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ALEXANDRA HEMINSLEY CORRER NÃO É PARA MENINAS TRADUÇÃO DE RITA ALMEIDA SIMÕES

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Page 1: CORRER NÃO É PARA MENINAS No final de setembro do ano passado, fui ao cinema, em Londres, para ver Drive – Risco Duplo, com o Ryan Gosling. É um filme ótimo, que recomendo, mas

ALEXANDRA HEMINSLEY

CORRER NÃO É PARA MENINAS

TRADUÇÃO DE

RITA ALMEIDA SIMÕES

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Índice

Prólogo ............................................................................... 9

Parte ICapítulo 1: Não nasci para correr ....................................... 21

Capítulo 2: Aprender a correr ............................................. 34

Capítulo 3: Vestuário transpirável e como o usar com estilo 47

Capítulo 4: Correr em família ............................................ 72

Capítulo 5: Lesão ............................................................... 84

Capítulo 6: A Maratona de Londres ................................... 91

Capítulo 7: A Maratona de Londres, outra vez ................... 113

Capítulo 8: Correr para sempre? ......................................... 135

Capítulo 9: O êxtase da corrida .......................................... 147

Capítulo 10: O direito de correr ......................................... 160

Capítulo 11: A meta ........................................................... 173

Parte IICapítulo 12: As mulheres cuja passada seguimos ................ 189

Capítulo 13: Nós e as lesões ............................................... 202

Capítulo 14: Dar corda aos sapatos .................................... 220

Capítulo 15: Arranje companhia ........................................ 226

Capítulo 16: O estilo de corrida ideal ................................. 228

Capítulo 17: A corrida das corridas .................................... 234

Capítulo 18: O segredo ...................................................... 257

Agradecimentos .................................................................. 260

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Prólogo

O segredo que todos os corredores guardam é que cor-

rem não pelo corpo, mas pela mente. Podemos cansar-nos de

umas pernas esguias, mas nunca nos cansamos de uma mente

limpa. Os glúteos rijos, os abdominais marcados, a satisfa-

ção de saber que podemos comer mais um bolinho enquanto

vemos televisão não são objetivos da corrida, mas efeitos.

O verdadeiro tesouro é perceber que podemos sair de casa

quase a tremer de alvoroço sobre o que nos espera e que, se

aguentarmos mais uns minutos, mais uns postes, mais uns

quilómetros, estaremos não só a correr melhor, mas também

a viver melhor.

Os momentos de raiva ou desolação por que os corre-

dores passam em alturas desesperadas de uma corrida longa

são reações fisiológicas básicas. Porém, é quando os aceitamos

enquanto tal que os dominamos e começamos a acreditar que

tudo é possível. Uma boa corrida quando menos nos apetece

sair de casa tem a capacidade mágica de desfazer um problema

intricado que nos atormenta há dias, sem que percebamos

exatamente porquê. Ou pode desencadear uma profundidade

de emoções de que nunca sonhámos ser capazes.

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No final de setembro do ano passado, fui ao cinema, em

Londres, para ver Drive – Risco Duplo, com o Ryan Gosling. É

um filme ótimo, que recomendo, mas atenção, o Ryan é meu.

Não me distraio facilmente quando tenho o Ryan Gosling na

cabeça, por isso quando o meu telemóvel tocou à entrada da

sala de cinema, só atendi porque a minha irmã podia dar à luz

o primeiro filho a qualquer momento e vi que era a minha

mãe a ligar-me. Mas em vez de ouvir que a minha irmã dera

entrada na maternidade, ouvi que o marido dela, um homem

saudável e ativo com trinta e cinco anos, estava na maca de

uma enfermaria. Tinha o ritmo cardíaco demasiado elevado e

ninguém sabia porquê. A minha mãe disse-me que fosse ver

o filme, porque não havia nada que pudéssemos fazer até ele

ser observado por um especialista, mas pediu-me que não des-

ligasse o telemóvel, não fosse a minha irmã precisar de mim.

Entrei na sala numa espécie de transe, com o sangue gelado.

Sentei-me com o telefone na mão, hipnotizada pelo Ryan

Gosling, mas sempre consciente da ansiedade que se instalara

na minha mente. O que se passaria no hospital, a poucos qui-

lómetros dali? Não dava para entender. Troquei mensagens

com o meu pai durante o filme, para saber se havia novidades.

Nada. Saí do cinema e liguei para o Hospital de St. George.

Percebi que a situação não era boa quando, em poucos segun-

dos, me passaram diretamente à minha irmã. Estava a chorar

e pediu-me que fosse lá ter imediatamente.

O que se passou a seguir foram as quarenta e oito horas

mais extraordinárias das nossas vidas. Fui ter com a minha

irmã, segui com ela para casa, fiz-lhe torradas e chá, ajudei-

-a a entrar e a sair da banheira, e deitei-a. Não havia sinal do

bebé, mas também não havia sinal do marido, que continuava

ligado a uma miríade de fios hospitalares misteriosos. Na

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manhã seguinte, acompanhei a minha irmã à consulta com a

parteira e depois fomos ao hospital ver o marido dela. Desviei

o olhar quando ele lhe disse que ia ser operado de urgência

ao coração daí a poucas horas. Sustive a respiração quando o

ouvi perguntar ao cirurgião qual era a alternativa. Continuei

sem expirar quando a resposta chegou. «Não há alternativa.

O seu caso é muito raro e é fatal se não for tratado.»

A minha irmã foi aconselhada a ir para casa descansar

durante a cirurgia, que demoraria duas a três horas. É mais

fácil falar do que fazer: demorámos dez minutos para que

ela subisse as escadas, destroçada como estava e a soluçar de

desespero. Desci e fiz três pratos de lasanha, com vontade

de ter os meus ténis comigo. Ainda estava com a roupa com

que saíra para ir ao cinema na véspera.

Quatro horas depois, ainda não tínhamos notícias. A minha

irmã sentou-se à mesa da cozinha e premiu o botão de voltar a

ligar do telefone durante trinta minutos. Lá acabámos por ser

informados de que podíamos ir visitar o marido dela. Estava

ótimo e completamente curado por uma cirurgia laparoscópica

de ponta. Na manhã seguinte, a minha irmã entrou em traba-

lho de parto e deu à luz um menino lindo e saudável, o Louis.

Uma semana depois, corri a Meia Maratona dos Parques

Reais, em Londres. A certa altura, achei que talvez não fosse

capaz, mas acabou por me parecer a única coisa razoável a

fazer. Tinha passado a semana anterior a responder a uma tor-

rente de emails e telefonemas, a recontar mil vezes a história

da extraordinária reviravolta de acontecimentos. Encontrei-

-me com a família, com amigos, toda a gente que me era que-

rida e a que consegui chegar. Sentia vontade de os abraçar

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a todos. E a cada encontro contava a história, uma e outra

vez, até ela se esvaecer, desgastada de tanto ser recontada, até

começar a parecer mais o enredo de uma novela que eu resu-

mia no Twitter para alguém que também a seguisse. Foi quase

como se não se tivesse passado comigo.

Estava nervosa na manhã da corrida, como me acontece

sempre que vou a um grande acontecimento público sozinha.

Será que me tinha esquecido de alguma coisa? Quem é que me

levaria para casa, em Brighton, se eu caísse? Seria finalmente

esta a corrida em que faria chichi à frente de toda a gente?

As preocupações do costume. Porém, à parte da corrida,

sentia-me feliz e descontraída depois de uma semana passada

na companhia de quem me era mais querido, a digerir as dra-

máticas mas, afinal, felizes novidades.

Quando passei a linha de partida, a beleza de Londres

naquele dia emocionou-me. Naquele ano, o tempo tinha

andado esquisito e, embora tivesse chovido de manhã, pusera-

-se um lindíssimo céu fresco de outono e as folhas do Hyde Park

estavam divinais. Senti um pequeno nó na garganta quando

saímos do parque e fomos na direção do Mall e, a seguir, ao

longo do rio. Atravessámos a Ponte de Waterloo e começámos

a voltar para trás. Foi quando aconteceu. As lágrimas.

No início, pensei que fosse uma lágrima fugidia, do

género das que caem quando ouvimos um discurso político

emotivo, lemos um grande romance ou vemos a última meia

hora do Children in Need 1. Sabem como é, quando bebe-

mos a devida quantidade de uísque e estamos em boa com-

panhia. Um momento passageiro. Mas não. As lágrimas que,

1 «Crianças Necessitadas». A Children in Need é uma instituição de caridade da BBC entre

cujas ações de angariação de fundos se conta uma maratona televisiva anual. (N. da T.)

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no início, podiam passar por olhos húmidos por causa do frio

depressa se transformaram em soluços crescentes.

O primeiro foi um misto de nó na garganta e um gemido.

O segundo foi um claro arquejo. Aos oito quilómetros da

meia maratona, já eu ia lançada num choro aberto. No início,

não sabia o que se passava comigo: pura e simplesmente não

estava triste; na verdade, sentia-me muito feliz. Estava tudo

bem, não estava? E no entanto parecia que após quase duas

semanas de robustez, o meu corpo e a minha mente tinham

decidido subitamente descarregar aos oito quilómetros, no

anonimato do pelotão. O problema é que eu não era anó-

nima; tinha uma camisola com a minha alcunha, HEMMO,

em letras de vinte centímetros. Contudo, quando finalmente

me apercebi disso, já estava assolada por mil e uma sensações

por segundo, como se eu fosse uma espécie de caleidoscópio

mágico de emoções. De dois em dois segundos, era invadida

por uma sensação nova que eu não permitira que se instalasse

em mim à frente da minha irmã, dos cirurgiões e de mais nin-

guém no hospital. Foi uma vaga imensa de lágrimas.

Sem dar por isso, os meus soluços estavam quase des-

controlados, ao ponto de o ritmo regular dos meus pés no

pavimento ser a única coisa que me impedia de me ir com-

pletamente abaixo. Não sei como é que fui capaz de conti-

nuar a correr, mas não conseguia fazer senão isso. As memórias

dos últimos dez dias tomaram conta de mim: a minha mão

fechada sobre o telemóvel naquela sala de cinema escura,

enquanto esperava notícias, a mão da minha irmã quando ela

assinou o formulário de autorização da cirurgia do marido,

a mão do meu cunhado sobre a barriga da minha irmã. O

cheiro a desinfetante do hospital, o cheiro da comida que fiz

enquanto a minha irmã dormia, o cheiro da cabeça do meu

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sobrinho recém-nascido. Fragmentos das conversas que tinha

tido naqueles dias infindáveis invadiram-me a consciência, até

perderem todo o significado: «O quê? Ele podia ter morrido?»

«O quê? O bebé nasceu no dia seguinte?» «O quê? Vais correr

à mesma este fim de semana?»

Claro que corri, porque só com a corrida é que conseguia

digerir aqueles dias traumáticos. O problema, claro, é que

quem via a corrida do passeio naquele dia não sabia a razão

do meu choro. Só via uma atleta em dificuldade e incenti-

vava-me. O que, para ser sincera, só piorava as coisas. Por-

que, a cada passada, o meu coração parecia crescer, expandir

para abrir espaço ao amor que eu percebia subitamente sentir

pelo meu cunhado, pelo meu novo sobrinho e pelos amigos

que nos apoiaram. Não havia simplesmente lugar para amar

as caras doces das crianças que ali estavam para apoiar o pai

ou algum irmão e que começavam a incentivar-me a mim

também. Não havia, pois não? E, portanto, a generosidade

delas transformava-se em mais lágrimas de felicidade, con-

forme eu soluçava e tentava sorrir-lhes e explicar-lhes: «Oh,

não se preocupem, eu estou bem! É que…» E de repente já

tinha passado por elas.

– MUITO BEM, HEMMO! – gritavam já depois de eu

passar. E isso só me fazia chorar mais.

Acalma-te, que vergonha, tens de baixar o ritmo cardíaco

para continuar, pensava eu, e, só de pensar no coração, lá

vinham mais lágrimas. Oh, o coração! O coração é espantoso!

E era tomada pela emoção da simples maravilha da vida.

Não me lembro dos últimos quilómetros, até chegar à reta

final. Vi a linha de meta e, de repente, senti uma força que

não sabia que tinha. Admito que não tinha corrido excecional-

mente depressa, dado a minha intensa atividade lacrimejante,

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mas subitamente senti-me mais forte do que nunca. O meu

cunhado tinha sobrevivido. A minha irmã tinha sobrevivido.

Todos tínhamos sobrevivido. Por isso, acelerei. Senti-me cor-

rer mais depressa, e comecei a perceber que estava a ultrapas-

sar as pessoas à minha volta. Deixei-as para trás, correndo mais

depressa do que jamais correra. Pouco a pouco, senti um for-

migueiro na cara, depois nas mãos. A escassos metros da meta,

duvidei se ia conseguir lá chegar. Mas cheguei, direta para os

braços de um socorrista que me tinha visto chegar. Pôs-me a

cabeça para baixo sobre os joelhos, para me acalmar a respira-

ção, entretanto completamente descontrolada. Agradeci-lhe,

entre estranhos arquejos soluçados, e aceitei, aliviada, a água

que ele me deu. Passados uns instantes, o meu irmão apareceu

e comprou-me um cachorro-quente. Foi o melhor cachorro-

-quente que já comi, e eles sabem sempre bem. No comboio de

regresso a casa, mandei um email às minhas amigas a contar

o que acontecera e previ que me respondessem que eu tinha

enlouquecido. Mas elas perceberam. Perceberam tudo.

Esse dia de outubro foi o dia em que melhor percebi por-

que é que corro: depois de fazermos a maravilhosa constatação

de que conseguimos continuar a avançar quando mais temos

a certeza de estar prestes a afogar-nos em lágrimas perante

uma multidão de milhares de pessoas, adquirimos uma com-

petência que se aplica a tudo na vida. Afinal, para sobreviver,

basta-nos continuar a avançar.

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PARTE I

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«É a coisa mais natural do mundo.

Nós nascemos para correr.»

«Basta calçar os ténis e sair porta fora,

por isso é que é magnífico.»

«És só tu, a estrada e os teus pensamentos.»

Tudo isto são coisas que as pessoas dizem sobre a corrida.

É tudo mentira.

Correr é horrível. Não parece nem natural, nem necessá-

rio. E provoca dor. Pode deixar-nos sem fôlego, tomar-nos de

pânico e esmagar-nos de vergonha. Não é nenhuma lareira,

nem nenhum sofá confortável, nem uma chávena de chá e

um sorriso. É frio e difícil e implacável. Parece mais exigente

à medida que melhoramos. Faz dores de cabeça e dores nos

dedos dos pés.

Mas também é o prazer de estar ao ar livre, num dia soa-

lheiro, e sentir o toque do sol na pele. É o deleite de sentir a

nossa temperatura corporal subir apesar da brisa fria de inverno

que nos bate na cara. É sentir o sangue a correr pelo nosso

corpo todo e chegar a casa para um banho revigorante e uma

refeição deliciosa, com a pele ainda a brilhar passado uma hora.

E, como aprendi, também é uma honra, um privilégio e

uma dádiva.

Esta parte do livro, portanto, não tentará persuadir-vos de

que devem correr, mas apenas de que podem correr. Já pas-

sei por isso de me sentir repelida e intimidada pelos sorrisos

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beatíficos e presunção radiante dos maluquinhos do desporto.

Durante muitos anos, a corrida pareceu-me um castigo para

manter a linha – mais uma maneira de nos dizerem para man-

termos a linha, para sentirmos que queimamos calorias, para

pagar aquele meio copo de vinho branco e os quatro quadra-

dinhos de chocolate. Deus nos livre de ter um corpo que não

esteja sempre pronto para a praia!

Lembrava-me de que tudo parecia mais divertido quando

corria em pequena, mas não havia muito que me convencesse,

a mim, uma mulher na casa dos trinta que passara vários anos

a substituir o jantar de sexta-feira por uma saída à noite, de

que correr podia ser uma coisa para mim. Portanto, este é o

livro que eu não li mas gostava de ter lido antes de ir correr

pela primeira vez (um desastre). Um livro para quem acha que

não consegue correr, seja lá qual for a razão. Para as mulhe-

res que julgam que não são suficientemente magras para usar

roupa desportiva ou que simplesmente não vale a pena cor-

rer se não quisermos atacar a maratona. Para as mulheres que

acham que andar a correr às voltas é uma maneira idiota de

passar uma boa hora. Para as mulheres que ainda não acredi-

tam que correr é verdadeiramente uma fonte de imensurável

prazer, autoconfiança e inesperado companheirismo, e não

um purgatório – que poderão, poderão realmente, desfrutar

da confiança, da descontração física e da clareza mental que a

corrida proporciona.

Afinal, foi pela corrida que eu descobri que as nossas con-

quistas dependem não dos outros, mas de nós.

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CAPÍTULO 1

Não nasci para correr

«Só quem ousa falhar alcança a grandeza.»

Robert F. Kennedy

Estava decidido, ia fazer uma corrida à volta do quartei-

rão. Tinha expectativas altas: ganhar um rabo de atleta, uma

cintura de supermodelo e a velocidade de uma gazela. Der-

rotada pelos ginásios, aborrecida com os professores de ioga

moralistas e intimidada por clubes de ténis finórios, decidi que

chegara a hora de deixar de acreditar que vivia num mundo à

parte do desporto. Regressaria a casa cheia de força e orgulho,

com a cidade ainda estonteada pela visão da minha graciosi-

dade e velocidade nos passeios de Kilburn. Esta é a história da

minha primeira corrida.

Eu pouco mais podia fazer para a adiar. Estava tudo

lavado, a roupa engomadíssima e as prateleiras sem pó. Já

tinha pensado e repensado um milhão de vezes nas hipóteses

mais catastróficas e era agora claro que não ia chover. Tinha

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ficado sem desculpas. Apanhei o cabelo, peguei numa garrafa

de água de meio litro, pus as chaves no bolso das calças de fato

de treino e parei à saída de casa. Era agora. Eu ia correr.

Abri a porta de casa e desci os três degraus até ao passeio.

O que é que eu devia fazer agora? Uns alongamentos, se calhar?

Apoiei-me num candeeiro e puxei um pé para as costas, ten-

tando esticar o músculo da frente da coxa. Fiz o mesmo com a

outra perna e olhei à minha volta com ansiedade. O meu cora-

ção já estava a bater demasiado depressa. E se alguém conse-

guisse perceber que era a primeira vez que eu corria? Será que

conseguiam ver que eu estava a fazer aquilo mal?

Correr. É só correr, pensei. Arranquei estrada fora, esfor-

çando-me por mostrar aos transeuntes de sábado que, para

mim, isto era tão normal como ir deitar o lixo à rua. Mas

aquela estrada era uma estrada comprida. Ligava as delícias

urbanas de Kilburn High Road aos cafés finos de Queen’s

Park. À medida que me aproximava do parque, as casas torna-

ram-se cada vez mais esplêndidas e aperaltadas. Eu, contudo,

era o inverso.

Ia a meio da estrada quando tive de parar. Sentia uma tre-

pidação terrível, enquanto o mundo à minha volta ora subia

ora descia ao ritmo dos meus membros pesados: tum, tum,

tum, os pés batiam no chão e produziam ondas de choque no

meu corpo e no pavimento. Em poucos segundos – nem sequer

foram minutos – a minha cara estava vermelho-acastanhada

devido ao calor intenso e o meu peito arfava. Via o cruzamento,

ao fundo da rua, mas, para minha humilhação absoluta, era

incapaz de chegar tão longe. Além de não ter fôlego, fui obri-

gada a engolir o pânico para conseguir continuar a deslocar-me.

Caminhei enquanto durou a canção seguinte da minha

lista de músicas. A indignidade de admitir que já não conseguia

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correr parecia ligeiramente menor do que a indignidade do

desastre físico em que me tornaria se continuasse a correr. Aca-

bei por ser capaz de chegar ao parque e tentei correr enquanto

durou a canção seguinte. Nem isso consegui e, entretanto, pas-

sei pelo campo de futebol das crianças, no meio do parque.

Todas pareciam correr facilmente, sempre em movimento,

enquanto todo o meu corpo parecia cada vez mais atrofiado.

A instabilidade das minhas coxas, os tremeliques do

meu rabo e a oscilação ridícula do meu peito pareciam gozar

comigo, enquanto os pais dos miúdos me olhavam horrori-

zados do campo de jogos. Sempre que os meus pés tocavam

no asfalto, convencia-me de que ia torcer o tornozelo, e, sem-

pre que baixava a cabeça para olhar para eles, confrontava-me

com a vinda de uma coxa na minha direção. Parecia que o

meu eu físico estava completamente desligado de tudo o que

o meu eu intelectual ou emocional lhe tentava dizer. O pen-

samento Acalma-te, o mais importante é esforçares-te só rece-

bia em troca um Pois, sim, porque sofrer voluntariamente esta

dor é uma excelente ideia. O que, por sua vez, acabou com

qualquer possibilidade de me acalmar, com o resultado de o

meu batimento cardíaco começar a aumentar por puro medo

novamente.

Quando cheguei à ponta do parque e dei meia-volta para

fazer o caminho de regresso, o batimento do meu coração e o

fogo lento que sentia nos pulmões convenceram-me da dura

realidade: não ia conseguir chegar a casa.

Contudo, depois de recomeçar e parar várias vezes e de

evitar completamente estabelecer contacto visual com todas

as pessoas por quem passei, cheguei a casa. Recompensei-me

generosamente com uma quantidade fenomenal de comida e

bebida na festa dessa noite e disse alegremente a toda a gente

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que tinha feito uma corrida longuíssima de manhã. Quando

acordei na manhã seguinte, senti que tinha sido atropelada

por um camião. Um camião grande, com pneus enormes e

sulcados. É inaceitável que uma pessoa se faça sentir assim,

decidi. Devo ter exagerado. Mais tarde, investiguei o percurso

que tinha corrido: tinha um quilómetro e meio.

Passaram três meses antes de me decidir a correr outra vez.

Não me lembro de tomar a decisão de não ser capaz de

correr; era simplesmente um traço meu, como gostar de queijo

ou não gostar de ver homens vestidos com polos.

Porém, a minha certeza de que não conseguia correr era

absoluta, a minha inveja de quem era capaz profunda, e a

minha admiração pela minha companheira de casa ilimitada.

Ela chegava à porta de casa a cintilar depois da sua corrida

habitual em Regent’s Park ou em Hampstead Heath, e eu

recebia-a entusiasticamente. Conversávamos sobre o que ela

tinha visto: ela encostada ao balcão da cozinha a bebericar

um copo de água e eu no sofá, com o computador portátil

apoiado nos joelhos, como um bebé a arrotar.

«Quem me dera ser capaz de correr.» Havia uma certa

dose de conforto em dizer isto em voz alta. «Parece tão diver-

tido», dizia eu com um suspiro, enquanto a minha colega

tirava os ténis. Eu sentia uma pontinha de tristeza por saber

que era tarde demais para começar. Depois, esticava-me para

pegar, com resignação, no controlo remoto do televisor.

Via a roupa de treino da minha companheira de casa

andar hipnoticamente às voltas na máquina de lavar e nunca

questionava a irrazoabilidade da minha convicção de que eu

«não era capaz de correr». Parecia um facto cumulativo, algo

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que eu deixara que me acontecesse, um estado de coisas a que

eu sucumbira sem questionar.

Lembro-me de, aos seis ou sete anos, mal conseguir espe-

rar por correr nos intervalos das aulas. E lembro-me de ter

trinta anos e estar completamente convencida de que correr

era uma atividade irremediavelmente inexequível.

De alguma maneira, durante aqueles anos, tinha-me

esquecido da sensação de estar a ler ou a ouvir ler numa aula

e de começar a sentir uma pulsão familiar nas pernas. Olhava

para o relógio de parede, para a professora e pela janela.

Está quase. Depois, no mesmo instante em que a campai-

nha soava, agarrávamos nos casacos e íamos lá para fora brin-

car ao jogo que nos ocorresse, desde que significasse correr

durante um bocado. Com aquela idade, não lhe chamávamos

correr, porque era a correr que fazíamos tudo, de luvas a pen-

der das mangas e tranças a bater-nos nas maçãs do rosto. Éra-

mos simplesmente crianças e tudo para as crianças tem mais

graça quando é feito depressa. Corríamos e ríamos. Correr e

rir eram uma e a mesma coisa.

Aos dez anos, lembro-me de sonhar acordada na linha de

partida dos quatrocentos metros. Via os raios solares quentes

do verão atravessar os pequenos buracos na minha camisola

azul-marinha Aertex, reparando como me tinham bronzeado

os braços e escurecido a relva da pista. Corria alegremente à

volta dela, o maior tempo possível, por vezes atravessando-a

pelo centro, só para mudar de percurso, até sermos chamados

de regresso às aulas ou até outros miúdos precisarem da pista.

Vinte anos depois, estava inteiramente habituada ao meu

estatuto de pessoa que vive à parte do mundo do desporto.

Era como se nunca tivesse corrido na vida. Nunca me ocorreu

que podia fazê-lo, que me bastava para isso sair de casa. Não

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era uma pessoa que corresse e pronto. Não sei como, tinha

perdido noção de que não correr e não ser capaz de correr não

eram uma e a mesma coisa.

Eu não era uma pessoa desportiva, era tão simples quanto

isso. Era uma rapariga curvilínea com pouco ou nenhum espí-

rito competitivo. Raramente conseguia acertar na bola durante

os jogos na escola e negligenciei quase completamente o meu

corpo nos três anos de universidade. Talvez tenha corrido um

nadinha, uma vez, quando empurrei a minha amiga Clare por

Cotham Hill abaixo num carrinho de compras, e sei que dan-

cei em cima de um pódio algumas vezes, mas as minhas aven-

turas atléticas na universidade não passaram disso.

Depois, mudei-me para Londres e juntei-me à eterna

dança dos ginásios. Sempre que entrava num ginásio novo,

dizia para mim mesma que agora é que era. Seria este giná-

sio que me faria perder de amores pelo exercício físico. Mas

isso nunca aconteceu. Depois de sentir a adrenalina passageira

de ver as instalações, receber o meu plano de treino e expe-

rimentar a sauna pela primeira vez, a magia rapidamente se

desvanecia e eu voltava às espreitadelas fugazes e culpadas ao

meu extrato bancário, por perceber que as visitas me custa-

vam cada vez mais.

Na altura, não sabia que o ginásio era apenas uma meta-

dona fraquinha para a heroína que é correr na rua. Como é

que correr pesadamente numa passadeira elétrica, sem sair do

mesmo sítio em frente de uma parede que mostra notícia atrás

de notícia se pode comparar à liberdade de correr à beira-mar,

ver uma gaivota pairar sobre um pedaço de comida no cami-

nho e perceber que, por um instante, a conseguimos acompa-

nhar? Mesmo assim, continuei a pensar da mesma maneira.

A seguir, veio a fase do ioga (influências da Madonna). Horas

Page 23: CORRER NÃO É PARA MENINAS No final de setembro do ano passado, fui ao cinema, em Londres, para ver Drive – Risco Duplo, com o Ryan Gosling. É um filme ótimo, que recomendo, mas

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e horas de me dobrar e suar numa sala cheia de web designers

independentes e editores de moda nervosos. A seguir, foi o

pilates, e até um namoro breve com a meditação.

Finalmente, ao fim de um verão de sofrimento, seguido

de uma depressão quase paralisante, começou a fase das cami-

nhadas. Depois de uma rotina frenética de me estender a cho-

rar debaixo da minha mesa de apoio na sala, cheguei a um

ponto em que tinha mesmo de sair e ver a luz do dia. Queria

sentir o ar quente na pele, ansiava por ter o sangue a circular-

-me pelo corpo novamente, e precisava de o fazer com uma

vista que fosse além de um teto falso ou da pedicura ordinária

e com três semanas de um praticante de ioga. Transtornada

por várias semanas de sono errático – noites cheias de nervos e

pânico seguidas de dias letárgicos e de desânimo –, decidi, em

desespero, que cansar-me fisicamente podia tornar as noites

um pouco mais convidativas. Desejava desejar a minha cama,

em vez de a ver como um campo de batalha da guerra inter-

minável contra os meus demónios. Ansiava ansiar por me dei-

tar ao final do dia, com as pernas a doer por as ter usado e não

por eu as sacudir freneticamente debaixo da minha secretária

durante horas e horas.

Um dia, pura e simplesmente levantei-me e saí de casa, e

só voltei praticamente ao anoitecer. Assim começou a minha

fase das caminhadas. Andava durante horas, pelos percursos

que a minha antiga companheira de casa fizera no ano ante-

rior. Hampstead Heath, Regent’s Park, Hyde Park. Saía de

casa ao domingo de manhã e só voltava passadas três ou qua-

tro horas. Muitas vezes, mal me lembrava do tempo em que

estivera fora, como se a repetição reflexiva dos meus passos

me tivesse de algum modo hipnotizado. Começava impe-

tuosamente, ansiosa de me afastar das ruas urbanas sujas,

Page 24: CORRER NÃO É PARA MENINAS No final de setembro do ano passado, fui ao cinema, em Londres, para ver Drive – Risco Duplo, com o Ryan Gosling. É um filme ótimo, que recomendo, mas

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dos transeuntes vagarosos, do comércio local cujos donos

me tinham visto abatida e denegrida por um verão de más

escolhas alimentares. Depois, quando chegava aos parques,

começava a sentir-me mais animada. Caminhava cheia de

entusiasmo pelo Heath, escolhendo deliberadamente perder-

-me algum tempo nas zonas arborizadas que não conhecia.

Passava por jardins de rosas e perguntava-me se alguma vez

conheceria as histórias por detrás dos nomes das muitas varie-

dades. Uma pequena parte de mim que eu julgara ter perdido

começou a reemergir.

Chegava a casa exausta, mas visivelmente mais bem-dis-

posta. Tinha a sensação de que alguém me entrara na cabeça

e fizera uma limpeza geral. Fiz tréguas com a minha cama e

comecei a encará-la como um local de descanso novamente.

Prezava profundamente o tempo que passava desligada do

mundo, incontactável e sozinha. Os nós que se tinham for-

mado na minha mente noite após noite aliviavam ligeira-

mente; a minha imaginação tendia a preferir coisas positivas

aos cenários catastróficos a que tanto se dedicara até há pouco

tempo. Continuo convencida de que aquelas caminhadas no

verão de 2006 me salvaram. Não só por me terem devolvido a

capacidade de dormir, mas também por me terem dado o pri-

meiro pequeno embrião de confiança física. Se eu conseguia

caminhar quatro horas, o que aconteceria se acelerasse… e

depois acelerasse mais ainda? O meu coração começou a acre-

ditar que tudo era possível, e a minha cabeça a preparar-se.

Tudo era possível, talvez até… correr.

Foi, portanto, este espírito de otimismo que inspirou a

minha primeira corrida até Queen’s Park um ano depois. Se

o meu coração conseguia sobreviver aos murros que tinha

levado, as minhas pernas deviam seguramente ter mais para