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  • UM FAZER PERSUASIVO

  • Maria Jos R. Faria Coracini

    UM FAZER PERSUASIVO O Discurso Subjetivo da Cincia

    1 9 9 1

  • Catalogao na Fonte Biblioteca Central/PUC-SP

    Coracini, Maria Jos Rodrigues Faria Um fazer persuasivo : o discurso subjetivo da

    cincia / Maria Jos Rodrigues Faria Coracini. - 1. ed. - So Paulo : Educ ; Campinas, SP : Pontes, 1991.

    216 p. ; 21 cm. - (Linguagem - ensino) Bibliografia. ISBN 85-283-0018-8 (Educ)

    85-7113-055-8 (Pontes) 1. Ensino da lngua. 2. Anlise do discurso. 3.

    Filosofia da cincia. I. Srie. II.Ttulo. CDD 19 407

    801 501

    copyright 1991 Maria Jos R. Faria Coracini CORPO EDITORIAL

    Educ - Editora da PUC-SP Diretora Editorial Marijane Vieira Lisboa Editora Anaelena Pereira Lima Produo Grfica Fernanda do Val Produo de Texto Dany AI-Behy Kanaan Reviso de provas Ana Maria de O. Mendes Barbosa Carmen T.S. da Costa Composio de Texto Edna Maria do Nascimento Jussara Rodrigues Gomes Capa ngela Mendes Pontes Editores Gerente Editorial Ernesto Guimares

    Educ Editora da PUC-SP Rua Monte Alegre, 984 0 5 0 1 4 - S o P a u l o - S P Te l . : 62-0280 Pontes Edi tores Rua Maria Monteiro, 1.653 13025 - Camp ina s - SP Caixa Postal 1301 13001 - Campinas - SP

    Te l . : (0192) 52-6661 Fax: (0192) 53-4051

  • A minha me in memoriam

    Ao Celso, Karen, Celso Eduardo e Erika

  • "No dia 13 de agosto de 1979, dia cinzento e triste, que me causou arrepios, fui para o meu laboratrio, onde, por sinal, pendurei uma tela de Bruegel, um dos meus favoritos. L, trabalhando com tripanossomas, e ven-cendo uma terrvel dor de dentes..."

    No. De sada tal artigo seria rejeitado, ainda que os resultados fossem soberbos. O estilo... O cientista no deve falar. o objeto que deve falar por meio dele. Da o estilo impessoal, vazio de emoes e valores:

    observa- se, constata- se,

    obtm- se, conclui- se.

    Quem? No faz diferena...

    Rubem Alves

    Os fenmenos so o que os enunciados associados asseveram que eles sejam. A linguagem que "falam"

    est, naturalmente, influenciada pelas crenas de geraes anteriores, mantidas h tanto tempo que no

    mais parecem princpios separados, apresentando-se nos termos do discurso cotidiano e parecendo, aps o

    treinamento natural exigido, brotar das prprias coisas.

    Feyerabend

  • =

  • SUMRIO

    PREFCIO ............................................................................................... 11

    APRESENTAO .................................................................... 17

    INTRODUO ........................................................................................ 19

    Parte I. A CINCIA E O SEU DISCURSO 1. Perscru tando a F i losof ia da Cinc ia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2 . O Discurso Cientfico Primrio e Outros Discursos

    Onde o Discurso Cientfico 'se Aproxima' do Discurso Poltico .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Discurso Jurdico Processual versus Discurso Cientfico Primrio (Algumas Consideraes) ... . . . . . . . . . 47

    Parte II. O TESTEMUNHO DOS CIENTISTAS 1. Um Fazer Invertido .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    Parte III. A MANIFESTAO DA SUBJETIVIDADE 1. A Organizao Macrodiscursiva:

    uma Estratgia Subjetiva ................................................ 83 2. O Tempo e a Pessoa no Discurso Cient f ico . . . . . . . . . . . . . . 90 3. E a Ques to da Modal idade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 4. A Metfora no Discurso Cientf ico:

    Expresso de Subjetividade? .... .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 5. A Heterogeneidade como Recurso Argumentativo . . . .... 147

    Parte IV. POR UMA VISO DISCURSIVA DA SALA DE AULA... 1. Leitura e Expresso Escrita: Algumas Reflexes .. . . . . . . . 175

    CONCLUSO ......................................................................................... 189

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................... 195

    REFERNCIAS AO CORPUS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 ANEXO ................................................................................................. 209

  • PREFCIO

    Kanavillil Rajagopalan*

    Neste livro a prof dra. Maria Jos R. F. Coracini discute uma questo de suma importncia para todos os que lidam com a linguagem, ou melhor, simplesmente para todos. Isso porque est na mira da autora o emprego desse instrumental vital e indispensvel por nada mais nada menos do que cientistas profissionais que, querendo ou no, exercem uma enorme influncia no dia-a-dia do cidado comum. At que ponto esses 'altos sacerdotes do templo secular do saber cientfico' conseguem, como sustenta a crendice popular, manter-se acima dos interesses mundanos, assim como das vaidades e dos demais sentimentos prprios dos seres humanos de carne e osso? Em que medida o discurso desses profissionais confirma e evidencia efetivamente a to decantada neutralidade, isto , total iseno dos interesses ideolgicos que subjazem a qualquer outro campo de atuao humana? possvel, enfim, que a linguagem dos cientistas seja, como tende a acreditar o leigo, testemunho perfeito da chamada objetividade cientfica? So algumas das perguntas que este livro procurar responder.

    O advento do iluminismo a Era da Razo , no final do sculo XVIII, trouxe consigo o grande sonho emancipatrio. At que enfim

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  • enxergava-se uma luz no final do tnel. Auxiliado pela Razo, pela cincia, o homem moderno podia acalentar a esperana de, um dia, derrotar definitivamente a superstio, a magia, a religio, que o apri-sionara durante sculos.

    Um fato curioso, porm, que a metfora que inspira o prprio termo 'iluminismo' (Aufklrung em alemo, Lumires em francs, En-lightenment em ingls) lembra uma velha conhecida: a que animou em outras pocas distantes a lenda de Prometeu, a imagem da 'caverna' em Plato, ou ainda as suas inmeras variantes no discurso das mais diversas religies. No de se estranhar, portanto, que Alexander Pope, poeta ingls dessa poca, no tenha achado maneira mais apro-priada de saudar a Era da Razo seno ecoando as palavras da prpria Bblia Sagrada: "A noite encobria a Natureza e suas leis / Deus disse: Faa-se Newton! E tudo foi luz".

    Hoje, quase s vsperas da entrada gloriosa do sculo XXI, pouca gente, talvez, se d conta de que a cincia j se apropriou do lugar outrora ocupado pela magia ou pela religio. A cincia hoje a religio do homem moderno, que se considera 'iluminado'. Enquanto a tecnologia lhe fornece incessantemente novos inventos e engenhos 'milagrosos', a fico cientfica mantm acesa a promessa de perspec-tivas cada vez melhores e mais incrveis, e a chamada literatura de di-vulgao cada vez mais proeminente nos jornais e revistas de con-sumo em massa cumpre a sua misso de levar aos quatro cantos do mundo a palavra da 'razo cientfica'. To inquestionvel se tem tor-nado o prestgio da cincia entre os leigos nos dias de hoje que qual-quer gesto que possa ser interpretado como uma ameaa a sua hege-monia corre o risco de ser taxado de blasfmia, ou, no mnimo, sub-metido ao ridculo pblico. Tendo libertado o homem do seu longo e tenebroso sono como chegou a imaginar o filsofo alemo Ima-nuel Kant , o iluminismo fez com que ele comeasse a sonhar nova-mente, s que, dessa vez, acordado.

    No entanto, houve quem, em meio a toda essa festana, se reti-rasse a um canto solitrio por desconfiar das bases metafsicas da nova doutrina. Houve quem se atrevesse a desafi-la em suas pretenses a uma verdade absoluta e sobre-humana. Estamos nos referindo figura inesquecvel de Friedrich Nietzsche. Enquanto Nietzsche denunciava a grande jogada retrica que ele atribui a Scrates, jogada essa que enalteceu o discurso apolnio e, no mesmo gesto, identificou a retrica do adversrio com a irracionalidade, o seu conterrneo e contemporneo Karl Marx estava a, insistindo no imperativo sociol-gico at mesmo na constituio do saber cientfico.

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  • A abordagem sociolgica da cincia se coloca visceralmente contra a viso engendrada pelo positivismo lgico, que, a despeito do relativo desprestgio nos dias de hoje, continua ainda a ditar as regras, por exemplo, na forma do cientismo, o nome que se d crena, bas-tante arraigada at mesmo entre alguns dos melhores cientistas con-temporneos, de que as chamadas cincias do homem devam tentar emular as ditas exatas. Enquanto este prega que a cientificidade fruto da anulao, dentro da atividade de pesquisa, de todos os valo-res humanos, aquela nos lembra que, por se tratar de uma atividade e no de um simples corpo de conhecimentos, intil, para no dizer perverso, encarar a cincia como qualquer coisa que no seja humana por excelncia.

    Dentro de uma abordagem sociolgica, a prpria matemtica a rainha de todas as cincias , que Leibniz afirmou ser a linguagem perfeita mediante a qual Deus se comunicaria, passa a ser considera-da, antes e sobretudo, uma atividade como qualquer outra. Com efei-to, torna-se imprescindvel compreender primeiro as especificidades da vida social que os matemticos levam e, em seguida, abordar seu discurso como um objeto de estudo semiolgico da mesma forma que qualquer outro discurso. Pois os enunciados que esses estudiosos pro-duzem tambm no escapariam, de maneira alguma, condio de se-rem atos de fala no sentido de J. L. Austin, e, como tal, sujeitos s mesmas condies de emprego e aceitao que regem todo e qualquer enunciado.

    Sob o enfoque sociolgico, a atividade cientfica comea a re-velar alguns aspectos ainda mais surpreendentes. Por detrs da facha-da do consenso, da opinio paciente e cautelosamente formada, das concluses e certezas confiantemente divulgadas muitas vezes com pompa e estardalhao ao pblico leigo, descobre-se uma luta sem trgua, cheia de intrigas e manobras bem planejadas, entre os partid-rios de orientaes tericas distintas e incompatveis entre si. A meta sempre conquistar a soberania sobre o campo e estabelecer uma nova ordem que se convencionou chamar 'paradigma', no rastro do trabalho de Thomas Kuhn. De acordo com Kuhn, a substituio de um paradigma por outro no significa necessariamente um progresso de vez que cada paradigma tende a postular novas regras do jogo e tam-bm as meta-regras necessrias para avaliar os mritos ou demritos de conjuntos de regras alternativas. Essa conseqncia da posio as-sumida pelo autor, um tanto desconcertante, principalmente para o leigo que se entregou de corpo e alma aos encantos da cincia e as suas promessas de melhores dias, encontra oposio ferrenha nas

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  • mos de, entre outros, Karl Popper, para quem h um critrio de fal-seabilidade que garante que a cincia no caia no mesmo terreno dos belos contos de fada.

    Mesmo que no cheguem a constituir-se em belos contos de fa-da, nossas teorias no passam de 'livres criaes da mente humana'. Quem assina embaixo o prprio Albert Einstein 1 , 'monstro sagrado' da cincia moderna, modelo indiscutvel da pesquisa cientfica e, por sinal, dolo incondicionalmente reverenciado pelo prprio Popper.

    Num artigo recente, Paul Feyerabend, porm, nos recomenda cautela quanto aos exageros da idia da criatividade individual, pois, como lembra o autor, tal idia "... s faria sentido se os seres huma-nos fossem entes inteiramente autnomos, separados do restante da natureza, com idias e vontades prprias e exclusivas"2.

    A colocao de Feyerabend lembra a famosa frase de John Donne, poeta ingls, de que nenhum homem se constitui em uma ilha. Ela vai ao encontro, tambm, da tese defendida pelo filsofo austraco Ludwig Wittgenstein a respeito da impossibilidade, at mesmo no plano conceptual, de uma linguagem privada, isto , uma linguagem qual um nico indivduo tenha acesso privilegiado e exclusivo.

    Estamos, portanto, de volta ao terreno do social. A linguagem, mesmo dos cientistas, e necessariamente compartilhada entre os pares. Isso significa que a subjetividade do discurso cientfico em ltima anlise, a marca indelvel da sua origem humana exige ser pensada em concomitncia com a intertextualidade, a polifonia que habita e permeia todo discurso.

    Ora, estamos a um s passo da idia que, nos ltimos tempos, ganhou corpo entre um nmero cada vez maior de pensadores, dentre os quais Michel Foucault, Jacques Derrida, Paul de Man e outros, de que, em momento algum, estaramos fora da textualidade. Por conse-guinte, na prpria textualidade que devemos procurar os vestgios da subjetividade.

    Ocorre que o sujeito precisa fazer ouvir a sua voz e, se possvel, torn-la a voz da coletividade, mediante interao intertextual. O su-jeito, em outras palavras, precisa conquistar seu espao, que nunca lhe dado gratuitamente. Uma voz no ouvida na linguagem uma voz abafada, silenciada, e, em ltima anlise, nem sequer produzida.

    1. Cf. Albert Einstein, 'Physics and reality' (Ideas and opinions, New York, Harper & Row, 1954, p. 291).

    2. Cf. 'Creativity - a dangerous myth!' (University Johns Hopkins, Critical inquiry, 13(4): 702, 1987).

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  • Conquistar seu espao significa engajar-se na luta. A prpria linguagem comea, a essa altura, a se revelar como um palco de luta na melhor tradio agonstica da Grcia Antiga, a respeito da qual Nietzsche confessou sentir tanta saudade. Trata-se de uma viso da linguagem totalmente ofuscada pela prtica vigente de nela procurar indcios de um comportamento regrado e regido por uma razo trans-cendental, nutrido por um esprito de cooperao e tica liberal.

    Quem tematiza, de modo contundente, essa situao dramtica Jean-Franois Lyotard, que exorta os cientistas da era ps-moderna a no se eximirem dos novos desafios e a perseguirem, com determina-o, a nica meta vivel que resta, qual seja, a de trazer tona as instabilidades que se escondem at mesmo naquilo que, pela fora de uma longa tradio, parece, para cada um de ns, o mais rigoroso de todos os discursos, a saber, o nosso prprio metadiscurso, desesta-bilizando, dessarte, todo o discurso de metanarrao.

    Ao longo dos pargrafos acima, no procurei nada mais do que propiciar ao leitor desse livro uma viso geral do campo, destacando algumas das principais questes em jogo.

    Originalmente projetado e executado como tese de doutoramento e defendido com distino e louvor na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, o trabalho da prof Coracini passa em revista muitas das questes que rascunhei acima e algumas outras. Tive o prazer e o privilgio de acompanh-lo passo a passo ao longo de sua confeco. Como o leitor verificar por si mesmo, trata-se de uma obra que con-sumiu muitas horas de trabalho bibliogrfico rduo e de reflexo deti-da. Alm de cobrir uma vasta literatura, o livro tambm traz, de um ponto de vista contrastivo, que envolve discursos cientficos em por-tugus e em francs, dados que comprovam as marcas de subjetividade no discurso cientfico, marcas estas que os prprios cientistas, produtores conscientes de tal discurso, relutam, de modo geral, em reconhecer.

    Campinas, 28 de abril de 1991

    * Kanavillil Rajagopalan doutor em Cincias: Lingstica Aplicada, pela PUC-SP, pro-fessor do Departamento de Lingstica do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. especialista em Filosofia da Linguagem.

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  • APRESENTAO

    O presente livro se constitui de verses reelaboradas de comuni-caes apresentadas em congressos, artigos em revistas especializadas e captulos reescritos de minha tese de doutoramento intitulada A subjetividade no discurso cientfico: anlise do discurso cientfico primrio em portugus e em francs.

    Produto de minhas pesquisas no mbito do discurso cientfico, pretende esta obra contribuir, ainda que modestamente, para reflexes lingstico-filosficas sobre a cincia e o seu fazer persuasivo, sobre a metodologia de anlise do discurso e sobre questes relativas ao en-sino das habilidades de compreenso e produo escritas.

    Quero deixar aqui registrados os meus agradecimentos aos pes-quisadores da Faculdade de Biocincias da USP, que tanto contribu-ram para a realizao da pesquisa de que decorre este livro e, em es-pecial, aos professores A. Deves e K. Rajagopalan por sua orientao e amizade. Meus agradecimentos tambm ao colega e amigo Paulo Ottoni pela leitura criteriosa deste trabalho.

    So Paulo, abril de 1991

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  • INTRODUO

    Professora de francs instrumental na PUC-SP, para a rea de humanas, e na Universidade de So Paulo, para a rea de biocincias, havia alguns anos, impressionava-me a atitude passiva dos alunos futuros bilogos e ps-graduandos diante dos textos da rea: raramente questionavam os contedos, as concluses, a metodologia, o objeto de estudo... No se davam conta do efeito de 'camuflagem enunciativa', porque no questionavam nem o contedo nem a forma: habituados que estavam, por exemplo, ao carter de iseno e distanciamento do sujeito, revelado no texto pela no-explicitao do agente-pesquisador e enunciados, surpreendiam-se apenas quando os textos franceses rompiam, de certo modo, com o padro habitual dos textos brasileiros, explicitando, por vezes, a origem enunciativa atravs do pronome nous (ns) e narrando a experincia no 'presente do indicativo', quando estavam habituados com a 'voz passiva' e/ou narrao no 'pretrito perfeito simples'. Pareciam partilhar da idia, aparentemente consensual, de que o artigo cientfico devia obedecer a uma estrutura convencional e transparecer a busca da verdade absoluta e objetiva, prpria das investigaes cientficas.

    Tal atitude passiva se explicaria, talvez, por duas razes: a) uma, de ordem textual; e b) outra, de ordem pedaggica. A impresso

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  • de fidelidade aos fatos, causada pelo texto cientfico, torna-o aparentemente irrefutvel: os recursos lingsticos so escolhidos pela comunidade cientfica de forma a banir toda ambigidade e polissemia, isto , a causar impresso de objetividade; acredita-se que " ... a forma concisa e despida de ornamentos se presta mais expresso das verdades cientficas" (Possenti, 1981).

    A segunda razo que, na verdade, reflexo da primeira, transparece no tratamento que freqentemente dado ao texto em qualquer disciplina curricular: em lugar de instrumento, o texto passa a funcionar pedagogicamente como objeto um todo que tem um fim em si mesmo, isto , na aquisio, por parte do aluno, do contedo que veicula. Isso fica bastante claro na atitude de alguns professores frente ao grupo de alunos com relao ao texto: a melhor leitura (e, por vezes, a nica, quando constitui o contedo a ser aprendido) aquela que se aproxima da leitura do professor; as demais so falhas ou, pelo menos, pouco perspicazes. Assim, tem-se a iluso de que o texto contm a verdade e de que o professor o indivduo capaz de 'capt-la' mais facilmente para 'transmiti-la'.

    Em vista dessas constataes passo a interrogar o conceito de objetividade/subjetividade expresso pela linguagem e, mais particu-larmente, o carter objetivo do discurso cientfico. Para tanto, resolvi:

    1) trabalhar com artigos cientficos de tipo primrio, por me parecerem mais de acordo com o padro de objetividade que tencionava analisar. O prprio nome sugere uma aproximao mais imediata com o referente, uma vez que pretende relatar uma experincia cientfica, em comparao com outros textos que se relacionariam num grau inferior (secundrio, talvez);

    2) na rea das 'cincias biolgicas', porque esse campo me era pedagogicamente mais familiar e porque me parecia menos explorado quanto ao questionamento da 'objetividade'.

    A pesquisa objetivava ento: 1) propor uma anlise do discurso cientfico primrio capaz de dar

    conta da hiptese central, segundo a qual o discurso cientfico, a despeito das aparncias, altamente subjetivo, constituindo, assim, um fazer persuasivo;

    2) refletir sobre os processos de construo do sentido com relao ao discurso cientfico primrio processos de produo e de compreenso;

    3) perceber diferenas e semelhanas lingstico-culturais entre o discurso cientfico brasileiro e francs, relacionadas com a expresso da subjetividade tal como a concebo (ver adiante);

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  • 4) refletir sobre as possveis decorrncias para a pedagogia em geral, e para o ensino de lnguas em particular.

    Para efetuar a anlise do discurso cientfico primrio, procedi da seguinte maneira:

    1) com o intuito de conhecer as condies de produo do dis-curso cientfico primrio, os implcitos ideolgicos, bem como as convenes que determinam as formas de expresso, recorri: a) filo-sofia da cincia na busca de definies sobre cincia, seus objetivos, seus mtodos (ver Parte 2); b) a outros tipos de discurso que, centra-dos tambm na evidncia emprica (discurso poltico de plataforma e discurso jurdico processual), pudessem trazer, por comparao, da-dos elucidativos para uma melhor compreenso do discurso em ques-to (ver Parte 3);

    2) para conhecer mais de perto, embora genericamente, a comu-nidade cientfica atualmente em exerccio, entrevistei, mediante ques-tionrio escrito, 16 cientistas, atuando na Universidade de So Paulo, na rea de biocincias. O questionrio se constitua de 13 questes, que pretendiam explicitar as condies reais de produo do discurso, a relao que existe entre as etapas que constituem o processo discur-sivo: experincia cientfica propriamente dita e elaborao do artigo. Recolhi, ainda, material que permitiu verificar as etapas por que pode passar um artigo at sua publicao (exigncias da revista) (ver Parte 4);

    3) com base nessas consideraes que determinam algumas condies de produo do discurso cientfico primrio, passei anlise do corpus, que se constituiu de 35 artigos escritos em francs e outros 35 em portugus e publicados em revistas especializadas fran-cesas e brasileiras. A anlise contrastiva realizada se apoiou no cor-pus de lngua portuguesa, pressupondo que este seja o percurso natural e intuitivo do leitor de lngua estrangeira; apenas quando as diferenas se fizeram sentir a partir do corpus francs que procedi in-versamente (ver, p. ex., Parte 3, Cap. 2).

    Partindo, pois, da determinao do componente situacional, cheguei anlise do componente lingstico propriamente dito, anali-sando o tempo e a pessoa, a modalidade, a linguagem metafrica e o fenmeno da intertextualidade como manifestaes da subjetividade discursiva.

    A escolha dos fenmenos lingsticos analisados se justifica pelo fato de serem normalmente vistos como 'sinais' (shifters, no di-zer de Jakobson), na medida em que relacionam a linguagem com os dados situacionais. Tentei, no entanto, neste livro, provar o contrrio,

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  • isto , que tais 'sinais' camuflam uma subjetividade constitutiva do processo discursivo.

    Por fim, com apoio na pesquisa realizada e relatada nos vrios captulos, teo algumas reflexes sobre a leitura e produo escrita.

    A presente pesquisa se alicera teoricamente nas idias defendidas por filsofos da linguagem como Austin (1962), Derrida (1967), Foucault (1969), Bourdieu (1982) que, grosso modo, ao questionarem a viso estruturalista e positivista da linguagem assumida por vrios estudiosos, questionam tambm o postulado de 'imanncia' (postulado esse que afirma a necessidade metodolgica de se estudar a lngua pela lngua, desconsiderando o que tradicionalmente tido como componente 'extralingstico') e as dicotomias linguagem literal/linguagem polissmica (os significados no literais so comumente vistos como marginais, 'figuras' de linguagem e, portanto, 'desvios' da norma), forma/contedo, alm da oposio cincia/esttica que corresponde oposio clssica objetivo/subjetivo.

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  • PARTE I

    A CINCIA E O SEU DISCURSO

    Devemos confiar apenas provisoriamente no que quer que aceitemos...

    Feyerabend

  • 1 PERSCRUTANDO A FILOSOFIA DA CINCIA...

    Entender o discurso cientfico pressupe compreender os con-ceitos vigentes de cincia, os mtodos criados, as regras elaboradas para determinados fins, as relaes entre o paradigma vigente, a cin-cia normal e as revolues cientficas... (cf. Kuhn). Para tal, o recurso epistemologia se torna imprescindvel. Por essa razo, tecerei, neste captulo, algumas consideraes sobre o objetivo e mtodos da cin-cia e sobre a noo de progresso, focalizando, nesse item, trs filso-fos da cincia: Popper, Kuhn e Feyerabend; e, finalmente, questes relativas linguagem cientfica.

    1.1. OBJETIVO E MTODOS

    "O objetivo [da cincia] descobrir uma ordem invisvel que transforme os fatos de enigma em conhecimento" (Alves, 1984; p. 40). Tal definio leva a reconsiderar o aparecimento da cincia e o seu objetivo primeiro: a aparncia catica e desorganizada do universo no possibilitava ao homem chegar ao conhecimento, isto , compreenso profunda dos seres e fenmenos; isso s parecia ser pos-

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  • svel mediante estudos sistematizados e minuciosos dos componentes fsicos, do comportamento dos seres, das reaes em cadeia, enfim, da apreenso da ordem e organizao dos elementos, de modo a tornar os fatos familiares, manipulveis e, portanto, utilizveis. Essa viso utilitria da cincia (valor de uso, segundo Lyotard, 1988) permanece hoje na sua aplicao tecnologia. A cincia passa, ento, a ser vista como uma ponte entre o conhecimento e a tcnica, desta sofrendo tambm influncias. Tal concepo, entretanto, no surgiu repentinamente.

    H muitos sculos se acredita que o objetivo magno da cincia est na busca do conhecimento objetivo, ou seja, comprovado, dos seres e fenmenos do Universo. A concepo de objetividade apresentou-se sob duas facetas distintas: a prova do intelecto e a prova dos sentidos. No primeiro caso, conhecer significaria penetrar pela razo na 'verdade' dos seres e fenmenos naturais. O conceito de verdade assumiria aqui a acepo de realidade essencial dos fatos e o nico meio que o homem via a sua disposio para realizar sua tarefa era a prpria conscincia, a prpria razo (cf. Descartes).

    A sabedoria e a integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mo das afirmaes no provadas e minimizasse at o pensamento o hiato existente entre a especulao e o conhecimento estabelecidos. (Lakatos, 1979; p. 110)

    Bastaria lembrar a corrente dos cientistas que, apegados ma-temtica, legaram posteridade teorias altamente abstratas, produtos de elaborao mental e da capacidade de raciocnio: Coprnico, Kepler e Galileu so alguns desses nomes.

    No segundo caso, o da prova dos sentidos, a base do conhecimento estaria na concepo de que a verdade dos fatos s poderia ser atingida pelos sentidos: era o mtodo indutivo por excelncia. Sabe- se, porm, que o ato de observar, de sentir, depende sobremaneira das caractersticas individuais (habilidade e treino), das idias que o cientista tem sobre o que seja fazer cincia e da perspectiva que ele assume diante do objeto. Polanyi (1964) lembra com pertinncia as teorias de Coprnico e Ptolomeu: aquela considerada mais objetiva do que esta e, no entanto, Ptolomeu atendeu com maior fidelidade s percepes sensoriais do homem comum, descrevendo o que era capaz de ver a partir do nosso planeta. Coprnico, dando continuidade ao movimento de abstrao iniciado por Plato, assumiu uma posio radi-

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  • calmente oposta: visualizou o universo a partir do Sol, contribuindo, assim, para a construo de teorias com amplo poder explicativo, capazes de predizer outros fenmenos ainda desconhecidos, sem que se prestassem comprovao emprica.

    No entanto, a idia de que o objetivo de busca da verdade cientfica s poderia ser atingido pelos sentidos e, portanto, pela observao foi bastante explorada pelos positivistas e levada ao extremo pelos empiristas lgicos que reduziram o ideal da verdade demonstrada ao ideal da verdade provvel, estatisticamente mensurvel, estatisticamente predizvel. Assim, fica deslocado o objetivo da cincia: no mais captar a realidade dos fatos por meios humanos, mas atingi-la por meios mecnicos, estatsticos, como se a quantidade pudesse constituir um critrio 'objetivo', " ... livre de dolos e intromisses indevidas de nossas emoes" (Alves, 1984; p. 139) e, por isso mesmo, eficiente e rigoroso. Conhecer passou a consistir em atingir a essncia dos fenmenos a princpio, naturais, depois sociais e psquicos atravs de frmulas estatsticas. O uso atual do computador na investigao cientfica prova dessa crena na mensurabilidade e na exatido dos nmeros. Alis, como mostra Lyotard (1988; p. 3),

    ... o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita ps-industrial e as culturas na idade dita ps- moderna". Se antes o saber estava diretamente relacionado com o sujeito (aquele que sabe) e com o seu valor de uso, hoje, com a hegemonia da informtica,

    ... o saber e ser produzido para ser vendido, e ele e ser consumido para ser valorizado numa nova produo: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu prprio fim; perde o seu 'valor de uso' (id., ibid.; p. 5).

    Retomando a definio inicial extrada de Alves (1984), pode-se afirmar que o objetivo da cincia tem sido, no 'descobrir', mas construir o conhecimento humano com base na sistematizao, na or-ganizao dos fatos que se entrelaam e se relacionam. Captar essas relaes tarefa do cientista que, inserido num determinado contexto histrico-social, partilha com outros cientistas a crena num paradigma, em normas prescritivas que lhe possibilitam 'ver' desta ou daquela maneira os fatos, os seres, os fenmenos naturais.

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  • 1.2. A NOO DE PROGRESSO DA CINCIA...

    Como coloquei no incio, trs so os filsofos da cincia que pretendo considerar, Popper, Kuhn e Feyerabend, ainda que breve-mente, por constiturem, no meu modo de ver, trs tendncias ainda muito atuais de conceber o progresso cientfico e a seleo de teorias.

    1.2.1. POPPER E O MTODO DO FALSEAMENTO

    importante lembrar que Popper defende o mtodo dedutivo para a cincia, segundo o qual o embasamento terico deveria constituir o ponto de partida do trabalho cientfico. Assim, a investigao cientfica seguiria o esquema problema-soluo. Para ele, diferena dos indutivistas, os problemas no adviriam da observao dos fenme-nos, mas da(s) prpria(s) teoria(s) vigente(s), que j no satisfaz(em) o cientista diante da sua tarefa de faz-la(s) corresponder aos fatos.

    Nossas teorias de fabricao humana podem colidir com aqueles fatos reais e assim, em nossa procura da verdade, podemos ter de ajustar ou desistir delas. (Popper, 1975; p. 302)

    justamente essa necessidade de mudana exigida pelo prprio objetivo de estudo que faz progredir a cincia. So exatamente os momentos de revoluo cientfica, em que se busca uma maior ade-quao da teoria aos fenmenos observados (aproximao da verdade objetiva, no dizer de Popper, 1979a; p. 9), que interessam para o de-senvolvimento da cincia.

    Segundo Popper (id., ibid.; p. 8), o progresso do conhecimento cientfico segue o mesmo mtodo utilizado para a aquisio do conhe-cimento pr-cientfico, isto , o mtodo de aprender por ensaio e erro de aprender a partir de nossos erros. A cincia progride, pois, me-dida que as falhas das teorias anteriores, na aplicao a determinados objetos de estudo, provocam perodos de revoluo, caracterizados pelo descontentamento e pela busca de paradigmas mais adequados; tais revolues, segundo Popper, acarretariam o avano da cincia. O autor considera que buscando o erro que se busca a verdade; 'fal-seando' uma teoria que se promove a cincia teoria do falseamento (id., ibid.; p. 28).

    Preocupado em perceber, na histria da cincia, um mtodo efi-ciente para submeter criticamente prova as teorias e selecion-las a

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  • partir dos resultados obtidos nica maneira de se fazer teorias novas Popper (1972; p. 30) se posiciona a favor do 'mtodo dedutivo da prova', segundo o qual "... uma hiptese s admite prova emprica aps haver sido formulada".

    Se somos capazes de afirmar, em s conscincia, que a teoria da gravidade de Einstein no verdadeira, mas se aproxima mais da ver-dade do que a de Newton, porque nos servimos de certos critrios, que Popper denomina 'falseamento'. Atravs de sucessivas verifica-es empricas, os cientistas 'normais' isto , aqueles que apenas 'aplicam' as teorias vigentes, sem nenhuma criatividade podem de-tectar, nessas teorias, falhas e eventuais limitaes.

    Alguns dos critrios assinalados por Popper para submeter prova uma teoria, ou seja, para test-la, so: a) a comparao lgica da teoria (para pr prova a coerncia interna do sistema); b) investi-gao da forma lgica da teoria (para verificar se a teoria emprica, cientfica ou _tautolgica); e c) comparao com outras teorias (para determinar se a teoria representa um avano de ordem cientfica no caso de ter passado satisfatoriamente nas vrias provas).

    Dessa forma, vem-se os erros revelados pela verificao emp-rica, verificao esta que leva substituio de uma teoria por outra ou a sua reformulao. Observe-se, no entanto, que se o descontenta-mento ocorre na prtica normal da cincia, a sua soluo s emerge graas genialidade de algum especialista que consegue provar que seu paradigma capaz de suplantar o anterior.

    ao mtodo do falseamento que Popper confere a qualidade de 'verdade absoluta' ou 'objetiva', embora, conforme ele prprio declara em seu artigo (1979b), no se considere um 'absolutista', pois no acredita que ele ou qualquer outra pessoa tenha a verdade 'no bolso'. Essa 'objetividade' provm do fato de que "... em cincia, por exem-plo, sempre possvel o confronto crtico de teorias concorrentes, dos referenciais que competem entre si" (p. 70). A possibilidade de es-colha garante, de certa forma, a existncia de critrios adotados me-diante reflexes, aplicaes e comparaes das vrias teorias.

    Seguindo essa linha de pensamento, foi graas concepo es-truturalista da lngua que surgiu, para se contrapor, a teoria gerativa, enfatizando, contrariamente primeira, o aspecto criativo da aquisi-o da linguagem e a existncia de uma estrutura profunda, nica ca-paz de gerar em nosso crebro os enunciados da estrutura superficial. Verificando a ineficincia destas gramticas diante dos fenmenos semntico-textuais, surgiram lingistas que tentam desenvolver mo-

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  • delos textuais capazes de dar conta desses fenmenos. As correes tericas no anulam, entretanto, as teorias precedentes ou as demais teorias concorrentes. por isso que Popper considera que na cincia e s nela que podemos dizer que fizemos progressos genunos e que sabemos mais agora que antes (Popper acredita no acmulo de conhecimento). na intersubjetividade das provas que se encontra a objetividade cientfica.

    Intrinsecamente relacionada com sua viso particular de cincia, a noo de Popper sobre o avano do conhecimento pode ser resumida neste pargrafo:

    O avano da cincia no se deve ao fato de se acumularem ao longo do tempo mais e mais experincias perceptuais. Nem se deve ao fato de estarmos fazendo uso cada vez melhor de nossos sentidos. A cincia no pode ser destilada de experincias sensoriais no interpretadas, independentemente de todo o engenho usado para recolh-las e orden-las. Idias arriscadas, antecipaes injustificadas, pensamento especulativo so os nicos meios de que podemos lanar mo para interpretar a natureza: nosso "organon", nosso nico instrumento para apreend-la. E devemos nos arriscar, com esses meios, para alcanar o prmio. Os que no se dispuserem a expor suas idias eventualidade da refutao no participaro do jogo cientfico (1972; p. 307).

    Nesse e noutros momentos, Popper tece consideraes sobre a investigao cientfica como um trabalho que exige participao ativa, especulativa, analtica por parte do pesquisador; afinal, sempre ele quem "... prope questes natureza (...) de modo a provocar um claro 'sim' ou 'no' (pois a natureza s d uma resposta quando compelida a isso)" (id., ibid.; pp. 307-308).

    1.2.2. KUHN E AS REVOLUES CIENTFICAS

    Popper diria: Kuhn e a cincia normal. Se, por um lado, Pop-per enfatiza o perodo das revolues cientficas (cf. crtica feita a Popper em Kuhn, 1979), Kuhn, no dizer de Popper (1979b), valoriza em excesso os perodos da chamada 'cincia normal' etapas da histria da cincia em que predomina um 'paradigma', ndice de uma teoria dominante, qual adere o cientista normal:

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  • A cincia normal, no sentido de Kuhn, existe. a at ividade do profissional no-revolucionrio, ou melhor, no muito cr-t ico: do estudioso da cincia que aceita o dogma dominante do dia. Vtima da doutrinao, contenta-se em aplicar (Popper, 1979b; p. 64).

    Para Popper, portanto, o cientista 'normal' seria um mero apli-cador da teoria vigente, que s se transformaria num dado momento, por obra de um gnio capaz de provocar dvidas e propor solues revolucionrias. O que Popper parece no ter compreendido que, embora concordando quanto ao valor das revolues cientficas, Kuhn considera a pesquisa e, portanto, o perodo da cincia normal, de grande relevncia para a cincia, uma vez que "... nem a cincia nem o desenvolvimento do conhecimento tm probabilidades de serem compreendidos, se a pesquisa for vista apenas atravs das revolues que produz de vez em quando" (Kuhn, 1979; p. 11). Kuhn afirma, ainda, que "... um olhar cuidadoso dirigido atividade cientfica d a entender que a cincia normal, (...) e no a cincia extraordinria que quase sempre distingue a cincia de outras atividades" (id., ibid.; p. 11). Essa , na verdade, uma questo ideolgica que distingue os dois filsofos.

    Segundo Kuhn (1970; p. 176), esses cientistas 'aplicados', ou normais, se unem em torno do mesmo paradigma e se constituem em comunidades, cuja principal caracterstica a de utilizarem instru-mentos e mtodos de anlise prprios e adequados ao paradigma te-rico escolhido. Tais comunidades podem constituir verdadeiras 'es-colas' cientficas, uma vez que, no dizer de Kuhn (1970), consistem em grupos de cientistas que se renem em torno de uma especialida-de, partilhando o mesmo paradigma e a mesma literatura de base. Opondo-se entre si, essas 'comunidades cientficas' determinam re-gras, normas que devem ser seguidas por todo aquele que desejar a elas pertencer. Assim, o valor de um trabalho depende de um consen-so, da 'unanimidade do grupo'. Definindo, dessa maneira, o peso da comunidade cientfica, Kuhn sugere que a racionalidade da cincia pressupe a aceitao de um 'referencial comum', determinado pelo momento histrico. A essa tese Popper chamou, criticamente, de 're-lativismo histrico' (1979b). Na verdade, Kuhn considera a cincia como uma atividade envolvida num contexto histrico-social no qual se insere a comunidade cientfica. , alis, em nome dessa mesma comunidade que Kuhn levado a considerar o discurso da cincia como eminentemente argumentativo, uma vez que tem por objetivo

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  • convencer, angariar adeptos dentre os seus provveis leitores, mem-bros da mesma comunidade.

    Assumindo o discurso da cincia (ou de uma investigao cient-fica particular) como argumentativo, Kuhn no acredita num mtodo adequado para se julgar individualmente uma teoria. Segundo ele, a comunidade cientfica que prope os parmetros, que escolhe e de-termina se uma teoria ou se uma experincia vlida ou no. Fora da comunidade no se faz cincia: as novas pesquisas devem se coadunar com os padres cientficos existentes e aceitos pela comunidade. Tal viso, com a qual concordo plenamente e passo a assumir neste tra-balho, vem explicar o carter convencional do discurso cientfico, no qual a liberdade e a possibilidade de criatividade do enunciados se acham limitadas por certas regras. Parece, tambm, explicar a fideli-dade a certos mtodos considerados de qualidade cientfica, utilizados pelo cientista no momento da investigao.

    Quanto ao aspecto evolutivo da cincia, Kuhn de opinio que so os perodos de crise, que precedem as chamadas revolues cien-tficas, que provocam o aparecimento de novas teorias. Esses perodos crticos se caracterizam, segundo ele, pela proliferao de verses tericas ou de paradigmas concorrentes, com o intuito de criar uma alternativa mais adequada. O esquema seguinte sintetiza a viso de Kuhn com respeito ao progresso cientfico:

    Muitas vezes, afirma Kuhn, resiste-se mudana resistindo crtica de um paradigma tradicional, cuja aplicabilidade nem se ques-tiona. Se se observam falhas nos resultados de uma experincia, trans-fere-se toda a culpa para o cientista que no soube aplicar o paradig-ma. Por isso, continua Kuhn, na maioria das vezes, no o paradigma que est sendo julgado, mas o prprio cientista (cf. 1970, 1979). Ar-gumenta, ainda, em favor da lentido das transformaes cientficas,

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  • lembrando que a descoberta se inicia com a percepo da anomalia, isto , "... com o reconhecimento de que a natureza violou o paradigma induziu expectativas que governam a cincia normal" (1970; p. 52).

    Ora, 'descobrir' envolve um processo complexo e demorado de observaes e conceitualizao, alm de um esprito aguado e crtico por parte do cientista (ou melhor, da comunidade cientfica) que traz sempre consigo expectativas e projetos.

    Essa viso de uma cincia institucionalizada explica no apenas a lentido com que progridem os conhecimentos cientficos, como tambm o aspecto convencional dos discursos e, sobretudo, a tarefa do cientista:

    Para um cientista, a soluo de um difcil enigma conceptual ou instrumental representa uma meta principal. O seu xito nessa tentativa recompensado pelo reconhecimento de outros mem-bros do seu grupo profissional e s deles (Kuhn, 1979; p. 30).

    Mais adiante, Kuhn declara no aceitar a presena da subjetivi-dade (enquanto componente individual) na tarefa de investigao cientfica, afirmando no poder rejeitar "... os elementos comuns in-duzidos pela criao e pela educao na composio psicolgica da situao de membro licenciado de um grupo cientfico" (1979; p. 31). Tais elementos constituem o que Kuhn denomina, na mesma pgina, 'imperativos sociopsicolgicos'. Kuhn prega, assim, a 'psicologia das multides' (cf. Feyerabend, 1979).

    Desse modo, Kuhn transfere, com muita razo, para a comuni-dade cientfica, a responsabilidade dos elementos 'subjetivos', que passariam a 'intersubjetivos': o esprito seletivo, a intuio e a imagi-nao criadora se submetem a uma srie de regras determinadas pelo grupo de cientistas. So essas regras que garantem a permanncia e a prpria existncia da objetividade cientfica, conceito inteiramente vinculado comunidade e no ao indivduo, como queria Descartes. Se considerarmos, porm, que essa comunidade composta de indiv-duos, perceberemos que o que ocorre, de fato, o social agindo sobre o individual, na tarefa pessoal de elaborao da experincia e do dis-curso.

    Resumindo: para Kuhn (e para mim), uma pesquisa s objetiva e os resultados verdadeiros, com relao a um dado paradigma que, afinal, se situa numa dada comunidade cientfica inserida num deter-minado momento e lugar; so, portanto, esses dados situacionais que determinam o grau de veracidade e objetividade de uma investigao.

    No se pode esquecer, por outro lado, como mostra o esquema

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  • de Kuhn apresentado p. 32, que mudanas e substituio de para-digmas tambm ocorrem, aps um perodo de crise que se caracteriza pela coexistncia de vrios paradigmas em franca competio: manter- se- aquele que for melhor defendido; afinal, lembra Kuhn, um novo paradigma resolve alguns problemas, mas acarreta inevitavelmente outros. Assim, uma variedade de argumentos a promessa de que o novo paradigma resolver os problemas criados pela crise, considera-es de ordem esttica etc. so usados como tcnicas de persuaso (cf. Bernstein, 1978).

    1.2.3. FEYERABEND E O MITO DA CINCIA

    Diante das idias de Kuhn segundo as quais: a) "... a receita consiste em restringir a crtica, reduzir a um nmero determinado de teorias compreensivas e criar uma cincia normal que tenha por para-digma essa teoria" (Feyerabend, 1979; p. 246); e b) a atividade cien-tfica consiste numa "... tradio de soluo de enigmas..." (Kuhn, 1979; p. 12) Feyerabend reage criticamente. Embora este concorde com Kuhn, no sentido de que "... a tentativa de criar conhecimento necessita de orientao... [pois] no se pode comear do nada...", Fey-erabend (1979; p. 249) discorda da preocupao 'monomanaca' de um ponto de vista isolado, da escolha exclusiva de um conjunto parti-cular de idias que, adotadas durante um certo perodo de tempo, s sero substitudas por outra teoria quando se frustrarem as expectati-vas e se provar a sua inadequao ao ajustamento natureza.

    Feyerabend defende a soluo proposta por Lakatos, que tenta conciliar o princpio de tenacidade, de fidelidade aos paradigmas, de-fendido por Kuhn, e o princpio de 'proliferao' (mtodo de precipitar revolues), afirmando: "... a cincia que conhecemos no uma sucesso temporal de perodos normais e perodos de proliferao [como sugerem Popper e Kuhn], a sua justaposio" (1979; p. 262).

    Tal concepo parece definir a originalidade da anlise de Feye-rabend, que considera a cincia como "... um empreendimento essen-cialmente anrquico: o anarquismo teortico mais humanitrio e mais suscetvel de estimular o progresso do que suas alternativas re-presentadas por ordem e lei" (1977; p. 9). Explica mais adiante o que pretende dizer com a expresso 'mais humanitria': "... a proliferao de teorias benfica para a cincia, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crtico, alm de ameaar o livre desenvolvimento do indivduo" (1977; p. 45).

    Desse modo, Feyerabend se posiciona contra todo mtodo 'ob-

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  • jetivo' que pretenda julgar a validade de uma teoria cientfica, pois, seja ela qual for, funda-se numa "... concepo demasiado ingnua do homem e de sua circunstncia social" (1979; p. 34).

    "O nico princpio que no inibe o progresso : tudo vale" (Fey-erabend, 1977; p. 27) . A concorrncia de idias completamente opostas leva o cientista a se questionar e a se posicionar. Segundo Feyerabend, quando as velhas formas de argumentao se revelam demasiado fracas ou insuficientes, seus adeptos recorrem a meios mais fortes e irracionais, como, por exemplo, a propaganda, com o intuito de garantir a sua validade e persuaso. , alis, nos momentos de crise que proliferam recursos argumentativos, cuja fora persuasiva dar a vitria ao antigo ou ao novo paradigma. Neste caso, lembra Bernstein (1978) num artigo a respeito de Kuhn, ocorre uma ruptura (e no uma continuidade) entre o novo e o antigo paradigma.

    Que devemos, ento, aceitar?

    Devemos confiar apenas provisoriamente no que quer que acei-temos, recordando sempre que estamos de posse, na melhor das hipteses, da verdade (ou correo) parcial, e fadados a incorrer pelo menos em algum erro ou julgamento incorreto no s com respeito a fatos, mas tambm com respeito aos padres adotados; em segundo lugar, s devemos confiar (ainda que provisoria-mente) em nossa intuio se tivermos chegado a ela em conse-qncia de muitas tentativas para usar a imaginao, de muitos erros, de muitos testes, de muitas dvidas e da crtica investiga-dora. (Feyerabend, 1979; p. 269)

    Nesse texto, Feyerabend confirma o carter relativo e subjetivo de toda opinio, de todo mtodo, de todo princpio, enfim, de toda in-vestigao, mesmo cientfica, e afirma que

    ... no se pode utilizar nenhum dos mtodos que Popper deseja utilizar para racionalizar a cincia, e o que se pode aplicar, a re-futao, grandemente reduzido em sua fora. O que sobra so julgamentos estticos, julgamentos de gosto e nossos prprios desejos subjetivos (id., ibid.; p. 281).

    Feyerabend defende-se, ainda, contra as acusaes de Popper que o havia taxado de subjetivista ou relativista, pois, segundo ele, prefervel uma atividade "... cujo carter humano pode ser visto por todos..." do que aquela que se diz "... objetiva e inacessvel s aes e aos desejos humanos.. ." (id., ibid.; p. 281). Afinal de contas, as

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  • cincias so "... nossa prpria criao, incluindo todos os severos pa-dres que elas parecem impor-nos" (id., ibid.; p. 281).

    Com essa afirmao, Feyerabend desmistifica a cincia em sua busca da verdade objetiva (e absoluta) toda a verdade , pois, sub-jetiva e provisria e a apresenta como um jogo. Mesmo o mais so-fisticado aparato terico ou metodolgico produto da criao humana e, nesses termos, no escapa subjetividade, entendida aqui como 'relatividade', 'dependncia do seu construtor'. , alis, esse carter provisrio da cincia que a faz progredir e avanar. Assim, cai por terra a viso tradicional que eleva a cincia posio dogmtica de detentora de critrios objetivos, mensurveis, capazes de levar o ho-mem essncia dos seres e verdade dos fenmenos naturais.

    Em sntese, os trs filsofos da cincia apresentados defendem pontos de vista diferentes com base na mesma realidade: a cincia, o cientista, o progresso cientfico, inserindo na anlise aspectos perti-nentes, e, de certo modo, complementares daquilo que poderia cons-tituir a 'realidade' ou a 'verdade' sobre a cincia.

    Popper considera que s possvel conhecer 'objetivamente' os fenmenos que nos cercam atravs de um mtodo rigoroso de racioc-nio dedutivo. Na nsia de determinar como se processa o progresso cientfico, ele enfatiza os perodos revolucionrios, crticos, em que os paradigmas vigentes so substitudos por outros, depois de com-provada, ainda que parcialmente, sua ineficincia.

    Kuhn, por outro lado, ao enfatizar a importncia da cincia normal, preocupa-se com a pesquisa cientfica e defende, como nico critrio capaz de dar conta do desenvolvimento do conhecimento cientfico, a existncia social e psicolgica da comunidade, nica de-tentora dos rumos da cincia.

    Por fim, Feyerabend, rompendo com as tradies da cincia l-gica, defende o 'pluralismo metodolgico', o carter anrquico da cincia como nica situao real capaz de conduzi-la ao progresso. Desvenda, desse modo, a aura de mistrio que envolve a cincia que, apesar de humana, procede como "... a mais recente, mais agressiva e mais dogmtica instituio religiosa" (Feyerabend, 1979; p. 15).

    Embora os trs paream concordar com a idia segundo a qual cincia construo e como tal pressupe um sujeito, ativo, capaz de conferir significado a um fenmeno natural, apenas Kuhn se mostra sensvel ao aspecto social das investigaes cientficas e, nesse senti-do, parece-me mais adequado tese que defendo, permitindo-me ex-plicar, ao mesmo tempo, a subjetividade e o carter convencional da pesquisa, e, portanto, do discurso cientfico.

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  • 1.3. A CINCIA E A LINGUAGEM

    Para finalizar estas reflexes sobre a cincia, no poderamos deixar de consider-la quanto a sua expresso lingstica, uma vez que cincia, teoria e expresso lingstica se entrelaam na constitui-o do discurso. Alm do mais, como afirma Popper (1972; p. 61):

    As cincias empricas so sistemas de teorias. A lgica do co-nhecimento pode, portanto, ser apresentada como uma teoria das teorias. As teorias cientficas so enunciados universais. Como todas as representaes lingsticas, so sistemas de signos ou smbolos.

    Concebidas como representaes lingsticas, as teorias cientfi-cas se constituem de enunciados chamados 'universais', em oposio aos chamados enunciados 'singulares'. Enquanto estes s se aplicam a um objeto ou fenmeno determinado pelo espao e tempo, os enun-ciados universais constituem-se em classes de enunciados aplicveis a determinados fenmenos sem determinaes de espao e tempo; por isso, as teorias da originadas so consideradas como verdadeiras concluses abstratas. Popper (1972; p. 66) afirma que este tipo de enunciado pode ser formulado assim: "... de todos os pontos do espao e do tempo (ou em todas as regies do espao e do tempo) verdade que...".

    Popper (1972; p. 61) prossegue numa analogia bastante elucida-tiva do ponto de vista daqueles que defendem a perspectiva logocn-trica da cincia, afirmando que "... as teorias so redes lanadas para capturar aquilo que denominamos 'o mundo': para racionaliz-lo, ex-plic-lo, domin-lo".

    porque a teoria constituda de leis, enunciados sintticos universais (gerais) que ela apresenta um alto grau de predizibilidade dedutiva. Entretanto, esses enunciados (tidos como denotativos) s so dignos de crdito na medida em que puderem ser submetidos prova. Popper defende a idia de que o objetivo da cincia terica e, portanto, do cientista, o de encontrar teorias explicativas, ou seja, teorias que constituam premissas capazes de permitir a deduo de predies. esse carter preditivo da teoria que constitui as expecta-tivas do cientista, preocupado em, de certa forma, falsear ou compro-var a 'verdade' das teorias em que se apia. Mas (vale aqui uma refle-xo), como submeter prova leis universais? Seria necessrio deter-

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  • minar todos os eventos a que essas leis se aplicam e aplic-las empiri-camente a todos os casos similares, sem exceo alguma, fato que pa-rece difcil, seno impossvel... Toda teoria tem seu ponto fraco e no resiste a toda e qualquer experincia.

    Assim, toda hiptese cientfica tem se baseado na aplicao em-prica de enunciados universais a um certo nmero de objetos parti-culares. Mesmo no caso dos indutivistas, a explicao dos dados ob-servados no foge aplicao das regras.

    Um conjunto de teorias, bem elaborado e logicamente constru-do, constitui um sistema. Buscando no dicionrio uma definio, en-contramos: "Sistema: um conjunto de proposies, de princpios co-ordenados de modo a formarem um todo cientfico ou um corpo de doutrina" (Caldas Aulete). O mesmo dicionrio prope a seguinte de-finio para o verbo 'sistematizar':

    v. tr. reunir (os fatos) num s corpo de doutrina subordinando-a a leis e hipteses; reduzir a um sistema, sistematizar: Bacon en-sinou e reduziu a discretos preceitos e ditames a arte de inferir dos fenmenos observados as leis da natureza. Sistematizou esta nova dialtica, diferente e antagonista da que dominara a anti-gidade, e que, pela induo, deduz da observao e da expe-rincia as leis e as causas dos fenmenos naturais (Lat. Coelho, Literat. e Histr., p. 23, ed. 1925). O seu livro no a histria dialtica da razo de um homem, sistematizando ou codificando a natureza. (Guerra Junqueira, in Raul Brando, Pobres) F. gr. Systema, systematos (sistema) + tizar.

    Tal definio faz lembrar aquela proposta por Saussure a res-peito de 'lngua': um sistema de signos lingsticos de tal modo orga-nizados que se relacionam entre si por oposies (relaes paradig-mticas) e contrastes (relaes sintagmticas, ao nvel da sintaxe). O sistema lingstico se compe de subsistemas, cujos elementos se re-lacionam e interdependem, de tal modo que alterar ou anular um sig-nificaria alterar todo o sistema: cada elemento se define pela relao que mantm com os demais. Assim ( bem conhecido este exemplo), o subsistema das cores sofreria alteraes no seu total se no existisse o preto, por exemplo: o branco s branco por oposio ao preto, ao vermelho, e assim por diante. Da mesma forma, os enunciados cient-ficos se inter-relacionam e assumem seu significado nessa relao.

    O sistema cientfico se constitui de um conjunto de teorias que,

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  • por sua vez, se compem de leis; estas constituem asseres que pre-tendem representar lingisticamente a realidade dos fatos, relacio-nando, da forma mais direta possvel, referente e linguagem. Assim, ao afirmar 'A gua ferve a 1000C', o cientista no d margem a dvidas ou refutaes; aceitar tal enunciado aceitar uma verdade factual. Essa relao linguagem versus fatos ou fenmenos empricos est, como mostra Feyerabend (1977; p. 107), de tal modo arraigada aos nossos hbitos cotidianos, que no nos damos conta de que a ela subjazem diferentes ideologias:

    Os fenmenos so o que os enunciados associados asseveram que eles sejam. A linguagem que "falam" est, naturalmente, in-fluenciada pelas crenas de geraes anteriores, mantidas h tanto tempo que no mais parecem princpios separados, apre-sentando-se nos termos do discurso cotidiano e parecendo, aps o treinamento natural exigido, brotar das prprias coisas (id., ibid.; p. 107).

    Assim, a interpretao dos dados passa necessariamente pela linguagem, que representa verbalmente a imagem mental, racional do referente (enunciados denotativos; cf. Lyotard, 1988), pois "... a fora de um 'argumento nascido da observao' deriva do fato de os enunciados de observao estarem fortemente ligados s aparncias. De nada vale apelar para a observao se no se sabe descrever o que se v" (Feyerabend, op. cit.; p. 109).

    Formular um enunciado de observao envolve: a) uma sensao (enquanto imagem mental do objeto observado) clara e inequvoca; e b) uma conexo clara e inequvoca entre a sensao e as partes da linguagem:

    Na verdade, os nossos prprios sentidos se subordinam lin-guagem (e portanto teoria), de forma que mesmo o ato de ver e o de perceber so condicionados pelas expectativas que em ns os hbitos lingsticos e as convices tericas criaram (Polanyi, apud: Alves, 1984; p. 138).

    Parece, dessa forma, fora de dvida que os enunciados cientfi-cos constituem, na maioria das vezes, linguagem de observao alta-mente abstrata (dedutiva e preditiva) e, apesar das aparncias, nem sempre se acham em relao direta com os fenmenos reais. Basta lembrar o to citado Galileu que conseguiu convencer a comunidade cientfica da poca de que a Terra se move ao redor do Sol (assero absurda na poca e contra-indutiva).

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  • Mas, como procedem os cientistas para convencer da verdade de suas asseres se elas so empiricamente no comprovveis? Uns o fazem atravs do raciocnio lgico dos seus argumentos; outros, atra-vs de 'artifcios psicolgicos' (cf. Feyerabend, op. cit.; p. 125), se-dutores, semelhana do que faz a propaganda. Outros, ainda, se ser-vem dos dois tipos de argumentao. Vale lembrar que Galileu Galilei faz uso da narrao como evidncia para suas af irmaes; narra acontecimentos ocorridos num barco, numa carruagem que se desloca suavemente e onde algum observa o horizonte. esse observador que constata os fatos, tornando-os possveis e convincentes. Servin-do-se ainda de narraes, Galileu refuta as idias contrrias a sua 'descoberta', denominando-as infantis e indignas de crdito.

    Feyerabend prope uma reviso da nossa linguagem de observa-o, pois "... uma experincia que parcialmente contradiz a idia de movimento da Terra transformada em experincia que confirma pelo menos no que concerne a 'coisas terrestres' " (id., ibid.; pp. 127-128). Tal inverso s possvel porque o cientista faz uso de um sis-tema semntico que se presta argumentatividade e, portanto, per-suaso. interessante notar que outros cientistas chegaram a se opor s afirmaes de Galileu, servindo-se de evidncia contrria, isto , de fatos capazes de provar enunciados contrrios, apoiados, portanto, em teor ias contrr ias (neste caso, em teor ias baseadas no senso comum).

    Tal fato parece confirmar, de um lado, a arbitrariedade e a sub-jetividade como caractersticas do discurso cientfico e, de outro, a linguagem cientfica como jogo, o que significa (cf. Wittgenstein) que cada uma das categorias de enunciados

    ... deve poder ser determinada por regras que especifiquem suas propriedades e o uso que delas se pode fazer, exatamente como um jogo de xadrez se define como um conjunto de regras que determinam as propriedades das peas, ou o modo conveniente de desloc-las (Lyotard, 1988; p. 17).

    Resta lembrar que essas regras no so legitimadas por elas mesmas "... mas constituem objeto de um contrato, explcito ou no, entre os jogadores (o que no quer dizer todavia que estes as inven-tem)" (id., ibid.; p. 17). Compreendendo a atividade cientfica como jogo institucionalizado, compreendem-se melhor as suas caractersti-cas, o seu aspecto persuasivo, o seu desejo de permanncia resistin-do, como prprio de toda instituio, ao novo desestruturante e, ao mesmo tempo, apesar da resistncia, as mudanas que nela ocor-rem determinadas por cada momento histrico-social.

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  • 2 O DISCURSO CIENTFICO PRIMRIO

    E OUTROS DISCURSOS

    2.1. ONDE O DISCURSO CIENTFICO SE APROXIMA DO DISCURSO POLTICO

    Com base num viso argumentat iva e , portanto, subjet iva da cincia e da poltica, enquanto atividades humanas, pretendo, neste texto, tecer consideraes sobre as possveis relaes entre o discurso cientfico primrio (DCP) relato de experincia e o discurso pol-tico de plataforma (DPP) modalidade do discurso poltico militante.

    Esses discursos sero abordados , num pr imeiro momento, quanto aos objetivos e situao, por constiturem algumas das con-dies de produo que orientam, sem dvida alguma, os procedi-mentos de elaborao discursiva e os procedimentos de argumentao; e, num segundo momento, quanto s revolues polticas versus re-volues cientficas, por constiturem etapas relevantes tanto na cincia quanto na poltica.

    As diferenas e semelhanas entre esses discursos se colocam em termos de condies prvias de produo, determinadas por alguns critrios fundamentais como: as imagens pressupostas pelo locutor com relao ao interlocutor e vice-versa; a imagem que o locutor faz

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  • do referente e a que ele pressupe no seu interlocutor com relao a esse mesmo referente (cf. Pcheux); a inteno (nem sempre cons-ciente) que se imagina no locutor do ato que ele visa praticar para a obteno de um certo resultado, conforme sintetiza o quadro a seguir:

    Discurso Poltico Militante

    Discurso Cientfico Primrio

    Dirige-se a um ouvinte situvel no tempo e no espao: os eleitores virtuais de uma regio. O locutor interessado numa es- trutura de poder dirige-se a um ouvinte interessado nessa mesma estrutura. No discurso de plata- forma, mesmo que no haja coin-cidncia de interesses, as propostas do locutor se coadunam sempre com as do ouvinte em termos de discurso.

    Dirige-se a um ouvinte situvel no tempo e no espao: o grupo de especialistas da rea. Pressupe um ouvinte conhecedor da matria, dos mtodos utilizados normalmente na rea e interessado na pesquisa a ser relatada.

    Inteno: persuadir; ultrapassan- do o nvel da convico, deseja atingir o nvel da ao.

    Inteno: convencer da validade da pesquisa relatada e do rigor da mesma.

    Embora as instncias enunciativas se situem num nvel temporal e concreto, o DPP (contrariamente ao DCP) no se assume temporal-mente: pauta-se "... sobre uma forma de argumentao que no ad-mite sua relatividade" (Osakabe, 1979; p. 91). O locutor, situando-se num espao que transcende ao da sua individualidade, dirige-se a um interlocutor tomado tambm genericamente, pois

    ... para o locutor, o discurso enquanto forma de neutralizao do adversrio, deve pautar-se na racionalidade (clareza de racioc-nio, concatenao dos argumentos) e no seu realismo (exposio serena dos fatos) (id., ibid.; p. 91).

    Assim, os chamados 'ideais de racionalidade' constituem uma

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  • caracterstica comum entre o DPP e o DPC: o primeiro, servindo-se de meios 'racionais' (cf. citao acima) e por vezes impessoais, le-vando o pblico ouvinte a agir pelo voto; o segundo, guiado pelo de-sejo de persuadir o interlocutor-especialista atravs da evidncia (provas, demonstraes cientificamente racionais) e das convenes argumentativas que pretendem a objetividade e neutralidade (ideais cientficos).

    Fica claro, desta maneira, que o objetivo de ambos os discursos provocar no interlocutor uma reao de apoio ou de voto, no pri-meiro caso; de repetio da experincia ou de apoio mesma, no se-gundo.

    No fosse forar demais a anlise, eu diria que, em termos ideais, o homem pblico (ou algum do partido designado para tal), ao elaborar o seu texto, recorre, a fim de alcanar o seu objetivo bsi-co, ao raciocnio de tipo indutivo, enquanto o DCP se serve ora do mtodo indutivo, ora do dedutivo. Poder-se-ia, ento, imaginar gene-ricamente as etapas de anlise e elaborao prvia dos itens discur-sivos:

    1) O homem pblico observa a situao de seu pas, as neces-sidades, reivindicaes, hbi-tos, ideologia de seu povo.

    O cientista recolhe o material ou l a respeito para, a seguir, ob-servar em laboratrio.

    Aqui, naturalmente (guardadas as diferenas situacionais), seria ingnuo acreditar na imparcialidade da observao dos fatos. claro que tanto o poltico quanto o cientista adequaro a observao aos seus interesses (objetivos).

    2) O poltico seleciona os dados (fatos situacionais) em fun-o do pblico ouvinte.

    O cientista elabora sua hiptese (altamente provvel) em funo da qual seleciona os dados rele-vantes.

    No DPP, o locutor assume os valores que pressupe no pblico- ouvinte a fim de melhor persuadi-lo. Procedendo assim, aproxima-se do discurso propagandstico em geral, cujo nico intuito o de ven-der o produto, neste caso, idias. O mesmo ocorre hoje com um de-terminado tipo de cincia cujos critrios institucionais de competncia nada tm a ver com os do tipo verdadeiro/falso, justo/injusto etc.

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  • Lyotard (1979; pp. 92-93) quem afirma que "... no contexto da mercantilizao do saber, esta ltima questo significa comumente: isto vendvel? E no contexto do aumento do poder: isto eficaz?".

    A 'evidncia emprica' de que se serve o discurso poltico (DP) , pois, construda com base no senso comum e busca aparentar, por efeitos de argumentao, prprios a este tipo de discurso, uma real partilha de interesses e de pontos de vista entre locutor e interlocutor. Segundo Osakabe (1979; p. 105), "... o locutor, para ter justificado seu discurso, assume ou a ignorncia do ouvinte ou a possibilidade de o ouvinte ser vulnervel a outra imagem que no a sua".

    Nesse pormenor, o DCP se distingue do DPP por no se basear no senso comum. Basta relembrar a teoria de Kepler, segundo a qual a Terra que se movimenta e no os astros, contrariando a impresso que nos vem pelos sentidos e corroborando a idia de que toda teoria fruto de construo, de elaborao criativa.

    3) O homem pblico interpreta os dados em funo do obje-tivo proposto.

    O cientista analisa os dados, or-ganiza-os e elabora os resultados sob a forma de tabelas, grfi -cos etc.

    4) Etapa de elaborao do texto a partir das concluses, isto , dos resultados obtidos na fase de anlise dos dados. Embora obede-cendo a convenes prprias do discurso poltico, o DCP aquele que se apresenta rigidamente padronizado, com poucas variaes.

    5) No DPP, a reao do pblico imediata vaias, aplausos e mediata voto (ao).

    No DCP, a reao raramente imediata (a no ser em situaes de debate) e, quando ocorrem, recaem nos elementos formais.

    A situao em que se insere o DP tensa e conflituosa: o poltico se encontra em competio declarada com outros polticos, o que evidentemente transparece no texto; no discurso cientfico (DC), o jogo de interesses (de poder) se acha, em geral, velado, em nome do sa-ber acadmico. Em ambas as situaes, os resultados (reaes) so extremamente importantes para o locutor, embora, no caso da poltica, outras oportunidades surjam para a exposio das idias dos candi-datos, o que parece ocorrer mais raramente no DC, a no ser em situa-es de debate aberto, em que se confrontam diferentes posturas te-rico-ideolgicas. Entretanto, o carter tenso do DP aumenta pelo fato de que da situao de conflito resulta sempre a anulao de uma das

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  • partes, enquanto no DC uma teoria no invalida necessariamente a outra.

    Pode-se dizer que ambos os discursos so altamente argumenta-tivos, na medida em que pretendem convencer o interlocutor da vali-dade do que dizem e procedem retrica e lingisticamente de acordo com esse objetivo. Assim, enquanto o poltico ilude o seu ouvinte colocando-o em situao de decidir o seu prprio futuro pelo voto (embora na prtica, ao menos no Brasil, seja sempre o governo quem detm o poder de deciso), o cientista parece querer promover o seu leitor, pela descrio minuciosa da experincia realizada (embora se saiba, por testemunhos, que nem tudo o que ocorre dito), condio de possvel repetidor.

    Para atingir o objetivo acima exposto, o discurso poltico faz uso, dentre outros recursos, da estrutura inversa de transitividade (ex.: 'Ao povo cabe decidir') , de vocbulos carregados de pressupostos ideolgicos (ex.: honestidade, coragem, religio, Nao...). O apelo situao sociopoltica e inteno subjacente de ir ao encontro das expectativas do pblico-eleitor se revelam nos argumentos. (Ex.: "O que precisamos ter um governo legitimado pelo voto popular, o que acontecer, sem dvida alguma, no prximo dia 17 de dezembro. Esse ser o grande choque. O choque da credibilidade." conforme debate televisivo entre os candidatos presidncia da Repblica, Collor e Lula, em 4/12/1989.) O grau de envolvimento pessoal do ouvinte tal que pode ser, graas fora persuasiva e manipulao psicolgica dos argumentos, facilmente conduzido impossibilidade de raciocinar e, portanto, aceitao passiva das propostas do locutor que, consciente dessa situao, faz uso dos instrumentos de dominao ao seu alcance, pintando a oposio de forma totalmente inaceitvel e contrria a toda e qualquer expectativa (conforme ltima campanha para presidente).

    Na cincia, essa dominao tambm ocorre no com relao ao interlocutor-especialista, mas com relao ao grande pblico, que se atemoriza diante da terminologia incompreensvel e da sabedoria mti-ca, provocando uma reao de inferioridade e admirao (cf. Kerbrat-Orecchioni, 1977).

    Guardadas as diferenas, o DCP, no desejo de envolver e engajar o seu interlocutor, na maioria das vezes tambm cientista, busca mostrar a validade de sua pesquisa, argumentando a seu favor e obe-decendo s normas impostas pela comunidade cientfica, dentre as quais figuram o uso da linguagem na 3 pessoa, modalidades lgicas,

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  • intertextualidade explcita, como formas de fazer transparecer no texto a objetividade cientfica.

    Resta abordar a questo relativa s revolues. Assumi aqui 're-volues cientficas' (termo tomado da poltica) tal como entende Kuhn (1970; p. 92), ou seja, como sendo aqueles episdios no- cumulativos em que um antigo paradigma substitudo total ou par-cialmente por um novo que lhe incompatvel.

    Tanto na poltica quanto na cincia, o mau funcionamento das estruturas vigentes que leva crise, e esta revoluo: na primeira, a constatao de que o sistema sociopoltico vigente no atende s ne-cessidades ou expectativas da comunidade ou de um grupo dominan-te; na cincia, a revoluo ocorre quando a comunidade cientfica (normal) percebe (ou se deixa convencer) que o paradigma vigente no funciona com adequao explorao de um aspecto do fenme-no, apontado anteriormente por esse mesmo paradigma (cf. Kuhn, op. cit.; p. 92).

    Observa-se mais uma semelhana: a crise poltica reduz o papel das instituies vigentes, assim como na cincia a crise reduz o de-sempenho de um determinado paradigma. Quanto mais se aprofunda a crise, mais diverge a opinio pblica. Quanto mais os paradigmas en-tram em debate, mais os grupos de cientistas se armam de argumentos para a defesa de um novo. E mais: tanto num caso como no outro, a forma de raciocnio e a apresentao lingstica tm de ser atraentes e persuasivas.

    Entretanto, a grande diferena entre os dois tipos de revoluo est no fato de que, no caso da poltica, h sempre a anulao da instituio anterior, enquanto, na cincia, no raro se constata a co--ocorrncia de diferentes paradigmas, dependendo da sua rea de apli-cao.

    Do que foi dito, conclui-se que os dois discursos so altamente subjetivos na medida em que se apresentam como argumentativos e se servem de uma srie de convenes partilhadas pela comunidade in-terpretativa, dentre as quais o conceito de objetividade e as formas lingsticas de que se reveste. graas opacidade da linguagem, que permite a iluso da aproximao efetiva do real, sem a interfern-cia do sujeito e da ideologia, que esses discursos alcanam o objetivo que se propem, qual seja: o de convencer o interlocutor da verdade (aparente) que enunciam.

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  • 2.2. DISCURSO JURDICO PROCESSUAL VERSUS DISCURSO CIENTFICO PRIMRIO (Algumas Consideraes)

    Tomarei para reflexo o discurso jurdico processual por julgar ser o que mais se aproxima do discurso cientfico primrio na rea das biocincias. Abordarei, ainda que sucintamente, as seguintes ques-tes: a) objetivos da Justia e do prprio discurso; b) procedimentos em nvel de investigao jurdica; e c) procedimentos de argumenta-o e contedos dos argumentos.

    2.2.1. OBJETIVOS DA JUSTIA E DO PRPRIO DISCURSO

    Simbolizada convencionalmente por uma balana que a designe com certa preciso, a Justia, enquanto instituio criada pelo Ho-mem, para suprir certas necessidades sociais, pretende julgar os atos de um ou mais indivduos, como sendo, em ltima anlise, justos ou injustos.

    Tal julgamento assume, no ato do processo, o valor de 'vere-dicto final' (do latim: vere-dictum = dito verdadeiro), proferido por um tribunal (jri) presidido por um juiz: o ru culpado ou inocente. Assim, como nas cincias naturais, o veredicto assume o papel de 'e-nunciado de fato verdadeiro'. Chega-se ao veredicto final seguindo um processo que governado por normas. Tais normas podem ser de dois tipos: aquelas que regem o desenrolar do processo como tal e aquelas que constituem o cdigo legal vigente, cujo propsito o de reger o comportamento do ser humano numa determinada sociedade; constituem, assim, base slida e, portanto, justa, para todo e qualquer julgamento.

    Tais normas, tal como ocorre com os enunciados bsicos e leis cientficas, se apiam nos princpios fundamentais que se propem a conduzir descoberta da verdade objetiva. Desta forma, convencio-nalmente, cincia e Justia parecem se encontrar num objetivo nico: atingir a verdade objetiva. A natureza da verdade, no entanto, varia segundo a natureza da instituio: nas cincias naturais, ela diz res-peito essncia dos seres, seu comportamento natural, suas decorrn-cias. Na Justia, ela diz respeito s atitudes dos indivduos em socie-dade e aos fatos que com eles se relacionam. Nas cincias naturais, a verdade se constri com base em teorias que, fundamentadas em prin-cpios e 'leis da natureza', so, tanto quanto as leis jurdicas, produto

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  • da criao humana, na crena ilusria de que possvel reduzir a in-terferncia da subjetividade emotiva dos indivduos nas diversas ati-vidades.

    Dizer que as leis cientficas e jurdicas constituem a base da to desejada 'verdade objetiva', equivaleria a afirmar o carter estvel (regular) e imutvel das mesmas. Sabe-se, porm, que as leis jurdi-cas, baseadas nos valores morais, culturais (e at mesmo no regime poltico de uma sociedade), variam segundo a cultura, o pas, o grupo social. Assim, o que lei num pas no o necessariamente noutro (basta lembrar as leis do aborto e do divrcio); e, portanto, o que verdade para um povo no o necessariamente para outro.

    Quanto s leis cientficas, embora de carter mais universal do que as leis jurdicas, variam tambm conforme as condies biolgi-cas e fsicas que determinam a sua aplicabilidade e, sobretudo, con-forme a capacidade de observao do cientista, que, baseado em pes-quisas anteriores, faz progredir o edifcio das chamadas 'descobertas cientficas' na verdade, construes humanas.

    Por outro lado, as leis, para serem consideradas objetivas, no poderiam dar margem a diferentes interpretaes. Sabe-se, no entanto, que, cotidianamente, tal fato no ocorre, devido talvez a sua consti-tuio formal. Segundo anlise feita por Danon-Boileau (1976), toda frmula que define uma lei deve conter: a) uma parte regida por mo-dalidades denticas (deve, proibido...), a sano da norma, e outra no regida por essas modalidades, que enuncia uma hiptese verda-deira ou falsa, constituindo a condio da sano; e b) a ligao entre esses dois membros ou partes no seio da norma.

    A lei jurdica resultaria, ento, da seguinte frmula:

    da relao entre os dois membros e da interpretao da condi-o no momento da aplicao da lei que resulta o carter argumentativo da norma jurdica.

    Tomemos a lei citada e analisada por Danon-Boileau (1976) do cdigo civil francs: "A dfaut d'hritiers, la succession est acquise par l'Etat" (art. 768), enunciado este que poderia ser parafraseado por: "Si personne n'hrite d' une succession, l'Etat doit hriter de cette succession".

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  • Segundo o autor, tal artigo implica uma quase contradio entre a condio (nul n' est hritier ningum herdeiro) e a sano (l'Etat doit hriter o Estado deve herdar). Tal implicao se deve ao elo discursivo que une hritier (herdeiro), em " dfaut d'hritiers" (na falta de herdeiro), e acquiert (adquire), em l'Etat acquiert' (o Estado adquire o direito). Tal elo se realiza a partir da condio " dfaut d' hritiers" , negao que pressupe o enunciado afirmativo `D'une succession, on hrite toujours' (Toda sucesso tem que ter herdeiros). Deste modo, o sentido do artigo s fica claro se se aceitar como ver-dade a necessidade de sempre haver um herdeiro, ainda que ele no possa ser definido, isto , no tenha sido designado nem pela vontade do falecido nem pelos laos de parentesco. Conclui-se, assim, que a lei se fundamenta numa conveno social, cujo carter sempre arbi-trrio.

    Essa arbitrariedade da norma jurdica pode tambm ser trans-posta para os enunciados bsicos (ou leis) que constituem as teorias nas cincias naturais:

    A estrutura de suas teorias [da cincia] levanta-se, por assim di-zer, num pntano. Assemelha-se a um edifcio construdo sobre pilares. Os pilares so enterrados no pntano, mas no em qual-quer base natural ou dada. Se deixamos de enterrar mais profun-damente esses pilares, no o fazemos por termos alcanado ter-reno firme. Simplesmente nos detemos quando achamos que os pilares esto suficientemente assentados para sustentar a estrutura pelo menos por algum tempo.

    Este texto extrado de Popper (1972; p. 119) parece dar conta do carter relativo e arbitrrio das teorias cientficas e, portanto, de toda atividade cientfica. Em nota de rodap (mesma pgina), Popper cita Weyl para confirmar justamente esse carter no absoluto das cons-trues cientficas:

    ... este par de opostos, absoluto-subjetivo e relativo-objetivo, parece-me encerrar uma das mais profundas verdades epistemo-lgicas que podem dar, em troca, a subjetividade (o egocentris-mo); e quem anseia por objetividade no pode evitar a questo do relativismo.

    Este mesmo carter convencional se repete, como foi visto, no

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  • processo jurdico, uma vez que este se baseia nas leis vigentes arbi-trrias, aliceradas na intersubjetividade de um grupo social (valores morais, concepes polticas etc.).

    Entretanto, embora as leis jurdicas tentem estabelecer uma base slida para a busca da verdade objetiva sobre os fatos e atitudes hu-manas, pretendida pela Justia, no tm o carter preditivo e explica-tivo das leis cientficas. Isso se deve a sua aplicao a um caso deter-minado posto em julgamento. O carter nico e irreversvel do pro-cesso jurdico faz com que a Justia encontre um fim em si mesma, na realizao justa ou injusta de cada caso particular. Esta peculiari-dade da Justia confere um objetivo bem preciso ao discurso jurdico processual: absolver ou condenar o ru. Este objetivo torna, natural-mente, o discurso altamente argumentativo e persuasivo

    Em oposio ao discurso cientfico sempre aberto a novos dis-cursos, dado o seu carter falsevel, refutvel (cf. Popper) , o discurso jurdico constitui uma estrutura fechada, com reduzida possi-bilidade de retroao, devido justamente ao carter nico do processo jurdico. Toulmin, Riecke & Janik (1979; p. 233), no paralelo que fa-zem entre o discurso das cincias naturais e o discurso jurdico, afir-mam que seria um erro pensar que um grupo de cientistas teria inte-resse direto em vencer e ver outro grupo derrotado; enquanto que na corte judicial, perder um caso pode ter graves conseqncias pessoais.

    Tal afirmao parece-me verdadeira, em tese. No entanto, na prtica, todos sabem que, no plano pessoal, o cientista, autor do artigo cientfico, tem todo interesse em demonstrar a importncia de seu trabalho e a sua contribuio para o 'progresso' da cincia, posicio-nando-se, muitas vezes, contra outros cientistas, outros paradigmas.

    2.2.2. PROCEDIMENTO NO PLANO DA INVESTIGAO JURDICA

    No processo de julgamento acham-se implicados diferentes seg-mentos da Corte de Justia: os advogados (defesa e promotoria), os jurados e o juiz.

    Tradicionalmente, a Justia determinaria ao advogado a utiliza-o fiel do mtodo indutivo de investigao, que consistiria em: a) ouvir o relato dos fatos reais pelas testemunhas; b) aplicar-lhes a lei vigente; e c) elaborar o discurso com base nesses dados. Na prtica, contudo, sabe-se que da mistura dos dois mtodos dedutivo e in-dutivo que decorre a elaborao do discurso jurdico processual, pois:

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  • 1) o advogado j tem de antemo um objetivo fixo, correspon-dente funo que desempenhar no processo: acusao ou defesa;

    2) o advogado ouve as testemunhas e tenta obter delas elemen-tos que o ajudem a criar argumentos convincentes segundo a funo desempenhada;

    3) interpreta os fatos (dados que constituem a evidncia para o seu discurso) com base na lei vigente, s que, verdade, de forma altamente seletiva: realce nos dados adequados ao seu objetivo, nos que possam vir a constituir argumentos fortes contra o seu adversrio. interessante notar que esse mesmo carter seletivo ocorre no discurso cientfico (cf., mais adiante, 'Um fazer invertido'). O que difere, parece, a forma como esses argumentos so processados no discurso: enquanto no discurso jurdico tal operao de seleo se v totalmente camuflada pela apresentao dos resultados sem referncia s etapas precedentes, no discurso cientfico a evidncia dos fatos aparece demonstrada pela narrao de cada etapa do processo de investigao sem que, no entanto, se declare seu carter seletivo.

    A partir dar, passa-se elaborao verbal do discurso propria-mente dito e ao julgamento pelo jri e/ou pelo juiz.

    Passarei, a seguir, a expor algumas reflexes a partir de relatos de experincias realizadas em laboratrio (tcnica de processo simu-lado). Tomarei como referncia particularmente dois artigos: Simon & Mahan (1971) e Kaplan & Kemmerick (1974). Quanto elaborao do discurso jurdico propriamente dito, tecerei algumas consideraes no item seguinte (Procedimentos de argumentao e contedo dos ar-gumentos').

    O primeiro artigo (Simon & Mahan, 1971) procura mostrar, com base num jri simulado constitudo de quatro grupos de estudantes, as diferenas que podem ocorrer, no veredicto final, se o julgamento for de tipo qualitativo (culpado/inocente) ou de tipo quantitativo (qual a probabilidade ou plausibilidade de ter o ru cometido o crime). Os grupos de estudantes foram divididos: uns deveriam julgar o ru (de-pois de ouvir a gravao de testemunhos de um processo real envol-vendo homicdio) de forma qualitativa, outros deveriam assinalar um nmero correspondente ao grau de plausibilidade numa escala de zero a dez. Assim, sempre com base na evidncia, o veredicto devia ser al-canado. Resultado: o nmero maior dos que condenaram o ru se achava no grupo do julgamento de tipo qualitativo, pois, concluem os autores, parece ser sempre mais difcil condenar algum mediante da-dos numricos, estatsticos. Prosseguem afirmando que essas opera-

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  • es de quantificao seriam interessantes se aplicadas no dia-a-dia da Corte de Justia. Entretanto, segundo testemunho de juzes in-formantes que participaram de outra experincia previamente elaborada pelos mesmos autores a Corte, ao contrrio do cientista, relutaria em aceitar o sistema da probabilidade estatstica, por no dar conta de todos os fatores tangveis e intangveis na determinao da culpa (cf. Simon Mahan, 1971; p. 329). A tradio no sistema processual parecia, pois, garantida.

    O segundo artigo (Kaplan & Kemmerick, 1974) se prope a mostrar como se processa no jurado a formao da impresso que o leva a um determinado julgamento. Tenta-se aplicar a a teoria da in-tegrao da informao, segundo a qual os dados informativos se combinam com a impresso preexistente ou disposio do indivduo (valores morais, sociais). Assim, os componentes informativos rele-vantes ou no se apresentam ao jurado com valor e peso diferentes, para s ento serem integrados numa avaliao unitria.

    Duas so as categorias do componente informativo: a) evidencial informaes diretamente relacionadas com o crime; e b) no-evidencial informaes constitudas pelas caractersticas pessoais do ru. Estas, ao contrrio do que se possa imaginar, so de grande peso nas decises judiciais.

    O julgamento se forma com base na combinao de peso e valor dos estmulos componentes. Mas, se possvel estabelecer critrios que determinem o valor e peso dos dados evidenciais, torna-se muito difcil fazer o mesmo com os no-evidenciais, devido a sua variabili-dade.

    Com o intuito de mostrar como o texto, onde se acham relatados os casos incriminatrios, pode ser responsvel pela deciso final do jri (maior ou menor nmero de dados evidenciais e no-evidenciais) e com o intuito de mostrar a importncia dos dados no-evidenciais no veredicto final, procedeu-se a uma experincia: 96 estudantes vo-luntrios do curso introdutrio de psicologia deveriam ouvir o resumo do relato de um dos oito crimes que constituam o material da expe-rincia. O resumo dos mesmos variava na apresentao dos dados (seleo interpretativa), de modo a induzirem os jurados seja con-cluso de culpa (Texto I, altamente incriminatrio), seja de inocncia do ru (Texto II, fracamente incriminatrio).

    Vejamos apenas alguns exemplos extrados dos dois textos a respeito do mesmo acontecimento: a morte de crianas por um cami-nho que acabava de transport-las.

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  • Texto altamente incriminatrio (T.I):

    The truck was deemed by safety officials to have adequate wind-shield area and mirrors to assure good visibility on all sides. [O caminho foi considerado pela percia como tendo pra-brisa e es-pelhos, capazes de assegurar boa visibilidade em todos os lados.]

    Texto fracamente incriminatrio (T.II):

    Safety officials testified that a substantial blind spot obscured the dri-ver' s vision due to the box shaped of the truck, combined with a high windshield and a driving position sixth feet behind it. [Os tcnicos da segurana atestaram que havia um ponto cego bem marcado que obscurecia a viso do motorista devido ao formato re-tangular do caminho e a uma combinao de outros dois fatores: o pra-brisa muito alto e a posio do motorista muito afastada (seis ps do pra-brisa).]

    Exemplo 1:

    The driver looked into the side mirror to ascertain that the children he had served were standing on the sidewalk, [O motorista olhou pelo espelho lateral para se assegurar de que as crianas que ele havia transportado j estavam na calada (de p),]

    T.I:

    but in testimony, couldn' t remember whether he had looked in front of the truck for children. [mas no seu testemunho, no conseguia se lembrar se tinha verificado se havia crianas em frente do caminho.]

    T.II:

    ... and looked through the front windshield as well. [... e olhou, tambm, pelo espelho lateral.]

    Exemplo 2: T.I:

    Adult witnesses testified that the defendant did not, on the occasion, blow his horn.

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  • [Testemunhas adultas atestaram que o ru no tinha, na ocasio, acio-nado a buzina.]

    T.II:

    Adult witnesses testified hearing him blow his horn several times on this occasion. [Testemunhas adultas atestaram que tinham ouvido (o motorista) acionar a buzina vrias vezes na ocasio.]

    A oposio entre: verbo modal na forma negativa (couldn' t re-member) e verbo principal na forma afirmativa (looked), entre nega-o (did not blow) e afirmao (blow) no Exemplo 2, entre dados si-tuacionais como "have adequate windshield" e "blind spot combi-ned with a high windshield and a driving position sixth feet behind it" , garantem a oposio altamente/fracamente incriminatrio e orientam o jri no julgamento final. Guardadas as devidas propores, mais ou menos isso o que ocorre no plano da defesa e acusao.

    Lembram, pois, os autores a importncia da evidncia em com-binao com as caractersticas do ru agindo sobre os dados pessoais do jurado (sentimentos, valores morais, ideologia) na formao do ve-redicto (id., ibid.; p. 497).

    Desse modo, parece comprovada a hiptese segundo a qual os jurados elaboram o seu veredicto no apenas com base nos fatos, mas tambm (e, por vezes, sobretudo) com base na impresso causada pelo texto pronunciado por ambas as partes (acusao e defesa), que fun-ciona como importante estmulo psicolgico ao lado dos demais com-ponentes situacionais como: questionamento das testemunhas, desem-penho dos advogados.

    Ambos os textos assinalados pretendem provar, acredito, a pre-sena do componente intencional (o que no significa consciente) no discurso e, com referncia aos procedimentos de investigao, a com-plexidade dos fatores que interferem no processo de construo do julgamento, fatores esses que no s