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“CURIOSIDADE”: O PRIMEIRO CONTO DE MACHADO
DE ASSIS N’A ESTAÇÃO
Bruna da Silva Nunes Rodrigo Cézar Dias** Prof. Dr. Antônio Marcos Vieira Sanseverino RESUMO: O conto “Curiosidade” foi publicado por Machado de Assis entre os dias 31 de janeiro e 30 de junho de 1879 no jornal quinzenal A Estação, sendo a contribuição inicial do autor para o periódico, à qual seriam somados cerca de quarenta contos, seis poemas, a novela Casa velha e o romance Quincas Borba. A Estação era um jornal dedicado, principalmente, ao público feminino, e, conforme seu projeto editorial, a leitura literária seria um momento dedicado ao ócio e ao entretenimento. Assim sendo, neste trabalho apresentamos uma análise de como “Curiosidade” se relaciona com a linha editorial d’A Estação, observando seus pontos de convergência e tensionamento. Ademais, evidenciamos algumas escolhas temáticas e formais feitas por Machado no conto que, posteriormente, seriam adotadas em outras narrativas veiculadas n’A Estação. Outro aspecto interessante a ser estudado em “Curiosidade” é o dado de que o início da trama gira em torno da ida das personagens ao teatro para assistir à peça O que é o casamento?, de José de Alencar, comédia em quatro atos escrita pelo autor em 1861 e encenada em 1862. Desse modo, propomo-nos a averiguar como o conto relê a obra de Alencar e quais são as possíveis implicações em sua interpretação decorrentes dessa relação. PALAVRAS-CHAVE: “Curiosidade”, Machado de Assis, A Estação. ABSTRACT: The short story “Curiosidade”, published by Machado de Assis between January 31th and June 30th on the fortnightly newspaper A Estação, was the initial contribution of the author to this newspaper on which he afterwards published about forty short stories, six poems and the novels Casa Velha and Quincas Borba. A Estação was a newspaper dedicated mostly to the feminine public, and, according to its editorial project, considered the literary reading as a moment dedicated to leisure. This way, our study presents an analysis of how “Curiosidade” relates to the editorial project of A Estação, observing its points of convergence and divergence. Moreover, we evidence some thematic and formal choices made by Machado in the short history that later would be adopted in other narratives published on A Estação. Other interesting aspect to be studied in “Curiosidade” is the fact that the beginning of the plot revolves around the going of the characters to the theater in order to watch the play O que é o casamento?, comedy in four acts written by José de Alencar in 1861 and staged in 1862. Thus, we propose to find out how the short story reads the Alencar’s play and which possible implications this relation provides.
Doutoranda em Estudos de Literatura pela UFRGS. E-mail: [email protected].
** Mestrando em Estudos de Literatura pela UFRGS. E-mail: [email protected].
KEYWORDS: “Curiosidade”, Machado de Assis, A Estação.
1. Considerações iniciais
Publicado de forma seriada ao longo do período entre 31
de janeiro e 30 de junho de 1879, o conto “Curiosidade” foi o
primeiro texto de Machado de Assis a ser veiculado no
periódico A Estação, sendo distribuído em sete partes. Assinada
por “M”, a narrativa só passou a ser reconhecida como tendo a
autoria de Machado de Assis no ano de 1956, quando Raimundo
Magalhães Júnior recolheu o texto na coletânea Contos sem data,
livro que foi resultado de uma pesquisa do autor sobre a obra
esparsa de Machado. Anos mais tarde, pesquisadores como
Ivan Teixeira e Jaison Luís Crestani também atribuíram a
Machado a autoria do texto.
Apesar de a maioria das edições d’A Estação estarem
acessíveis digitalmente por meio da Hemeroteca Digital
Brasileira no site <memoria.bn.br>, os números nos quais
“Curiosidade” foi publicado não estão disponíveis,
provavelmente por terem se perdido ou por seu estado de
conservação estar muito precário para a leitura. Neste artigo,
propomo-nos a realizar um estudo do conto tensionando-o com a
linha editorial de seu suporte primário de publicação; todavia,
por conta dessa indisponibilidade, não foi possível fazer a
leitura do texto diretamente nas páginas d’A Estação, restando-
nos como alternativa a leitura por meio do volume organizado
por Raimundo Magalhães Júnior.
2. A Estação: jornal illustrado para a familia
Entre os anos de 1872 e 1878, circulou na Corte brasileira
o jornal francês La Saison: journal illustré des dames, nome que
pode ser traduzido para A Estação: jornal ilustrado das senhoras.
Este jornal era voltado para o público feminino, contendo
orientações de moda e comportamento, permitindo que as
mulheres da Corte ficassem mais bem informadas a respeito de
quais vestimentas estavam em voga na França para, então,
poderem se adequar a esse paradigma.
Em 1879 surge, como aponta Marlyse Meyer (1993), a
continuação brasileira de La Saison, o periódico A Estação: jornal
illustrado para a familia, lançado pela editora Lombaerts. Com
periodicidade quinzenal, a folha conserva a diagramação, o
cabeçalho e a seriação de La Saison, tendo seu primeiro número
iniciado no ano VIII. Ser vendida como a continuação em língua
portuguesa de La Saison era, segundo Ana Cláudia Suriani da
Silva (2009), uma importante estratégia comercial, pois os
editores transferiam os leitores do jornal francês para a
publicação brasileira.
Figura 1 – Cabeçalho d’A Estação Fonte: A Estação, 15/01/1879, p. 1.
A Estação era dividida em duas partes com paginação
independente, sendo a primeira um caderno de modas e a
segunda um suplemento literário destinado à “recreação”,
termo utilizado pelos editores. A primeira parte, que continha
oito páginas, encerrava um editorial de moda – intitulado
“Chronica da moda” –, gravuras, moldes para confecção,
conselhos sobre vestimentas, ilustrações de trajes, sugestões
de decoração, dentre outros tópicos que o editorial julgava
pertinentes para o público feminino. Essa parte, excetuando-se
a “Chronica da moda”, que era escrita especificamente para a
publicação brasileira, era uma tradução da revista alemã Die
Modenwelt (“O mundo da moda”), empreendimento multinacional
que tinha suas páginas traduzidas para treze idiomas em vinte
periódicos (incluindo La Saison, o que era mais uma justificativa
para Lombaerts estabelecer uma conexão entre A Estação e o
jornal francês, dado que ambos faziam parte do mesmo
empreendimento).
No editorial da primeira edição tomamos conhecimento do
público alvo do jornal, que seria “toda mãe de família
econômica que deseja trajar e vestir suas filhas segundo os
preceitos da época.” (A Estação, 15/01/1879, p. 1); com isso,
identificamos uma interlocução com leitoras provenientes de
uma classe mediana, de quem era exigido certo cuidado com as
finanças e, ao mesmo tempo, apuro nos trajes e elegância. No
entanto, mais uma vez referindo Ana Cláudia Suriani,
A Estação também poderia perfeitamente interessar as damas da classe abastada, porque a revista promovia os valores culturais prezados pela própria elite carioca, a qual buscava legitimação, identificando-se com a cultura tradicional e aristocrática europeia. Assim, para os membros da elite, A Estação expressava a fantasia de identificação cultural com a Europa. Para os setores
médios, A Estação alimentava as aspirações de ascensão social ao patamar da elite (SILVA, 2009, p. 21).
O suplemento literário d’A Estação, por sua vez, não estava
presente em La Saison; entretanto, a revista Die Modenwelt
também possuía uma parte literária, indicando que, para além
do caderno de modas, o modelo de estrutura adotado pela A
Estação era baseado no periódico alemão. Sobre esse
suplemento, encontramos, no editorial já aqui citado, o seguinte
posicionamento dos editores: “na parte agradável e recreativa,
devíamos torná-lo nosso e assim o fizemos. Confiamos a parte
literária da Estação a pessoas de reconhecida habilidade [...]” (A
Estação, 15/01/1879, p. 1). Dentre as “pessoas de reconhecida
habilidade”, estavam Machado de Assis, Júlia Lopes de
Almeida, Artur Azevedo, Olavo Bilac, Raimundo Correia e
Alberto de Oliveira.
Apesar de ser tratado, tanto pela crítica quanto pelos
próprios editores, como “parte literária”, esse suplemento não
contemplava apenas textos literários, mas também receitas,
conselhos de etiqueta, informações de higiene etc. Todavia, a
seção “Litteratura”, que era destinada aos gêneros em prosa e
na qual Machado de Assis era praticamente colaborador
exclusivo, ganhava maior destaque. Como está posto no
editorial, o suplemento era “nosso”, ou seja, era elaborado
diretamente para a edição brasileira, o que pode indicar uma
tentativa de ampliação de público leitor, como já sugere o
subtítulo do periódico – jornal illustrado para a familia.
Contudo, apesar da possibilidade de diversificação de
leitores, o público alvo permanece sendo as mulheres. Tal
afirmação pode ser comprovada com a leitura da seção
“Variedades”, em que os temas tratados propunham,
especificamente, uma interlocução feminina. Ademais, os
outros artigos que compõem a folha priorizam assuntos amenos
e relacionados a questões sentimentais, evitando conteúdos
relativos à política, por exemplo, o que configura o
procedimento adotado pelos jornais destinados às mulheres no
século XIX.
Durante toda sua trajetória A Estação manteve esse perfil,
tornando-se uma forte referência para as mulheres que
buscavam na publicação as orientações de elegância e bom
gosto e para o público interessado em literatura, chegando a
alcançar uma tiragem de dez mil exemplares (conforme editorial
de 15 de março de 1883). Por conta dos problemas econômicos
que o Brasil enfrentou com a passagem da Monarquia para a
República, o periódico teve uma desestabilização financeira, o
que culminou, em 1904, no encerramento da publicação.
A respeito da participação de Machado na folha,
realçamos que ele foi um colaborador assíduo desde os
primeiros números, iniciando no dia 31 de janeiro de 1879, com
a publicação de “Curiosidade”, até o dia 31 de março de 1898,
quando lança a última parte do conto “Relógio parado”1. Além
de cerca de 40 contos, Machado publicou, nos gêneros em
prosa, a novela Casa velha e o romance Quincas Borba. O número
de contos não é preciso porque, apesar de sempre assinar com
seu próprio nome ou iniciais, como pontua Luis Filipe Ribeiro,
M. de A. são iniciais de Machado de Assis, mas também de Moreira de Azevedo, que, assim como Machado, colaborava na imprensa literária. É um problema ainda sem solução, e o corpus de que dispomos é aquele que a crítica vem construindo ao longo do tempo. Com os acertos e os equívocos inevitáveis em toda obra humana. Há um consenso em admitir que existem 218
1 Ao ser incluído no livro Relíquias da casa velha, o título do conto foi modificado para “Maria Cora”.
contos que seriam da pena de Machado de Assis, mas consenso não é demonstração... (RIBEIRO, 2008, p. 11).
Salientamos, por fim, que a maioria dos contos de
Machado n’A Estação tem mulheres como protagonistas, e as
temáticas, na maior parte dos textos, giram em torno de
questões relacionadas ao casamento, assunto considerado
próprio ao público feminino e de seu interesse.
3. A funesta curiosidade de Carlota
Ambientado no Rio de Janeiro em 1863, o conto
“Curiosidade” se inicia com Carlota, protagonista da trama,
lendo um anúncio de jornal referente a uma peça teatral escrita
por José de Alencar que seria representada no dia seguinte. O
título da peça, O que é o casamento?, despertou o interesse da
moça, que pediu ao pai para levá-la ao teatro de São Januário,
local da apresentação.
— O que é o casamento? repetiu a moça consigo; título singular... Quando é a representação? É amanhã; vou pedir a papai para irmos vê-la. Carlota ficou ainda a pensar no título da comédia, não só porque era mulher, mas também porque era noiva” (MACHADO DE ASSIS, 1956, p. 9).
O noivo de Carlota era Conceição, que, assim como os pais
da moça, Dr. Cordeiro e Dona Fausta, acompanhou a pretendida
esposa ao teatro. O casamento de Carlota e Conceição era do
agrado dos pais da jovem, que gostavam muito do rapaz. Em
determinado momento, já no teatro, ao mirar a plateia, Carlota
demorou seu olhar sobre um certo pince-nez, porque, além de ela
já tê-lo visto oito dias antes, ele, segundo o narrador, estava
“diante de uns olhos grandes, bonitos, expressivos; os quais
olhos ornavam uma bela cabeça, a qual cabeça era o remate de
um corpo esbelto, vestido com certa arte” (MACHADO DE ASSIS,
1956, p. 15).
O “pince-nez” se chamava Lulu Borges, e tinha planos de se
casar com Carlota – mesmo sabendo que ela estava noiva – por
conta do dote oferecido pelo seu pai. A fim de realizar tal
intento, Borges convidou Cordeiro para presidir uma sociedade
patriótica (que só foi fundada após o seu aceite). Com isso,
Borges passou a frequentar a casa da moça e, por meio dessa
proximidade, conquistou Carlota, o que levou o noivado dela ao
seu fim.
Logo depois, Carlota e Borges se casam. Durante um ano,
a vida do casal foi harmoniosa, os dois tiveram um filho e
Borges se mostrou um bom pai; porém, com o passar do tempo,
Borges começou a mudar de comportamento, ausentando-se de
casa durante longos períodos, relacionando-se com outras
mulheres e, inclusive, agindo de forma agressiva para com
Carlota. Por conta disso, Dr. Cordeiro intervém e acolhe a filha
em sua casa.
Quando esta pôde refletir sobre tudo o que lhe acontecera, antes e depois de casar, mediu o abismo em que caíra e viu todo o horror da situação; estava fora dos tormentos, mas estava quase só — com um filho sem pai — esposa sem marido — no meio de seus velhos pais, que podiam morrer de um dia para outro, não lhe deixando a ela, nenhuma outra afeição a não ser de uma pobre criança. Tal era a situação. Carlota chorou muita lágrima silenciosa. No meio desse cismar solitário ocorreu-lhe mais de uma vez a pessoa do Conceição, tão grave, tão afetuoso, tão capaz de a fazer feliz — o Conceição que ela desprezara para seguir um homem que mal conhecia. Depois lembrou-lhe o teatro de S. Januário, e da curiosidade que ela tivera de um dia de ir ali; lembrou isto e suspirou: — Funesta curiosidade! (MACHADO DE ASSIS, 1956, p. 41).
A partir desse momento, o casamento de Borges e Carlota
ficou só nas aparências, estendendo-se até a morte de Borges
alguns anos depois. Um ano após a morte do marido, Carlota
recebe um bilhete de Conceição; reestabelecido o contato, os
dois se casam algumas semanas depois. O conto chega ao fim
com as seguintes palavras do narrador acerca de Carlota: “tinha
pressa de ser enfim feliz; podia já ser tarde” (MACHADO DE
ASSIS, 1956, p. 42).
Por meio deste resumo percebemos, inicialmente, que
Machado lançou mão de uma das temáticas que viria a ser uma
constante em suas narrativas n’A Estação: o casamento. Desse
modo, podemos pensar de que maneira o matrimônio é
representado no conto. Primeiramente, vemos que o casamento
é, para as mulheres, uma instituição cercada de dúvidas e
mistérios, o que despertou o desejo de Carlota em ir assistir a
peça de Alencar. Analisando o contexto sócio histórico do
século XIX, vemos que as mulheres possuíam pouca autonomia
sobre suas próprias vidas, sendo, na maioria das vezes,
obrigadas a se submeter às ordens do “homem da casa”, seja
ele pai ou marido. Portanto, Carlota não saber o que é o
casamento é algo natural, visto que seu papel na sociedade era
o de aceitar o que lhe era imposto. Nesse sentido, Machado
pode estar representando, em alguma medida, uma mulher que
tenta transgredir o sistema patriarcal da época, pois, ao se
questionar sobre o casamento, a moça está, também,
questionando as normas impostas.
Vale refletir, igualmente, sobre como se dá a
representação do casamento em si. Tal representação não é
muito comum na literatura oitocentista, visto que, por mais que
histórias de casamentos infelizes não sejam raras, tramas com
maridos violentos e totalmente negligentes não são tão
recorrentes. Mesmo em “Capítulo dos chapéus” – provavelmente
o conto machadiano mais conhecido dentre os publicados n’A
Estação –, em que temos a figura de Henrique Seabra2, homem
que menospreza e humilha a esposa Mariana, a situação não
chega ao ponto da violência física, por exemplo. Sendo assim,
acreditamos ser interessante o fato de Machado elaborar uma
trama que quebre com a idealização romântica do casamento,
ainda mais em um periódico destinado, principalmente, ao
público feminino.
No entanto, o que do ponto de vista social pode ser visto
como uma qualidade do conto, também pode ser encarado como
um problema. Carlota desiste de seguir o que estava
programado, escolhendo, ao invés de se casar sem amor,
apostar na paixão que sentia por Borges. Ao ter um casamento
extremamente frustrado, parece que, de alguma forma, a
personagem está sendo punida por sua decisão, punida por não
ter seguido com os planos do pai, punida por não levar adiante o
futuro que a sociedade esperava dela. No momento em que é
apontada a “funesta curiosidade” de Carlota, a culpa pelos
ocorridos recai sobre a personagem; ou seja, a mensagem que
fica é que se a moça tivesse agido conforme as regras sociais,
nada de mal teria lhe acontecido. Levando em consideração a
predominância da interlocução feminina nos textos d’A Estação,
podemos supor que existe, em “Curiosidade”, uma lição de
moral destinada às mulheres.
Além do casamento, outros temas e procedimentos
utilizados em “Curiosidade” são vistos nos demais textos de
2 Ao publicar o conto no livro Histórias sem data, Machado modifica o nome da personagem para
Conrado Seabra.
Machado escritos para A Estação. Personagens viúvas, por
exemplo, são recorrentes, como vemos nos contos “O caso da
viúva” (15/01 a 15/03 de 1881), “Três consequências”
(31/07/1883) e “A viúva Sobral” (15/04 a 15/05 de 1884). Um dado
relevante sobre esses contos, e outros de conteúdo
semelhante, é que, tal como Carlota, as viúvas acabam por se
casar novamente. Assim sendo, podemos notar tanto a
continuidade de um assunto (viúvas que optam por casar-se
novamente), quanto a reafirmação da importância do
casamento na vida feminina – pensando, aqui, em uma
importância cultivada pelas mulheres por conta do contexto
social e reforçada pela linha editorial d’A Estação.
A metonímia também é um procedimento empregado em
“Curiosidade” que se repetirá nos contos posteriores de
Machado. Ao apresentar Borges, o narrador, antes de informar
seu nome, o define como pince-nez, reduzindo o rapaz a um
acessório. Vemos esse mesmo mecanismo ser adotado pelo
narrador do já citado “Capitulo dos chapéus”, texto no qual os
homens são diluídos em um grupo de chapéus. Outros exemplos
do uso de metonímia figuram nos contos “Trina e una” (15/01 a
15/02 de 1884) e “O contrato” (29/02/1884).
Portanto, “Curiosidade” é uma narrativa interessante tanto
pelo que apresenta enquanto trama fechada, quanto pelo seu
papel no conjunto. É significativa pelos temas que aborda, pela
construção de suas personagens, mas também por apontar
tópicos que, posteriormente, seriam aproveitados por Machado
enquanto matéria literária. Ademais, um elemento presente no
conto, para nós, é marcante em sua constituição: a referência à
peça O que é o casamento?, de José de Alencar.
4. O que é o casamento?
A comédia em quatro atos O que é o casamento?, de José de
Alencar, estreou no ano de 1862, na Corte. A cena se passa no
Rio de Janeiro e em Petrópolis, desenrolando-se nos anos de
1859 e 1860. No primeiro ato nos são apresentados dois casais,
sendo que Miranda e Isabel, pais de Iáiá, menina de três anos,
representam um modelo de casamento bem sucedido enquanto
os jovens Henrique (sobrinho de Miranda) e Clarinha (prima de
Isabel) representam um casal possível, ainda que o rapaz não
tome qualquer iniciativa para encetar o namoro. Somados a
esse grupo principal, ainda temos Alves, negociante amigo de
Miranda e avesso ao casamento, Sales, um janota que nutre
interesses por Clarinha, e Siqueira, pai de Isabel. Em uma
posição praticamente de pano de fundo, temos os escravos
Joaquim e Rita, que desempenham funções acessórias e, por
vezes, quase "cenográficas", na peça.
Essa harmonia inicial revela fissuras quando tomamos
conhecimento de que Henrique estava apaixonado por Isabel,
conflito intensificado pelo fato de Miranda ser quase que como
um pai para ele. Ao final do primeiro ato, Henrique entra no
quarto de Isabel para avisá-la que iria partir para Montevidéu a
fim de não perturbar mais a felicidade e a paz de sua casa. Essa
despedida acaba sendo parcialmente flagrada por Miranda, que
vê um homem saltando pela janela do quarto da esposa, mas
não reconhece nele o seu sobrinho.
Desnorteado, Miranda pergunta pelo nome do sujeito, não
obtendo respostas de Isabel, que apenas insistia em sua
inocência; encontrando uma rosa ao chão, Miranda assumiu que
o sujeito era Sales, que tinha por hábito trazer flores à casaca.
De fato, a rosa era do janota, mas ele havia a deixado para
Clarinha, que, indolente, a jogara ao chão. Com isso, Miranda
mune-se de duas pistolas e decide matar a esposa e se suicidar,
intento que é interrompido pela voz de Iaiá à porta, ao que
Miranda diz: “Minha filha! Ah! é preciso viver para ela... e para o
mundo! Quanto a vós... morremos um para o outro” (ALENCAR,
p. 14)3.
Henrique e Clarinha já haviam casado há alguns meses
quando Miranda devolve para Isabel o dote que recebera pelo
casamento, “resgatando” o seu passado, para o desespero de
Isabel. O casal continua mantendo as aparências, mas esse
gesto de Miranda é utilizado por seus rivais na política para
atacá-lo, insinuando que ele teria liquidado os bens que
constituíam o dote da esposa para pagar dívidas de jogo.
Em Petrópolis, Clarinha reclama para Isabel que Henrique
não lhe dava atenção o suficiente, gastando seu tempo mais na
caça do que lhe fazendo companhia. Tal demanda ganha
contorno de plano concreto quando Sales deixa um ramo de
flores no chapéu da moça, acompanhado de um bilhete que
marcava um encontro. O bilhete acaba sendo descoberto por
Henrique que, furioso, decide limpar sua honra à espingarda.
Miranda tenta dissuadi-lo, contando a sua história pessoal como
uma história de um amigo – embora por duas vezes ele acabe
traindo o disfarce. Henrique vai ao ponto de encontro e quase
atinge Isabel, que fora tentar salvar Clarinha e acaba sendo
salva por Miranda.
No ato final, Clarinha e Henrique fazem as pazes após ela
confessar que aproveitou o bilhete de Sales para despertar os
ciúmes do marido. Juntos eles pregam uma peça em Sales, que,
acaba por partir entre constrangido e assustado. Miranda, por 3 Na edição online à qual tivemos acesso não consta o ano de publicação.
sua vez, decide partir para a Europa, mentindo que partiria
dentro de um mês quando, em verdade, comprara o bilhete para
o próximo dia. Henrique encontra Isabel sozinha, em prantos, e
descobre sua culpa na crise do casamento de Miranda e Isabel.
Recuperando todo o acontecido, Henrique decide confessar a
verdade a Miranda, mesmo que isso custasse a afeição que o tio
possuía para com ele. Siqueira e Clarinha entram e falam de
uma carta que Miranda esquecera; Henrique encontra a carta e
lê as despedidas do tio, que já estaria indo para a Europa.
Todavia, alguém bate à porta, ninguém menos do que Miranda,
que ouvira toda a conversa entre Henrique e Isabel. Miranda
abraça a esposa e pergunta se ela lhe perdoaria um dia; como
resposta, Isabel tem uma vertigem provocada, segundo ela, por
felicidade.
Ao contrário do que é apontado no conto de Machado,
quando a comédia O que é o casamento? foi anunciada, não havia
marcação explícita de autoria; portanto, analisando o conto em
conexão direta com a realidade, talvez não fosse viável que
Carlota soubesse, ao ler o jornal, que a peça pela qual se
interessou se tratava de uma obra de José de Alencar. Contudo,
acreditamos que para a construção do conto tal falta de
verossimilhança externa não prejudica o enredo, tanto pelo fato
de, por se tratar de um texto ficcional, não podermos exigir
relações diretas com eventos factuais, quanto porque, já que
Alencar era um autor consagrado, isso poderia ser visto pelas
leitoras como mais um elemento que desencadeou o interesse
de Carlota em ir até o teatro de São Januário. Abaixo,
reproduzimos um anúncio da peça publicado no periódico Diário
do Rio de Janeiro:
Figura 2 – Anúncio de O que é o casamento? Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 12/10/1862, p. 4. No conto, não temos notícia sobre o que Carlota viu sendo
encenado no palco, pois o foco da narrativa recai sobre o
encontro da moça com o “pince-nez”. No entanto, se fizermos o
cotejo entre conto e peça, podemos inferir que Carlota assistiu,
considerando a nossa interpretação do texto de Alencar, a
história de dois casais que passam por uma crise no
casamento, mas alcançam o tão esperado final feliz. Mesmo o
episódio em que Miranda quase mata a esposa é romanceado na
peça, servindo como alavanca para alçar a personagem a um
patamar de elevação por sacrificar sua “honra masculina” em
detrimento da manutenção de sua família.
Concebendo uma possível releitura da peça de Alencar por
Machado, é plausível interpretar “Curiosidade” como um conto
que demonstra que não há apenas uma resposta para a
pergunta “o que é o casamento?”, e que, algumas vezes, esta
união pode ser tão prejudicial a ponto de não haver meios de
redenção. Assumindo a peça como um dos pilares do conto,
podemos pensar que Carlota, ao contrário de Isabel ou de
Clarinha, tenha decidido não mais esperar por uma solução para
a crise em seu casamento, optando por se afastar de Borges.
Se tomarmos como hipótese uma leitura que equacione
ambos os textos, temos um caso de comportamento desejável –
Isabel e sua dedicação e constância –, que é recompensado, e
um caso de comportamento indesejável – Carlota e sua
volubilidade e inconsequência –, que é punido. Entretanto, em
“Curiosidade” há algumas camadas de sentido a mais que
podem ser exploradas. Primeiramente, neste caso a separação
não implica liberdade ou emancipação, visto que a personagem
retorna para o lar paterno, submetendo-se aos seus desígnios.
Em segundo lugar, Carlota conquista alguma autonomia depois
da morte do marido e dos pais, acabando por aceitar a nova
proposta de casamento de Conceição. Assim, podemos
entender que Carlota, estando viúva, possuía um maior grau de
liberdade, mas, ao mesmo tempo, não deixava de sofrer uma
pressão social – mesmo que internalizada – para tornar a se
casar.
Chegamos, pois, ao denominador comum dos dois textos.
Isabel somente torna a ser feliz quando seu casamento é
recuperado, enquanto, no caso de Carlota, a única possibilidade
de felicidade que se lhe afigurava era o casamento com
Conceição – e salientamos o termo “possibilidade” por conta do
comentário do narrador de que já poderia ser tarde para que
Carlota viesse a ser feliz. Em ambos os casos, portanto, a
felicidade da mulher é indissociável do casamento.
5. Considerações finais
Vimos, neste breve estudo, que o conto “Curiosidade”,
primeiro de Machado de Assis a ser publicado n’A Estação, já
aponta métodos e temáticas que seriam utilizados pelo autor
em outros textos veiculados no periódico, dando o tom de sua
colaboração posterior na folha. Salientamos que esse tom
adotado por Machado provavelmente não se tratava apenas de
uma escolha sua, mas também de uma adesão à linha editorial
da publicação, visto que ao escrever para, por exemplo, a Gazeta
de Noticias, um jornal que tinha um viés político bastante
acentuado, o autor abordava matérias diversificadas que
raramente eram vistas n’A Estação. Sendo assim, destacamos a
importância do resgate das fontes primárias, considerando que
a leitura do conto em seu contexto de publicação nos
possibilita rastrear as relações que ele estabelece com o
periódico em que foi originalmente publicado, ampliando o
horizonte de interpretações.
Sobre o enredo, observamos uma oscilação entre uma
visão mais progressista e uma visão mais conservadora acerca
das possibilidades de agência da mulher na vida social. É
facultada a Carlota a possibilidade de separar-se, mas essa
escolha só é viável por conta do aval paterno – o que não deixa
de ser verossímil, considerando a limitação dos direitos da
mulher à época.
Entretanto, há em “Curiosidade” um ponto de
tensionamento interessante de ser destacado. No começo do
conto, logo que Carlota comunica seu desejo de ir assistir à
peça de Alencar, sua mãe, D. Fausta, tenta dissuadi-la com o
argumento de que
era arriscado ir buscar ao teatro a explicação de coisas que só a vida real podia dar cabalmente. Em todo o caso, a resposta, se resposta havia no drama, seria à feição do entendimento do autor e cada autor poderia dar diferente solução ao mesmo problema (MACHADO DE ASSIS, 1956, p. 9).
Nesse excerto, D. Fausta desautoriza o autor de O que é o
casamento?, pois a pergunta que dá nome à peça não possuiria
uma resposta definitiva. Desse modo, é possível inferir que
Machado está, além de questionar o texto de Alencar,
questionando seu próprio conto, dado que os assuntos que são
tratados ali, por mais que representem situações que os leitores
reconheceriam como verossímeis, estão filtrados pela visão de
realidade do autor.
REFERÊNCIAS
A ESTAÇÃO: Jornal Illustrado para a Família. Rio de Janeiro: Lombaerts, 1879 - 1904. ALENCAR, José de. O que é o casamento?. Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00143a.pdf>. Acesso em: 28 out. 2016. CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: jornal ilustrado para a família. Revista da ANPOLL. Campinas, v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008. Disponível em:
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