, sugeriu a criação de escolas especiais.
- No ano de 1815, em Hartford, Connecticut, foi organizada uma sociedade
para a instrução de surdos que tomou a sábia iniciativa de levantar fundos
para mandar o jovem professor Thomas Hopkins Gallaudet à Europa para
aprender métodos comprovados de ensino para surdos. Chegou a estudar o
método de sinais na escola do Abade Sicard, em Paris, e em 1816 voltou aos
Estados Unidos com um professor surdo: Laurent Clerc.
- No dia 15 de abril de 1817 foi aberta a Escola Hartford para Surdos que
começou a utilizar tanto os sinais quanto o alfabeto normal e a própria escrita.
219
- Foi em 1818 que foi criada a New York Institution for the Deaf, graças à
influência marcante e ao interesse direto do Reverendo John Stafford.
- O ano de 1867 viu surgirem duas escolas de importância nesse campo:a
ClarkeSchool, em Northampton, Masachussets e a Institution for the
Impaired Instruction of the Deaf, em New York, hoje chamada de Lexington
School for the Deaf. Elas usavam métodos de comunicação oral em
contraposição ao de comunicação por sinais, usado nos primeiros cinqüenta
anos do século XIX.
Proteção ao Acidentado de Trabalho por Legislação Alemã Recente
Otto von Bismark, Chanceler do Império Alemão, aprovou no ano de 1884 o
que é considerado como a primeira lei do mundo que protegia o acidentado
no trabalho, no que foi imediatamente imitado por muitos outros países
europeus. Era uma das primeiras providências objetivas relacionadas a
trabalhadores civis, levando gradativamente às programações de recuperação
física e de reabilitação, com tentativas de readaptação ao trabalho e
reaproveitamento daquela mão-de-obra prejudicada.
Boa parte da pressão por soluções que visualizassem a volta ao trabalho como
um ideal a ser atingido partiu de companhias de seguros, envolvidas no
processo devido às determinações legais de proteção ao trabalhador.
Modernização da Cirurgia Ortopédica e as Pessoas com Deficiência
Ao se especular sobre cirurgia ortopédica e seu significado na eliminação, na
redução ou na prevenção de deformidades físicas, na segunda metade do
século XIX, não se pode deixar de mencionar nomes como os de John
Hilton, G.F.Stromeyer, William J.Little, H.O.Thomas, Sir Robert Jones e
outros.
Como é sobejamente sabido, a cirurgia ortopédica pode ser preventiva ou
reconstrutiva. E apenas para que possamos ter uma idéia do escopo amplo
dessa especialidade médica dentro da ortopedia, que tanto tem a ver com o
mundo das pessoas com deficiência, relembremos que as deformidades podem
ser adquiridas ou congênitas.
220
Dentro do vasto campo para suas intervenções, lembremos as mais
significativas: a cirurgia reconstrutiva da coluna vertebral e das extremidades é
da mais real importância; fraturas mal solidificadas ou mal restauradas são
tratadas por procedimentos cirúrgicos dentro da cirurgia ortopédica; tendões
podem ser reparados por transplantes e outros procedimentos específicos;
diferenças nos tamanhos das pernas podem ser acertadas; muitas doenças do
esqueleto humano podem ser resolvidas pela cirurgia ortopédica; amputações a
níveis adequados e com técnica cirúrgica que permita o uso de próteses são
possíveis; a prevenção de deformidades por procedimentos cirúrgicos é também
perfeitamente viável. Essas são algumas das intervenções mais conhecidas da
cirurgia ortopédica que avança continuamente para uma atuação cada vez
mais primorosa.
Dentre os cirurgiões ortopédicos mais famosos cumpre que separemos o nome
de Stromeyer, de Hannover, na Alemanha. Ele havia desenvolvido uma
operação conhecida por tenotomia (corte dos tendões), pela qual conseguia
corrigir com menos dificuldade alguns tipos de deformidades. Foi a ele que um
novo pioneiro da cirurgia ortopédica — William J. Little, da Inglaterra —
recorreu no ano de 1836.
0 Dr.Little havia nascido com uma paralisia no pé, e com o tempo este havia
ficado deformado. Venceu barreiras, enfrentou ambientes e formou-se
médico. Seus estudos sobre as causas do pé torto e a introdução, na
Inglaterra, da tenotomia, sobre a qual tanto aprendera com Stromeyer antes,
durante e depois de sua própria cirurgia, foram providências muito
significativas para o desenvolvimento da cirurgia ortopédica.
Reabilitação Desabrocha num Centro de Atendimento em Cleveland
Os primeiros indícios de reabilitação aplicada como tal surgiram nos Estados
Unidos no ano de 1889 com a criação de uma organização especial para o
atendimento de pessoas com deficiência física e que utilizou o nome de
Cleveland Rehabilitation Center.
Um pouco depois, no ano de 1893, foi organizada na cidade de Boston uma
entidade chamada Boston Industrial School for the Crippled and Deformed,
221
que não só oferecia alguns treinamentos profissionalizantes mas também
vários outros serviços que o indivíduo necessitasse.
À época do nascimento de Helen Keller, em 1880, já havia movimentos bem
conscientes no Alabama quanto aos problemas de pessoas deficientes. Havia
profissionais que começavam a expressar sua preocupação com o conteúdo e
com a própria metodologia (ou ausência dela) dos programas que se iniciavam
em diversas áreas. Um dos sintomas claros dessa preocupação foi a criação da
American Association of Workers for the Blind (Associação Americana de
Trabalhadores com os Cegos), em Washington, no ano de 1895.
O conceito de reabilitação em seu sentido amplo e de atendimento às
necessidades do ser humano com deficiências, mas como um todo, tomou
forma no final do século XIX, devido a fatores múltiplos, dentre os quais não
podemos deixar de mencionar a preocupação de algumas sociedades com o
homem em seu sentido mais profundo, as tendências humanísticas em algumas
profissões, tais como a medicina psiquiátrica, e também o surgimento de outros
grupos de profissionais mais voltados para problemas sociais ou
para.dificuldades individuais do ser humano num contexto familiar e
comunitário.
Algumas organizações continuaram e continuam a manter uma tônica
custodial, assistencialista, caritativa e segregacionista. Mas o reconhecimento da
pessoa humana como um indivíduo de méritos próprios e de potencial a ser
melhor aproveitado passava a ser irreversível.
Helen Keller: um Marco Indelével
Ao final do século XIX (1880) nascia Helen e com 19 meses ficou cega e
surda. Logo a seguir não conseguiu mais falar. Foi com 7 anos de idade que
começou a receber a ajuda de Anne Sullivan, graças a uma sugestão de
Alexander Graham Bell, consultado pelos Keller quanto a uma solução para os
problemas de Helen. A assistência a Helen Keller resultou de uma combinação
de esforços de várias organizações que levaram a jovem a ler, escrever e até
falar.
222
Em 1900 Helen entrou no Colégio Radcliffe, graduando-se em 1904 "cum
laude". Desse ponto em diante sua vida foi marcada por uma plena dedicação
à causa de pessoas vítimas de múltiplas deficiências.
Ela foi um verdadeiro marco nos esforços para melhor compreensão das
potencialidades do ser humano para superar problemas considerados
insuperáveis.
Lutando com problemas semelhantes à mesma época, mas vivendo situações
de vida bem diversas, poderemos citar alguns nomes que fortalecem a crença
no potencial do ser humano e na criatividade de muitos profissionais que
levam a verdadeira ciência do atendimento para melhores e mais objetivos
resultados:
- Laura Bridgman (que só tinha o sentido do tato e que mesmo assim recebeu
uma educação metódica) e Richard Clinton, ambos dos EUA; Marthe Obrecht,
da França; Inocêncio Juncar y Reyes, da Espanha; Eugênio Malassi, da Itália
e Marie Heurtin, da França — todos com deficiência visual e auditiva.
- Marie Heurtin nasceu cega e surda e ao ser encaminhada a uma escola especial
em Notre Dame de Larnay, perto de Poitiers, rolava na terra e grunhia como um
pequeno animal. Segundo Pierre Villey, autor cego dos mais categorizados, que
escreveu sua interessante obra "Le Monde des Aveugles" em 1914, Marie
Heurtin "é hoje uma jovem de 25 anos, cordata, ativa, alegre, que raciocina
bem" ... e... "Laura Bridgman, que não tinha apenas a visão e a audição, mas
também o paladar e o olfato, fornece a prova irrefutável que apenas as
impressões do tato são suficientes para emancipar uma alma e para liberar seu
eco para os mais altos cimos que o espírito humano tem explorado" ("Le
Monde des Aveugles", de Villey).
223
Capítulo Décimo Terceiro
UNIVERSO
Dando evidentes sinais de felicidade por observar aquele canto da antiga
capela lotado com uma multiplicidade de profissionais, Mestres em História,
alguns convidados especiais e assistentes diversos, formando um grupo
bastante coeso de interessados, Agostinho levantou-se da bancada lateral
onde encontrara assento ao lado de Heródoto e de Joshua e já dando os
primeiros passos na direção da mesa de coordenação dos trabalhos, iniciou
sua participação nas atividades que estavam prestes a começar, comentando:
- Meus prezados amigos, esse tipo de desjejum que tivemos faz pouco, com
todos nós interagindo graças a uma dinâmica de grupo muito sutil, fez com que
nosso ambiente de trabalho comece de uma forma bem leve e marcantemente
descontraída, não é mesmo?
Com a concordância geral e as desculpas de alguns que ainda não estavam
acomodados, prosseguiu:
- Eu estava trocando umas idéias com participantes deste novo esforço,
enquanto finalizava meu chocolate, quando ficou em mim muito clara a idéia de
que, embora seja muito verdadeiro que praticamente todas as pessoas adultas
com deficiência desejem sua verdadeira e inquestionável inclusão,
desenvolvendo uma vida normal, na vida de todo o dia torna-se extremamente
difícil a inclusão de muitas delas devido a dificuldades as mais variadas, que
extrapolam àquelas provocadas pela deficiência. Ao analisarmos o problema
sob esse ângulo – e não podemos deixar de fazê-lo - devemos considerar as
eventuais dificuldades causadas pelo fato de muitas dessas pessoas serem
bloqueadas ou mesmo impedidas de acesso sistemático à educação, por
exemplo.
Enquanto Agostinho acomodava-se em sua cadeira de braços, Reinaldo pediu
a palavra para acrescentar:
- Mestre Agostinho, eu gostaria de comentar neste ponto de sua fala
introdutória, para informar que muitas outras pessoas com deficiência têm sido
224
continuamente privadas da sempre importante assistência da medicina e da
previdência social.
Luiza levantou as folhas de uma apostila que vinha lendo para chamar a
atenção de Agostinho e frizou:
- Não nos esqueçamos também, Mestre, que, somado a tudo isso, um sem
número delas podem ter vivido em ambientes familiares mal estruturados, mal
nutridas e sem condições saudáveis de vida.
- Além de viverem com um orçamento insuficiente para seu sustento, comentou
Marcus do lado oposto da sala.
Agostinho aproveitou o momento para enfatizar:
- E o mais lamentável disso tudo, é que, conforme conclusões de alguns
debates outro dia, vocês devem se lembrar bem, muitas dessas pessoas não
conseguem livrar-se sozinhas de algumas dessas situações, mesmo quando
tentam.
Caminhando na direção da cadeira de Marcus, continuou:
- E aqui eu pergunto: que caminhos seguir para descobrir os meios para
solucionar problemas como os apontados?
Marcus levantou-se para tentar esclarecer a questão colocada por Mestre
Agostinho bem em sua frente.
- Meus caros, a buscada solução dos complexos problemas dos indivíduos
postos à margem da sociedade, devido a diferenças consideradas negativas, e
sua conseqüente inclusão na sociedade aberta, leva à necessidade da
organização de verdadeiros programas que, muito embora dispendiosos e de
problemática concretização e continuidade, sempre foram as verdadeiras
demonstrações da existência de sociedades fortes, conscientes e
concretamente voltadas para o ser humano, e da objetividade de seus
propósitos.
Moisés levantou-se com o apoio de seu cajado e, balançando a cabeça de um
lado para o outro, fazendo ressaltar sua barba e seus cabelos brancos,
comentou num tom questionador:
- Meus prezados amigos de todo o sempre... Ouçam-me, por favor. Eu já fiz
minha colocação faz um tempo bem razoável neste grupo de trabalho, mas, por
obséquio, procurem convencer-me se por acaso não estou certo.
225
- Fique à vontade, por favor, Patriarca Moisés, afirmou Agostinho, sentando-se
ao lado de Heródoto.
- Obrigado, prezado Mestre Agostinho de Alfenas! Digam-me, por obséquio,
por que falar tanto e repetir tanto sobre integração à correnteza principal da
sociedade, ou em inclusão social, que é tão complexa? Não seria suficiente
para uma sociedade preocupada, falar, por exemplo, em assistência social, em
abrigo e alimentação, ou então, genericamente, em institucionalização, como
dizem hoje em dia? Talvez as próprias pessoas marcadas por um aleijão
notório tivessem muito mais tranqüilidade se pudessem ser colocadas,
separadas em organizações especiais. Isso pode ser verdade com os rotulados
débeis mentais, os leprosos, os aidéticos, os cegos, os surdos e tantos outros
que diferem muito do que pode ser considerado como normal, aceitável. Desde
meus dias perdidos no tempo, quando não eram eliminados por determinação
dos poderosos, eles foram rotineiramente postos de lado desde tempos
imemoriais e bem anteriores a Constantinopla, onde isso acontecia com
freqüência, conforme vimos quando lá estivemos.
Luiza aproveitou o depoimento incisivo de Moisés para chamar a atenção de
todos para ângulos muito mais modernos dos direitos de todos os cidadãos de
uma comunidade, independentemente de sua raça, credo, cor, origem ou
constituição física.
- Em nossa sociedade mais dos dias atuais, prezado Moisés, basta um ser
humano estar vivo para merecer todo esforço que possa ser feito para que
participe sem barreiras dos ambientes por ela criados. Eu queria enfatizar que
nós não estamos discutindo aqui os bloqueios existentes em muitas realidades
para a plena participação devido a questões de religião, de cor da pele ou de
raça, por exemplo. É claro que esses problemas de rejeição de pessoas com
essas e outras características precisam ser eliminados por facções da
sociedade que estejam alertas para sua problemática. Aqui, neste grupo de
trabalho, estamos levantando apenas os problemas que impedem a inclusão
social de pessoas com deficiências que apresentam características de tal
natureza que demandam providências especiais.
Reinaldo pediu a palavra para acrescentar:
- Meus amigos, meu nome é Reinaldo e, para os que ainda não me conhecem,
sou médico fisiatra. Especializei-me nos Estados Unidos, porque a Meca da
226
fisiatria estava localizada num Instituto pioneiro de reabilitação, sob a batuta do
Dr. Howard Rusk. Muito embora a medicina e diversas áreas profissionais que
formam as equipes de reabilitação procurem soluções para lesões
incapacitantes, é preciso ressaltar que para uma boa parcela de população, as
questões que envolvem a enfatizada inclusão social de pessoas com
deficiência poderiam resumir-se em adequada acomodação, em
financiamentos eventuais, em equipamentos especiais, em arranjos práticos,
em tratamento físico eficiente e pouca coisa mais.
Luiza levantou-se e caminhou na direção do painel branco, pegando um pincel
para ajudar na ilustração gráfica que pretendia fazer.
- Bom dia a todos. Meu nome é Luiza e tenho trabalhado por muitos anos em
organizações variadas que, por caminhos bem ou mal definidos, procuram
meios para fazer com que sua assim chamada clientela tenha sucesso em
suas tentativas de inclusão social. Minha atuação como assistente social
sempre esteve encaixada em equipes multidisciplinares. Permita-me aqui
comentar, Dr. Reinaldo, que eu gostaria de informar que acreditam muitos que
a integração social - e a inclusão sempre tão defendida - deve acontecer
naturalmente, se a pessoa voltar ao seu ambiente original, com o auxílio dos
recursos que diversas profissões colocam à disposição, e com a remoção de
alguns obstáculos físicos. No entanto, a hoje em dia desejada e desejável
inclusão do indivíduo com alguma deficiência não acontece com facilidade. Por
que? Dentre as várias razões, uma das mais evidentes é porque ela não é o
resultado de uma simples volta a situações anteriores à instalação da
deficiência ou do problema que marginaliza. Reiteradas vezes ela tem sido a
resultante de um complexo processo, cujo significado e necessidade nunca
será demais relembrar. Há pessoas que hoje vivem com uma deficiência ou
problema e que por causa disso sentem-se à margem de tudo e de todos. No
entanto, muitas delas podem ter vivido e trabalhado em sua comunidade -
antes de surgir a dificuldade - sem ter estado realmente integradas nela.
Podem ter vivido à sua própria maneira, independentemente, fazendo o que
bem entendiam, sem se importar, de fato, com o mundo ao seu redor. Desejo
ressaltar que, quando uma pessoa desse tipo torna-se marginalizada devido a
uma deficiência ou problema social sério, percebe que não era tão integrada
em sua comunidade quanto pensava ser. O contato restrito com os demais
227
(que a pessoa nota pela primeira vez quando adoece seriamente, ou quando
passa a viver com uma deficiência) acaba associando-se com a presença do
problema e não com o seu estilo de vida. Britt, Eurínome e eu estivemos
conversando por horas ontem à noite, a respeito desses aspectos da
problemática toda.
- Verdade, Luiza! afirmou Britt. E a gente chegou mesmo a concluir que,
quando são planejados programas e atividades para promover a inclusão social
dessas pessoas, é muito importante perceber que meras tentativas para fazer
com que elas voltem a uma situação social anterior, muitas vezes não são
suficientes. E permitam-me acrescentar que, outro fator muito importante a ser
lembrado, e que mais cedo ou mais tarde requererá aprofundamentos sérios
por parte de especialistas, é que aspectos variados da personalidade de uma
pessoa com deficiência podem não ser exatamente os mesmos antes e depois
da deficiência surgir em sua vida.
Mestre Agostinho levantou-se com o propósito de tirar algumas conclusões e
de caminhar para idéias de soluções que os assuntos levantados poderiam
requerer.
- Uma das observações que eu gostaria de fazer neste ponto é que a gente
percebe com clareza que um profissional deverá atuar sempre no sentido de
colaborar para que a pessoa com deficiência atinja o grau melhor possível de
sua verdadeira inclusão na sociedade a que pertence.
- Concordo plenamente, Mestre Agostinho. E isso independentemente de sua
área profissional, comentou Marcus.
- Para isso, meus caros, ele precisará estar preparado para ajudá-la a
compreender-se melhor e a entender uma nova visão de vida global, com a
existência das limitações impostas pela deficiência. Isto é especialmente
verdadeiro nos casos já citados pela Luiza de pessoas com deficiência que,
antes da instalação do problema, jamais haviam se preocupado com opções ou
com o significado de um bom desenvolvimento pessoal e social, e, de repente,
notam a importância de tomar uma séria decisão face a esses invisíveis, mas
muito concretos requisitos da vida social e familiar.
Marcus aproveitou o momento para observar:
228
- Não é de estranhar, meus bons amigos, que o processo vivido por quase
todas as pessoas marginalizadas devido a uma deficiência, jamais poderá ser
estacionário. Vocês concordam com isso?
Todos concordaram e deixaram o espaço para ele continuar:
- Esse processo move-se continuamente. Ele evolui na direção de uma
determinada aceitabilidade, ou então no sentido do isolamento cada vez maior.
E notem bem porque isto é importante: Todos os que trabalham no processo
reabilitacional, ou que mantêm contatos com pessoas com deficiência,
influenciam nesse processo, quer queiram, quer não.
Marcus voltou-se para Luiza e Reinaldo para continuar.
- E tem mais, meu caros. A inclusão social da pessoa com deficiência, para dar
certo, ser duradoura e a pessoa sentir-se realmente incluída, não acontece de
repente, ou simplesmente porque a pessoa com deficiência, de um lado, e o
grupo social, de outro, assim o desejam. Ela demanda tempo para atingir sua
plenitude e a mais completa consciência de todas as suas implicações.
- Acho que todos concordamos em todos os sentidos com essa característica,
reforçou Mestre Agostinho,que continuou:
- É preciso que haja plena noção de que, em todos os tempos e em todas as
comunidades, podemos encontrar pessoas que, por alguma razão, foram ou
são segregadas, individualmente ou em grupos. Em alguns casos, elas
mesmas têm procurado o isolamento, mas em muitos outros elas foram ou são
simplesmente excluídas da sociedade. Observa-se igualmente que algumas
resignam-se à nova situação, enquanto que outras protestam contra isso. Há
poucos anos atrás, o indivíduo com uma limitação física ou sensorial cedia à
evidência de fazer parte de um grupo marcado e marginalizado.
Fazendo um leve gesto na direção de Marcus e levantando-se com a ajuda de
sua bengala canadense, Reinaldo ponderou:
- Permitam-me, por favor, uma observação que acho ser oportuna. Durante a
surpreendente e muito veloz última Década do Segundo Milênio, a situação foi
ficando cada vez mais diferente em termos de diversas regiões do Brasil,
seguindo as tendências mundiais. Hoje, mais do que nunca, as pessoas com
deficiência organizam-se, protestam e lutam por seus direitos, com carradas de
razão. Elas demandam participação total em igualdade de condições. Elas
229
buscam ansiosamente aquilo que é intitulado de inclusão social. Eu pergunto:
São pretensões com qualquer chance de concretização ou de sucesso?
Luiza, sem mesmo levantar-se, comentou:
- Há posicionamentos radicais nesses ambientes que vão se criando. Um dos
mais notórios é aquele que se formula por uma expressão reivindicatória muito
conhecida que diz: “Nada sobre nós sem nós”...
Marcus levantou-se para poder olhar de frente aquele seleto auditório. Num
tom muito convincente afirmou:
- Embora sem discordar das pretensões expressas num moto como esse, a
sociedade silenciosamente exige a contrapartida requerida de qualquer de
seus membros. Vocês têm uma idéia dessa esperada contrapartida?
Ninguém se aventurou e ele continuou:
- A competência pessoal, social e de trabalho, incluindo independência de
atuação pessoal, comunicação compreensível, comportamento aceitável e um
papel definido, por mais simples que seja. Mas, nesse processo todo, é muito
importante que haja compreensão de ambos os lados, pois a inclusão buscada
só poderá ocorrer como resultado, no mínimo, da cooperação das duas partes.
Por essa razão é que se afirma continuamente que resolver as dificuldades
apenas em parte, ou só de um lado, não solucionará o problema. Não é só a
pessoa com deficiência que deve ser trabalhada pelas equipes especializadas,
mas também a realidade social na qual a inclusão total é pretendida, para que
todos entendamos os problemas em sua complexidade e ajudemos na busca
de soluções.
- Gostei dessa colocação, Marcus, muito embora ela me pareça um tanto
utópica, comentou Reinaldo. No entanto, observamos continuamente que,
embora muitos peçam, ou exijam a inclusão em bases equânimes, essa
inclusão, conforme pedida ou exigida, acaba sendo um sonho que eu considero
impossível.
- Verdade, Reinaldo? perguntou Luiza;
- Deixe-me explicar, prezada Luiza... Na minha opinião, a sociedade, como tal,
não tem condições de decidir pela inclusão ou não de uma pessoa. Ela poderá
fazer aquilo que naturalmente faz para todos. Ela fica aberta para oferecer as
possibilidades e pode até manter-se disponível para tanto. O trabalho todo de
chegar e se aninhar nessa mesma sociedade acaba dependendo da própria
230
pessoa que busca seu lugar para viver em seu meio, como um componente
normal, aceito sem maiores reservas.
Marcus aproveitou para complementar seu raciocínio:
- Estou sabendo, por comentários de profissionais bastante experimentados,
que muitas pessoas que podem estar marginalizadas pelos mais variados
motivos procuram escapar, sempre sem sucesso, a esse desafio, negando que
cabe a elas atingir esse objetivo, responsabilidade da qual nunca poderão
escapar. E é nessa luta toda que os recursos técnicos de diversos ramos
profissionais poderão tornar o processo integrativo menos problemático,
através de competentes serviços de reabilitação.
Luiza pediu a palavra com insistência e esclareceu:
- Conforme foi indicado anteriormente, por mais surpreendente que possa
parecer, a maioria dos setores da sociedade afasta o homem considerado fora
dos padrões de aceitabilidade. Ao mesmo tempo, e por incontáveis vezes,
dentro de uma área física idêntica, setores melhor organizados dessa mesma
sociedade procuram montar programas para sua assistência, proteção ou
integração. Dependendo do grau de desenvolvimento da área em que
situações concretas sucedem, esses pretendidos programas de atendimento
podem chegar a ser bastante diversificados, indo desde a mera assistência de
separação e de proteção, que acaba sendo estigmatizadora, até modernos e
sofisticados centros de promoção humana.
- Diga-me uma coisa, prezada Luiza, afirmou Tácito, que até então mantivera-
se calado. Que motivos poderiam ser tão fortes e tão ponderáveis para levar
uma sociedade toda, ou alguns de seus setores, a canalizar esforços, recursos
financeiros, voluntariado e programas técnicos das mais variadas naturezas
para o desenvolvimento dessas atividades? Que tipo de raciocínio poderia ser
convincente ao ponto de levar autoridades a outorgar prioridade a programas
tão complexos e de tão difícil concretização? Estaria a sociedade apenas
investindo em reabilitação devido à solidariedade para com seus membros
mais fracos? Estaria ela preocupada com a magnanimidade (ou a santidade)
que tem necessidade de demonstrar para com os "desafortunados", como foi o
caso dos bizantinos há muitos séculos?
Voltando-se para Tácito, Luiza ponderou com bastante serenidade:
231
- Todos os que trabalham em programas de promoção humana, ou
desenvolvem atividades de atendimento a grupos marginalizados (profissionais
ou voluntárias, não importa), e basicamente todos os que vivem uma situação
concreta de marginalidade, prefeririam que a sociedade se envolvesse nessas
atividades pelo reconhecimento do valor do ser humano, Mestre Tácito. No
entanto, isso nem sempre ocorre, uma vez que a sociedade dos homens
mobiliza-se apenas de acordo com as circunstâncias, os interesses de grupos
e as pressões que sobre ela são feitas. Realidades sociais mais evoluídas, no
entanto, embora reajam similarmente a situações como aquelas indicadas por
mim, têm demonstrado uma crescente preocupação, não apenas com seus
membros considerados ou chamados de excepcionais, ou anormais e
problemáticos, mas também com grupos minoritários que podem ser
prejudicados por atitudes preconceituosas.
...............................................................................................................................
Marcus levantou-se e abriu um conjunto de aproximadamente 100 folhas
encadernadas com espirais de plástico, informando:
- Motivos para qualquer sociedade do mundo moderno e progressista valorizar
o ser humano existem de sobejo. Muitos deles, já estudados e arrolados, fazem
parte quase que obrigatória das famosas Declarações Universais de Direitos.
Direitos do Homem, da Criança e da Mulher, por exemplo. Mais recentemente,
a Organização das Nações Unidas tem aprovado Declarações mais específicas
dos Direitos das Pessoas com Deficiência Mental, com Deficiências em geral,
além de uma importante Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
...............................................................................................................................
Na verdade, não há necessidade de mais Declarações de Direitos. Há, sim,
necessidade de colocar as existentes em prática, em todos os quadrantes de
qualquer nação do mundo moderno, pois elas se referem ao homem ferido, a
respeito do qual já se falou e escreveu tanto e tão bem, e pelo qual tão pouco
de objetivo e concreto tem sido feito.
Existem alguns tipos de considerações que têm sido decisivas para o
estabelecimento de programas das mais variadas naturezas, especialmente os
destinados à busca de soluções para os problemas das pessoas com
232
deficiência em diversos países do mundo e sua conseqüente - e buscada -
inclusão.
Separando folhas que já estavam destacadas em seu caderno, continuou:
Eu tenho aqui comigo e estarei repassando para os assistentes, a fim de fazer
cópias para todos, algumas indicações dos principais motivos para uma
sociedade movimentar-se a fim de oferecer serviços objetivos para tirar
pessoas com deficiência de seu estado de dependência. É uma espécie de
compilação que simplifica o raciocínio todo que tem sido desenvolvido a
respeito.
Deixem-me ler, para vocês poderem comentar agora mesmo. Três são os
motivos principais que têm movimentado sociedades para voltar-se para a
problemática de pessoas com deficiência:
...............................................................................................................................
Primeiro Motivo: O Elevado Número de Pessoas Envolvidas
Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas e de suas Agências
Especializadas, o problema é dos mais sérios, pois, "pelo menos 10% da
população de qualquer país do mundo sofrem de algum tipo de incapacidade
física ou mental, sendo das formas prevalecentes a limitação física, a doença
crônica, o retardo mental e as incapacidades sensoriais"... "Há mais de 400
milhões de pessoas com deficiência no mundo"... ("Rehabilitation of the
Disabled - The Social and Economic Implications of Investments for this
Purpose" - Nações Unidas, 1977).
A verdade crua a esse respeito é que infelizmente, a dimensão e o significado
desse problema não foram absorvidos a contento e muitas autoridades o
ignoram.
Brian O'Toole afirma categoricamente que "dados precisos, todavia, são
ilusórios; pesquisas feitas em Botswana (Sebina, em 1981) e México (R.
Hindley-Smith, em 1981) foram interrompidas por causa da futilidade percebida
de "contar cabeças" quando não existem serviços" ("Community-Based
Rehabilitation (CBR) - Problems and Possibilities", in European Journal of
Special Needs Education - Vol. 2, no. 3 pp. 177/190 (1987).
De acordo com depoimento de Norman Acton, ex-Secretário Geral da
Rehabilitation International, Órgão Consultivo do Conselho Econômico e Social
da ONU, "desconhecendo as reais dimensões da deficiência e de suas muitas
233
conseqüências, nossos planejadores, nossas instituições e nossos governos,
com poucas exceções, não têm dado atenção, prioridade ou apoio adequados
a programas nesse campo. Desinformados quanto à real natureza do
problema, nossos cidadãos tentam ignorá-lo ou evitá-lo, deixando a
responsabilidade nas mãos das profissões e das instituições especializadas.
Por vezes sem conta nossas comunidades lidam com esses problemas,
escondendo as pessoas seriamente deficientes atrás dos muros de suas
casas, ou então, nas áreas residenciais mais sofisticadas, por detrás das
cercas-vivas dos jardins de rosas. A idéia de que nossos modernos conceitos
de direitos humanos se estendam àqueles que têm deficiências físicas e
mentais é hoje mais revolucionária do que a própria doutrina de Karl Marx"
("The Global Dimensions of Disability", de N. Acton, ISRD - New York, 1978).
O volume de pessoas com deficiência já é muito significativo na forma como é
considerado pelos organismos internacionais. Se forem a ele adicionados os
grupos de pessoas que são vítimas de males de outras naturezas, ou de
desvios de conduta, e ainda mais, se forem somados os indivíduos que
recebem salários insuficientes para sobreviver com dignidade e sustentar a
própria família, os que habitam subnormalmente, os que se encontram sem
assistência médica, os que passam fome crônica, os que não têm acesso à
educação e à previdência social - e também, de um modo todo especial,
aqueles que não conseguem livrar-se dessas situações - ou seja, os
"deficientes sociais", certamente que estará sendo delineado um quadro
desalentador, mas que é muito característico de qualquer país mal
desenvolvido.
Segundo Motivo: Valor Próprio do Ser Humano
A idéia de se colocar o homem à margem da sociedade, sem que se
estabeleça ou sem que se possibilite um caminho de retorno, nunca foi nem
será aceitável. Ele tem o direito de fazer parte da correnteza principal da
sociedade, que gera e que consome bens, pelo simples fato de ser um
indivíduo dono de um valor intrínseco inalienável.
A pessoa humana pode, de fato, chegar a situações de marginalidade tal, que
só com um preparo especial passará a ter condições de ser reassimilada pela
sociedade.
234
Ninguém pode esquecer-se que uma das características principais do ser
humano é a sua perfectibilidade, ou seja, sua capacidade de melhorar sempre
e de se superar. Além disso, nenhum grupo social pode arrogar-se o direito de
impedir um dos seus membros de atingir o máximo do seu potencial latente. O
direito à realização pessoal sempre foi muito próprio do homem,
independentemente das diferenças individuais de raça, cor, credo, idade, sexo,
atividades políticas, vida profissional, integridade física, ou mesmo de
prioridades governamentais. A sociedade que assume atitudes demonstrativas
de sua posição de comiseração, de caridade piegas, de assistencialismo, por
exemplo, monta seu próprio estilo de ajuda a grupos marginalizados. Nesta
hipótese, a ajuda colocada à disposição das pessoas é muito característica,
pois apresenta quase que exclusivamente programas de natureza
assistencialista e segregativa. São os orfanatos, os asilos, os lares, as colônias
especiais, que se localizam longe dos núcleos populacionais, os internatos das
mais variadas naturezas, as casas especiais e muitos outros dos chamados
recursos da comunidade - e destes existem muitos exemplos.
No entanto, na medida em que a sociedade conscientiza-se e raciocina com
objetividade quanto ao valor do indivíduo que precisa de ajuda e colaboração,
ela tende a aparelhar-se para atendê-lo com propriedade. Passa a demonstrar
essa preocupação pela criação de recursos e pelo desenvolvimento de
programas de muito maior valor e destinados muito mais à promoção humana,
à libertação do homem da dependência odiosa e à sua integração ao grupo
social - e destes existem poucos exemplos.
Embora não haja contestadores quanto ao valor do ser humano, é importante
que seja feita uma breve análise crítica, a fim de que a sociedade passe de
uma cômoda posição teórica, muitas vezes bem verbalizada e racionalizada,
para uma atuação mais concreta, com o estabelecimento de programas
objetivos de valorização do homem.
Terceiro Motivo: Valor Econômico da Mão-de-Obra Não Utilizada
Em qualquer realidade existe elevado percentual dela integrante considerado
como naturalmente não-produtivo, ou seja, as crianças e os idosos. Esse
volume é aumentado por pessoas enfermas, por pessoas aposentadas
235
precocemente e por contingentes populacionais marginalizados da força
produtiva por variados motivos ou pretextos.
As pessoas com deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais
encontram-se nessa situação, com a agravante de não só deixarem de
produzir, como também de, apesar de eventualmente terem potencial para o
trabalho, viverem como um verdadeiro ônus para a sociedade.
No entanto, segundo posicionamento expresso pelo médico traumatologista
espanhol, Dr. Ballester Hoys, "nenhum país pode considerar-se hoje
suficientemente rico para desprezar a mão-de-obra da pessoa com deficiência"
(Ballester Hoys, A. - "El Trabajo Protegido y la Rehabilitación de Inválidos -
Consideraciones Provisionales" - Revista Iberoamericana de Seguridad Social -
4 (4), 1966).
...............................................................................................................................
Reinaldo, percebendo que Marcus terminara sua leitura, levantou-se para
comentar:
- Em termos de Brasil, meus prezados, essa mão-de-obra em potencial chega
a muitos milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, já em idade adulta,
cujo objetivo principal de vida pode ser trabalhar e sair da insustentável
situação de dependência e de contínua frustração.
Luiza apoiou o posicionamento de Reinaldo e completou:
- Sabe-se perfeitamente bem que o desemprego, o subemprego, que sempre
foi e sempre será desumanamente remunerado e muitas atividades pouco
rentáveis são fantasmas que rondam significativa parcela da população mal
preparada. No entanto, quando o emprego mal remunerado, o subemprego ou
mesmo o desemprego ocorrem, pura e simplesmente devido à existência de
uma deficiência ou incapacidade de natureza física ou sensorial, ou de
limitações orgânicas e mentais, eles passam a se tornar muito mais injustos e
inaceitáveis, por melhores explicações que possam ser encontradas para sua
existência.
Agostinho aproveitou o assunto para comentar:
- Diante de toda essa situação, não é de estranhar que uma das principais
tônicas de programas de bem-estar social para populações carentes e/ou
marginalizadas, deve ser a preocupação com o trabalho, ao qual elas têm
direito. Os governantes, os políticos profissionais e os empresários têm um
236
papel relevante nessa grande batalha pela assimilação de mão-de-obra
potencialmente produtiva, estando nela engajados não apenas os muitos
setores governamentais, mas também o comércio, a indústria, a agricultura e o
mundo dos serviços.
...............................................................................................................................
Existem especialistas no assunto que se opõem à utilização da mão-de-obra
das pessoas com deficiência, em detrimento daquelas pessoas não-deficientes
desempregadas, como se as pessoas com deficiência fossem cidadãos de
categoria mais baixa, uma espécie de segunda classe de gente, com direito à
sobrevivência apenas após a garantia de vida das pessoas consideradas
normais.
Esses argumentos são, de fato, excessivamente pequenos para poderem ser
levados em consideração com seriedade. Talvez a colocação do argumento no
sentido inverso pudesse ser menos injusta: primeiramente o aproveitamento da
mão-de-obra das pessoas com deficiência...
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Joshua levantou-se tão logo notou que as discussões demandavam uma
espécie de fecho. Resumiu suas idéias com estas palavras:
- Essas, de fato, são as três pilastras fundamentais para estimular o
desenvolvimento de programas destinados a minorar toda essa gama de
dificuldades, por meio da inclusão das pessoas marginalizadas na sociedade.
Já que a intenção é garantir efetivamente os direitos e incluir socialmente o
homem marginalizado e prejudicado por certos tipos de deficiência, evitando
sua marginalização, surge a obrigação de saber como essa mesma inclusão
poderá ser conseguida, para que ele possa sentir-se parte de seus ambientes,
vivendo uma inclusão verdadeira.
Parando um pouco sua exposição, tomou um copo de água e prosseguiu:
- Assim, se as estimativas das organizações internacionais estiverem corretas -
e por que não estariam? - é preciso analisar com muito cuidado, como está a
nossa sociedade organizada para prover assistência específica a esses grupos
especiais, que se vêem prejudicados em todos os seus direitos, especialmente
no direito de participar pelo trabalho. Diversos pontos de partida, para a
organização de programas tendentes a resolver os problemas que levam as
pessoas com deficiência à marginalidade social (como, por exemplo, o
237
estabelecimento de prioridades governamentais nesse campo, o financiamento
do atendimento especializado, a garantia da formação de pessoal para uma
atuação especializada, a organização de esquemas que levem à formação
profissional de pessoas com deficiência, a revisão de determinados dispositivos
das leis brasileiras sobre o trabalho), poderiam ser arrolados.
No entanto, o desafio maior estará sempre na verdadeira interiorização
individual e na aplicação de tudo aquilo que pode ser chamado de credo no
homem.
Fatores Determinantes da Aceitabilidade Conforme verificamos anteriormente, ao analisarem os fatores que levam
segmentos de uma determinada sociedade a colocar à margem de sua
correnteza mais significativa indivíduos que são diferentes do usual (devido a
questões de cor, raça, normalidade física ou mental e outros), ficam os
estudiosos surpresos com a disparidade aparente de critérios que são por
vezes adotados nessa mesma sociedade, face a esses mesmos tipos de
pessoas.
Vejamos um pequeno exemplo: Em algumas comunidades pode haver uma
tendência de marginalizar a pessoa negra. No entanto, nessas mesmas
comunidades poderão ser encontradas pessoas de cor, muito bem
posicionadas, e que encontram poucas barreiras de monta para sua atuação
pessoal e profissional. O mesmo sucede com pessoas de raça ou credo muito
diferentes, com pessoas egressas do sistema penitenciário e também com
pessoas com deficiência. Muitas são, de fato, discriminadas, mas há aquelas
que estão bem empregadas, bem relacionadas, bem integradas e bem
satisfeitas com sua própria vida.
O que sucede? Que tipo de raciocínio ocorre para alguém eliminar uma pessoa
de sua vida e de seu meio, por apresentar um tipo qualquer de anomalia, ou
apenas por ser diferente? Que condições podem ser consideradas exigíveis,
para que um indivíduo seja integrável numa sociedade que, via de regra, tem
contra ele alguns preconceitos?
Posições discriminatórias existem contra quase todos os tipos de diferenças do
padrão existente, muito embora essas atitudes apresentem tonalidades de
ênfase variada. Segundo Telford e Sawrey, "a maioria das pessoas não tem
238
contra os deficientes a mesma espécie de preconceitos que alimenta contra
certos grupos religiosos, raciais ou desfavorecidos" ("O Indivíduo Excepcional",
de Telford e Sawrey).
É muito importante, para quem atua em programas voltados para a inclusão
social de pessoas com deficiência, tentar compreender quais os fatores que
determinam ser o indivíduo bem ou mal assimilável, pouco ou muito aceitável.
Para que isso aconteça, é preciso conhecer, antes de mais nada, quais as
características básicas da chamada "normalidade", em seu sentido sociológico,
com os desvios de aceitabilidade para mais ou para menos, que certamente
existem em todos os grupos humanos.
Há variáveis múltiplas a serem consideradas no tecido social de qualquer
comunidade, mas um dos ângulos de estudo desses problemas certamente
levará a uma análise da questão da competência ou da incompetência das
pessoas, como fator determinante de seu alijamento de determinados
ambientes, incluindo daqueles relacionados a trabalho. Ouve-se com
freqüência observações a respeito de pessoas muito dinâmicas e em geral
competentes que, ao desenvolver sem sucesso certas funções, são taxadas de
incompetentes: estão fora (ou acima) de seu nível de competência, dizem os
comentários.
Diferenças Marginalizantes Em estudos deste assunto, nos ambientes que atendem pessoas com
deficiência, verifica-se que, muito próximas à questão da competência mais
global, estão questões relacionadas a conceitos pré-existentes (preconceitos),
de um modo especial, e ao assim chamado desiderato de aceitabilidade social
das pessoas, basicamente devido às diferenças de um invisível padrão, tido
como normal.
Como não existe um indivíduo sequer idêntico a outro (ser diferente é bem
próprio do ser humano), é evidente que existem as alegadas diferenças. Mas
há também algo mais, que não pode deixar de ser lembrado: para cada ser
humano que faz parte da sociedade, há limites para essas diferenças,
considerado determinado padrão médio de pretensa normalidade.
Para quase todos os efeitos, ser muito diferente significa praticamente ser
deixado de lado, o que em linguagem de relações interpessoais, poderá ser
239
traduzido por "rejeição" ..."Muitos escritores têm atribuído a rejeição de uma
pessoa deficiente ao fato dela ser diferente", afirma a Dra. Beatrice Wright, em
sua obra "Physical Disability - A Psychological Approach".
Existem certas diferenças de padrões usuais de aceitabilidade intelectual,
física, comportamental, que podem ser facilmente assimiladas, no todo ou em
parte, sem dificuldades muito sérias, dependendo muito da intensidade e da
duração dos contatos inter-pessoais.
Há outras, no entanto, que não são assimiláveis, a menos que haja um
disfarce, uma compensação, um preparo do próprio indivíduo e dos seus
ambientes normais de atuação, através de processos educativos especiais,
que poderão ou não manter-se enfeixados naquilo que é universalmente
conhecido como reabilitação integral.
Em suma, não há dúvida de que existem diferenças para melhor e para pior
nos seres humanos. E muitas vezes as chamadas excepcionalidades físicas,
sensoriais, orgânicas e mentais levam as pessoas a adotar reações
preconceituosas.
Para poder reconhecer, dimensionar e avaliar concretamente os problemas
enfrentados por esse estigmatizado segmento da sociedade, deve-se mensurar
o seu universo. Para tanto, com o objetivo de ordenar um pouco o tema,
poderá ser importante encontrar uma forma de classificar as diferenças dos
padrões de normalidade que têm sido idealizados e considerados usuais pela
sociedade. Será possível, dessa maneira, ter uma idéia mais clara da
verdadeira extensão dos problemas daqueles que são muitas vezes
conhecidos como deficientes, incapacitados, aleijados ou excepcionais - e que
passarão a ser chamados, nestas considerações, pessoas com deficiência -
e do seu desafio para os programas que pretendem ter como meta a sua
integração plena na sociedade.
Desvios dos Padrões de Normalidade A Organização Mundial da Saúde foi a primeira entidade de renome
internacional que se movimentou na direção de um adequado reconhecimento
do universo das pessoas com deficiência. E já no alvorecer da Década de 80
ela publicou o famoso trabalho "The International Classification of Impairments,
Disabilities and Handicaps - A Manual of Classification Relating to the
240
Consequences of Disease". É nesse trabalho de referência internacional que
encontraremos um pormenorizado estudo científico quanto a impedimentos,
deficiências e incapacidades.
Para a Organização, impedimentos podem ser intelectuais, psicológicos, de
linguagem, do órgão da audição, do órgão da visão, orgânicos, músculo-
esqueléticos, desfiguradores e impedimentos generalizados e de sensibilidade.
Nessa publicação oficial da Organização, as deficiências são relacionadas por
agrupamentos dentro de quatro categorias fundamentais: deficiências de
conduta, de comunicação, de destreza e de situação.
As incapacidades, por sua vez, são classificadas como incapacidades de
independência física, de mobilidade, ocupacional, de integração social e de
auto-suficiência econômica.
Um outro tipo de classificação é aquele que analisa o problema sob o ângulo
do desvio básico dos padrões de normalidade, classificação essa adotada por
Telford e Sawrey, ou seja:
a) Desvio intelectual
Existem estudos muito interessantes a respeito de problemas intelectuais que
levam a desvios, tanto para o lado positivo quanto para o negativo, partindo
sempre de um ponto médio.
A preocupação básica da sociedade tem-se centralizado nos desvios para
menos, ou seja, nos casos de deficiências mentais de vários graus, incluindo
os educáveis, os treináveis e todos aqueles que não conseguem ser
absorvidos pela sociedade, devido a um rebaixamento intelectual.
b) Desvio motor
Agrupados sob este tipo de desvio de normalidade são encontrados os casos
de amputações, as malformações motoras congênitas ou adquiridas, os
problemas ortopédicos de gravidade e provocadores de seqüelas
incapacitantes, os males neurológicos com os mesmos tipos de
conseqüências, dentre os muitos que poderiam ser aqui inseridos. Na verdade,
são os problemas que mais chamam a atenção, quando se fala em
reabilitação, ou quando se menciona o problema das deficiências, de um modo
genérico.
241
c) Desvio sensorial
Sendo normal o uso de todos os sentidos, o ser humano que se vê privado de
um só deles pode facilmente ser vítima de séria marginalização, se não souber
como superar o problema vivido. Assim é que, dentre os casos mais notórios,
existem os cegos ou deficientes visuais, os surdos e casos afins, conhecidos
como deficientes auditivos, com diminuição ou gradativa perda do sentido da
audição. A perda ou redução de outros sentidos, como o olfato, o paladar ou o
tato, não é comum nem causadora de sérias dificuldades sociais, apesar de
poderem ser arroladas as muitas exceções que acabarão por confirmar a regra.
d) Desvio funcional
Certas funções do organismo, quando prejudicadas por um defeito, por uma
doença ou por um acidente, poderão trazer sérios problemas para o indivíduo.
Assim, existem os casos dos afásicos ou daqueles que têm dificuldades de
comunicação, que é o tipo mais facilmente encontradiço neste grupo.
e) Desvio orgânico
Dentre os desvios orgânicos que mais trazem problemas ao homem, estão
aqueles ocasionados por vários tipos de cardiopatias sérias e por males da
respiração, incluindo-se nos mesmos os casos de tuberculose, dentre muitos
outros.
f) Desvio de personalidade
Este tipo de dificuldade está diretamente ligado a problemas emocionais ou
distúrbios mais graves, como as neuroses ou as psicoses. Vários males
relacionados à saúde mental podem também levar as pessoas a situações de
marginalização.
g) Desvio social
Os delinqüentes juvenis, os criminosos adultos, certos tipos de contestadores,
os viciados em drogas, os alcoólatras, os fármaco-dependentes são alguns dos
tipos que ilustram o chamado desvio social. Muitos deles não têm
242
absolutamente nada em comum e os programas montados para sua
assistência são muitas vezes totalmente separados ou alheios uns aos outros.
h) Desvio etário
Os problemas ocasionados pela velhice são muito próprios e característicos.
Apesar de em outros tipos de situações ocorrerem eventualmente certas
superposições sempre agravantes, na velhice é que sempre está presente a
maior incidência dessas superposições, que torna a assistência a idosos muito
difícil. São os casos de velhos cardiopatas, cegos, surdos e outros tipos
segundo estudo pormenorizado de Telford e Sawrey, em sua obra "O Indivíduo
Excepcional", editado pela Zahar.
Outras Condições Marginalizantes Cada um desses problemas mencionados, seja pelo ângulo da Organização
Mundial da Saúde, seja pelo enfoque de Telford e Sawrey, separadamente
poderá levar uma pessoa menos preparada ou menos protegida a certo grau
de marginalização, ou pelo menos a uma série de dificuldades para garantir
uma completa integração ao seu grupo.
Nos casos de desvio motor, sensorial, orgânico, intelectual, de personalidade e
de idade avançada, no entanto, além de ocorrer uma eventual superposição de
dificuldades, pode existir também com muita freqüência nas pessoas a adoção
de hábitos, de atitudes e de comportamentos inaceitáveis ou inadequados,
provocando situações muito mais sérias de reprovação do que o próprio desvio
em si mesmo.
As dificuldades, no entanto, não se limitam a essas questões ou a esses
ângulos, pois aos problemas ocasionados pela existência de uma deficiência
qualquer, ou pela ocorrência de referências rotuladoras, eventualmente deve-
se também adicionar uma série de situações causadas por outros fatores
pessoais ou sociais.
Males provocados pelo analfabetismo, pelas crendices e superstições, pela
ignorância generalizada, pela inabilidade de resolver problemas e pela miséria
material, por exemplo, retratam alguns fatores pessoais de maior significado.
Dos fatores sociais mais significativos, causadores eventuais de muitas
dificuldades na integração das pessoas, cumpre que sejam destacados o
243
crescimento vertiginoso e desordenado das grandes cidades, a falta ou a
inoperância dos recursos humanos ou dos equipamentos sociais da
comunidade, o evidente descompasso existente entre a educação e o
desenvolvimento tecnológico, além dos preconceitos e das atitudes
discriminatórias difíceis de citar.
Competência ou Incompetência das Pessoas Sempre que os problemas das pessoas com deficiência e as dificuldades
concretas que podem ter para se integrar na sociedade são considerados,
surge um bloqueio invisível, sério, mas um tanto exagerado, já mencionado
acima, do qual uma boa porcentagem de profissionais que labutam em
programas reabilitacionais raramente se deu conta. Trata-se do que poderá ser
reconhecido como incompetência pessoal, familiar, social e profissional, não só
das pessoas com deficiência, mas também de todos os que desejam manter
seu lugar na sociedade a que pertencem.
Todos os profissionais que trabalham com pessoas com deficiência, ou seus
familiares mais atentos, podem entender a relevância da questão, pois sabem
muito bem que, em muitos casos, o cerne da questão não está tanto na
deficiência em si, mas na maneira diferente e inadequada do indivíduo viver e
conviver, ou seja, na sua relativa falta de competência como pessoa e como
ser social.
A culpabilidade pessoal nem sempre está presente nos casos de falta de
competência pessoal. No entanto, ela poderá estar intimamente ligada a uma
série de fatores que são próprios de cada ser humano e de cada ambiente de
onde ele provém.
A título de exemplo, uma pessoa pode ser muito competente trabalhando como
caixa de banco numa cidade de minúsculas proporções, onde muitos se
conhecem, e um grande fracasso na mesma função, numa realidade mais
competitiva, de movimentação mais dinâmica.
Ao analisar o assunto sob o ângulo das pessoas com deficiência, verifica-se
que, muito próximas à questão da competência pessoal ou mais global, estão
também questões relacionadas às conseqüências de atitudes muito antigas
que resultaram em preconceitos de um modo geral, e a ângulos especiais
vinculados à aceitabilidade social das pessoas. É muito importante que as
244
pessoas com deficiência, ao ingressar num processo reabilitatório de natureza
integral, tenham uma percepção clara, não só de seu potencial e de suas
limitações, mas também desses ângulos delicados de toda a questão, para
assumirem seu papel de verdadeiras gestoras do mesmo, com possibilidades
de sucesso.
Conforme afirmava o GLARP, em sua tentativa de reconceituação de
reabilitação profissional, "El papel de la persona con limitaciones frente a su
proceso de rehabilitación profesional consiste en adquirir conciencia de su
limitación, de su potencial y de las posibilidades que su medio le ofrece; decidir
por sí misma sobre la conducción y construcción de su propio proceso y sobre
la utilización de los apoyos que requiera para compensar las desventajas que
puede tener para su integración socio-laboral".
A decisão pessoal de assumir esse papel é a chave do sucesso, pois, como foi
anteriormente visto e enfatizado, existem desvios do padrão considerado como
o normal na aparência, na inteligência, na higidez e na atuação das pessoas,
que podem ser assimilados sem dificuldades muito sérias, no todo ou em parte.
No entanto, há também os que não são assimiláveis com facilidade, neles
incluindo hábitos e atitudes muito diferentes do usual.
Esses ângulos de análise são de extrema relevância se considerarmos que, de
fato, as pessoas com deficiência devem ser os protagonistas principais de seu
processo de reabilitação integral.
Exemplos Históricos de Competência Pode parecer surpreendente a alguns, mas praticamente todos os desvios e
males limitadores sempre existiram na História da Humanidade. E é muito fácil
imaginar que houve longos períodos dessa mesma História, durante os quais
apenas os mais afortunados tiveram suas oportunidades de sucesso
otimizadas.
A falta de recursos adequados devido ao estágio de desenvolvimento mais
precário, a inexistência de recursos humanos para fins outros que não a
autodefesa ou a auto-sustentação do grupo familiar ou social, a superstição e a
falta de conhecimento científico confiável, a discriminação existente contra tudo
o que se apresentava como diferente ou misterioso, o total desconforto na
existência da doença, da dor, da alienação, da limitação, da imobilidade e da
245
deterioração orgânica devem ter tornado a vida dos homens com deficiência
um drama inimaginável e solitário, durante milênios.
No entanto, nos muitos séculos da grande epopéia humana, existem
informações dignas de nota, algumas das quais vale a pena relembrar, e que
mostram muito claramente que, em casos incontáveis, a competência pessoal
ajudou a levar determinadas pessoas a um nível de sucesso muito marcante.
Dentre elas lembremos, no mínimo, as seguintes:
MOISÉS – Tornou-se líder absoluto dos Hebreus na imorredoura retirada das
terras do Egito e na busca da Terra Prometida, apesar de ter tido um sério
problema de comunicação verbal. Era gago. No livro Êxodo, de sua autoria,
Moisés conta-nos, com muita clareza de detalhes, as dúvidas, as dificuldades e
mesmo as estratégias para superar a deficiência marcante, face ao papel que
assumira.
HOMERO – Foi o maior poeta épico grego, autor de Ilíada e Odisséia. Esses
poemas jamais deixarão de fazer parte das obras mais significativas criadas
pelo ser humano, apesar de Homero ter sido cego.
ÁPIO CLÁUDIO – Detentor de um dos mais importantes cargos do mundo
Romano – foi Censor – Ápio Cláudio viveu no século IV A.C. e foi realizador
como poucos, atuando com extrema honestidade. Uma de suas obras mais
notórias foi um aqueduto subterrâneo de mais de 15 quilómetros de extensão
para levar água potável a variados distritos de Roma. Sua obra mais famosa,
todavia, foi a Via Áppia, que ligava Roma ao sul da Itália. Ápio Cláudio foi cego.
GALBA – Imperador romano do século I D.C., foi levado ao cargo máximo do
Império Romano com 66 anos de idade, após brilhante carreira militar. Seu
problema físico era muito forte, pois, além de não conseguir segurar com as
mãos de uma missiva, não podia nem mesmo atar os cordões de couro de
suas sandálias de general.
SEPTÍMIO SEVERO – Foi imperador romano de 193 a 211 D.C. Ao final de
sua vida, viu suas pernas perderem completamente sua força devido a um mal
246
reconhecido naqueles anos como Gota. Impossibilitado de andar, era
carregado de um lado para o outro em uma liteira. Ao prender conspiradores
que queriam afastá-lo do cargo por não poder mais andar, disse com muita
firmeza: “Agora vocês aprenderam que não se governa um Império com as
pernas”.
TIRTEU – Poeta lírico ateniense que viveu no século VII A.C. Tinha problemas
muito sérios com as pernas e por esse motivo dedicou-se ao magistério... Por
causa de sua arte na poesia e no canto foi indicado comandante dos exércitos
espartanos, por ironia dos atenienses devido a um oráculo de Delphos.
Através de cânticos militares conseguiu valorizar a missão dos soldados e foi
muito importante para que os exércitos espartanos vencessem a Segunda
Guerra Messênica.
CONSTANTINO IX – Monômaco – Foi imperador bizantino. Viveu entre 980 e
1054. Foi considerado pelos seus contemporâneos um dos homens mais
bonitos de seus dias. Mas devido a um mal misterioso para a medicina de
então, em pouco tempo ficou quase que completamente paralisado. Viveu
também, a partir desses dias, com muitas dores. Adaptou-se à situação, criou
meios para não deixar de lado a indispensável dignidade e deu exemplos de
muita fibra pessoal no exercício de seu importante cargo.
JOHN MILTON – Um dos maiores e mais conceituados poetas ingleses, viveu
entre 1608 e 1674. Ficou cego quando estava com 45 anos de idade, em
plena carreira política.A cegueira parece não ter diminuído sua vontade de
viver uma vida útil. Foi designado Secretário para Línguas Estrangeiras durante
o Governo de Cromwell. Produziu muitas obras literárias marcantes, como o
grande poema Paraíso Perdido.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – Gênio incontestável da música erudita, aos 27
anos começou a sentir problemas em seus ouvidos. Embora a surdez gradativa
tenha influenciado seu estilo (só aos 52 anos de idade ficou totalmente surdo)
sua obra demonstra fortemente sua imensa competência como um dos
maiores compositores que ao mundo já conheceu.
247
HELEN KELLER – Embora cega, surda e muda, Helen Keller foi um verdadeiro
marco demonstrativo do potencial do ser humano atingido ao mesmo tempo
por males quase que insuperáveis. Em 1904 graduou-se no Colégio Radcliffe
com louvor. Dedicou toda a sua vida à causa das pessoas cegas, surdas e
mudas e transformou-se numa líder de valor imenso.
Todos esses seres humanos incríveis – e muitos outros aqui não citados, sem
a menor sombra de dúvidas foram muito competentes naquilo que se
propuseram fazer em suas vidas, apesar da dificuldade na obtenção de
recursos, de não contarem com a medicina mais avançada ou de inexistir
qualquer idéia que se aproximasse da educação especial ou da reabilitação.
248
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