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ORAÇÕES MARCO TÚLIO CÍCERO ORAÇÕES CATILINÁRIAS AO POVO ROMANO ORAÇÕES FILÍPICAS 1ª Edição

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Compilação das orações de Cícero, contendo:Fílipicas, Ao povo Romano

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  • ORAES MARCO TLIO CCERO

    ORAES CATILINRIAS

    AO POVO ROMANO

    ORAES FILPICAS

    1 Edio

  • Oraes Catilinrias

    Marco Tlio Ccero

  • Primeira Catilinria

    Esta orao, pronunciada no dia 8 de novembro do ano 63 c C, talvez a mais conhecida entre as oraes de Ccero. Ccero investe violentamente contra Catilina, que teve a ousadia de apresentar-se no Senado, embora todos saibam que um exrcito de revolucionrios o espera na Etrria, chefiado por Mnlio. Catilina mereceria a morte; porm Ccero no pede ao Senado que o processe. Roma pode ter a certeza que ele, Ccero, com a sua solrcia, garantir a liberdade do povo romano. Catilina, porm, deixe a cidade. Roma no quer mais saber dele, pois as suas culpas e torpezas so bem conhecidas. Deixe a cidade e, se quer, se junte aos seus companheiros, bem dignos dele, que o esperam para marchar contra Roma. Ccero no o teme, pois, com a ajuda de Jpiter Stator, o exterminar e, com ele a todos os inimigos da Repblica.

    1. At quando, Catilina, abusars de nossa pacincia? quanto zombar de

    ns ainda esse teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolncia?

    possvel que nenhum abalo te faam nem as sentinelas noturnas do Palatino,

    nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos

    os bens, nem este segurssimo lugar do Senado, nem a presena e semblante

    dos que aqui esto? No pressentes manifestos teus conselhos? no vs a todos

    inteirados da tua j reprimida conjurao? Julgas que algum de ns ignora o que

    obraste na noite prxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste,

    que resoluo tomaste?

    Oh tempos! oh costumes! Percebe estas coisas o Senado, o cnsul as v,

    e ainda assim vive semelhante homem! Que digo, vive? antes vem ao Senado,

    participante do conselho pblico, assinala e designa com os olhos, para a morte,

    a cada um de ns. E ns, homens de valor, nos parece ter satisfeito Repblica,

    evitando as suas armas e a sua insolncia. Muito tempo h, Catilina, que tu

    devias ser morto por ordem de cnsul, e cair sobre ti a runa que h tanto

    maquinas contra todos ns.

    Porventura o insigne P. Cipio, Pontfice Mximo, no matou a Tibrio

    Graco, por deteriorar um pouco o estado da Repblica? e ns devemos sofrer

    a Catilina, que com mortes e incndios quer assolar o mundo? Passo em silncio

  • aqueles antiqussimos exemplos, de quando C. Servlio Ahala matou com sua

    prpria mo a Sprio Melo, que procurava introduzir novidade. Houve

    antigamente na Repblica esta fortaleza de reprimirem homens de valor com

    os mais severos castigos seja ao cidado pernicioso que ao cruelssimo inimigo.

    Temos contra ti, Catilina, decreto do Senado veemente e severo; no falta

    conselho Repblica; ns, abertamente o digo, ns somos os que faltamos.

    2. Decretou antigamente o Senado que Lcio Opmio atendesse a que a

    Repblica no recebesse algum detrimento; no se meteu uma s noite em meio

    que no fossem mortos C. Graco, de pai av e antepassados nobilssimos, e M.

    Flvio, consular, com seus filhos. Com semelhante decreto do Senado se

    entregou a Repblica aos cnsules Caio Mrio e Lcio Valrio; porventura

    tardou a Repblica um s dia com a morte e suplcio a Lcio Saturnino, tribuno

    do povo, e a Caio Servlio, pretor? Mas ns h j vinte dias que consentimos se

    embotem os fios desta autoridade; temos o mesmo decreto do Senado, metido

    nas tbuas, como espada na bainha; segundo esta deliberao do Senado,

    Catilina, devias logo ser morto. Mas vives, e vives no para ceder, mas para te

    confirmar no teu atrevimento. Desejo, Padres Conscritos, ser clemente para

    convosco; desejo no ser cobarde em tamanhos perigos da Repblica, mas a

    mim mesmo me condeno de inerte e culpado.

    H tropas na Itlia contra a Repblica, assentadas na garganta da Etrria;

    cresce cada dia o nmero dos inimigos, mas o seu capataz e general o estamos

    vendo dentro de nossos muros, maquinando sempre a runa da Repblica. Se

    agora te mandasse prender, se te mandasse matar, mais receio que todos os

    bons dissessem que o fizera tarde, de que algum que obrara cruelmente. Mas

    por certa causa no estou ainda resoluto a executar o que h muito devia ter

    feito. Matar-te-ei finalmente ento, quando ningum houver to malvado, to

    perdido, to teu semelhante, que no confesse que isto se obrou com razo.

  • Enquanto houver quem se atreva a defender-te, vivers, e vivers como

    agora vives, cercado de muitas minhas fortes guardas, para que no te possa

    levantar contra a Repblica; tambm os olhos e ouvidos de muitos, sem tu o

    sentires, te espreitaro, e guardaro como at agora o fizeram.

    3. Portanto, Catilina, que podes mais esperar, se nem a noite com as suas

    trevas pode encobrir teus inques congressos, nem a casa mais retirada conter

    com suas paredes a voz da tua conjurao? Se tudo se faz manifesto, se tudo sai

    a pblico? Cr-me o que te digo: muda de projeto, esquece-te de mortandades

    e incndios; por qualquer parte te haveremos s mos. Todos teus desgnios so

    para ns mais claros que a luz, o que bem reconheas comigo. No te lembras

    do que eu disse no Senado em 21 de Outubro, que Mnlio, ministro e scio das

    tuas maldades, havia de estar armado em certo dia, o qual dia havia de ser o 26

    de Outubro? Escapou-me, pois, Catilina, no s uma coisa to horrvel, mas

    nem ainda o dia? Eu mesmo disse que tu deputaras o dia 28 de Outubro para

    mortandade dos nobres; e ento foi quando muitas das pessoas principais da

    cidade fugiram de Roma, no tanto por se salvarem, como por atalharem teus

    intentos. Poders porventura negar-me que naquele prprio dia, por estares

    rodeado de minhas guardas e das minhas diligncias, te no pudeste mover

    contra a Repblica, quando, retirando-se os mais disseste que te contentavas

    com a minha morte? E quando esperavas tomar a Preneste por assalto de noite

    ao primeiro de Novembro, no achaste aquela colnia municionada por minha

    ordem, e com meus presdios, guardar e sentinelas? Nada obras, nada maquinas,

    nada cogitas que eu no s no oua, mas veja e penetre claramente.

    4. Recorda-te enfim comigo desta ltima noite, e conhecers que com

    maior cuidado velo eu para o bem da Repblica do que tu para a sua destruio.

    Digo, pois, que foste na primeira noite pelos Falcrios para casa de Marco Leca

    (hei-te falar claro) onde concorreram muitos scios da mesma loucura e

  • perversidade; atrever-te-s porventura a neg-lo? porque te calas? se o negares

    convencer-te-ei; pois aqui estou vendo no Senado alguns que estiveram contigo.

    Deuses imortais! onde estamos? que Repblica temos? em que cidade vivemos?

    Aqui, aqui, Padres Conscritos, entre ns, neste gravssimo e santssimo

    Conselho do Mundo, esto os que meditam a minha runa, a de todos ns, a

    desta cidade e do universo. Eu cnsul, os estou vendo, e lhes peo parecer; e a

    quem com ferro devia acabar, nem sequer molesto com a voz. Estiveste pois,

    Catilina, naquela noite em casa de Leca; repartiste as regies da Itlia,

    determinaste para onde querias que cada um fosse, elegeste os que deixaria em

    Roma e os que levarias contigo; designaste os bairros da cidade para os

    incndios, afirmaste que brevemente sairias de Roma, disseste que ainda

    demorarias um pouco, por estar eu ainda em vida; achaste dois cavaleiros

    romanos que te livraram deste cuidado, e te prometeram que pouco antes de

    amanhecer me matariam em meu mesmo leito. Tudo isto soube eu, apenas

    acabado o vosso congresso; fortifiquei e municionei minha casa com maiores

    guardas; no recebi os que pela manh mandaste a saudar-me, vindo os

    mesmos, que eu tinha predito a pessoas de muito crdito que haviam de vir

    buscar-me naquele tempo.

    5. Sendo tudo isto assim, Catilina, prossegue o que principiaste, vai-te

    enfim da cidade, abertas esto as portas, anda; h muito tempo te desejam por

    general aqueles teus acampamentos de Mnlio; leva contigo todos os teus, ou

    ao menos muitos deles, limpa esta cidade; j no podemos viver mais contigo,

    nem eu o posso sofrer, tolerar, consentir. Infinitas graas devo dar aos deuses

    imortais, e a esse mesmo Jpiter Stator, antiqussimo protector desta cidade, de

    ter tantas vezes escapado a esta to horrvel torpe e prejudicial peste da

    Repblica. No convm que por causa de um homem perigue muitas vezes a

    Repblica. Enquanto me armaste traies, Catilina, sendo eu cnsul designado,

    no me defendi com guardas pblicas, mas com diligncias particulares; quando

    nos prximos comcios consulares me quiseste matar, reprimi teus perversos

  • intentos com o socorro dos amigos e soldados, sem tumulto algum; enfim todas

    as vezes que me acometeste, pessoalmente te resisti, posto que visse andar a

    minha runa emparelhada com grande calamidade da Repblica; agora j

    acometeste abertamente toda a Repblica, os tempos dos deuses eternos, as

    casas de Roma, as vidas dos cidados, e em uma palavra, tocas a arruinar e

    destruir toda a [tlia. Mas como no me resolvo ainda a pr em obra o principal

    e prprio deste Imprio, executarei o que de menor severidade e para o bem

    pblico mais proveitoso, pois se te mandar matar, ficar na Repblica o demais

    esquadro de conjurados. Se sares (como te persuado h muito), ficar a

    Repblica limpa desta enorme sentina de teus scios. E duvida porventura,

    Catilina, mandando eu fazer o que j executavas de tua livre vontade? Manda o

    cnsul sair da cidade o inimigo. Perguntas-me se porventura para o desterro?

    no te mando; mas se me consultas, aconselho-te.

    6. Que coisa h ainda nesta cidade que te possa dar gosto, pois ningum

    h que no te tema? fora desta conjurao de gente estragada, ningum h que

    no te aborrea. Que ndoa de torpeza domstica se no tem lanado na tua

    vida? que infmia em matrias particulares se no tem amontoado sobre aqueles

    labus? que lascvia de olhos, que atrocidade de mos, que perversidade deixou

    jamais de haver em todo teu corpo? que mancebo houve, a quem no

    enredasses com atrativos viciosos, e a quem no conduzisses ou para insolncias

    com armas, ou para dissolues com incentivos? E que o que h pouco

    obraste, quando com a morte da tua primeira mulher despojaste a casa para

    novas bodas? no acumulaste sobre esse delito outra incrvel maldade? o que eu

    passo em claro, e de boa mente sofro se cale, para que no conste que existiu

    nesta cidade, ou se deixou sem castigo to enorme crime. Passo em silncio a

    perdio dos teus bens, que sabes te est iminente nos prximos Idos. No falo

    no tocante s particulares ignomnias de teus vcios, nem na tua domstica

    penria e misria, mas no que pertence ao governo da Repblica, e vida e

    proveito de todos ns. Pode porventura, Catilina, agradar-te a luz desta cidade,

  • ou este ar que respiramos, sabendo que nenhum dos circunstantes ignora que

    no ltimo de Dezembro, sendo cnsules Lpido e Flvio, estiveste armado no

    comcio do povo? que ordenaste uma esquadra para matares os cnsules e

    pessoas principais da cidade? que no foi razo alguma ou temor que tivesses,

    mas a fortuna da Repblica a que conteve a tua protrvia e desaforo? Mas deixo

    j isto que nem ignorado, nem h muito cometido. Quantas vezes estando eu

    j eleito, quantas, sendo j cnsul, me quiseste matar? a quantos golpes, atirados

    de modo que pareciam inevitveis, escapei eu, como l dizem, com um pequeno

    desvio do corpo? Nada fazes, nada consegues, nada maquinas, que eu logo no

    saiba; e nem por isso cessas de levar por diante teus projetos e intentos. Quantas

    vezes te arrancaram j essa faca das mos? quantas te caiu por acaso e

    escorregou? e ainda assim no podes estar muito tempo sem ela; na verdade,

    no sei a que sacrifcios a consagraste e dedicaste, que: julgas preciso crav-la

    no corpo do cnsul. ,

    7. E que vida ao presente essa tua? Falrei-la contigo, no como

    agastado com a ira que devo, mas movido da compaixo que no mereces. H

    pouco chegaste ao Senado; em um to grande congresso, qual de teus amigos e

    parentes te saudou? no havendo memria que tal jamais sucedesse a ningum,

    esperas que te afrontem de palavra, sendo j condenado pelo gravssimo juzo

    desta taciturnidade? Que foi isto que assim que chegaste se evacuaram estas

    ordens de assentos? que vem a ser que assim que te sentaste, todos os

    consulares, que designaste para a morte, deixaram devoluta e nua esta parte de

    assentos? Enfim de que nimo julgas levar isto? Por certo que se os meus servos

    me temessem da sorte que a ti temem os teus patrcios, abandonaria sem

    demora a prpria casa; e tu ainda te no resolves a deixar a cidade? Se eu me

    visse to gravemente suspeito e ofendido de meus cidados, antes quereria

    carecer da sua presena, que sofrer que com to maus olhos me vissem todos.

    E tu, conhecendo pelo prprio remorso de teus delitos esta justa e geral

    indignao, que h tanto mereces, ainda duvidas retirar-te da vista e presena

  • daqueles que te no podem suportar nem ver? Se teus pais se temessem de ti e

    te aborrecessem, e os no pudesse sem nenhum modo aplacar, creio te

    retirararias de seus olhos para outra parte; pois, agora que a ptria, me comum

    de todos ns, te aborrece e teme, no julgando de ti outra coisa seno que

    meditas o seu parricdio, porque no respeitars a sua autoridade, seguirs o seu

    juzo, temers o seu poder? Ela a que, como falando contigo, te diz desta

    sorte: Muitos anos h que no houve maldade que no viesse de ti, nenhum

    delito sem ti; em ti s no se castigou a morte de muitos cidados, as opresses

    e roubos de nossos aliados. No s tiveste poder de infringir as leis e as causas,

    mas de as abolir. Ainda que tudo isto no se devia tolerar, ainda assim o sofri

    como pude; mas o estar eu toda em temor unicamente por teu respeito, o temer-

    se a Catilina com qualquer rumos que haja, o no se poder tomar conselho

    algum contra mim, que no dependa da tua protrvia, no se deve levar

    pacincia. Portanto, vai-te j daqui, livra-me deste temor, se bem fundado para

    no estar oprimida, se vo para deixar de temer.

    8. Se, como disse, a ptria te dissesse estas coisas, no mereceria

    conseguir sua pretenso, ainda que a no pudesse conseguir com fora? Por que

    motivo tu prprio te foste entregar priso? Com que fim disseste que, por

    evitar suspeitas, querias morar em casa de Marco Lpido, do qual no sendo

    recebido, te atreveste a vir tambm comigo e pedir-me te recolhesse em minha

    casa? E recebendo de mim por resposta que em nenhum modo podia estar

    seguro contigo dentro das mesmas paredes, havendo grande risco ainda dentro

    dos mesmos muros, buscaste a Quinto Metelo, pretor, do qual repudiado,

    passaste para casa do teu companheiro, o excelente varo Marco Marcelo, a

    quem avaliaste de suma diligncia para te guardar, de suma sagacidade para

    vigiar e de sumo valor para te vingar. Mas quo longe deve estar do crcere e

    priso quem se julga a si mesmo digno dela? Sendo isto assim, Catilina, no

    podendo aqui viver com nimo sossegado, duvidas ir-te para alguma terra e

    entregar fugida uma vida salvada de muitos castigos justos e merecidos? J

  • que assim dizes tu prope isso ao Senado. E se esta ordem resolver que

    vs para o desterro, prometes obedecer-lhe? No proporia tal, por desdizer de

    meus costumes, mas ainda assim o farei, para que saibas o que eles julgam de ti.

    Sai j de Roma, Catilina, livra de temor a Repblica; se esperas por este preceito,

    parte j para o desterro. Pois que, Catilina, que atendes? que consideras no

    silncio dos circunstantes? Sofrem, calam-se; para que esperas que falem com

    autoridade aqueles que bem te do a conhecer a sua vontade calando? Se eu

    dissesse semelhantes coisas a este ptimo mancebo Pblio Sxtio, ou ao

    meritssimo Marco Marcelo j o Senado a mim cnsul me faria violncia, e com

    razo me poria as mos; mas quanto a ti, Catilina, quando se acomodam,

    aprovam; quando sofrem, determinam; quando calam, clamam; nem s estes,

    cuja autoridade amas e vidas desprezas, mas tambm aqueles honradssimos

    cavaleiros romanos e os outros cidados de valor que rodeiam o Senado, cujo

    concurso pouco h que pudeste ver, conhecer sua vontade, e ouvir suas

    palavras, cujas mos e armas h muito que mal posso conter, que vo sobre ti,

    fcil me persuadi-los te acompanhem at as portas, como a quem deixa o que

    h muito deseja destruir.

    9. Mas para que falo eu? para que te contenhas? para que te emendes?

    para que cuides em fugir? para que tragas ao pensamento algum desterro? Oxal

    te metessem tal na cabea os deuses imortais! Ainda que vejo que, se aterrado

    com estas minhas vozes, te resolveres a desterrar-te, quanta tempestade de dio

    mio vir sobre mim por causa da fresca memria das tuas maldades, se no for

    agora, ao menos para o futuro; mas eu o estimo muito, contanto que a

    calamidade seja particular e fique salva a Repblica do perigo. Mas no h que

    pretender te faam abalo teus vcios, que te amedrontem os castigos das leis,

    que cedas s calamidades da Repblica; nem tu s sujeito de qualidade a quem

    o pejo desvia da torpeza, dos perigos o temor, ou da insolncia a razo.

    Portanto, como j disse repetidas vezes, vai-te daqui; e se, como dizes, porque

    sou teu inimigo me queres exasperar, caminha direito para o desterro; grande

  • tempestade de censuras e malquerenas tenho que sofrer, se por mandado do

    cnsul fores desterrado; mas eu os sofrerei. Porm se no queres concorrer para

    o meu crdito e glria, sai com essa enorme quadrilha de perversos; parte para

    Mnlio, subleva cidados perversos, separa-te dos bons, peleja contra a ptria,

    regozija-te com essa mpia quadrilha, de modo que no parea te desterro para

    os estranhos, mas que os teus te convidam sua companhia. Mas para que te

    convido eu, sabendo que j mandaste os homens que te esperam armados na

    Praa Aurlia; sabendo que com Mnlio tens aprazado dia certo; e que remeteste

    adiante aquela guia de prata a que levantaste altar em tua casa, a qual creio te

    h de ser funesta a ti e a todos os teus. Como poders agora, indo a essas

    mortandades, carecer muito tempo daquela a quem costumavas venerar, de

    cujos altares passaste muitas vezes essa mpia mo direita para homicdios de

    cidados?

    10. Irs enfim algum dia para onde h muito te arrebata essa desenfreada

    e louca ambio, o ou te no d pena, mas gosto excessivo; pois para esse

    desvario te gerou a natureza, adestrou a vontade e guardou a fortuna; nunca tu

    desejaste no digo j cio, mas nem ainda guerra, seno inqua, agrega" do um

    exrcito de gente perdida e desesperada de toda a fortuna e esperana. Que

    alegria no ser ali a tua? quo excessivo o prazer? com que jbilo no folgars

    loucamente, quando nessa tua aluvio de gente no vires um s homem de bem?

    Para semelhante modo de vida se encaminharam aqueles teus laboriosos

    exerccios, que se contam, de jazeres para executar e manter adultrios e

    abominaes; velar no s para armar traies ao sono dos maridos, mas

    tambm aos cabedais dos ociosos. Ters onde ostentar aquele teu ilustre

    sofrimento de fome, frio e penria de tudo, com que brevemente te vers

    consumido. Tanto como isto aproveitei, quando te exclui do consulado, para

    que antes perseguisse a Repblica desterrado, do que a vexasse cnsul, e para

    que o que iniquamente empreendeste mais se chamasse latrocnio do que

    guerra.

  • 11. Agora, Padres Conscritos, para desterrar c repelir de mim uma quase

    justa queixa da ptria, concedei toda a ateno ao que vos vou dizer, e o imprimi

    bem em vossos nimos e memria. Se a ptria, pois, (que amo mais do que a

    vida) se toda a Itlia e toda a Repblica me dissessem: Que fazes, Marco Tlio?

    consentes se v embora aquele que sabes ser inimigo, aquele que vs h-de-ser

    o general de uma iminente guerra, a quem sabes o esperam por seu capito os

    arraiais inimigos, o autor desta protrvia, o prncipe dos conjurados, o

    sublevador dos servos, o arruinador das cidades, parecendo deste modo no

    que o lanaste fora da cidade, mas que o mandaste vir contra ela? Por que no

    o mandaras antes prender, matar e punir com o ltimo suplcio? Que que te

    impede? Porventura o costume dos maiores? No sucedeu poucas vezes

    castigarem os particulares Com pena de morte a cidados perversos.

    Porventura as leis que estabelecem o castigo de cidados romanos? Nunca nesta

    cidade lograram foro de cidados os que se rebelaram contra a Repblica.

    Temes acaso o dio da posteridade? Notvel agradecimento ds ao povo

    romano, pois no sendo conhecido seno pelos teus predicados pessoais, sem

    nenhuma recomendao de antepassados, te elevou to velozmente por todos

    os graus de honra ao supremo governo, se por ateno a dio ou temor de

    algum perigo fazes pouco caso do bem dos teus concidados. E se algum temor

    tens de dio, no mais para temer que aborream a cobardia e protervia, do

    que a severidade e valor? Porventura quando a guerra assolar a Itlia, quando as

    cidades forem vexadas, e arderem os edifcios, parece-te que no arderas tu

    ento no incndio do dio?

    12. A estas justssimas razes da Repblica e daqueles cidados que

    sentem o mesmo, responderei eu em poucas palavras. Se eu, Padres Conscritos,

    tivesse por mais acertado condenar morte a Catilina, no concedera a este

    gladiador uma s hora de vida. Porque se os outros heris e nobilssimos

    cidados se no contaminaram, mas honraram com o sangue de Saturnino, dos

    Gracos e de Flaco, por certo no teria eu de recear que, morto este parricida de

  • cidados me resultassem daqui dios para a posteridade; e ainda que os visse

    iminentes sobre mim, sempre assentei reputar por glria malquerenas

    resultadas de obras de valor. Contudo, h alguns nesta ordem que ou no veem

    o que est para vir, ou se o veem, dissimulam; os quais fomentaram as

    esperanas de Catilina com brandas sentenas; e, no dando crdito

    conjurao, a arreigaram nascena; cuja autoridade, seguindo outros muitos

    no s perversos, mas ignorantes, diriam se eu o castigasse, que obrara com

    tirania e despotismo. Agora porm entendo que quando ele chegar aos arraiais

    de Mnlio, para onde caminha, no haver ningum to insensato que no

    conhea estar feita a conjurao, ningum to mprobo que o no confesse. Mas

    morrendo ele s, creio que s por um pouco se poder reprimir esta runa da

    Repblica, e no acabar inteiramente. Se der consigo daqui fora, levando de

    companhia os seus e, agregando de toda parte os desgarrados, os levar para o

    mesmo lugar, extinguir-se- no s esta enorme peste da Repblica, mas a

    mesma semente e gerao de todos os perversos.

    13. Muito tempo h, Padres Conscritos, que andamos metidos nestes

    perigos de conjuraes e traies; mas no sei por que causa os frutos de todas

    as maldades e insolncias brotaram em tempo do meu consulado. Se porm de

    to grande corrupo for morto s este, entendo que s por um pouco tempo

    ficaremos livres de cuidado e temor, e durar o perigo e ficar reconcentrado

    nas veias e entranhas da Repblica. Assim como os enfermos de doena grave,

    que padecem frio e febre, bebendo gua fria, ao princpio parecem ficar

    aliviados, mas depois se sentem muito mais aflitos, assim esta enfermidade da

    Repblica, se a aliviarmos com o castigo deste, ficando vivos os mais, se

    agravar com maior veemncia. Portanto, Padres Conscritos, retirem-se os

    perversos, separem-se dos bons, juntem-se a uma parte; enfim, como j disse

    muitas vezes, dividam-se de ns com o muro; cessem de armar traies ao

    cnsul em sua casa, de cercar a morada do pretor de Roma, de rondar com

    armas o Senado, de juntar feixes e archotes para abrasar esta corte, enfim traga

  • cada um escrito no rosto o que sente da Repblica. Eu vos prometo, Padres

    Conscritos, que tanta ser em mim a diligncia, tanta em vs a autoridade, tanto

    nos cavaleiros romanos o valor, tanta em todos os bons a concrdia, que com

    a retirada de Catilina tudo vejais manifesto, ilustrado, suprimido, vingado. Com

    estes prognsticos e sumo proveito da Repblica parte j Catilina, com essa tua

    pestilencial quadrilha de protervos, que se agregaram com todo o gnero de

    maldades e parricdios para essa mpia e execranda guerra. Ento, Jpiter Stator,

    que aqui foste colocado por Rmulo com os mesmos auspcios com que fundou

    esta cidade, e a que com verdade chamamos Stator desta corte e Imprio, o

    apartars e a seus scios de teus altares e templos, dos edifcios da cidade e seus

    mu-muros, das vidas e bens dos cidados, e a todos os inimigos dos bons, a

    todos os adversrios da ptria, a todos os ladres da Itlia, juntos entre si com

    o vnculo de seus delitos e abominvel sociedade, vivos e mortos os castigars

    com eternos suplcios.

  • Segunda Catilinria

    Pronunciada no dia 9 de novembro, isto somente um dia depois da primeira, numa

    assembleia popular, a segunda catilinria uma das mais per feitas, do ponto de vista esttico,

    entre as oraes de Cicero. Catilina, amedrontado pela acusao do cnsul, resolveu deixar

    a cidade e juntar-se a Mnlio, Esta fuga uma confisso de culpa, e como tal Ccero a

    interpreta e comenta. Defende-se de duas acusaes que lhe podem ser imputadas: a de

    excessiva indulgncia, por ter deixado fugir a Catilina, e a de excessiva severidade por ter

    constrangido ao exlio um cidado romano, sem ter as provas da sua culpa.

    Descreve, depois, Ccero as categorias de cidados que esto do lado dos conjurados. Contra

    essa gente, contra esses degenerados no h dvida nenhuma que os homens de bem que

    defendem a liberdade, tero vitria certa e esmagadora.

    1.Enfim romanos, lanado tenho fora, despedido e seguido na sada, com

    minhas palavras, a Lcio Catilina, que insolentemente se enfurecia, respirando

    atrocidades e maquinando perfidamente a runa da ptria. J ao fim se foi,

    retirou, escapou e arremessou daqui fora; j aquele monstro e abismo de

    maldade no forjar perdio alguma contra estes muros, dentre deles. Vencido

    temos por certo a este nico general da guerra civil; j no andar entre ns

    aquele punhal; j no o temeremos no campo, nem no foro, nem no Senado,

    nem enfim dentro de nossas domsticas paredes. Excludo ficou do seu posto,

    quando foi lanado da cidade; j faremos justa guerra com o inimigo, sem que

    ningum o impea. Deitamos sem dvida a perder o homem e o vencemos

    gloriosamente, quando de ocultas traies o lanamos em um manifesto

    latrocnio. E se no levou a espada ensanguentada, como queria, se saiu, ficando

    ns vivos, se lhe arrancmos as armas das mos, se deixou salvos os cidados e

    em p a cidade, com que tristeza vos no parece ficaria ele aflito e acabrunhado?

    Agora derribado est, romanos, e vendo-se destrudo e rechaado, certamente

    volve muitas vezes os olhos a esta cidade, chorando de no a ter podido tragar;

    e ela me parece estar-se alegrando de ter vomitado e lanado fora esta horrenda

    peste.

  • 2. Porm se algum h de tal gnio (qual convinha que todos tivessem)

    que disto mesmo, de que a minha orao se alegra e triunfa, me acuse

    fortemente, por no ter antes prendido do que lanado fora to capital inimigo,

    no esta culpa minha mas dos tempos. Muito h que convinha ter morto e

    castigado a Catilina com grandssimo suplcio, segundo de mim O requeria o

    costume dos maiores, a severidade deste Imprio e a Repblica. Mas quantos

    julgais haveria que no dariam crdito ao que eu denunciasse? quantos nscios

    vos parece se no haviam a capacitar? quantos o defenderiam? quantos com

    maldade lhe dariam favor? Se dando cabo dele entendesse ficveis livres de

    perigo, muito h que eu tivera morto a Catilina, no s com risco de dios, mas

    da prpria vida; porm como via que nem todos tnheis ainda isto por certo, e

    que se o punisse de morte, como merecia, oprimido com inimizade, no

    poderia eu per-seguir a seus scios, reduzi o negcio a estes termos, de

    poderdes pelejar quando vsseis claramente o inimigo; cujo inimigo podereis

    conhecer quanto eu o julgo digno de temor, de sentir que saia da cidade pouco

    acompanhado. Oxal que ele levasse consigo todas as suas tropa. Levou-me a

    Tongilo que ele comeou a amar desde a meninice; a Publcio e Muncio, que

    carregados de dvidas que contraram por glutes, nenhum medo podiam meter

    Repblica. E que casta de homens deixou ele? no so os mais endividados,

    sem poder, sem nobreza?

    3. Portanto, com estas legies gaulesas, e com estas levas de soldados que

    Quinto Metelo fez no capo Piceno e Galicano, e com estas tropas que

    agregamos cada dia, em sumo desprezo tenho aquele exrcito amontoado de

    velhos estropiados, camponeses licenciosos e rsticos estragados; daqueles, que

    antes quiseram no comparecer em juzo do que deixar de seguir aquele

    exrcito; aos quais se eu lhes mostrar, no digo o poder do nosso exrcito, mas

    o dito do pretor, ficaro aterrados. Antes eu quisera que tivesse levado consigo

    a estes que vejo andar vagando pela praa, estar junto cria e vir ao Senado;

    que reluzem com unguentos e brilham com galas; os quais, se aqui ficaram estais

  • certos que no deveis temer tanto aquele exrcito como a estes que o

    desampararam. E ainda estes se devem temer mais, por uma razo particular,

    qual pressentirem que eu sei o que meditam, e nem assim se moverem. Sei a

    quem foi cometida a Aplia, a quem coube a Etrria, a quem o campo Piceno,

    a quem o Galicano, quem requereu para si as traies domsticas de

    mortandades e incndios desta cidade; sabem que todas as deliberaes da noite

    antecedente me foram noticiadas; manifestei-as ontem no Senado; fugiu o

    mesmo Catilina; estes que esperam? muito se enganam se esperam que dure

    sempre a minha brandura.

    4. Tenho conseguido o que desejava, isto , que todos vs conhecsseis

    estar formada a conjuraro contra a Repblica, salvo se h quem se persuada

    que os semelhantes de Catilina no sentem como Catilina. J no tem lugar a

    brandura, a mesma matria est clamando por severidade; uma coisa lhe

    concedo ainda: saiam, retirem-se, no consintam que 0 infeliz Catilina se

    consuma com saudades suas; mostrar-lhes-ei o caminho; tomou pela estrada

    Aurlia; se quiserem apressar-se, o alcanaro de tarde. Oh afortunada

    Repblica, em lanar fora esta sentina da cidade. Por certo que com esta s

    retirada de Catilina me parece ficou aliviada e contente a Repblica. E que

    maldade ou crime se pode fingir nem excogitar que no concebesse? Que

    venfico, que briguento, que ladro, que assassino, que parricida, que

    falsificador de testamentos, que onzeneiro, que lascivo, que dissoluto, que

    adltero, que meretriz, estragador da mocidade, que vicioso, que perdido

    possvel achar em toda a Itlia que no confesse ter vivido com Catilina

    familiarissimamente? Que homicdio se fez nestes anos sem ele? Houve sujeito

    algum que fosse de tanto tropeo mocidade, como ele? ora amava a um com

    suma torpeza, ora servia ao amor de outros abominavelmente; a estes prometia

    o fruto da sua desonestidade, queles a morte de seus pais, no s compelindo-

    os, mas ajudando-os. E com que presteza no juntou da cidade e dos campos

    uma aluvio de gente perdida? No houve, no digo j em Roma, mas em canto

  • algum da Itlia, homem acabrunhado de dvidas, a quem no convocasse para

    esta inaudita e atroz conspirao.

    5. E para que conheais os seus diversos exerccios em vrias classes de

    matrias, no h gladiador distinto por seu atrevimento que no confesse ter

    sido amigo de Catilina; nenhum comediante leviano e depravado que no diga

    fora seu companheiro. Contudo, a um sujeito assim acostumado a adultrios e

    maldades, e a sofrer fome, sede e viglias, o aclamavam eles por valoroso,

    quando empregava os subsdios e os instrumentos da virtude na luxria e na

    ousadia. Se estes seus scios o seguirem, se da cidade sarem infames aluvies

    de homens desesperados, que felizes ns, que afortunada a Repblica, que

    ilustre e nobre ser o meu consulado! No so j medianas as dissolues destes

    homens, nem humanos e tolerveis os seus atrevimentos; nada cogitam seno

    mortes, incndios, roubos. Estragaram seu patrimnio, consumiram em

    comezainas seus bens, h muito que a fazenda e h pouco o crdito lhes

    comeou a faltar; permanece porm a luxria que possuam em abundncia. Se

    no vinho e jogo buscassem somente glutonerias e meretrizes, nada deles se

    podia esperar, contudo se deviam sofrer; mas quem levar em pacincia que

    homens cobardes armem traies a vares fortssimos, os estultos aos mui

    prudentes, os glutes aos sbrios, os sonolentos aos vigilantes; os quais pondo-

    se mesa em banquetes, abraados com mulheres impudicas, lnguidos com o

    vinho, oprimidos de fastos, coroados de flores, untados de pomadas,

    debilitados com adultrios, arrotam em seus falares mortandades de bons e

    incndios da cidade? A estes creio estar iminente alguma fatalidade, e prximo,

    ou que certamente se lhe vem chegando, o castigo devido sua protervia,

    maldade, insolncia e desonestidade; e se o meu consulado o puder arrancar,

    pois os no pode sarar, se propagar a Repblica no por pouco tempo, mas

    por muitos sculos. No h nao alguma a que ao presente temamos; no h

    rei que possa fazer guerra ao povo romano; todas as coisas externas esto em

    sossego por terra e por mar, pelo valor de um s homem; a guerra domstica

  • a que persiste, dentro esto as traies, dentro est o perigo, dentro o inimigo;

    com a luxria, com a loucura, com a insolncia temos de pelejar. Desta guerra,

    romanos, me declaro por general; sobre mim tomo a raiva de homens

    perdidos; o que de algum modo se pode curar, o curarei; o que se houver de

    cortar, no consentirei se difunda em prejuzo da cidade. Portanto, ou saiam ou

    se aquietem; e se persistem na cidade com a mesma teno, bem podem esperar

    o que merecem.

    6. Mas ainda h, romanos, alguns que dizem que Catilina fora por mim

    desterrado; os que semelhante coisa dizem, os desterraria eu, se o pudesse

    conseguir com minhas palavras. No pde aquele timorato e modestssimo

    homem sofrer a voz do cnsul, que o mandara ir para o desterro; obedeceu, foi.

    Ontem, romanos, depois que por pouco no me mataram em minha casa,

    convoquei o Senado para o templo de Jpiter Stator, onde relatei o sucedido

    aos Padres Conscritos; concorrendo ali Catilina que senador houve que o

    nomeasse? quem o saudou? quem enfim deixou de olhar para ele, como para

    um cidado perdido, ou, para melhor dizer, um execrando inimigo? Alm disto,

    os principais daquela ordem deixaram vaga e nua aquela parte dos assentos,

    onde ele se chegou. Ento eu, aquele cnsul rigoroso que com palavras desterra

    os cidados, perguntei a Catilina se na sua assembleia noturna estivera ou no

    na Casa de Marco Leca; e, como aquele atrevidssimo homem, convencido da

    sua prpria conscincia, se calasse, manifestou o demais: disse-lhe o que obrara

    naquela noite, onde estivera, que determinara, como estava delineada toda a

    forma da guerra. Hesitando ele e parando, lhe perguntei porque duvidava ir para

    onde havia tanto tinha determinado; sabendo eu ter ele enviado adiante armas,

    machados, feixes, trombetas, estandartes e aquela guia de prata a que fez altar

    em sua casa. Impeli para o desterro aquele que via ter j principiado a guerra?

    Mas julgo que este Mnlio (o centurio que assentou arraiais no campo de

    Fsulas) em seu nome publicou a guerra ao povo romano; que aqueles arraiais

  • no esperam agora a Catilina por seu general; e que ele, desterrado, caminhar,

    segundo dizem, para Marselha, e no para aqueles arraiais?

    7. Infeliz sorte a de quem administra e conserva a Repblica. Se agora

    Catilina, embaraado e atnito com minhas resolues, trabalhos e perigos, e

    repentinamente aterrado, mudar de parecer, desamparar os seus, se deixar do

    projeto de fazer guerra, e deste caminho que levava para atrocidades e pelejas

    voltar os passos para a fugida e o desterro, no se h de dizer que eu o despojei

    de armas insolentes, nem que fora atnito e aterrado com minhas diligncias,

    nem repelido de suas esperanas e pretenses, mas que, sem ser condenado e

    inocente, o desterra o cnsul com a violncia e ameaas; e ainda haver quem,

    fazendo-o ele assim, o no tenha por perverso, mas digno de compaixo, e a

    mim no por cnsul diligentssimo, mas cruelssimo tirano. Muito estimo,

    romanos, experimentar a borrasca desse dio sem causa e injusto, contanto que

    vs fiqueis livres do perigo desta horrvel e execranda guerra. Diga-se embora

    que eu o lancei, contanto que v para o desterro; mas crede-me que no h de

    ir. Nunca eu, romanos, por me livrar de malquerenas, chegarei a pedir aos

    deuses imortais que ouais que Catilina vem capitaneando exrcito inimigo e

    discorre armado pela campanha, mas ainda assim dentro de trs dias o ouvireis.

    Muito mais temo que em algum tempo se irem, pelo no ter antes lanado por

    fora, do que de o ter despedido; mas se h sujeitos que, tendo-se ele ido, dizem

    que fora lanado, se fosse morto que diriam? ainda que os que dizem que

    Catilina fora para Marselha, no tanto se queixam disto como o receiem.

    Nenhum destes to compassivo que no queira antes que ele v para Mnlio,

    do que para Marselha. Mas se o que ele obra o no considerasse primeiro, por

    certo que antes quereria ser morto no roubo do que viver desterrado; agora

    porm, que nada lhe tem sucedido fora da sua vontade e pensamento, exceto o

    sair de Roma, ficando ns vivos, antes desejamos que v para o desterro do que

    nos queixemos disso.

  • 8. Mas para que falo tanto tempo de um inimigo, e tal inimigo que

    confessa que o , e a quem no temo, porque um muro est no meio, como

    sempre desejei? Destes que ficam em Roma, que esto conosco, no dizemos

    nada? Na verdade, sendo possvel, eu os no desejo tanto castigar como sarar e

    reconciliar com a Repblica; nem sei porque no possa ser, se me quiserem

    ouvir. Expor-vos-ei pois, romanos, os gneros de homens de que se formam

    estes esquadres; e depois aplicarei a cada um o remdio que puder, com meu

    conselho e orao. Os primeiros so aqueles que, tendo grandes dvidas, tm

    ainda maiores cabedais, de cujo amor prendidos se no querem soltar. A classe

    desses homens muito honrada, pois so ricos; mas a sua vontade e causa

    desaforada. Tu com campos, tu com propriedade de casas, tu com dinheiro, tu

    com famlia, tu adornado e abundante de tudo e duvidas cortar pelas tuas posses

    e recobrar o Crdito? Que o que esperas? a guerra? para que? julgas que na

    assolao geral de tudo h de ser privilegiados os teus bens? Esperas novas

    tbuas? Enganam-se os que as esperam de Catilina. Por benefcio meu saram

    a pblico novas tbuas, mas para se venderem os bens em almoeda; nem estes

    que tm posses se podem de algum outro modo livrar das dvidas; e se j se

    tivesse resolvidos a faz-lo e no quis sessem pagar as usuras com o fruto dos

    seus prdios, teramos agora mais ricos e melhores cidados. Mas parece-me

    que estes homens se no devem temer, porque, ou se podem apartar desta

    opinio ou se persistem nela, mais me parece que faro splicas Re publicar,

    do que tomaro armas contra ela.

    9. Outro gnero o daqueles que, carregados de dividas, esperam

    contudo, e querem mandar e governar, crendo que, perturbada a Repblica,

    conseguiro as honras que no podem obter com ela sossegada. Aos quais me

    parece se deva intimar isto unicamente, como a todos os mais, a saber, que tirem

    o sentido de poder obter o que pretendem; primeiramente, porque eu sou o que

    velo, presido e governo a Repblica. Alm disto, porque h nimos grandes nas

    pessoas de probidade, grande concrdia, grande multido, grandes tropas de

  • soldadesca; enfim, porque os deuses imortais presentes ho de dar auxlio a este

    invicto povo, nobilssimo Imprio e formosssima cidade, contra to enorme

    maldade. E no caso que cheguem a conseguir o que desejam com a maior

    insolncia, porventura esperam nas cinzas da cidade o sangue dos cidados, seus

    cnsules, ditadores ou ainda reis, conforme o deseja seu nimo perverso e

    malvado? No veem que, se conseguirem o que desejam, forosamente o ho

    de conceder a algum foragido ou gladiador?

    O terceiro gnero de idade j avanada, mas robusta com o exerccio;

    a cujo gnero pertence o mesmo Mnlio, a quem sucede agora Catilina. So

    estes homens daquelas colnias que Sila constituiu em Fsulas, as quais entendo

    serem todas de timos cidados e vares fortssimos; mas estes so camponeses

    que com dinheiros inesperados e repentinos se ostentam com grande pompa;

    estes so os que ao mesmo tempo edificam como afortunados, se gloriam com

    prdios, liteiras, numerosas famlias, aparatosos banquetes, encravando-se em

    dvidas, de sorte que se quiseram se ver livres delas, tm de ressuscitar a

    Sila da sepultura; os quais foram tambm os que meteram a alguns

    rsticos pobres e necessitados em esperana daquelas rapinas. A uns e outros

    ponho do mesmo gnero de ladres e roubadores; e os aconselho que cessem

    de seus furores e tirem o pensamento de banimentos e ditaduras. To escaldada

    est esta cidade do que lhe sucedeu naqueles tempos, que me parece no s os

    homens, mas nem ainda os brutos sofrero tal coisa.

    10. 0 quarto gnero na verdade vrio, mesclado e turbulento: estes h

    muito se veem oprimidos de modo que nunca levantaram a cabea; dos quais

    uns por inrcia, outros por m administrao de bens, e outros tambm por

    gastos, perigam por dvidas antigas; e, cansados de citaes, condenaes e

    penhoras, se diz passaram muitos da cidade e dos campos para aqueles arraiais.

    A estes no tenho eu tanto por soldados valorosos como negadores brandos.

    Se estes homens no podem subsistir, caiam, mas de sorte que no s a cidade,

  • mas nem ainda os seus vizinhos prximos o sintam; no entendo por que causa,

    no podendo viver com decoro, querem morrer com infmia; ou por que razo

    se capacitam ser menor a sua dor morrendo acompanhados do que ss.

    O quinto gnero de parricidas, briges e demais facinorosos; os quais

    eu no separo de Catilina, se no podem arrancar dele; morram embora na

    quadrilha j que so tantos que no cabem no crcere. O ltimo gnero de

    homens no s no nmero, mas da mesma gerao e vida prpria de Catilina,

    da sua escolha e ainda da sua amizade e afeto; estes so os que vedes de cabelo

    penteado, polidos, sem barba ou bem barbados, com tnicas de mangas e

    talares, vestidos de vu e no de togas; cuja industriosa vida e laborioso desvelo

    todo se manifesta nas ceias das madrugadas. Nestes rebanhos andam todos os

    jogadores, todos os adlteros, todos os impuros e desonestos; estes meninos

    no lpidos e delicados no s aprendem a amar e ser amados, a cantar e danar,

    mas tambm a esgrimir punhais e ministrar venenos; se estes no sarem e

    perecerem, ainda que Catilina perea, sabei que haver na Repblica este

    seminrio de Catilina. Mas que pretendem estes infelizes? Porventura ho de

    levar consigo as suas mulherzinhas para os arraiais? como podero estar sem

    elas, principalmente nestas compridas noites? Como podero aturar o Apenino

    e aquelas saraivas e neves? salvo se julgam sofrero mais facilmente o inverno,

    por terem aprendido a danar nus nos banquetes? Que temerosssima guerra,

    quando Catilina se achar com esta coorte de lascivos!

    11. Aparelhai agora, romanos, contra to ilustres tropas de Catilina os

    vossos presdios e os vossos exrcitos; oponde primeiramente quele

    estropiado e consumido gladiador os vossos cnsules e generais; e contra aquela

    esquadra de arrogantes e fracos naufragantes levai a flor e valentia de toda a

    Itlia; as cidades das colnias e municpios competiro com as rsticas aluvies

    de Catilina. Quanto s demais tropas, adornos e presdios vossos, eu me no

    atrevo a compar-los com a penria e misria daquele ladro. Porm, se

  • deixadas estas coisas de que abundamos, ele necessita de Senado, de cavaleiros

    romanos, de cidade, de errio, de tributos, de toda a Itlia e de todas as

    provncias, e das naes estrangeiras; se deixadas, digo, estas coisas, quisermos

    que contendam entre si as mesmas causas litigantes, daqui mesmo poderemos

    conhecer quo prostrados eles estejam. Desta parte peleja o rubor, daquela a

    dissoluo; daqui a piedade, dali a protervia; daqui a lealdade, dali a perfdia;

    daqui a constncia, dali a insolncia; daqui a honestidade, dali a torpeza; daqui

    a continncia, dali a luxria; daqui enfim a justia, a temperana, a fortaleza, a

    prudncia e todas as virtudes pelejam com a iniquidade, com a lascvia, com a

    cobardia, com a temeridade e com todos os vcios; e por ltimo a abundncia

    com a pobreza, a reta razo com a sem-razo, o bom juzo com a demncia, e

    a boa esperana com a desesperao de todas as coisas. Em semelhante

    contenda a batalha, ainda que faltem as diligncias dos homens, porventura os

    mesmos deuses imortais no daro favor para que estas preclarssimas virtudes

    venam a tantos e to enormes vcios?

    12. Sendo isto, assim, romanos, defendei, como j vos disse as vossas

    casas com guardas e vigias; quanto a mim, tenho dado as ordens e providncias

    precisas sobre a segurana da cidade, sem incmodo vosso nem tumulto algum.

    Todos os das colnias e municpios, certificados por mim desta invaso noturna

    de Catilina, facilmente defendero suas cidades e contornos. Os gladiadores, de

    que agregou o maior esquadro, que entende ser segurssimo, posto que estejam

    de melhor nimo que parte dos patrcios, contudo sero reprimidos pelo nosso

    poder. Quinto Metelo, a quem eu, antevendo isto, mandei diante para o campo

    Piceno e Galicano, ou dar cabo do homem ou atalhar todos seus movimentos

    e pretenses; do mais que se deve determinar, obviar e executar darei logo parte

    ao Senado, que j vedes convocar-se. Quanto aos que ficaram em Roma e nela

    foram deixados por Catilina, certamente para runa da cidade e de todos vs,

    posto que sejam inimigos, como nasceram cidados, os quero uma e outra vez

    admoestar. Se a algum parece frouxa a minha mansido at agora, saiba que s

  • esperou se fizesse pblico o que estava encoberto; quanto ao mais, no me

    posso esquecer de ser esta a minha ptria, ser eu cnsul destes seus habitadores,

    e que com eles hei de viver, ou por eles morrer. As portas esto sem guardas,

    no h traidor algum pelo caminho; se algum quiser sair, pode atender por si;

    o que na cidade se amotinar, de quem eu souber no s ao, mas princpio

    algum dela, ou intento contra a ptria, experimentar haver nesta cidade

    cnsules vigilantes, excelentes magistrados, um integrrimo Senado, armas e

    crceres que nossos maiores quiseram servissem para castigar delitos manifestos

    e atrozes.

    13. Tudo isto, romanos, se executar de sorte que, sendo eu o nico

    capito e general togado, se apaziguaro as mais relevantes coisas sem

    o menor rebolio, os maiores perigos, e a guerra intestina e domstica

    mais cruel, de que h memria, sem o menor tumulto; o que ordenarei

    em forma, romanos, que quanto puder ser, ningum, ainda protervo,

    pagar nesta cidade a pena do seu delito. Mas se a fora de um manifesto

    atrevimento e o iminente perigo da ptria me necessitarem a sair desta

    brandura, executarei o que parece apenas se podia desejar em to

    enorme e atraioada guerra; a saber que nenhum dos bons perea, e com

    o castigo de poucos possais ficar salvos. Isto, romanos, vos no prometo

    fiado na minha prudncia e conselhos humanos, mas em muitas e

    indubitveis insinuaes dos deuses imortais, pelos quais guiado, entrei

    nesta esperana e projeto. Eles so os que no de longe, como

    costumavam dantes, nem de inimigos externos e remotos, mas aqui

    presentes, com o seu poder e auxlio, defendem os templos e casas de

    Roma. Rogai-os, romanos, e venerai-os como deveis, para que vencidas

    todas as foras inimigas por terra e por mar, defendam aquela cidade que

    quiseram fosse a mais formosa, florescente e poderosa, da execranda

    perversidade de cidados perdidos.

  • Terceira Catilinria

    Os conjurados que Catilina, ao deixar a cidade, tinha deixado em Roma, articulam-

    se e tentam tratativas com os embaixadores dos Albrogos, que por acaso se encontravam em

    Roma, para patrocinar a causa dos seus patrcios contra os governadores romanos. Em

    consequncia de delaes, afinal, Ccero consegue provas materiais da conjurao. Na noite do 2 de Dezembro manda prender os principais conjurados. Na manh do dia 3, rene o

    Senado e procede ao interrogatrio dos presos. O Senado resolve que os imputados continuem

    em estado de deteno e decreta que o cnsul seja publicamente agradecido pela sua ao em

    defesa da ptria. Acabada a sesso do Senado, Ccero pronuncia a terceira catilinria, para

    informar ao povo, reunido no foro, da marcha dos acontecimentos. Diz que nunca Roma

    correu perigo maior do que acaba de desaparecer, sem recorrer a medidas militares, sem

    perturbao da cidade, unicamente por diligncia dele, que soube defender a ptria ameaada

    pelos conjurados. Exorta os romanos a agradecer aos deuses e a continuar na vigilncia contra

    os maus cidados.

    Cicero acusando Catilina no senado (Afresco de Cesare Maccari, sculo XIX)

    1.Vendo estais, romanos, neste dia a Repblica, a vida de todos vs, os

    vossos bens e interesses, as vossas mulheres e filhos, e a esta felicssima e

    belssima benevolncia dos deuses para convosco, livre do ferro e fogo, e como

    arrancada da garganta da morte, com meus trabalhos, resolues e perigos. E

    no sendo para ns menos gostosos e ilustres os dias em que somos livres de

    algum perigo, que aqueles em que nascemos; por ser a alegria da

    conservao certa, e a condio com que nascemos duvidosa, e porque nascemos

    sem o sentir e nos conservamos com prazer; por certo que se a Rmulo,

    fundador desta cidade, colocou a nossa benevolncia e aclamao no nmero

    de deuses imortais, tambm para convosco e vossos descendentes deve ter

    honra aquele que conservou esta cidade, depois de fundada e engrandecida;

    pois extinguimos as chamas que quase prendiam e rodeavam todos os templos,

    altares, casas e muros de Roma e por ns mesmos rebatemos as espadas

    desembainhadas contra vs, desviando seus fios de vossas cabeas. Sendo tudo

    isto j aclarado, descoberto e manifesto por mim no Senado, expor-vos-ei agora

  • brevemente, romanos, o modo com que o averiguei a vim claramente a

    compreender, para que vs que o no sabeis e esperais o possais conhecer.

    2. Primeiramente, tanto que Catilina h poucos dias deu consigo fora

    desta cidade, deixando nela os scios da sua protervia e capites desta

    maldita guerra, sempre estive alerta, procurando como nos poderamos salvar

    de to enormes e solapadas traies. Porque, quando lancei fora da cidade a

    Catilina (pois j no temo que seja odiosa esta palavra, em tempo em que mais

    se deve temer o ter ele sado com vida), ento que o queria exterminar, julguei

    que os demais conjurados sairiam com ele, ou que persistindo na cidade, com

    a sua falta ficariam fracos e debilitados; e tanto que vi que os mais atrevidos e

    insolentes eram os que estavam conosco e ficavam em Roma, consumei dias e

    noites em ver o que faziam e maquinavam; porque como entendi que nos

    vossos ouvidos acharia menos crdito a minha relao, pela incrvel

    exorbitncia do atentado, reduzi o negcio a tais termos que cuidsseis na vossa

    segurana quando vsseis o mal diante dos olhos. Portanto, assim que soube

    que P. Lntulo solicitara os enviados dos Albrogos, para acender guerra alm

    dos Alpes e levantar tumultos na Glia; e que estes foram remetidos para seus

    patrcios, de caminho com cartas e avisos para Catilina; e que lhes deram por

    companheiro a Voltrcio, tambm com cartas para Catilina; entendi se me

    oferecia comodidade de conhecer e manifestar ao Senado e a vs claramente

    todo o negcio, como sempre pedia aos deuses eternos. Por cuja causa no dia

    de ontem chamei minha presena os pretores Lcio Flaco e Caio Pontnio,

    to valorosos como amantes da Repblica, contei-lhes tudo o que se passava e

    lhes declarei o que me parecia se fizesse. Aceitaram eles a incumbncia sem

    escusa nem demora alguma, como possudos dos mais nobres e ilustres

    pensamentos para com a Repblica, e sobre tarde chegaram disfarados ponte

    Mxilvia, onde se separaram um do outro para as quintas vizinhas, ficando-lhes

    em meio a ponte e o Tibre. Para este mesmo lugar, sem que ningum o

    suspeitasse, conduziram muitos homens de valor; e tambm eu mandei da

  • prefeitura de Reate muitos mancebos escolhidos com armas, dos que

    ordinariamente me costumo valer para segurana da Republica. Sendo j quase

    trs horas da noite, entrando na ponte os enviados dos Albrogos, e de volta

    com eles Vultrcio com grande comitiva, do os nossos sobre eles; tiram uns e

    outros as espadas. S os pretores eram cientes do negcio, os mais o ignoravam.

    3. Acudindo neste passo Pontnio e Flaco, se apaziguou a principiada

    peleja; todas as cartas que havia na comitiva, sem se abrirem, ficaram entregues

    aos pretores, e aqueles que foram presos foram trazidos a mim ao romper do

    dia. Imediatamente mandei chamar a Cimbro Gabnio, perversssimo

    maquinador de todas estas maldades, que at ento nada suspeitava do

    sucedido. E depois dele foi chamado o mesmo Lcio Statlio, aps este Cetego,

    e ltimo de todos veio Lntulo, que, fora do seu costume, entendo que tinha

    velado toda a noite antecedente ocupado em distribuir as cartas. Pareceu a

    personagens mui principais e ilustres desta corte, que com a notcia desta

    surpresa concorreram a mim em grande nmero, que melhor seria que as cartas

    se abrissem antes de as apresentar ao Senado, para que no caso que nada se

    achasse nelas no parecesse que imprudentemente levantara eu tamanho motim

    na cidade; mas eu repugnei a tal fazer, no querendo expor a matria de um

    perigo pblico, seno em um congresso pblico. Pois ainda no caso, romanos,

    que se no encontrassem as coisas que me tinham denunciado, ainda assim

    julguei que em tamanhos perigos da Repblica no devia recear fazer demasiada

    diligncia. Convoquei, como vistes, um numeroso Senado. E entretanto,

    avisado pelos Albrogos, ordenei a Caio Sulpcio, homem de valor, que fosse

    casa de Cetego, donde ele transportou avultadssimo nmero de punhais e

    espadas.

    4. Fiz que entrasse Vultrcio sem os gauleses, e lhe prometi por ordem

    do Senado salvo-conduto, exortando-o a que sem temor dissesse o que sabia.

    Recobrando ele ento um pouco de medo, disse que Pblio Lntulo lhe tinha

    dado instrues e cartas para Catilina, para que se aproveitasse do favor dos

  • servos, e logo marchasse para Roma com o exrcito; com o projeto de que,

    pondo fogo cidade por toda a parte, como estava delineado e distribudo, e

    feita uma infinita carniceira nos cidados, estivesse ele pronto a embaraar se

    salvassem os que fugissem, e a ajuntar-se com os seus capites da cidade.

    Introduzidos os gauleses, disseram que Lntulo, Cetego e Statlio lhes tinham

    dado cartas para os da sua nao e tomado juramento de fidelidade; e que tanto

    estes como Cssio lhes tinham ordenado que remetessem para a Itlia com toda

    a presteza a cavalaria, pois que tropas de infantaria lhes no faltariam. E que

    Lntulo lhes assegurara que, segundo os vaticnios das Sibilas e respostas dos

    agoureiros, ele era aquele terceiro Cornlio que forosamente haveria de ter o

    governo desta cidade e Imprio; que Cina e Sila tinham sido os dois primeiros

    que lhe precederam; e que acrescentara que este ano, o dcimo depois do

    perdo das vestais e vigsimo do incndio do Capitlio, era o termo fatal desta

    cidade e Imprio. Disseram tambm houvera entre Cetego e os mais este

    debate: que Lntulo e outros queriam se executasse a mortandade nos dias

    saturnais, e que a Cetego lhe parecera demasiada esta demora.

    5. Por abreviar, romanos, fiz que apresentassem as cartas que diziam lhes

    havia dado cada um dos conjurados. Primeiramente mostrei a Cetego o seu

    sinete, cortei o fio, ali; tinha escrito de sua mo: que ele cumpriria ao Senado e

    ao povo gauls o que com seus enviados tinha ajustado; e lhes rogava

    executassem eles tambm o que seus legados lhes ordenassem. Ento Cetego,

    que pouco antes inquirido acerca dos punhais e espadas que se lhe acharam,

    respondera e afirmara que sempre fora curioso de ter boa ferragem; depois de

    lidas as cartas, desanimado e abatido e convencido da prpria conscincia, de

    repente se calou. Introduzido Statlio, reconhecera a sua letra e sinete. Leram-

    se as cartas que continham quase o mesmo; confessou. Mostrei depois a

    Lntulo as cartas, e perguntei-lhe se conhecia o sinete. Disse que sim. E lhe

    tornei dizendo: Bem conhecido este sinete, por ser a imagem de teu av, varo

    esclarecido, que amou cordialmente a sua ptria e cidados e que ainda assim

  • mudo como est te devia coibir de semelhante desatino. Pelo mesmo modo se

    leram as suas cartas para o Senado e povo dos Albrogos. Dei-lhe faculdade de

    dizer o que quisesse sobre a matria sujeita. Entrou ele primeiro a negar;

    passado porm algum tempo, vendo todo o enredo declarado e pblico, se

    levantou, perguntando aos gauleses que negcio tinham com ele; e

    semelhantemente a Vultrcio, e respondendo estes resumidamente e com

    firmeza que o negcio era o para que bastantes vezes tinham sido conduzidos

    sua casa; e como lhe perguntassem se no tinha com eles comunicado nada

    dos vaticnios das Sibilas, aturdido ento com a enormidade do seu delito, deu

    a conhecer quanto pode o remorso da conscincia; porque, podendo-os

    contradizer, contra o que todos julgavam de repente se calou. Tanto como isto

    o desamparou no s aquele talento e eloquncia que sempre teve, mas a

    insolncia e audcia em que a ningum cedia, por fora do crime patente e

    manifesto. Mandou ento Vultrcio que logo se exibissem as cartas que dizia

    ter recebido de Lntulo para Catilina. Aqui, perturbando-se Lntulo

    descompassadamente, reconheceu, no obstante, o seu sinete e letra. Estavam

    escritas sem firma por estes termos: "Quem eu seja o poders saber desse que

    te envio; cuida em portar-te como homem, considera para onde tens de

    caminhar, v o que te necessrio e procura agregar o socorro de todos, ainda

    dos nfimos." Foi depois introduzido Gabnio, o qual, entrando a princpio a

    responder despropositadamente, por fim no negou nada do que os gauleses o

    acusavam. Quanto a mim, romanos, tanto tenho por provas certssimas e

    indcios de crime as cartas, os sinetes, as notas, e enfim as confisses de cada

    um deles, como tenho por muito mais certo a cor, os olhos, os semblantes, o

    silncio; assim pasmaram, assim pregaram os olhos no cho, assim olhavam de

    quando em quando uns para os outros s furtadelas, que j no parecia que

    outrem os descobria, mas eles a si prprios.

    6. Referidas e expostas claramente as provas, romanos, consultei o Senado

    sobre o que queria se fizesse neste importantssimo negcio da Repblica.

  • Proferiram os principais asprrimas e severssimas sentenas, que sem

    discrepncia seguiu todo o Senado. E porque ainda no est lanado em

    escritura o decreto, expor-vos-ei de memria o que julgou o Senado. Em

    primeiro lugar se me deram as graas com honorificentssimas expresses, por

    ter com meu valor, conselho e prudncia livrado a Repblica de sumos perigos.

    Depois disto se deram os merecidos louvores a Lcio Flaco e Caio Pontnio,

    pretores, por terem executados as minhas ordens com valor e fidelidade: e

    tambm ao constante varo meu colega se deu louvor de no ter admitido a

    seus conselhos e da Repblica, os cmplices da conjurao. E assim julgaram

    que Pblio Lntulo, sendo deposto da pretoria fosse preso; e do mesmo modo

    fossem levados priso Caio Cetego, Lcio Statlio, Pblio Gabnio, que todos

    estavam presentes. 0 mesmo se decretou contra Lcio Cssio, que pedira para

    si a incumbncia de pr fogo cidade; e contra Marco Ceprio, a quem se tinha

    declarado estar-lhe encarregada a Aplia, para sublevar os pastores; contra

    Pblio Frio, homem daquelas colnias que Sila estabeleceu em F-sulas;

    contra Quinto nio Chilo, que sempre andara com Frio nesta revolta dos

    Albrogos; contra Pblio Umbreno, homem liberto de quem constava ter sido

    o primeiro que conduzira os gauleses a Gabnio. Deste modo, romanos, se

    houve o Senado com tal brandura que salva a Repblica de to enorme

    conjurao e avultado poder e nmero de inimigos, com o castigo de nove

    homens perdidssimos, entendeu se poderia mudar para bem a teno dos mais.

    Tambm em meu nome se decretaram preces pblicas aos deuses imortais, em

    ao de graas pelo singular favor com que me assistiram, coisa que a nenhum

    togado, seno a mim sucedeu desde a fundao de Roma. 0 decreto era

    concebido nestes termos: por ter livrado a cidade de incndio, os cidados de

    mortandade e a Itlia de guerra. Cujas preces, romanos, se as compararmos

    com as outras, acharemos a diferena, que aquelas foram ordenadas por alguma

    prosperidade da Repblica, estas s pela ter conservado. Portanto, tudo o que

    principalmente se devia fazer, est feito e acabado; porque Pblio Lntulo,

  • ainda depois de convencido pelas provas e pela sua prpria confisso, sendo

    por sentena do Senado degredado no s das prerrogativas de pretor, mas de

    cidado, ainda assim renunciou o magistrado; de sorte que, se o

    nclito Caio Mrio no violou o magistrado quando matou ao pretor Caio

    Glucia, de quem o Senado nada decretara, muito menos o violamos ns

    castigando a Pblio Lntulo.

    7. Agora, romanos, que tendes j apanhados e presos os capites desta

    iniqussima e perigosssima guerra, estais certos que se arruinaram todas as

    tropas, todas as esperanas, todas as foras de Catilina. Por certo que quando

    eu o lancei da cidade, era o meu projeto, romanos, que excludo Catilina, no

    tinha que temer nem a sonolncia de Pblio Lntulo, nem a roncaria de Lcio

    Cssio, nem a detestada fria de Cetego. Aquele era o nico entre todos estes

    que se devia temer, mas s quando estivesse dos muros a dentro da cidade;

    tudo sabia, com todos tinha entrada, tinha poder e ousadia, havia nele talento

    capaz de grandes planos, e este talento no era desacompanhado de eloquncia

    e atividade. Para reduzir a efeito seus diversos desgnios, tinha certos sujeitos

    escolhidos e designados, e quando ordenava alguma coisa no a dava por feita;

    em tudo era presente, previsto, vigilante, ativo; nem o podia contrastar o frio,

    a fome ou a sede. A um homem pois (a dizer o que sinto, romanos), to acre,

    to pronto, to atrevido, to sagaz, to esperto para o mal, to diligente em

    distrbios, se no o obrigasse a sair das traies caseiras para o blico latrocnio,

    mal poderia impedir que viesse sobre vs to horrvel tempestade. No havia

    este pr-vos por prazo de vossas vidas os saturnais, nem anunciar Repblica

    tanto antes o dia do destroo e fatalidade; nem cair no descuido de lhe

    apanharem o sinete, as cartas, as testemunhas claras do delito. Tudo isto na sua

    ausncia se tem feito de modo que jamais furto domstico se descobriu nem

    provou to claramente como esta horrenda conspirao contra a Repblica. E

    se Catilina at o presente dia estivesse na cidade (posto que, enquanto esteve

    me opus e resisti a todos os seus desgnios), contudo, a falar singelamente, me

  • seria preciso brigar com ele; nem com tal inimigo dentro de Roma, livraria de

    tamanhos perigos a Repblica com tanta paz, sossego e silncio.

    8. Todo este negcio, romanos, tenho conduzido de modo que parece

    no se ter nele executado nem disposto coisa alguma, seno por vontade e

    conselho dos deuses imortais; o que no s podemos conjecturar, por parecer

    superior capacidade humana a direo de to relevantes coisas, como porque

    nos acudiram, no presente tempo, com auxlio e socorro to oportuno que

    parece quase os podamos ver com os olhos. Pois ainda omitindo o que se

    refere, de serem vistas da parte do Ocidente fogueiras de noite, e o cu ardendo

    em fogo, como tambm raios e terremotos, e tantas outras coisas que tm

    sucedidas neste meu consulado, que parecia predizerem os deuses imortais o

    que atualmente sucede, o que agora direi no se deve omitir nem deixar em

    silncio. Lembrados estais como, sendo cnsules Cota e Torquato, caram raios

    sobre muitas torres do Capitlio, quando os simulacros dos deuses imortais

    foram derribados, as esttuas dos vares antigos despedaadas, e as tbuas de

    bronze das leis derretidas, e ferido tambm com um raio aquele que fundou

    esta cidade, Rmulo, que, como sabeis estava dourado no Capitlio, em figura

    de menino, aos peitos da loba. Em cujo tempo, concorrendo os agoureiros de

    toda a Toscana, disseram estarem prximas mortandades, incndios, runas das

    leis, guerra civil e domstica, e que se vinha aproximando o ocaso desta corte e

    Imprio, se os deuses imortais, aplacados de todo o modo possvel, no

    desviassem com o seu poder este destino. Por cuja causa, segundo as respostas

    daqueles, se celebraram jogos por dez dias, no se omitindo coisa que parece

    conveniente para aplacar os deuses; os mesmos agoureiros mandaram que o

    simulacro de Jpiter se fizesse mais avultado, e colocasse em pedestal alto e se

    voltasse para o Oriente, ao contrrio do que antes estava; e acrescentaram,

    dizendo, se persuadiam que, se aquele simulacro que vedes visse o nascimento

    do Sol, o foro e cria, todos os projetos que clandestinamente se planejavam

    em prejuzo da corte e Imprio se patenteariam de sorte que o Senado e povo

  • romano os veriam clarissimamente. Mandaram pois os cnsules que na dita

    forma se colocasse; mas tanta foi a morosidade da obra que nem os cnsules

    passados nem ns o colocamos antes do presente dia.

    9. Nestas circunstncias, romanos, quem haver to inimigo da verdade,

    to inconsiderado e insensato, que negue serem todas estas coisas que vemos,

    e em especial esta corte, governadas pela disposio e poder dos deuses

    imortais? pois sendo respondido que pssimos cidados maquinavam

    mortandades, incndios e a assolao da Repblica, o que ento a alguns parecia

    incrvel, por ser uma to exorbitante maldade, agora os vistes no s projetado,

    mas empreendido por cidados perversos. E porventura no se est vendo o

    que parece feito por ordem de Jpiter, mandar eu que o simulacro se colocasse

    ao mesmo tempo em que os conjurados por minha ordem foram levados ao

    templo da Concrdia? o qual, assim que foi colocado e voltado a vs e ao

    Senado, tanto o Senado como vs vistes tudo o que se urdira contra o bem

    comum descoberto e patenteado. Nisto se fazem eles dignos ainda de maior

    dio e castigo, pois no s inteiraram queimar as vossas casas, mas os mesmos

    templos e altares dos deuses com funestos e sacrlegos incndios; se a estes eu

    disser lhes resisti, demasiado louvor me atribuirei a mim prprio, nem

    merecerei que me sofram; aquele Jpiter foi quem lhes resistiu, ele salvou o

    Capitlio, ele estes templos, ele esta cidade, e o que a todos vos quis salvar;

    guiado dos deuses imortais, entrei neste projeto e demanda, e cheguei a

    conseguir to importantes provas. Quanto solicitao dos gauleses, nunca

    Lnulo nem os mais inimigos domsticos confiariam coisas to importantes,

    nem entregariam cartas a homens brbaros e desconhecidos, se os deuses

    imortais no enfatuassem um conselho to desenfreado e atrevido. E parece-

    vos que, chegando a desordenar-se uma cidade vizinha, os gauleses, que so os

    nicos que s podem e querem fazer guerra ao povo romano, desprezariam a

    esperana de um Imprio e coisas tamanhas, que lhe ofereciam vares patrcios,

  • e antepor a vossa conservao s suas riquezas, se no entrasse aqui o poder

    divino? principalmente podendo-nos vencer no pelejando mas calando?

    10. Portanto, romanos, j que se determinou se dessem graas em todos

    os templos, celebrai estes dias com vossas mulheres e filhos; pois sendo certo

    que muitas vezes se tm dado aos deuses imortais os justos e devidos cultos,

    tambm certo que mais justos nunca se deram. Fostes livres de uma morte

    cruelssima e infelicssima, e livres sem mortes, sem sangue, sem exrcito, sem

    batalha. Venceste sendo eu o vosso nico capito e general togado. Se vos

    lembrardes, romanos, de todas as discrdias civis que ouvistes e vistes, achareis

    que Lcio Sila matou a Pblio Sulpcio, desterrou da ptria a Caio Mrio, que a

    havia defendido, e a muitos homens de valor uns desterrou, outros matou. O

    cnsul Cneu Octvio com mo armada lanou fora de Roma a seu colega; todo

    este lugar se alastrou de cadveres e nadou em sangue de cidados. Venceu

    depois Cina com Mrio, e sucedeu que, assassinados os vares mais

    esclarecidos, se extinguiram as luzes desta corte. Vingou de* pois Sila a

    crueldade desta vitria, no preciso dizer com que diminuio de cidados e

    calamidade da Repblica. Desconcordou Marco Lpido com o preclarssimo

    Quinto Catulo; no chorou a Repblica tanto a morte daquele como a de todos

    os mais. Advertindo, romanos, que aquelas discrdias no eram sobre extinguir

    a Repblica, mas mudar de governo; no queriam que no a houvesse, mas ser

    nelas prncipes; nem a queriam abrasar, mas florescer nela. E ainda assim, no

    intentando nenhuma daquelas discrdias a destruio da Repblica, foram tais

    que a no apaziguou alguma amigvel concrdia, mas o estrago dos cidados.

    Porm nesta guerra, a mais enorme e cruel de quantas h memria, guerra tal

    qual nunca gente brbara fez sua nao, e na qual foi por Lntulo, Catilina,

    Cssio, Cetego posta lei que todos que se pudessem salvar da cidade fossem

    tratados como inimigos, me portei de sorte, romanos, que todos ficassem

    salvos; e entendendo os vossos inimigos que s ficariam os cidados que

  • escapassem de uma infinita carnicera, e da cidade aquilo a que no pudesse

    escapar o fogo, eu conservei sos e salvos a cidade e cidados.

    11. Por to relevantes servios vos no peo outro prmio de meu valor,

    nenhuma insgnias de honra, nenhum monumento de glria mais que a

    perptua lembrana deste dia; nos vossos nimos quero depositar todos os

    meus triunfos, todos os adornos de honra, monumentos de glria e insgnias

    de louvor; nada amortecido me pode deleitar, nada mudo, nada do que outros

    menos dignos podem conseguir. A vossa memria, romanos, perpetuar

    minhas aes, as vossas relaes as engrandecero, e as histrias perpetuaro e

    estabelecero; e o mesmo dia que creio ser eterno, se dedicar conservao

    da Repblica e memria do meu consulado; e se dir houvera no mesmo tempo

    nesta cidade dois cidados, dos quais um pusera limites ao Imprio, no com

    os fins da terra, mas do cu, e o outro conservara salda a morada e trono deste

    mesmo Imprio.

    12. Porm como diferente a condio e fortuna das aes que eu obrei,

    e a daqueles que fizeram guerra estranhas, por ter eu de viver com aqueles

    mesmos que venci e subjuguei, e aqueles deixaram os inimigos mortos ou

    sopeados, a vs compete, romanos, cuidar em que, sendo aos outros de

    utilidade as suas aes, as minhas me no sejam de detrimento. Eu acautelei que

    as danadas e malignas tenes de homens atrevidssimos vos no

    prejudicassem; a vs pertence cuidar em que a mim no me danifiquem; posto

    que, romanos, nenhum mal me podem eles fazer, pois tenho grande favor nos

    bons, que ganhei para sempre, grande reputao na Repblica, que sem falta

    me defender, o testemunho da conscincia, que se for desprezado pelos que

    me quiserem ofender a si prprios se manifestaro. Tambm, romanos, me

    acho em tal valor que no s no hei de ceder a nenhum atrevimento, mas

    resolutamente arcar com todos os facinorosos. E se todas as violncias dos

    inimigos domsticos, repelidos de vs, se voltarem contra mim s, a vs toca,

    romanos, mostrar qual h de ser a recompensa dos que pela vossa conservao

  • se expuseram ao dio e a todos os perigos. Quanto a mim, que posso eu mais

    conseguir pela utilidade da vida, principalmente no vendo, acima das

    dignidades e glria com que me tendes honrado, para onde subir? Sendo

    particular, me haverei de sorte, romanos, que conserve e d novo lustro ao que

    obrei no consulado, para que, se alguma malquerena contra, no governo da

    Repblica, s prejudique aos inimigos, e a mim me aumente a glria. Enfim,

    me portarei na Repblica de modo a lembrar-me das aes que fiz, procurando

    mostrar procederam de virtude e no de acaso. Vs, romanos, pois j noite,

    rendei venerao quele Jpiter, guarda dessa cidade e vosso, e retirai-vos a

    vossas casas; e posto que j no haja perigo, contudo as defendei como na

    primeira noite, com guardas e vigias; e eu darei providncia para que no seja

    preciso faz-lo assim mais tempo, e possais viver em perptua paz.

  • Quarta Catilinria

    A ltima catilinria foi pronunciada no dia 5 de Dezembro, numa sesso do Senado,

    convocada no templo da Concrdia, para decidir sobre a sorte dos conjurados que se

    encontravam detidos.

    Aberta a sesso, Silano props a pena capital. Se ops Cesar, com um discurso muito

    hbil, insistindo que nada devia decidir-se que no estivesse conforme mais* estrita

    legalidade, e concluindo com a proposta que os imputados fossem condenados priso perptua,

    distribudos em vrios municpios, e confiscao dos bens.

    Ccero desejava ardentemente que os imputados fossem condenado morte. Porm,

    evidentemente perturbado pelo discurso de Csar, no qual havia uma velada ameaa de

    interveno do seu partido a favor dos conjurados, depois de insistir sobre a gravidade dos

    delitos dos amigos de Catilina, os quais, no seu parecer, mereceriam a morte, declara que est

    pronto a executar o que o Senado resolver. Na perorao lembra novamente os seus

    merecimentos, a sua devoo ptria, os perigos aos quais continua a expor-se para o bem da

    Repblica.

    Os conjurados foram condenados morte, depois de um breve e resoluto discurso de Cato,

    que, na mesma sesso falou depois de Ccero.

    1.Para mim voltados estou vendo, Padres Conscritos, os semblantes e

    olhos de todos; cuidadosos vos vejo no s do vosso perigo e da Repblica,

    mas tambm, quando este agora esteja afastado, do meu. Gostoso me nos

    males, e agradvel no sentimento o vosso afeto para comigo; mas pelos deuses

    imortais vos peo que o ponhais de parte, e que, esquecidos da minha

    conservao, s cuideis da vossa e de vossos filhos. Quanto a mim, se esta a

    sorte do meu consulado, ter eu de tragar todas as amarguras, todas as mgoas,

    todos os tormentos, no s os sofrerei com constncia, mas de boa vontade,

    contanto que a vossa autoridade e a vossa conservao, e do povo romano,

    sejam o fruto de todos eles. Eu sou, Padres Conscritos, aquele cnsul a quem

    nem o foro, centro de toda a equidade, nem o campo dedicado aos auspcios

    consulares, nem o Senado, ltimo refgio de todas as naes, nem a prpria

    casa, comum asilo de todos, nem o leito concedido para o descanso, nem enfim

    este honroso assento e cadeira de magistrado esteve jamais livre de perigos de

    morte e traies. Muitas coisas calei, muitas sofri, muitas perdoei, muitas com

  • particular mgoa minha sarei no vosso temor. Agora, se os deuses imortais

    quiserem que o remate do meu consulado seja livrar-vos a vs e ao povo

    romano de um infeliz estrago, vossas mulheres e filhos e as virgens vestais de

    uma cruelssima vexao, os templos e os santurios, e esta belssima cidade,

    comum ptria nossa, de um horrvel incndio, e a toda a Itlia de guerra e

    assolao, disposto estou a aceitar qualquer fortuna que se me oferecer. Pois se

    Pblio Lntulo se deixou persuadir dos agoureiros que seu nome havia de ser

    fatal para a runa da Repblica, porque no me alegrarei eu de ter sido o meu

    consulado em certo modo fatal para a conservao dela?

    2. Portanto, Padres Conscritos, atendei a vs, acudi vossa ptria,

    resguardei vossas pessoas, defendei vossas mulheres, filhos e cabedais, e a

    honra e conservao do povo romano, e deixai de vos compadecer e cuidar em

    mim. Porque, primeiramente, confio nos deuses imortais, protetores desta

    cidade, que me ho de dar a recompensa que mereo; e em segundo lugar, se

    houver alguma revolta, estou de nimo pronto e aparelhado a morrer. Pois nem

    o homem de valor pode ter morte desonrosa, nem o consular apressada, nem

    o sbio infeliz. Contudo no sou eu de natural to ferrenho que no me comova

    a aflio de um amabilssimo e amantssimo irmo que est presente, nem as

    lgrimas de todos de que me vedes rodeado; a casa me leva o pensamento,

    minha mulher meio morta, uma filha aterrada de medo, e um filhinho que a

    Repblica me parece ter nos braos como penhor do meu consulado; nem

    aquele genro que est em minha presena esperando o xito deste dia. Tudo

    isto me abala, mas de sorte que antes desejo fiquem todos salvos convosco, de

    que acabem eles e eu com toda a Repblica. Portanto, Padres Conscritos, cuidai

    em acudir com remdio Repblica, considerai atentamente as borrascas que

    esto iminentes, se lhe no derdes providncia. No so os sujeitos, que agora

    se propem vossa deciso e severo juzo, Tibrio Graco, que quis segunda

    vez ser tribuno do povo, nem Caio Graco, que quis sublevar os parciais das

    Leis Agrrias, nem Lcio Saturnino que matou a Caio Mmio, mas esto presos

    aqueles que, para abrasarem Roma, tirar-vos a todos a vida, admitirem a

    Catilina, se deixaram ficar nesta cidade. Temos as suas cartas, os sinetes, as

    notas, enfim a confisso de cada um deles; solicitam-se os Albrogos,

  • sublevam-se os servos, chamado Catilina; assentou-se na resoluo de que

    mortos todos no ficasse nem sequer quem lamentasse o nome romano e a

    calamidade de to grande Imprio.

    .

    3. Todas estas coisas depuseram os denunciantes, confessaram os rus e

    vs mesmos julgastes j muitas vezes: primeiramente porque me destes os

    agradecimentos com particulares expresses, asseverando que pelo meu valor

    e diligncia fora descoberta esta conjurao de homens perdidos;. alm disto,

    porque obrigastes a Pblio Lntulo a que renunciasse pretoria; e tambm

    porque julgaste que este e os mais que sentenciastes, se deviam conduzir

    priso; e muito principalmente porque em meu nome decretastes as preces,

    honra que antes de mim a nenhum magistrado se concedeu; e ultimamente, no

    dia de ontem premiastes munificentssima mente os enviados dos Albrogos e

    a Tito Vultrcio; aes todas estas que bem mostram estarem os que

    nomeadamente prendestes sem dvida alguma por vs condenados. Mas eu,

    Padres Conscritos, venho com nimo de vos fazer uma relao como de novo,

    para que sentencieis o feito e determineis o gnero de suplcio. Direi

    primeiramente o que devo em razo do cnsul. Muito tempo h que eu via

    andar na Repblica uma grande insolncia, introduzirem-se novidades e

    fomentarem-se grandes males; mas nunca me persuadi que de entre os cidados

    britasse esta to enorme e perniciosa conjurao. Agora, seja como quer que

    for, para onde quer propendam os vossos pareceres e sentenas, isso o deveis

    assentar antes de noite. Bem vedes a atrocidade do delito que nos foi

    denunciado; se entendeis serem poucos os cmplices, enganai-vos demeio a

    meio. Este mal tem lavrado mais do que se cuida; no s se difundiu pela Itlia

    mas atravessou os Alpes, e inserindo-se solapadamente, se apoderou de muitas

    provncias; j se no pode em modo algum extinguir com detenas ou demoras;

    qualquer que seja o remdio, deveis aplic-lo prontamente.

    4. Vejo, porm, que h duas opinies: uma de Dcio Silano, o qual julga

    devem ser punidos de morte os que semelhante assolao procuraram; outra

    de Caio Csar, que exclui a pena de morte e aprova todo o rigor dos mais

    castigos. Ambas de suma severidade, qual convm graduao dos juzes e

  • gravidade dos fatos. 0 primeiro remata em que se no deve conceder um

    momento de vida, nem deixar gozar deste ar que respiramos queles que a

    todos ns e ao povo romano quiseram tirar a vida, acabar o Imprio e extinguir

    o nome romano, e se lembra que semelhante castigo fora muitas vezes

    executado nesta cidade em cidados protervos. O segundo diz que a morte no

    fora ordenada pelos deuses imortais para castigo, mas que ou indispensvel

    necessidade da natureza, ou descanso dos trabalhos e misrias; pelo que os

    sbios nunca a padecem contra vontade, e os valorosos muitas vezes com ela;

    porm que a priso, e esta perptua, fora inventada para castigo de delitos

    atrozes. Por onde, assenta em que se distribuam pelos municpios. Esta opinio

    parece envolver injustia, se quiserdes ordenar o que prope, e dificuldade se o

    quiserdes rogar; decida-se, no obstante, se assim vos agrada. Eu a tomarei

    minha conta, e confio que acharei quem entenda no desdizer do seu carcter

    executar o que determinardes para utilidade pblica. Grave pena impe aos

    municpios, se algum os soltar das prises; cerca-os de terrveis guardas, dignas

    da maldade de homens to facinorosos; estabelece que ningum por autoridade

    do Senado ou do povo possa mitigar a pena dos condenados; tira tambm a

    esperana, que a nica que costuma consolar o homem nas desgraas; alm

    disto lhes manda confiscar os bens; s a vida deixa aos delinquentes, a qual, se

    lhe tirassem, com uma dor os livraria de muitas da alma e do corpo e de todas

    as penas de seus delitos. E na verdade os antigos, para que os mprobos nesta

    vida tivessem algum temor, pretenderam que nos infernos houvessem castigos

    aparelhados para os mpios, certamente porque entendiam que a morte por si

    s no era para se temer.

    5. Agora, Padres Conscritos, atendo ao que me importa. Se seguirdes a

    sentena de Csar, como este tem seguido na Repblica este caminho que se

    chama popular, talvez eu tenha menos que temer os tumultos do povo, sendo

    ele o autor e sustentador deste projeto; se abraardes a outra no sei se terei

    mais o que fazer; mas, no obstante, prevalea o bem da Repblica s razes

    dos meus perigos. Temos, pois a sentena de Caio Csar como penhor do seu

    perptuo zelo para com a Repblica, segundo a sua graduao e a nobreza dos

    seus maiores o pedia. Conhecida est a diferena que h entre a inrcia dos

  • faladores e um nimo verdadeiramente popular e diligente pelo bem do povo.

    Vejo que entre estes que querem ser tidos por populares no falta quem se

    tenha ausentado, por no dar sentena sobre a vida de cidados romanos,

    havendo anteontem entregado priso cidados romanos, decretado preces

    por mim, e remunerado com grandes prmios os denunciantes. Visto est logo

    o que julgou de todo o feito e causa, quem deu ao ru o crcere, ao inquiridor

    o agradecimento, ao delator prmio. Porm, Caio Csar entende que a Lei

    Semprnia fora posta acerca de cidados romanos e que de nenhum modo

    pode ser cidado romano quem inimigo da Repblica; em uma palavra que o

    mesmo autor da Lei Semprnia fora castigado por mandado do povo; e se no

    pode chamar popular o mesmo estragado e prdigo Lntulo, que to tirana e

    cruelmente projetou a runa do povo romano e assolao desta cidade. Portanto

    no duvida aquele mansssimo e clementssimo varo condenar a Lntulo a

    prises e calabouo perptuo, juntando a isto o sequestro dos bens, para que o

    acompanhem todos os tormentos da alma e corpo at penria e mendicidade.

    6. Por isso, ou assenteis neste parecer e me deis para o anunciador ao

    povo um scio que lhe seja aceito e grato; ou queirais seguir antes a sentena

    de Silano, fcil me ser a mim e a vs livrar-nos da censura de cruis; e ainda

    conseguirei se diga que esta ltima sentena fora a mais branda. Ainda que,

    Padres Conscritos, que crueldade pode haver em castigar to horrendo delito?

    digo isto pela impresso que em mim prprio me causa. Assim eu me possa

    gozar convosco da Repblica salva, como certo que o que me move a ser

    severo nesta causa no ser de nimo cruel (pois, quem mais manso do que

    eu?) mas uma singular humanidade e compaixo. Parece-me estar vendo a esta

    cidade, adorno do universo e asilo de todas as naes, em um momento

    consumida em um incndio; representasse-me na imaginao a ptria sepultada

    e os infelizes montes de cadveres desenterrados; trago diante dos olhos o

    semblante de Cetego, e a fria com que se afadiga na vossa mortandade. Pois

    quando me proponho a Lntulo entronizado, como ele confessou esperava ser,

    fundado nos orculos, a este Gabnio coberto de prpura, e que chegado

    Catilina com o exrcito, me enchem de horror os prantos das mes de famlias,

    a fugida das donzelas, a opresso das virgens vestais; e porque me parece tudo

  • isto lastimoso e digno de compaixo, por isso me porto severo e acre contra os

    que o quiseram executar. Dizei-me se um pai de famlias, vendo que um servo

    lhe assassina os filhos, mata a mulher e pe a fogo a casa, castigar