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Cultura, Desenvolvimento e Sociedade – Marta Porto
CURSO DE FORMAÇÃO DE GESTORES PÚBLICOS E AGENTES CULTURAIS
Disciplina CULTURA, DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE
Carga Horária 4 horas
Objetivos
1) Apresentar a agenda que configura em plano internacional a relação entre cultura e desenvolvimento, sua cronologia, marcos, propostas e diagnóstico;
2) Analisar de forma breve a contribuição da política e da agenda pública de cultura como partícipes do processo de desenvolvimento brasileiro, analisando também as condições vistas como entrave para a implantação desse modelo.
3) Estimular uma visão transdisciplinar entre cultura, democracia e desenvolvimento sustentável 4) Propor alguns caminhos de uma agenda de cultura capaz de colaborar com o processo de
desenvolvimento sustentável brasileiro, com redução das desigualdades no acesso a bens e serviços culturais
CONTEUDISTA
MARTA PORTO é jornalista, pós-‐graduada em Psicologia Junguiana, Arte e Imaginário pela PUC-‐Rio, com Mestrado concluído em Ciências da Informação pela UFMG. Especialista em políticas de comunicação, arte e cultura. Curadora de espaços, exposições e projetos artísticos, conferencista e ensaísta da cultura com atuação internacional, lidera, assessora e apoia políticas e programas de organizações internacionais, governos e empresas. Atualmente coordena a área de Cultura e Políticas Culturais da Flacso Brasil e lidera um estúdio de ideias que atua como think tank especializada em criar espaços e ambientes culturais e associar arte e cultura a políticas de conhecimento, educação e comunicação, a Plano A Studio, sediada nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. É autora das publicações: Aids e Teatro, 20 dramaturgias de prevenção (Senac, 2004) Investimento Privado: balanço e desafios (Senac Rio, 2005); Olhares Femininos, mulheres brasileiras (Sesc, 2006); Nós do Morro, 20 Anos (XBrasil, 2008) e Cultura e Política no Brasil (no prelo).
ASSUNTOS OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1 Cultura e Desenvolvimento
-‐ Delimitar o momento da eclosão da ideia de cultura e desenvolvimento para as políticas culturais
-‐ Estabelecer o tipo de desenvolvimento que tomamos como ponto de partida
-‐ Analisar a contribuição das políticas de cultura para a agenda de desenvolvimento sustentável no Brasil
2 Democracia e Cidadania Cultural
-‐ Analisar, à luz do projeto democrático brasileiro, os pilares de um projeto cultural
-‐ Afirmar a cultura como um direito de cidadania
-‐ Problematizar as escolhas políticas e os instrumentos de gestão cultural escolhidos no Brasil para promover cidadania cultural
-‐ Propor alguns pilares estruturantes para um projeto de cultura, democracia e desenvolvimento
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DISCIPLINA – CULTURA, DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE
1.1. Exemplos, situações práticas, cotidianas que contribuam para a contextualização da unidade
1) Os protestos e mobilizações que tomam as ruas de cidades ao redor do mundo desde 2008 mostram que as ideias e teorias que ancoram o desenvolvimento estão em crise e as cidades são o palco onde elas podem ser reinventadas. A Agenda 21 de cultura articulada em 2004 pelo Fórum de Cidades e Autoridades Locais para a Inclusão Social contribui com uma visão holística (global, integrada) de desenvolvimento que propõe, para o século XXI, a cultura como seu quarto pilar.
2) O aumento do volume de recursos públicos e privados para projetos culturais nos últimos anos não representou de forma direta, rápida e clara a ampliação do acesso ao universo cultural e das oportunidades de desenvolver talentos e promover a memória cultural coletiva, como provam os indicadores e estatísticas culturais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio -‐ PNAD/IBGE, 2003-‐2005. A população brasileira, tratada como “público” e não como finalidade última da política, permanece em sua grande maioria alheia às oportunidades de uma vida cultural rica e diversa, como propõe o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
3) A Constituição Brasileira e os documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário garantem o direito de todos receberem educação de qualidade ao longo da vida. O acesso universal, da creche ao Ensino Médio, deve dar ao cidadão os meios para a construção crítica e pró-‐ativa de sua trajetória, onde “além do conhecimento da natureza e da cultura, envolve as formas estéticas, a apreciação das coisas e das pessoas pelo o que elas são em si mesmas, sem outro objetivo se não o de relacionar-‐se com elas” (Saviani, 2000). O projeto do novo Ensino Médio brasileiro é uma oportunidade para a política cultural propor uma matriz de atuação de cultura de caráter universalizante, com escolas de artes que desenvolvam talentos e habilidades e uma matriz curricular que desenvolva memórias, pensamento e linguagem.
4) As guerras e o cenário crescente de violência e intolerância nas grandes cidades impõem que as políticas culturais incluam, como um de seus pilares fundamentais, a promoção de valores éticos e de convivência solidária. Estimular um imaginário sociopolítico de curiosidade e respeito às diferenças, valorização da vida e diálogo intercultural é a base de consolidação da democracia e da formação cidadã.
Conceitos-‐chave da disciplina
Cultura -‐ são muitas as acepções de cultura. Para uma abordagem ampla, assistir ao vídeo “O que é cultura?” editado para o Módulo Inspiracional deste curso.
Desenvolvimento -‐ ampliação das liberdades de escolha (Sen, 2004)
Democracia -‐ forma sociopolítica definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direitos de todos de participarem da vida publica e manifestarem a sua opinião). A sociedade é democrática quando “institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. A democracia, como forma social, é dinâmica, está aberta a seu tempo histórico, a transformação e ao novo”. (Chauí, 2009).
Política -‐ A arte de igualar os desiguais (Aristóteles). É o exercício do poder com o propósito de domar, refrear e conter o desejo dos grandes e concretizar o desejo do povo por liberdade e segurança (Maquiavel).
Cidadania-‐ engloba três grandes esferas: a civil, a política e a social. Vamos situar a cultura no espaço da cidadania social, apesar de considerar que as formas culturais de uma sociedade se manifestar e se organizar perpassam as três esferas citadas. Cidadania é o conjunto de direitos que o cidadão reconhece, possui e exerce. Cidadão é o sujeito conhecedor de si e consciente de seus direitos, capaz de lutar por esses direitos em uma dada sociedade, que explicita, através de seus sistemas institucionais, jurídicos e morais a capacidade de todo o indivíduo de reivindicá-‐los e exercitá-‐los na vida pública.
Cidadania Cultural -‐ promoção de um imaginário social que confira valor a igualdade, liberdade e participação no poder através do acesso e produção de bens simbólicos, da formação ética e estética dos cidadãos.
CULTURA E DESENVOLVIMENTO
A relação entre cultura e desenvolvimento foi reconhecida pelas Nações Unidas em 1988, quando foi lançada a Década Mundial do Desenvolvimento Cultural e, alguns anos
depois, em 1993, implantada a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, sob a
batuta do peruano Javier Perez de Cuellar, ex-‐Secretário Geral da ONU.
Para a Comissão, o desafio da cultura no século XXI era se posicionar no centro do
debate sobre desenvolvimento, que não poderia mais ser medido apenas pelo crescimento econômico ou aumento do consumo. Em fins dos anos 80 e início dos 90 a pergunta chave
da UNESCO era: por que, apesar de todo o progresso científico e econômico a humanidade
chegava no limiar no século 21 com 1 bilhão de pessoas vivendo na extrema pobreza? Como a cultura afeta o desenvolvimento e sua não observância nas agenda políticas gera
distúrbios sociais, econômicos e violência? Como estabelecer a relação entre cultura e desenvolvimento, recolocando o valor da diversidade e do diálogo cultural no centro das políticas das nações e cidades do mundo?
Estas questões impulsionaram uma agenda política deflagrada pelas organizações
internacionais em parceria com governos e a sociedade civil para defender a ideia de que desenvolvimento é indissociável das condições culturais dos povos e a defesa da diversidade, da singularidade dos modos de produção, a força das indústrias criativas e das
tradições locais constituem uma fonte de bem estar social. Após duas décadas de trabalho, com grandes avanços em diversos aspectos conceituais e técnicos, com definição de marcos
legais, instrumentos de gestão e fomento, diretrizes políticas e documentos de orientação
como estatísticas culturais, inventários e cartografias nacionais e regionais, a agenda se concentrou em convencer os políticos e especialistas a integrarem em suas decisões e
programas “os princípios da diversidade cultural e os valores do pluralismo cultural no
conjunto das políticas, mecanismos e práticas públicas”.1 O esforço de todo este trabalho é
demonstrar que, além de contribuir para a redução da pobreza, na medida que reconhece o
valor de práticas econômicas singulares, a cultura constitui um forte instrumento de coesão social, quando prioriza o diálogo e as trocas interculturais. E de que desenvolvimento se fala:
1 www.unesco.org/culture
daquele preconizado pelo Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen2, como o que promove a
ampliação das liberdades e desenvolve as pessoas como agentes ativos de sua realização3. Vamos retomar esta noção na próxima seção sobre o Brasil.
A afirmação em 2000 do coordenador para a América Latina do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Bernardo Kliksberg, resume o sentimento à época e
justifica os esforços empreendidos para fazer frente aos desafios:
“As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente, um de cada dois latino-‐americanos está abaixo da linha da pobreza. A situação das crianças é ainda pior; seis de cada dez são pobres. Os jovens se
encontram em situação difícil. Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade
cresce fortemente, sendo seis vezes maior do que o que se considera
internacionalmente criminalidade moderada. Esses dados significam
sofrimento humano em grandes proporções. O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósticos dos anos
80, que afirmavam que seguindo certas políticas, os resultados sociais
e econômicos estariam assegurados? Por que um continente com recursos naturais privilegiados, com fontes de energia baratas,
acessíveis em grande quantidade, com grande capacidade de produção agropecuária tem indicadores sociais tão pobres? O
pensamento convencional parece ter esgotado suas possibilidades de dar respostas a interrogações como estas. Faz-‐se necessário recuperar
o que foi das maiores tradições desse continente: a capacidade de
2 Sen, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade, 2004. “A expansão da liberdade é vista como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. A eliminação de privações de liberdades substanciais, argumenta-se aqui, é constitutiva do desenvolvimento”.2 (SEN, 2000) 3 Para este conceito ver disciplina Economia Criativa de Ana Carla Fonseca Reis.
pensar de forma criativa e por conta própria, apreendendo da
realidade e buscando caminhos novos.”4
Essa afirmativa de Kliksberg traça um cenário das preocupações com o desenvolvimento apontado por organismos internacionais que recolocam seus desafios no
plano também cultural, de cada sociedade permitir-‐se encontrar soluções sintonizadas com
sua própria cultura. Pensadas dessa maneira, as políticas de cultura, para além do estímulo às artes, podem ser celebradas como estimuladoras de economias solidárias, de mercados
criativos, de comércio justo, da educação em valores e de universalização dos bens
simbólicos.
A implantação, em 1993, da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento das Nações Unidas reforça essa tese propondo objetivos e metas para cada estado-‐membro no
sentido de reforçarem suas políticas culturais como pontas de lança de um desenvolvimento
mais equitativo. No Relatório Nossa Diversidade Criadora5 essa Comissão da ONU apontou
os 05 principais objetivos, que foram reforçados posteriormente pela Conferência Intergovernamental de Cultura, realizada em Estocolmo, Suécia, em 1998:
1) A política Cultural, como um dos principais componentes da política de
desenvolvimento endógeno e sustentável, deve ser implementada em coordenação
com outras áreas sociais, na base de um enfoque integrado. Qualquer política de
desenvolvimento deve ser profundamente sensível à sua própria cultura; 2) As políticas culturais do próximo século devem se antecipar, respondendo tanto
aos problemas persistentes quanto às novas necessidades;
3) A participação efetiva na sociedade de informação e o domínio de cada tecnologia de informação e comunicação constituem significativa dimensão de qualquer política
cultural;
4 Kliksberg, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. São Paulo, Cortez, 2000. 5 CUELLAR, Javier Perez. Nossa Diversidade Criadora. Brasília: UNESCO, 1997.
4) Os governos devem se esforçar para estabelecer parcerias com a sociedade civil no planejamento e implementação de políticas culturais que estiverem integradas às
estratégias de desenvolvimento;
5) Num mundo cada vez mais interdependente, a renovação das políticas culturais
deve ser prevista simultaneamente nos níveis local, nacional, regional e global.
A crítica que se pode fazer a esta agenda é que de tão ampla ela perdeu o foco, fato
que que analisaremos mais a frente. E, passadas duas décadas, não há sinais concretos de que estes esforços tenham sido bem sucedidos. A partir da crise de 2008, países como
Espanha e Portugal – o primeiro um dos mais importantes parceiros e financiadores dos programas de cultura no mundo – assistiram a extinção das pastas ministeriais de cultura,
em um claro retrocesso da agenda do fim dos anos 90 e início dos 2000. As verbas para a
cultura minguaram em boa parte do mundo e o desemprego em alta em muitos países da
Europa, conjugado às guerras culturais e religiosas, fortalecem o sentimento de urgência na renovação das políticas de desenvolvimento, mas também de desesperança de que a cultura
seja um dos seus pilares.
Ainda assim, em 2010 a Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua Resolução A/RES/65/166, reconhece a importância da cultura para o desenvolvimento sustentável e
assume o papel de coordenar esforços para sensibilizar a comunidade internacional de sua importância para um Milênio de paz e justiça social. Mais longe vai a Agenda 21 de Cultura,
documento de 2004 articulado pelo Fórum de Autoridades e Cidades Locais pela Inclusão
Social durante o Fórum Universal das Culturas, Barcelona, 2004. A Agenda 21 defende a cidade e o território local como lugar privilegiado para se articular políticas de cultura e
desenvolvimento, baseados em 5 princípios: governança global para o desenvolvimento
cultural realizada a partir das cidades; promoção dos direitos humanos e de uma cultura de paz e convivência; diversidade cultural; sustentabilidade e democracia. Em 2012, o órgão
gestor da Agenda 21 de Cultura, CGLU -‐ Cidades e Governos Locais Unidos, apresentou um
documento na Rio+20 propondo a cultura como quarto pilar do desenvolvimento sustentável no século 21. O documento lembra que, em uma sociedade do conhecimento, o
valor da cultura é imenso e que o tripé da sustentabilidade -‐ econômico, social e ambiental -‐
não traduz os principais desafios deste milênio. A diversidade como elemento inerente ao diálogo cultural pode conduzir ao pluralismo necessário para agir de forma pacífica sobre os
conflitos e promover um imaginário que valorize os ideias dos direitos humanos e da
solidariedade entre os diferentes. Lembrando Amartya Sen e Edgard Morin, o documento recoloca a agenda humanista como tarefa das políticas de cultura e defende os preceitos
éticos e a formação criativa e cultural como fontes para edificar uma sociedade de bem estar
social e liberdade pessoal e comunitária. Um agenda aberta e de difícil construção, mas que
deve e pode iniciar com dois pilares fundamentais: políticas e programas que promovam um imaginário plural e de reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, e a
promoção das artes e do patrimônio imaterial e material como bases da memória, da
criatividade, da consciência histórica e da curiosidade sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. Uma agenda de cultura a partir da cultura, articulada em primeira mão com as
dimensões da política que não podem ser outorgadas a outras esferas da ação pública e/ou privada.
E no Brasil? Como pensar a relação entre cultura e desenvolvimento? A trajetória sustentável de desenvolvimento é encarada por todos como a maior
prioridade para o Brasil. Ao contrário do que tanto se diz nas páginas dos jornais, no entanto, ela não depende só de reformas econômicas. Nem muito menos implica a reedição de um modelo que já experimentamos no passado, que se esgotou por seus próprios limites e que está na raiz de grande parte dos problemas que enfrentamos hoje: a insuficiência e a baixa qualidade da educação, a desigualdade, o caos metropolitano, os desequilíbrios ambientais, a insatisfação urbana. Uma agenda de desenvolvimento para o Brasil hoje passa pelo aprofundamento e pelo aprimoramento de processos que já estão em curso na sociedade brasileira e por outros que ainda estão pendentes de entendimento e esforço político. Para alguns, o desenvolvimento brasileiro se realizará plenamente se consolidarmos:
• A democratização política, econômica e social; • A consolidação da estabilidade macroeconômica; • Uma ampla reforma de instituições que já fizeram seu tempo, mas que
precisam se adequar aos desafios contemporâneos e que, como estão, impedem maiores ganhos de eficiência e uma maior equidade;
• A redefinição do espaço público, de forma a consolidar a descentralização e a ampliar suas fronteiras para além da esfera estatal;
• O aumento dos investimentos em infraestrutura, em ciência e em tecnologia; • A reformatação de um amplo leque de políticas públicas, visando obter uma
maior transparência e, sobretudo, uma maior eficácia do gasto público; • O redesenho da inserção do país no cenário econômico e político
internacional. • Trata-‐se, portanto, de uma agenda complexa -‐ cuja materialização requer o
envolvimento de um amplo leque de atores e uma profunda mudança no imaginário coletivo nacional.
Os pressupostos acima foram retirados de um documento intitulado “Caminhos para o Desenvolvimento no Brasil6” elaborado por uma das principais entidades de pesquisa e estudos sobre este tema no país, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade -‐ IETS, liderado por economistas e estudiosos de peso no cenário nacional. A pauta não exclui por todo a dimensão cultural, certamente subentendida em alguns dos itens acima, mas revela a forma indireta com que ela é tratada na totalidade dos documentos e também nos debates públicos sobre desenvolvimento que lideram a discussão no país. Certamente porque a cultura antes de definir um caminho político próprio, com uma agenda clara, propositiva, de médio e longo prazo e de fácil compreensão para o cidadão comum, assume uma postura dúbia ao tentar justificar a sua importância através de associações com outras agendas – a social e a econômica para ficar nas mais óbvias -‐ sem definir um núcleo duro programático (ou seja, o que é próprio e único do campo cultural) onde estas articulações, desejáveis, se deem de forma a garantir o desenvolvimento cultural de toda a sociedade brasileira.
Dois exemplos de agendas que promovem diálogos com outras políticas, mas que asseguram uma visão singular de desenvolvimento e uma matriz singular de trabalho, são as de meio ambiente e a da ciência e tecnologia. A agenda ambiental definiu uma forma de fazer política e redefiniu os pilares do desenvolvimento, incluindo a matriz “sustentável” como visão que organiza toda uma dinâmica política e operativa. Agenda e matriz se revelam claramente na constituição de macropolíticas para áreas que vão do aquecimento global, passando por energias renováveis, desmatamento, preservação de encostas, rios, fauna e flora, pesquisas em todos estes campos. Os ambientalistas, que como os da cultura, ganharam força na agenda internacional em fins dos anos 80 (mais precisamente em 1987
6 IETS, 2007.
com o lançamento do Relatório Brundtland7) organizaram este “núcleo duro”: -‐ É a partir daqui que estamos falando. E, assim, do ativismo ganharam status de política com P maiúsculo. Mais recentemente, no Brasil, a agenda da ciência e tecnologia avançou, com reforços em todas as frentes, da pesquisa, da formação científica, do aumento de verbas e dos programas de cooperação internacional. Pode-‐se dizer que a C&T é um dos pilares do desenvolvimento do país, e suas iniciativas são pensadas para impactar a vida das próximas gerações de brasileiros.
No caso da cultura, a ausência de políticas de caráter universal, as chamadas macropolíticas, e a definição deste “núcleo duro” (as dimensões objetivas e a visão de desenvolvimento organizada em políticas com início meio e fim) acabou gerando uma fragmentação em que se fala de tudo e não se garante nada. Essa fragmentação impede tanto os governantes como a população em geral de perceber prioridades e a colaboração objetiva para promover um desenvolvimento com justiça social e educação de qualidade. Este diagnóstico é reforçado pelo histórico dos debates travados pela área cultural durante e após o processo de redemocratização do país, debates marcados essencialmente pela discussão sobre os mecanismos de financiamento à cultura, do fomento pelos incentivos fiscais e mais recentemente por editais públicos e privados8. É sempre bom lembrar de algo que revela o tom dado ao debate cultural naquele momento: o Ministério da Cultura é implantado em 1985 e surge sob a égide da Lei Sarney, um exemplo do patrimonialismo9 brasileiro autoproclamado em uma lei cujo título é o nome do Presidente da República em exercício no país, “amante das artes”. E também revela o lugar que é destinado à cultura: atender demandas de artistas e produtores através das políticas de marketing e comunicação das empresas. Assim nascemos oficialmente na democracia. Substituiu-‐se o essencial pelo acessório e em 28 anos colhemos o fruto dessa escolha: a estagnação do percentual no orçamento da União, em uma margem de 0,3% de participação, a fragilização
7 Relatório Brundtland – Em 1987, o documento Nosso Futuro Comum ou, como é bastante conhecido, Relatório Brundtland, apresentou um novo olhar sobre o desenvolvimento, definindo-o como o processo que “satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. É a partir daí que o conceito de desenvolvimento sustentável passa a ficar conhecido. Esse relatório foi elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
8 Sobre este assunto, ler o artigo “Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante”. em www.martaporto.com.br 9 Patrimonialismo é a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado
de instituições de salvaguarda e memória do patrimônio nacional, a má remuneração ou qualificação dos recursos humanos, mas especialmente a substituição da ideia de acesso amplo e universal a toda a população brasileira pela ação pautada em projetos culturais com “público-‐alvo”.
Cultura e desenvolvimento, cultura e fortalecimento da democracia, cultura e cidadania são temas que começam a despontar com força na agenda política nacional, em debates, seminários, apresentações de documentos de secretarias e fundações culturais a partir apenas dos anos 2000. Um debate tardio, já que 20 anos nos separam da implantação do Ministério da Cultura. Mesmo tardio, o debate surge com força em especial a partir da Gestão Gilberto Gil, iniciada em 2003, onde mudanças no desenho político incorporam novas preocupações que começam a produzir resultados para o desenho político da ação cultural. Ainda assim, é preciso destacar que o que promove empatia da população ou de quem está exercendo o comando do Estado é expressar na política interesses comuns, como a possibilidade de ver seu filho estudando em uma boa escola -‐ que tal uma escola de artes? Onde elas estão? -‐, ter acesso a formação artística de qualidade -‐ muito mais do que as oficinas oferecidas em horários apertados na escola -‐ que contemple a memória cultural e artística e também a possibilidade de criar livremente. Os interesses comuns, a biblioteca boa e perto de casa, a escola com aulas de educação artística, os conteúdos da memória diversa brasileira disponíveis em todas as escolas brasileiras de forma digital, os debates públicos que nos ajudam a participar da vida cultural de nossas cidades, pensar, refletir, criticar, são a base de uma política de cultura centrada no homem comum, na criança, no jovem, no senhor e na senhora -‐ cidadãos que não organizam a sua demanda , mas que têm direito a uma vida cultural rica e diversa10. Mesmo diante de muitos avanços, como a maior capilaridade dos programas e do fomento à cultura, infelizmente ainda operamos com a famosa lógica do atendimento a demandas, velhas, novas, que surgirão. O povo, esta multidão de 200 milhões de brasileiros, surge como “público” magicamente previsto nas planilhas, dentro de teatros e salas de cinema que não existem em boa parte dos municípios brasileiros, participando de oficinas em bairros com 100 mil, 200 mil moradores, como os grande conglomerados em Rio de Janeiro e São Paulo, onde o “público” varia entre 15 e 30 meninos. Combinar a estratégia de manter a produção viva, com políticas que de fato valorizem a trajetória de vida dos cidadãos brasileiros, da infância à velhice, através de uma visão universal em que arte e cultura entrem para o cardápio de algo desejável na vida comum das pessoas, é o desafio para articular, no Brasil, 10 Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – ou Direitos Humanos?, 1948.
cultura e desenvolvimento. Arte e democracia. Cultura, arte e cidadania. Cumprimento de direitos.
Desigualdades no acesso à produção cultural:
• Entretenimento: a minoria dos brasileiros frequenta cinema uma vez no ano. Quase todos os brasileiros nunca frequentaram museus ou jamais frequentaram alguma exposição de arte. Mais de 70% dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança, embora muitos saiam para dançar. Grande parte dos municípios não possui salas de cinema, teatro, museus e espaços culturais multiuso.
• Livros e Bibliotecas: o brasileiro praticamente não tem o hábito de leitura. A maioria dos livros estão concentrados nas mãos de muito poucos. O preço médio do livro de leitura é muito elevado quando se compara com a renda do brasileiro nas classes C/D/E. Muitos municípios brasileiros não têm biblioteca, a maioria destes se localiza no Nordeste, e apenas dois no Sudeste.
• Acesso à Internet: uma grande porcentagem de brasileiros ainda não possui computador em casa. Destes, a maioria não tem qualquer acesso à internet (nem no trabalho, nem na escola). Este é o quadro que muda em maior velocidade.
• Profissionais da Cultura: a metade da população ocupada na área de cultura não tem carteira assinada ou trabalha por conta própria. (Fonte: Ministério da Cultura – IBGE -‐ IPEA).
Nesta disciplina, iremos de forma introdutória destacar análises que colaborem para uma reflexão sobre este tema.
DEMOCRACIA E CIDADANIA CULTURAL
Quais os pilares de uma política de cultura pensada a partir desses princípios? Vou citar um conjunto de elementos propostos em documentos internacionais11 para iniciar nossa conversa:
1) A promoção da diversidade cultural, pensada como as “várias formas de produção, circulação e apropriação de sentidos e práticas de pessoas e grupos sociais. Compreende as marcas culturais dos modos de vida, as práticas simbólicas que determinam o cotidiano de homens e mulheres, as memórias que articulam o passado e a tradição com o presente e as projeções de futuro”.12 Uma agenda de política cultural promotora da diversidade cultural, em síntese, deve “promover o diálogo de culturas em contextos de poder”13 o que significa para o gestor desenhar de forma clara e transparente os mecanismos políticos de acesso e gestão capazes de promover trocas onde a diversidade cultural seja elemento catalizador de uma ética de convivência e de respeito a dignidade humana. O simples reconhecimento da diversidade cultural não conduz à percepção de que, apesar das diferenças culturais, todos têm direitos iguais e inalienáveis perante um corpo social que supera as diferenças e luta por justiça e igualdade. Assim, essa agenda de política cultural promotora da diversidade deve priorizar o diálogo entre culturas, o que significa ofertar bens e serviços com a mesma qualidade para o conjunto de cidadãos independente do local de moradia ou da origem social, estimular intercâmbios entre as várias expressões culturais e tecnologias artísticas e garantir meios de acesso transparentes aos recursos e mecanismos de poder da gestão cultural.
2) As relações entre cultura e equidade, apoiadas, segundo Karen Marie Mokate14, em três valores sociais: igualdade, cumprimento de direitos e justiça. A equidade na cultura é garantida tanto no reconhecimento de que todo indivíduo e toda comunidade produz cultura, como na criação de condições adequadas de circulação dos bens culturais. O centro aqui é como garantir o direito de que
11 REY, German. Modos de Ser, Maneras de Somar. Retos para uma agenda de políticas públicas das Américas en cultura. Bogotá, Colômbia, 2002, pág. 97. 12 Idem, pág.103. 13 ESCOBAR, Arturo in REY, Germán. Idem. 14 MOKATE, Karen in REY, German. Idem pág. 106.
todas as pessoas possam participar e fruir dessas condições (escola, educação) estimulando a autonomia e a ampliação das escolhas ao longo da vida. O crescimento da oferta não representa em si mais pluralismo ou melhores oportunidades, por isso é tão importante a informação cultural, a, o diálogo entre práticas, valores e experiências diversas e especialmente a democratização do conhecimento, através da qualidade da educação, que permite reconhecer a memória e as várias matrizes culturais e criar as condições de fruição para o desconhecido;
3) A importância da cultura no fortalecimento da institucionalidade democrática, contribuindo para a criação de novos imaginários, onde os valores de respeito ao outro e ao meio ambiente, a abertura para criar novos direitos além dos já consagrados, o espírito de solidariedade e inventidade possam promover um ethos humanístico em detrimento de um ethos consumista e hedônico.
4) O florescimento das singularidades de cada lugar e dos modos de produção para promover uma economia da cultura capaz de gerar mobilidade social e desenvolvimento local15.
Assim, tratamos a cidadania cultural como a capacidade da política de cultura de contribuir para a formação de agentes com autonomia, capazes de participarem da vida pública de forma consciente e ativa. Conhecedores da sua história, memória, e tradições, mas também do universo simbólico produzido pela humanidade ao longo de sua história. Capazes de pensar e refletir sobre o seu tempo e sonhar com o futuro, inventando e inovando em sua formas de organização para o trabalho, nas artes e na sociedade. Uma política cultural que não tem como principais destinatários artistas e produtores, mas o povo. Não para entretê-‐lo, mas para criar oportunidades reais de enriquecimento humano, de acesso ao conhecimento produzido pela enorme diversidade cultural e ambiental do planeta, do reconhecimento da nossa e de outras identidades culturais, de experiências culturais que emocionem, que modifiquem a nossa maneira de ver e estar no mundo. E que nos habilitem, se assim desejarmos, a sermos ativos participantes das escolhas sobre nosso presente e nosso futuro.
15 Sobre este tema ver as disciplinas de Ana Carla Fonseca Reis
Em seu livro, Cultura e Democracia, a filósofa Marilena Chauí propõe o que chama de “recorte democrático para a política cultural”:
“Se o Estado não é produtor de cultura nem instrumento para seu consumo, que relação pode ele ter com ela? Pode concebê-‐la como um direito do cidadão e, assim, assegurar às pessoas o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-‐las, de criar as obras, ou seja, produzi-‐las, e o de participar das decisões sobre as políticas culturais” (Chauí, 2009).
Ainda neste texto, a filósofa faz um alerta e uma distinção:
“Quanto à perspectiva estatal de adoção da lógica da indústria cultural e do mercado cultural, podemos recusá-‐la, tomando agora a cultura num sentido menos abrangente, isto é, como um campo específico da criação -‐ criação da imaginação, da sensibilidade e da inteligência que se exprime em obras de arte e em obras do pensamento quando buscam ultrapassar criticamente o estabelecido. Ele reduz a cultura à condição de entretenimento e passatempo, avesso ao significado criador e crítico. Não que a cultura não tenha um lado lúdico e de lazer que lhe é essencial e constitutivo, mas uma coisa é perceber o lúdico e o lazer no interior da cultura, e outra é instrumentalizá-‐la para que se reduza a isto, supérflua, uma sobremesa, um luxo num país onde os direitos básicos não estão atendidos. É preciso não esquecer que na lógica de mercado, a mercadoria “cultura”, torna-‐se algo perfeitamente mensurável. A medida é dada pelo número de espectadores e de vendas, isto é, o valor cultural decorre da capacidade para agradar. Essa mensuração tem ainda um outro sentido: indica que a cultura é tomada no seu ponto final, no momento em que as obras são expostas como espetáculo, deixando na sombra o essencial, o processo de criação.”(Chauí, 2009)
Muito pertinente este alerta. Desde a invenção do projeto cultural como forma unívoca de dialogar com as fontes de financiamento que os mecanismos de gestão se tornaram máquinas de propor mensurações -‐ de público, de exposição da marca do patrocinador, de mídia, de empregos gerados etc. A lógica que domina a política cultural é a de produto e não de processo. Talvez por isso, sobretudo por isso, pensar macropolíticas que beneficiem toda a população, como escolas mais potentes e que desenvolvam talentos, ou apoiar artistas sem exigir “contrapartidas”, seja ação quase inexistente no país.
Quando falamos de política cultural estamos essencialmente afirmando as possibilidades de garantir que as nossas singularidades de pensar, produzir e se manifestar artisticamente, intelectualmente, economicamente e espiritualmente sejam relevantes para o espaço público e o desenvolvimento integral de nossa sociedade. O espaço político da cultura é o espaço do reconhecimento da importância dessas expressões do ser individual e coletivo singular, de sua memória, de suas várias formas de sonhar e se manifestar.
O acesso à cultura exige um ambiente comunitário e político favorável à inserção cultural do indivíduo e grupos. A nossa disposição de aprender e dialogar com universos diversos é fruto dos estímulos que recebemos do ambiente vivenciado na infância, na adolescência e na fase adulta. Estímulos e incentivos proporcionados pela riqueza dos encontros culturais proporcionados ao longo da vida, da nossa facilidade e curiosidade de apreendê-‐los e transformá-‐los em dados importantes da experiência humana. A cultura, tal qual ela é pensada no século XXI, é a experiência que marca a vida humana em busca do conhecimento, do alto aprimoramento, do sentido de pertencimento e da capacidade de trocar simbolicamente.
“Um acesso desigual aos meios de expressão cultural, novos ou tradicionais, implica não somente uma negação do reconhecimento cultural, mas algo que afeta seriamente o sentimento de pertencimento de indivíduos e comunidades à sociedade do conhecimento, ou a sua exclusão dela. A cultura possui laços múltiplos e complexos com o conhecimento. A transformação da informação em conhecimento é um ato cultural, como é o uso a que se destina todo o conhecimento. Um mundo autenticamente rico em
conhecimento há de ser um mundo culturalmente diverso”. (MATSUURA, 200116)
O valor que damos à cultura, a nossa ou a aprendida, é aquele que aprendemos a dar. Assim, a experiência cultural ocorre a partir do diálogo constante entre práticas criativas próprias e o livre acesso aos acervos culturais tradicionais e contemporâneos. O tamanho da fissura no Brasil é grande:
“Os números são eloquentes: somos hoje 186 milhões de brasileiros. Isso corresponde a 20 vezes a população de Portugal, 5,5 vezes a da Argentina e 3 vezes a da França e da Alemanha. A educação – estudantes e professores nos níveis fundamental, médio, superior e pós-‐graduação – envolve 55 milhões de brasileiros. Cotejar esses números com os da produção cultural nacional é deparar-‐se com um outro país. A tiragem média de um romance no Brasil é de 3 mil exemplares, a ocupação média dos teatros é de 18% dos ingressos oferecidos, e o público médio do filme brasileiro é de 600 mil espectadores. Vê-‐se que nem mesmo os inscritos na escola formal participam da produção artística. Como Educação e Cultura são inseparáveis como irmãs siamesas, o país vive uma fratura esquizofrênica: de um lado, uma educação sem cultura, do outro uma produção cultural sem público”. (ARAÚJO, 2005)17
Uma gestão cultural atenta a prover a educação do que ela parece ter perdido, o conhecimento humanístico e a autonomia crítica, é a âncora desse desenho. Um processo educacional e educativo enriquecedor, que amplie a visão de mundo e as perspectivas de cada um, parte de dentro e de fora dos muros escolares. Ganha relevância nos conteúdos gerados pelos veículos de comunicação, na internet, nos celulares e ipods. Nos bancos escolares e nos centros de cultura, nos teatros, nas ruas e praças das cidades onde os encontros se tornam possíveis quando promovidos de forma criativa e sistemática. Onde se abra espaço para o experimental, para o comunitário, para o estranho, que dialogando com o tradicional, o clássico, o de sempre, produzam novos sentidos, aprendizados.
16 Informe Mundial de Cultura UNESCO, 2001. 17 Araújo, Alcione. Educação e Cultura ao mesmo tempo agora. Publicado no jornal Estado de Minas, 2005.
Aí nos cabe perguntar: sem políticas universais podemos falar em desenvolvimento? Como a cultura pode contribuir para o desenvolvimento nesta segunda década do século XXI, considerando os avanços da sociedade brasileira e a necessidade das cidades e das políticas de se reinventarem?
Vamos pensar? Vamos agir?