dança - forma, técnica e poesia do movimento - na perspectiva de construção de sentidos...
DESCRIPTION
A presente dissertação se construiu sobre o pressuposto de que que forma, técnica e poesia são premissas que embasam uma determinada visão de dança enquanto manifestação artística do corpo humano em movimento. Norteia também este estudo a perspectiva de que as relaçi5es que se estabelecem no momento de execyão de uma dawa instauram processos de significação.TRANSCRIPT
-
, ,
>,:"A;: . . r > -- I,?.
. ,
. . - . ,
r L . . . . .-: . . - , , L.> -
.
P4 - ,>.> .-. '--A < - , , a r . , . . .
P C i . - - . . -
, . .
- .. . .- -
. . .. ,
- . . , +:. -., : . - . . . - .- . ,
-
MNICA FAGUNDES DANTAS
NA PERSPECTIVA DE CONSTRUO DE SENTIDOS COREOGRFICOS
Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do Ttdo de Mestre em Cincias do Movimento Humano Comisso Avaliadora da Escola de Eduacao Fsica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientao do Prof. Dr. Silvino Santin.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Escola de Educao Fsica
Porto Alegre - RS 1996
-
6 D Z O f 2 97 1 Dantaa, Monica Fagundei. Oanca: h=, t8pnica e pbesia do movimeu@ : :a pr~tpectiva de comtmlo rls a m t l d a d COreOQ~efiC4a. 1996. 156 f . : il .
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL CURSO DE P~S-GRADUAO EM CINCIAS
DO MOVIMENTO HUMANO
DANA: FORMA, TCNICA E POESIA DO MOVIMENTO NA PERSPECTIVA DE CONSTRUO DE SENTIDOS COREOGRFICOS
ELABORADO POR
MNTCA FAGUNDES DANTAS
COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENO DO GRAU DE MESTRE
ORIENTADOR
-
Dedico esta dissertao ao meu av6 - Walter Fagundes - que aos 6 anos venceu um concurso de danqa no interior do Rio Grande do Sul. Deve ser por causa dele que eu gosto tanto de danar.
-
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer:
- aos coregrafos com quem tenho trabalhado, em especial a Andrea Druck;
- aos bailarinos com quem tenho danado, em especial Tatiana Rosa - somos
feitas da mesma matria que os nossos sonhos e que as core0grafi.a~ que danamos;
- aos amigos, em especial a Suzane Weber - mais do que amiga-quase-irm;
- aos professores e funcionrios da ESEF, em especial a Rosalia Carnargo;
- as pessoas que, com muita ateno e carinho, ajudaram-me a pensar e
escrever sobre dana; em especial a Lcia Lopes - tia Lcia, muito obrigada - a Denise Jardim
e i Solange Gallo;
- ao professor Silvino Smtin, que me orientou com muita competncia
sensibilidade e pacincia;
- ao Lana, pela pacincia, pela companhia, pelo carinho e pelos jantares muito
saborosos;
- ao Marcelo, por ser meu irmo to amigo;
- a duas pessoas que, por m a i s que eu agradea, nunca ser suficiente: meu pai,
Dantas e minha me, Ana Cecy - obrigada porque somos to familia e to felizes.
-
Resumo Abstract
........ CAPTULO 1 - A DANA O CORPO TRANSFIRGURANDO-SE EM FORMAS 2 o .............................................................................. 1 . Em busca de conceitos .......... ....... 20
................................................ .................... 1 . l . Dana: o indcio da arte no corpo.. .. -2 8 2. A dana o corpo transfigurando-se em formas ...................... .. ....................................... 33
2.1. Formar para ser ... forma.. ............................................................................................ .34 2.2. O movimento: matria-prima e visibilidade da dana.. ................................................ -37 2.3. O saber e o fazer tcnicos: a tcnica como techne ............................. .... 4 0 2.4. A matria-prima em transformao: movimento em processo de techne. ................... ..4 1
2.4.1. Tcnicas extra-cotidianas: o cotidiano do corpo que dana .................. ... ..... 44 - . _ I . 2.5. A aao e a mspmqao poeticas.. ........................ .. ........................................................ .5 5
2.5.1. Poticas da dana: no Brasil e no Ocidente ,........................................................ 58
.................. . CAP~ULO 2 MOVIMENTO - VISIBEIDADE DO SENTIDO EM DANCA 69 1 . Serniologia: uma via de acesso.. .......................................................................................... -73 2. Alguns conceitos bsicos em semiologia estrutural.. ....... ., ............................................. -77
. . - 2.1 . Sigmficaao e linguagem.. ............................................................................................ -77 2.2. LngualFala .................................................................................................................... 78 2.3. Signo ............................................................................................................................. -80
3. Formatando a dana i semiologa estrutural ......... ...... ............................................... 89 4. Convidando os conceitos a danar ...................................................................................... -95
. a , . 4.1. Os conceitos iniciam sua dana ............... .. ....... .., .................................................... 98 4.2. A construo dos sentido coreogrficos ................................................................. .I00
5. Ambigidade: pluralidade de sentidos ........................................................................... 104 6. De coreo&as e de poemas.. ............................................................................................. 1 09
CAPTULO 3 - DAN A: O ENIGMA DO MOVIMENTO NO CORPO.. ......................... .I18 ............................................................................................................... 1 . O corpo danpnte 1 19
1. I . A improvisao como exerccio de formatividade ......................... 2 ...................... .............*.......***..*.*.*......................................*..... 1.2. O corpo disponvel ,. 124
............................... 1.3 . Saberes no corpo.. .................... .. ......................................... i.. 1 32 ............................................... .............................. 2. A corporeidade do sentido em dana ...,. 138
CONCLUSAO ......................... .. .................................................................................... I43
............................................................................... ............. ....... BIBLIOGRAFIA ... .. 1 4 7
-
RESUMO
A presente dissertao se construiu sobre o pressuposto de que que forma,
tcnica e poesia so premissas que embasam uma determinada viso de dana enquanto
manifestao artstica do corpo humano em movimento. Norteia tambm este estudo a
perspectiva de que as relai5es que se estabelecem no momento de execyo de uma dawa
instauram processos de significao.
Desse modo, este trabaiho teve como principais objetivos:
- entender a danga enquanto urna atividade artstica que se constri no(s)
corpo(s) em movimento;
- refletir sobre a elaborao de possveis significados quando da cria2o e
execqo de uma dana;
- descrever a dana como urna aqo criadora que se fBz no corpo humano em
movimento.
Para atingir os objetivos propostos utilizou-se a fenomenologia como mtodo de investigao, optando-se, assim, por realizar uma descrio da dana que j , ao mesmo tempo, uma maneira de compreend-la.
Como conseqiincia deste procedimento buscou-se dernontrar que:
- a dana dever ser entendida enquanto arte porque ela resulta de um processo
de transformao de uma matria-prima - o movimento humano - atravs do uso de
procedimentos tcnicos e formativos, que resultam em obras coreograficas que se &o a
reconhecer atravs de seu intrnseco carter de forma;
-
- o movimento o que toma visvel os possiveis sentidoslsi~ficados de uma
dana: a realizaqo de sentidos coreogrficos se d no contexto de urna coreograf~a e s se
efetua plenamente quando os sentidos so retomados e revividos pelos espectadores;
- os processos de criao coreogrfica baseados em aes formativas
proporcionam o desenvolvimento de uma disponibilidade corporal para a dana. Tal
disponibilidade corporal est alicerada, principalmente, numa inteligncia e numa memria
corporais, que dispem o dangarino a exercer suas potencididades criadoras atravs da dana.
A concepo da dana como forma, tcnica e poesia do movimento aponta para
uma possibilidade de recuperao, atravs da dana, de saberes relativos ao corpo, ao
movimento e sensibilidade.
-
C ri- \-
i C I C
The presente dissertation was built upon the presuposal that form, technique
and poetry are premisses that are the base of a certain view of dance as an artistic expression
of the human body when in movement. This study is also guided by the perspective that the
relations established at the moment of the perforrnance of a dance set up the processes of
signification.
In this rnanner, the main objectives of this work has been:
- to understand the dance an an artistic activity, built in the body (ies), when in
movement (s);
- to consider the carrying out of possible meanings when creating and
perforrning a dance;
- to describe dance as a creative action when h movement;
In order to achieve the objectives proposed, phenomenology has been used as a
method of investigation, opting for rnaking a description of the dance which is, at the sane
time, a way to understand it.
As a consquence of this procedure, the intention was to show that:
- dance must be understood as art inasmuch as it results from a changing
process of raw material - the human movement - through the use of technique and formative
procedures that turn out to be, therefore, a choreographic pIay recognized throug its inherent
fom character;
- the movement is what makes the possible senseslmeanings of a dance becorne
visible: the fulfillrnent of choreographic senses occurs in the context of a choreography and it
is only performed throughout when the senses are retaken and revived by the audience;
-
- the choreographic creation processes based on fonnative actions provide the
developmente of a corporal availabiiity to the dance. This corporal availability is rnainiy based
on a corporal intelligence an memory, that allows the dancer to drill his creative potenciais
through the ance.
The conception of dance as form, technique and poetry of a movement points
out to a possibility of recovery, through dance, of the knowledge concernig the body,
movement and sensibility.
-
L C C.. c. I
Para justificar o fato de que esta dissertao tematiza a dana - entendendo-a
enquanto f o m , tcnica e poesia do movimento -, possvel utilizar iniuneros argumentos,
como procuro fazer posteriormente. No entanto, um argumento considero especial: minha
paixo, meu gosto, meu deleite pela dana. Considero que este seja uma argumento
importante porque no sou escritora, mas devo dedicar-me a tarefa de escrever, de redigir, de
criar textos para produzir uma dissertao de mestrado. Para me dedicar a esta tarefa, que por
vezes se torna custosa, dificil, angustiante mesmo, recorro ao expediente da paixo porque
concordo plenamente com Giardellil quando este considera que s a paixo - "a prepotncia
do trabalho " - abre caminhos. A paixo , num primeiro momento, o que me instiga e me faz
acreditar na possibilidade e na necessidade de escrever sobre dana.
A dana urna prtica corporal milenar, uma das formas de manifestago do
homem atravs do corpo em movimento e constitui parte importante do patrimnio cultural da
humanidade.
A dana pode se fazer presente enquanto ritual religioso, enquanto prtica de
prazer e divertimento, enquanto atividade organizada especificamente com o intuito de tornar-
se obra artstica. O universo da dana constri-se a partir de uma diversidade de prticas,
estilos e tcnicas que comportam projetos, motivos e objetivos distintos e que se particularizam tambm em funo de sua histria e da foqa cultural que mantm e
desenvolvem. Por outro lado, no se pode negar que as diferentes manifestaes de danqa
possuem algum trao em comum e diferenciam-se de outros comportamentos motores do
homem, pois so identificadas - seja pelo senso-comum, seja pelo saber erudito - como dana.
-
Portanto, a dana se singulariza como uma das expresses da motricidade humana, ao mesmo
tempo em que se diversifica em inmeras manifestaes 2.
Nesse contexto, a dana surge tambm como pratica educacional. Se na
formago do cidado grego, na Grcia Clssica, ou na preparao para a vida adulta, nas
sociedades indgenas, a dana efetivamente parte integrante das praticas educacionais, o
mesmo no pode ser dito dos modelos educacionais ocidentais, que privilegiam o
desenvolvimento do saber intelectual e do pensamento cientfico, limitando, no processo de
formaqo do sujeito, o desenvolvimento de aspectos relacionados ao corpo e h sensibilidade.
No entanto, importante destacar que, principalmente a partir do inicio do
sculo XX, surgiram propostas de inserir a dana no processo formal de educao.
Atualmente, iniciativas como a dana-educao estiio sendo desenvolvidas com maior ou
menor xito no contexto da educao formal. Porm, ao menos no Brasil, so iniciativas
pioneiras, que n8o encontram o devido apoio institucional. Ainda no rnbito educaciod,
enquanto cultura de movimento, a danqa tem sido reivindicada como uma das prtica
corporais de que se vale a Educaqo Fsica para exercer sua q o pedaggica, o que tambm
no ocorre de modo sistemtico.
Tais reflexes foram fundamentais para que eu escohesse a danqa como objeto desse estudo. Soma-se a elas o fato de que a sistematizao do conhecimento em dana, ao
menos no Brasil, incipiente e ocorre, muitas vezes, afastada dos ambientes acadmicos.
A sisternatizaq&o dos saberes produzidos em dana, em nosso pas e, mais
especificamente, em Porto Alegre, insuiciente tanto em reIao i diversidade de produes
'Mernpo GiardelIi, escritor argentino, autor & livros como Luna Caliente, A Revoluqo das BicicIetas, entre outros, em entrevista a 5. M. da Silva, 1 993. Um exemplo da diversidade da dana e, mais especificamente, da dana no Brmsil, a 78 Bienal de Dana de
Lyon (Frana), cujo tema d, justamente o Brasil. Estiveram presentes tanto m o s corno Maracatu Nao
-
artisticas quanto em relao as propostas de ensino em dana que vem sendo desenvolvidas
nos mais diferentes contextos. Ou seja: realizam-se espetculos e eventos de dana; h locais
- academias e escolas - destinados ao ensino da dana em seus diferentes estilos; existem
algumas propostas de trabalho com dana no ensino regular. No entmto, pouco se registra,
pouco se escreve sobre dana. Em conseqncia, muito do saber produzido nessa rea no se
legitima e no se t o m um conhecimento disponvel para reflexo e construo de referenciais
tericos em danqa.
Contudo, principalmente a partir do ano de 1985, tm-se intensificado a
publicao de estudos em dana no BrasiP. Se muitos dos trabalhos publicados utilizam o
movimento, a arte e a linguagem como conceitos que definem a dana, muita vezes o fazem
de urna maneira pouco cuidadosa: airmaes genricas como " dana arte dos
movimentos", "dana uma lingu~gem do corpo", ou "dana expresso" pontuam estudos
sobre o assunto, sem, no entanto, fazerem um exame mais acurado das conseqncias de se
tratar a dana enquanto arte, linguagem ou expresso. No se trata, porm, de desconsiderar
estes trabalhos (ainda mais num contexto de escassa produqo terica), mas sim de, a partir
dessas generalizaries, encontrar subsdios para fundamentar outras discusses. E assim,
levantar novos questiomentos, sistematizar e produzir novos conhecimentos4.
A partir desse contexto, a presente dissertao tematiza a danqa, entendendo-a
enquanto forma, tcnica e poesia do movimento sob a perspectiva de construo de sentidos
coreogrf~cos.
Pemambuco, Escola de Samba Imperatriz Ltopoldiiense, Companhia & dana de sal30 de Carlinhos de Jesus quanto o Grupo Corpo, o Balt da Cidade de So Pauio e o Ballet Stagiirm.
Ver, por exemplo, Morato (1 983, 1985), Mendes (1 987), Cunha (1 988), Portinari (1 989) Nesta direo C importante apontar os trabalhos de Halonso (1 988), Navas & Dias (1 992), Katz (1 993}, Canton
(1 994)
-
A danga enquanto forma entendida como c ~ ~ g u r a o de uma matria-prima
- o movimento corporal humano; enquanto tcnica compreendida como processo de
transformao do movimento cotidiano em movimento de dana; enquanto poesia concebida
como ato de criao atravs dos movimentos do corpo. Sendo assim, forma, tcnica e poesia
so, neste trabalho, premissas que embasam urna determinada viso de dana enquanto
manifestao artstica do corpo humano em movimento. Em conseqncia dessa abordagem,
norteia tambm este estudo a perspectiva de que as relaes que se estabelecem no momento
de execuo de uma dana instauram um processo de significao.
Desse modo, este estudo tem como objetivos:
- encontrar elementos que permitam diferenciar a dana das demais
manifestaes do corpo humano em movimento, buscando compreender a lgica prpria da
dana;
- entender a dana enquanto uma atividade artstica que se constri no(s)
corpo(s) em movimento;
- refletir sobre a elaboraqo de provveis significados no processo de criao e
de execuo de uma coreografia;
- descrever a dana enquanto uma ao criadora - ou potica - corpo em
movimento.
Para desenvolver essa temtica e atingir os objetivos propostos, inspirei-me em Merleau-Ponty, procurando falar da dana como o filsofo fala da msica, da literatura, do
corpo e das paixes:
"A literatura, a msica, as paixes, mas tambm a experincia do mundo visvel so tanto quanto a cincia de Lavoisier e de Arnpre, a explorao de um invisvel consistindo ambas no desvendamento de um universo de idias. (...) A idia musical, a i&ia literhia, a dialtica do amor e as
-
articulaes da luz, os modos de exibio do som e do tato falam-nos, possuem sua lgica prpria, sua coerncia, suas Xmbricaes, suas concordncias, e aqui tambm as aparncias so o disfarce de "foras" e "leis" desconhecidas." (Merleau-Ponty, 1992, p. 144)
Merleau-Ponty ( 1 992) mostra que estes fenmenos no podem ser submetidos
a uma anlise lgico-formal, a urna anlise puramente cientfica. A dana, assim como a
msica e a literatura, possui coerncia e lgica prprias, as idias que apresenta no esto
separadas de sua aparncia e sua manifestago parece estar sempre alm de qualquer
explicao. Sob esse ponto de vista, a dana como ela se mostra: no h subtexto, no h
historinhas para contar aim do que est sendo ditolmostrado/contado pelo corpo de quem
dana, atravs dos seus movimentos. O universo de idias da dana existe nos e pelos
movimentos corporais e se manifesta no corpo que dana: em dana, tudo simplesmente , o
que nfio aparece, o que no est Id, no existems
Eu hoje acordei mais cedo e, azul, tive m a idia clap-a.
S existe m segredo. Tudo est na cara.
(Leminski, 1987, p. 34)
Nesta perspectiva, a fim & t r a b a h com a lgica prpria da dana, encontrei
dificuldades em definir uma metodologia rigorosa. A metodologia, segundo Japiassu (1 994),
um domnio da interrogago epistemolbgica; mtodo e objeto so indissociveis: a escolha do
mtodo se faz a partir do objeto a ser estudado. Partindo deste pressuposto, busquei, na
impreciso do mtodo, caminhos para submeter a dana a um recorte conceitual. Acredito que
foi o prprio objeto abordado - a dana - que exigiu este procedimento, e, ao invs de querer
apreender firmemente o objeto, explic-lo e esgot-lo, optei em descrever os seus contornos,
Frase dita par Andrea Druck, coregrafa, num ensaio da coreografia Vmcs um menino.
-
seus movimentos, suas hesitaes, seus xitos e seus sobressaltos. Fao isso, sem esquecer,
porm, que escoiher uma maneira de descrever a dana j uma maneira de compreend-la.
Optei, assim, pela fenomenologia como mtodo de investigao.
A fenomenologia, como ensina Merleau-Ponty ( 1 97 1 ), preocupa-se em
descrever, e no em explicar ou analisar: "O mundo est a antes de qualquer anlise que eu
possa fazer dele (...) O real deve ser descrito e ngo construdo ou constitudo (...) O real e um
tecido slido, no espera nossos juizos para anexar os fenmenos mais surpreendentes nem para rejeitar nossas imaginaes mais verdadeiras." (p. 8) Nesta perspectiva, o cohecimento se constri embasado em wna experincia do mundo. Portanto, para dar conta de algumas
idias da dana preciso estar em contato com a experincia da dana, fazendo das reflexes,
discusses e interpretages, dilogos com a prpria dana. Neste sentido, necessrio
trabalhar com zelo e com sensibilidade.
Para percorrer esse caminho, recorri novamente a Merleau-Ponty, pois os
aspectos fundamentais de sua obra so a impossibilidade de separao sujeito-objeto, a retomada da percepo como base do conhecimento, a redescoberta da experincia corporal
como originria e o resgate da unidade fundamental do mundo como mundo sensvel. Para o
autor, o entrelagamento, e espao virtuaI, a intersubjetividade aparecem como lcus privilegiado onde o pensar precisa situar-se.
Nesta conceppo, as idias s6 so acessveis porque possumos corpo e
sensibilidade: para que fenmenos como a dana no se esgotem como sua manifestao no
corpo do danarino, mas possam tornar-se elementos para uma reflexo terica, necesskrio
que sejam dados atravs de uma experincia que , em primeiro lugar, uma experincia
sensvel; uma experincia que se reaiiza nos corpos, um compartilhar de corporeidades e de
sensibilidades:
-
"O mundo fenomenolgico , d o o do ser puro, mas o sentido que transcende h interseco de minhas experincias com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras, ele pois inseparvel da subjetividade e da intersubjetividade que fazem sua unidade pela retomada de minhas experincias passadas em minhas experincias presentes, da experincia do outro na minha." (Merleau-Ponq, 197 1, p. 17)
Sendo assim, a sensibilidade entendida como possibilidade de conhecimento,
como uma forma de apreensZo da realidade, permeada pela experincia vivida e
compartilhada com o outro foi urna das vias para entender o movimento que se toma dana e
o corpo que se transfigura em formas coreogrficas.
A fenomenologia como um procedimento metodoIgico possibilitou-me
proceder a uma leitura terica da dana: a partir de um olhar interno - atuo diretamente com
danga, seja como bailarina, seja como professora e vivo alguns problemas e questes que esto sendo levantadas aqui - foi possivel dirigir minha viso a uma regio especifica, lanar
um olhar diferenciado e diferenciador, um olhar que permitiu no s deixar-me invadir pelo
espetculo, pelo fenmeno que a dana, mas que me distinguiu deste espetculo, sem no
entanto me apartar completamente dele e, que ao mesmo tempo, possibilitou observ-lo com
cuidado, fixando determinados acontecimentos, situaes e elementos, estudando-os,
buscando subsdios para compreend-los e depois, reelabor-10s em um texto, em vrios
textos, para enfim, poder retornar ao espetculo, reviv-lo e, quem sabe, a partir de agora,
revigor-lo. Portanto, no se trata, neste estudo, de uma preocupa20 espistemolgica no
sentido cartesiano.
Desse modo, apresento o trabalho .dividido em trs captulos.
No primeiro captulo - A dana o corpo transfigurando-se em formas -
discuto alguns conceitos sobre dana a fim de encontrar elementos que permitam diferenciar a
-
dana das demais manifestaes da motricidade humana. Num segundo momento, trabalho
com um referencial advindo da Esttica da Formatividade (Pareyson, 1993) - que prope uma
reflexo sobre a experincia esttica a partir do ponto de vista do homem enquanto autor da
arte, no ato de fazer arte - para tratar a dana enquanto manifestao artstica.
No segundo captulo - Movimento: visibilidade do sentido danante -,
buscando referncias na Semiologia, trato da construo do sentido em dana, ou seja, de
como a dana, entendida enquanto atividade artstica, toma visvel os possveis
sentidoslsignificados construidos coreograficamente.
No terceiro captulo - Dana: o enigma do movimento no corpo - retomo os
principais tpicos trabalhados nos dois primeiros captulos, relacionando-os a algumas das
fecundas idias trabalhadas por Merleau-Ponty em Feaomenologia da Percepo (1 971). Esse
enfoque propicia uma compreenso de que os processos de criao coreogrf~ca, aliados ao
estudo de tcnicas de dana e a diferentes experincias de movimento proporcionam o
surgimento ou o incremento de uma disponibilidade corporal para dana.
Desejo reafirmar que a presente dissertao resdta no s do processo de investigao empreendido nos dois ltimos anos para sua realizao. Ela consequncia
tambm de minhas experincias como bailarina e professora de dana. Em funFo disso, esta
pesquisa se faz oihando a dana de uma perspectiva de formao/ constniol criao do
danar a partir do corpo do danarino, pois acredito que menos o que se diz e mais como se
dana o que torna a dana uma manifestao to particular do corpo em movimento. Do
mesmo modo, a dana aparece como uma ao que se realiza, fundamentalmente, construindo
corpos disponveis para a criao, pois acredito que tal perspectiva permite ver a dana como
uma ago pedaggica que valorize saberes relativos ao corpo, ao movimento e a sensibilidade.
-
Sendo assim, espero que esse estudo se constitua como um material de
reflexo sobre a dana, contribuindo para estimular investigaes relativas terntica da
danga e que possa, ao mesmo tempo, constituir-se enquanto uma forma de compreenso do
movimento humano - organizada a partir de perspectivas semiolgicas e estticas -
percebendo-o como possibilidade de expresso e de arte.
-
A DANA E O CORPO TRANSFIGURANDO-SE EM FORMAS
"...a dana se desenvolve num espaqo sem objetivos e sem direes, uma suspenso da nossa histria, o sujeito e seu mundo na dana no se opem mais, d o se destacam mais um sobre o ouko, em conseqncia as partes do corpo nPro so mais acentuadas como na experincia natural: o tronco no mais o fundamento de onde se elevam os movimentos e onde soobram uma vez acabados: ele que dirige a dana e os movimentos dos membros esto a seu servio." (Merleau-Ponty, 197 1, p.293)
deste captulo busco, num primeiro momento, elementos que permitam
diferenciar a dana das demais manifestaes do corpo humano em movimento. Num segundo
momento, o objetivo abordar a danga enquanto uma atividade artstica, procurando entender os processos envolvidos na elaborao das formaslobras coreogrficas e suas conseqncias
no contexto da dana artstica ocidental.
I. Em busca de conceitos
A fun de situar as discusses posteriores sobre dana, procuro, neste momento,
sintetizar as concepes de alguns estudiosos & rea.
Por mais diferentes que sejam as defmiges e conceituaes de dana
construidas pela bibliografia especializada, elas sempre comportam a iddia & que a dana
composta por movimentos e gestos corporais executados pelos homens e mulheres que
danam. Mas isto no basta para identificar a dmqa: gestos e movimentos so inerentes ao ser
humano. Homens e mulheres expressam-se, manifestam-se, comunicam-se atravs de suas
ages, de suas posturas e atitudes corporais, de seus movimentos e gestos, sem estarem,
necessariamente, danando. Persiste a questo: como diferenciar a dmpa dos demais
comportamentos motores humanos?
-
Para Hanna (19771, a dana um comportamento humano constitudo a partir
de seqncias de movimentos e gestos corporais diferenciados de atividades motoras usuais.
Tais movimentos e gestos so organizados culturalmente, atendem a propsitos e
intencionalidades dos dangarinos e tm valor inerentemente esttico.
Uma das especificidade do gesto em dana, est, pois, no fato de que os
movimentos transformados em gestos de dana adquirem caractersticas extraordinrias, pois
os fatores espaciais, temporais, rtmicos, dinmicos e o prbprio modo de movimentao do
corpo tomam-se diferentes: exigem-se novas posturas, novas atitudes corporais para que os
movimentos usuais se tornem dana. Tomando como exemplo uma simples caminhada: ao ser
incorporada a uma dana, assume as particularidades desta, transforma-se a servio da
coreografia e a maneira como os passos so realizados tom-se por si s importante. A
caminhada j no s uma maneira de fazer com que o sujeito se desloque de uma posio a outra, os movimentos do caminhar adquirem valor em si mesmos. Como diz Hanna (1977),
"...movimentos e gestos comuns so transformados em figuras de dana" (Hanna, 1977,p.222)
Langer ( I 980) tambm identifica no gesto o elemento bsico da dana: "Todo o
movimento de dana gesto, ou um elemento na exibio do gesto (...)O gesto a abstrao
bsica pela qual a iluso da dana efetuada e organizada."(Langer, 1 980, p. 1 82- 1 83). Dentro
dessa concepo, o gesto diferencia-se do movimento pelo seu carter expressivo: os gestos
podem constituir-se em sinais ou sintomas de desejos, intenges, expectativas, exigncias e sentimentos. Ao mesmo tempo, os gestos podem ser organizados em sistemas Iogicamente
expressivos, como no caso da linguagem dos surdos-mudos.
O gesto em dana possui outras especificidades: ele diferencia-se dos gestos
naturais e afirma-se enquanto gesto virtuai. O gesto virtuai uma forma simblica livre, ou
seja, ele tem a capacidade de transmitir idias de emoqo, conscincia e pressentimento, e/ou
-
expressar tenses fisicas e espaciais. Na verdade, para Langer (1980), a diferena entre
movimento e gesto est no fato de que o movimento a realidade fisica, o material que deve
ser transformado pela danpa: o movimento deve ser transfomado em gesto virtual.
O gesto virtuai no a expresso direta de emoes, pensamentos e sensaes.
O gesto virtual cria a iluso de que o gesto executado expresso direta de algo. No caso da
expresso de um sentimento, por exemplo: o gesto executado pelo bailarino surge a partir da
conce~co que ele tem do sentimento a ser representado. Portanto, o gesto executado o
smbolo de um sentimento, conforme o concebe quem dana. No entanto, os movimentos dos
bailarinos so movimentos reais, mas so gestos virtuais porque parecem brotar do
sentimento, quando brotam de uma conc~Eo de sentimento: "... a concepgo de um
sentimento predispe o corpo do bailarino a simboliz-lo." (Langer, 1980, p. 189)
Quem dana faz porque se movimenta, porque realiza movimentos que no
possuem, aparentemente, nenhuma utilidade, nenhuma funo prtica, mas que possuem
sentido e significado em si mesmos, e so recriados, revividos, a cada momento. O modo
como o danarino se movimenta, o modo como ele regula a utilizao da energia, alterando
estados de tenso e relaxamento, a maneira como ele 'experimenta, ocupa, modifica o espaqo,
a maneira como ele brinca com o ritmo, com as dinmicas, reinventando o tempo e
instaurando uma outra temporalidade, faz com que o seu movimento se torne dana, se torne
foma significativa, adquira plasticidade. Ao danar, os homens e mulheres no apenas
reinventam movimento, tempo e espao, mas tornam-se personagenq tornam-se apariqes: a
dana cria um jogo de foras, torna visvel no corpo e nos movimentos todo um universo de aes e significados diversos do cotidiano.
-
O movimento em dana postula sua inutilidade e sua plenitude, pois ele no
existe para cumprir um outro fim que no o de ser exclusivamente movimento, e sendo
movimento, realizar a dana.
Movimentos e gestos em dana permitem formular impresses, conceber e
representar experincias, projetar valores, sentidos e significados, revelar sentimentos,
sensaes e emoes. Isto pode acontecer sem que necessariamente os movimentos e gestos
tenham que contar uma histria: Merce Cunninghaml diz, a respeito de suas coreograf~as, que
nelas "...no existe contedo no sentido de histrias ou algo assim. O que existe o
movimento, a continuidade do movimento. Nesse sentido, as pessoas olham, observam, e
podem ter suas prprias idias sobre isso ou aquilo." (Cunningham, apud Ponzio, 1994)
Hanna (1 977), assim como outros autores, chama ateno para a dimenso
esttica como outra caracterstica a particularizar o gesto em danqa. O adjetivo esttico vem
do grego e significa sensvel, sensitivo. O substantivo esttica empregado desta maneira, est
relacionado ao estudo das condies e dos efeitos da criao artstica. Afmar que os gestos e
movimentos em danga tm valor intrinsecamente esttico significa remeter possibilidade que
toda dana tem de ser arte.
Para Langer (1980), a arte coisa criada como no real, como ilusria, mas
presente em termos de imaginao e em temos sensoriais, funcionando como um smboIo,
mas no como um dado fisico. A autora exemplifica, dizendo que a pintura no a tinta sobre
a parede, mas a iluso que o pintor cria por meio de tinta sobre o gesso molhado. O que a arte
exprime o curso da sensibilidade, do sentimento, da emogo. A arte visdizao do
Merce Cunningham (1919). Coreografo americano, danou na Cia de Martha Graharn (dana modana). Em 1952 cria seu prprio grupo, trabaIhando por muito tempo em parceria com o msico John Cage. C h g h a m cria urn estilo original no cenrio da dana moderna. Seus pressupostos: 1)o movimento 6 expressivo para a l h de toda inteno: a dana movimento, no emoo; 2)o acaso regula as relades entre miisica, elementos cenogrAkos, luzes e movimento; 3)o abandono da centralizao e hierarquiza%o do espao cnico, o espao
-
sentimento, o que envolve sua formula~o e expresso no smbolo, pois a expresso em arte
uma expresso simblica da emoo. Assim sendo, o smbolo artstico lida com imights, no
s com referncias: o reconhecimento do smbolo artstico ocorre atravs da intuio.
Por sentimento, a autora entende tudo o que possa "ser sentido": de sensaes
fsicas, como prazer ou dor, excitao ou quietude, at as emoes mais complexas, as tenses
intelectuais, as tendncias sentimentais permanentes da vida humana consciente.
Uma idia importante no seu pensamento e o fato de que a expresso do
sentimento, em arte, no ocorre de maneira direta, mas sim atravs de uma forma simblica:
um smbolo qualquer artificio com o qual seja possvel operar uma abstrao e no caso da
arte, opera uma articuiago e uma apresentao do sentimento.
Outra preocupao expressa em seu trabalho mais importante - Sentimento e
Forma 2- O de aplicar seus conceitos b diferentes artes - msica, pintura, escultura, dana,
arquitetura, poesia, literatura e teatro - especificando o que cada arte cria, ou seja, qual a
iluso primria, qual o processo simblico especifico de cada uma delas.
No caso da dana, o que ela cria, a partir da transformao dos movimentos em
gestos virtuais a imagem virtuaI de um mundo diferente, um jogo de foras e uma iluso de
poder corporal/fisico/espacial/temporal.:
"O jogo de poderes virtuais manifesta-se nos movimentos de personagens ilusrias, cujos gestos apaixonados preenchem o mundo que criam - um mundo remoto, racionalmente indescritvel, em que as foras parecem tomar-se visveis. (...) Os poderes tornam-se aparentes dentro de uma moldura de espao e tempo; mas essas dimenses, como M o o mais na esfera baltica3, no so reais. (.. .) na dana, tanto o espao quanto o tempo, tal como entram na iluso primria e ocasionalmente aparecem por direito
rapentado e as aes cnicas so m~tiplas e simultheas. Esteve com sua companhia no BrasiI em 1967 e em 1988.
Feeling md Form, 1 a edio de 1953 A autora emprega baltico com o sentido genrico de "referente A dana"
-
prprio como iluses secundrias, so sempre elementos criados, isto , formas virtuais." (Langer, 1980, p.205-206)
A elaborqo & forma simblica em dana passa pelo processo de
transformao dos movimentos em gestos virtuais, o que ocoae devido, especialmente, ao
movimento trabalhado ritmicamente e iluso de conquista da gravidade.
Em dana, o ritmo intencional4, obedece a uma escolha do danarino. O ritmo
uma relao entre tenses, que no caso da dana estabelece uma a l t e d c i a entre
movimentos, em que o fim de um movimento j anuncia o incio do seguinte: o ritmo
organiza o fluxo de energia do movimento atravs do tempo e do espao, estabelecendo
relaes de ordem e proporo, de quantidade e de qualidade, de periodicidade e de estrutura,
entre as estruturas dinmico-temporais do movimento.
Em Langer (1980), o ritmo o que transforma todo o movimento em gesto e
liberta o dangarho dos vhculos usuais da gravitao e da indrcia muscular. Em suas prprias
palavras :
"... a sensao de libertar-se da gravidade (...) um efeito direto e potente do gesto rimado, realado pela postura distendida que no s reduz as supeficies de f?ico do p, mas tambm restringe todos os movimentos corporais naturais - o livre uso de braos e ombros, as viradas inconscientes do tronco e especialmente as respostas automticas dos msculos da perna em locomoo - e, destarte, produz uma nova sensao corpbrea, em que toda tenso muscular se registra como algo cinestesicamente novo, peculiar a dana. Em um corpo disposto de tal maneira, nenhum movimento automtico; se alguma ao avana espontaneamente, ela induzida pelo ritmo erigido na imaginago e prefigurado nos primeiros atos, intencionais, e no pelo hbito prtico. Em uma pessoa com pendor pela dana, essa seasao corpbrea intensa e completa, envolvendo cada msculo volunttrio, at a ponta dos dedos, a garganta, as plpebras. E a sensaqo do virtuosismo, afim ao senso de articulao que distingue o msico ou executante talentoso." (Langer, 1980, p.2 12)
Ver Hanna (1 977).
-
Esta transformao dos movimentos em gestos virtuais no se da ao acaso,
requer procedimentos tcnicos, que no caso da dana possibilitam justamente criar a iluso de
conquista da gravidade, a sensao de leveza elou a idia de domnio do espao e do tempo
pelo corpo do danarino.
Uma das conseqncias da execu2o de uma dana provocar um estado de
xtase em quem a executa. Embora Langer (1980) no especifique as caractersticas deste
xtase, sugerindo apenas que deva estar relacionado com algum processo que faz o bailarino
"sair para fora de si", sabe-se, por indicaes da prpria autora, que sua concepo de xtase
baseada em Sachs (1943). Tal concepgo est diretamente relacionada, num primeiro
momento, As manifestaes de danas rituais, ligadas a cultos e celebraes. Neste sentido, a
obteno de um estado de xtase tem por propsitos a identificao com as foras da
natureza, a comunicao com os deuses, a obteno de poderes sobre-humanos. A autora
estende este conceito A toda atividade de danga, ao afirmar que toda dana destinada a ter
significao baltica, fundamentalmente para as pessoas nela empenhadas, necessariamente
exttica. E prossegue, afirmando que "a eterna popularidade da danga est em sua funo
extitica, tanto hoje como nos tempos primitivos; mas ao invs de transportar os danarinos de um estado profano a um sagrado, ela agora os transporta daquilo que reconhecem como
"realidade" para uma esfera de romance". (Langer, I 980, p. 2 1 1 )
A etrnologia da palavra exttico indica sua origem -grega: exthtico vem do
grego ektatiks, que faz mudar de lugar. Exttico um adjetivo, portanto expressa qualidade
ou propriedade ou estado do ser. Quando uma coisa exttica tem a propriedade de mudar
algo de lugar, de colocar dgo em movimento. Nesse sentido, dizer que a danga exttica
-
dizer que ela coloca algo em movimento, dizer que a danga capaz de provocar mudanqa
em um espao, de provocar movimento, de mudar algo de lugar.
Exttico significa posto em xtase e tem como sin6nimos absorto e enlevado.
xtase - o substantivo do qual se origina o adjetivo exttico - significa arrebatamento ntimo;
enlevo, arroubo, encanto. Exttico, num sentido figurado, pode tambm significar que faz sair
de si, que perhirba o esprito, que se deixa mover.
Se considerarmos que um esprito perturbado um esprito deslocado, que est
fora de Iugar, cabe perguntar: qual o lugar adequado, qual o lugar correto para o esprito? Na
tradio ocidental, o Iugar do esprito (ou alma, ou conscincia, ou mente) o lugar do
domnio, do controle. O esprito tem soberania sobre o corpo, o corpo deve subordinar-se a
ele. Ora, a experincia exttica uma experincia que subverte essa ordem, que desloca o
esprito, que perturba-o de tal maneira que ele no pode mais assumir o controle de todas as
situaes.
O mesmo acontece quando exttico definido como o que se deixa mover. Se a
experincia exttica toma conta do individuo, o esprito j no tem mais o controle dos movimentos, j no tem mais o controle do corpo. A hierarquia esprito-corpo foi
transgredida, instala-se uma nova relao, em que corpo e esprito so um s. A experincia
exttica pode ser vista, ento, como uma experincia que concentra, que unifica, que rene. E
que, assim, provoca arrebatamento ntimo, arroubo, deleite.
Dizer que a dana 6 exttica dizer que ela uma experincia singular,
incomum, que transforma o indivduo que deia participa, provocando-lhe, atravs dos
movimentos da dana, sensaes de encantamento, de gozo e de entusiasmo.
Embora esta experincia parea estar mais prxima a experincia religiosa,
tambim este um dos sentidos da dana, mesmo quando secularizada: "a esfera de romance"
-
para qual os danarinos so transportados elaborada a partir dos efeitos cinestsicos
resultantes do prprio ato de danar. Pois danar , antes de tudo, realizar movimentos por
realizblos, experimentando as sensaes que resultam deste "intil movimentar-se". Desse
modo, atravs da dana, h criaqo de urna imagem virtual de um espaoltempo diferente,
"um mundo de poderes", como diz Langer (1 980).
A criao de uma imagem virtual de um mundo de poderes pela dana deve se
dar no s para os danarinos, mas tambm para quem assiste a uma dana: deve haver como
que uma traduo das experincias cinestsicas dos danarinos para elementos visuais e
audveis, de modo que se crie uma iluso exttica na platia semelhante A criada pelo
movimento no corpo do bailarino. Em outras palavras, deve-se romper com o senso de
realidade do espectador e criar-lhe uma si-o em que movimento, ritmo, tempo, espao
configurem-se de uma maneira nova, provocando sensaes e emoes, reelaborando
sentimentos.
Sendo assim, na concepo de Langer (1980), dana arte porque realiza a criao de uma forma simblica que se d a conhecer pela intuio. Esta criao de uma forma
simblica se processa pela transformao de uma matria - o movimento humano em gesto
virtual -, atravs de procedimentos tcnicos, e conseqente cri%& de uina iluso prirnhia -
uma imagem v i d de poderes Esicos / corporais / espaciais / temporais, ngo s para quem
est efetivamente dangando, mas tambm para quem est participando enquanto espectador.
1.1. Dana: o indcio da arte no corpo
-
Assim como Langer (1 980), a quase totalidade dos autores5 que trabalham com
dana, do mesmo modo que coregrafos e bailarinos, tratam-na como uma atividade artstica.
Sachs (1 943) inicia seu conhecido estudo Historia Universal de lu Danzd afirmando:
"A dana a me das artes. A msica e a poesia existem no tempo; a pinhm e a escultura no espao. Porm a dana vive no tempo e no espaqo. O criador e a criao, o artista e sua obra, so [na dana] uma coisa nica e idntica. Os desenhos ritmicos do movimento, o sentido plstico do espao, a representaao i o d a de um mundo visto e imaginado, tudo isto o homem cria em seu corpo por meio da dana, antes de utilizar a substncia, a pedra e a palavra para destin-las enquanto manifestao de suas experincias interiores." (Sachs, 1944, p. 13)
Para Sachs (19441, a anterioridade da dana em relao s outras artes uma
anterioridade tambm histrica, que trata da evoluo do homem, nas sua relaes com a
natureza e com a religio: a dana mais do que arte, pois atividade que rene alma e corpo
e que permite uma relao direta com o sagrado, com o "outro mundo, com o reino dos
demnios, dos espritos e de Deus"7, ao mesmo tempo em que pontua a vida em sociedade, ao
menos em relao aos povos ditos primitivos e as civilizaes da antigidade. Contudo,
mesmo as civilizaes e culturas mais evoludas, ressalta o autor, conservam a concepgo de
que a dana todo o movimento que transcende em sua natureza a ordem mundana e humana.
Para Sachs (1944), danpa todo movimento ritmico desvinculado do tema do trabalho. Por
isso, e por tratar-se de: a) recriagk de coisas vistas e ouvidas; b) de dar forma e substhcia a
percepes intangiveis e irracionais e c) de um processo criativo que ocorre a partir do
esquecimento de si prprio, tambm pode ser chamada de arte.
Ver Garaudy (1 980), Monteiro (1 9851, Coelho e Bom (1 9851, Jonas (1 992), entre outros. Destaco esta obra de Sachs - cuja primeira edigo foi publicada em 1933, com o titulo de Eine Weltgeschichte
des Tanzes - porque ela foi uma referncia para diferentes autom que escreveram sobre o tema. Sachs, 1944, p.22
-
J Badiou (apud Bruni, 1992) afirma que a dana no uma arte, porque ela
um signo, um indcio de urna possibilidade de arte, inscrita num corpo.
, Um ndice apresenta uma conexo de fato com o todo do conjunto do qual faz
parte, indica o universo que habita*. Dizer que a dana o indcio da arte no corpo dizer que
a dana parte do universo da arte e habita o universo do corpo. Como indcio da arte no
corpo, a dana deixa esboado, neste corpo, trapos de arte. Do mesmo modo, a dana deixa
marcas da sua presena no corpo que dana, mesmo quando ele no esta danando: a dana
tambm uma reminiscncia, uma lembrana do corpo e est potencialmente presente no corpo
que j danou. Como diz Badiou:
"A dana precisamente aquiio que mostra que o corpo capaz de arte, e a medida exata disto, num dado momento, esta nesta capacidade. Mas dizer que um corpo capaz de arte no quer dizer fazer uma 'arte do corpo'. A dana se faz indcio desta capacidade artstica do corpo, sem no entanto definir u m arte singular. Dizer que o corpo, enquanto corpo, capaz de arte mostr-lo como corpo-pensamento. NB;o mais como pensamento preso num corpo, mas como corpo que pensamento. Tal a funo da dana: o corpo- pensamento se mostra sob o signo evanescente de uma capacidade para arte. A d q a responde, sua maneira, A questo de Spinoza. De sue um como, ensuanto tal, capaz? Ele cariaz & arte. isto auer dizer que ele mostrvel como pensamento nativo. (...) Se a capacidade do corpo, do mesmo modo que a capacidade da arte, a de mostrar o pensamento nativo, esta capacidade da arte inibiia, e o corpo que dana ele mesmo infinito." (Badiou, apud Bruni, 1993, p. 2 1) (grifas meus)
Badiou (apud Bruni, 19931, cuja argumentago apoia-se em autores como
Nietzscheg e Mallarmlo, tem como propsito, partindo da filosofia, tentar chegar essncia
visvel da dana, ou seja, tentar ver como a filosofia sustenta a possibilidade de identificao
Santaela, 1992. 9~ietzsche (1 844- 1900): filsofo alemo, autor,> dentre ouhs, de "Assim faiava Zaratuska", no qual diz que d se pode crer num deus que saiba daqar.
Mallamie (1 842-1 892) poeta h&, iniciador do movimento simbolista, para quem a danp seria a mais real das artes, aquela que um poeta mais deveria invejar.
-
da dana pura. A dana pura, ele a identifica com o gesto: "O ponto real da danqa,
absolutamente conforme seu sistema de princpios, ser um gesto que ser O gesto e ser
tudo." (Badiou, apud Bruni, 1993, p.240) No entanto, a dana no O gesto, mas, no mnimo,
um encadeamento e uma pluralidade de gestos, inseridos numa situao que sempre
histrica e que traz a impossibilidade de uma danqa pura:
"A situago concreta se d sempre entre a aparncia impura e a dana pura. H um jogo de imbricaes e de vaivm, que vai definir as diferentes tendncias, reagnipamentos, declaraes, manifestos, coditos histricos, etc [presentes na dana]( ...) Toda proposio de aparncia impura, & experincia teatral, etc, como libreto, histria recontada, todos os grandes bals clssicos so habitados, por dentro, mesmo com todos estes elementos impuros, pelo princpio da pureza. Finalmente, cada coregrafo vai tratar esta tenso a sua maneira. A invenc8o coreo&ica consiste em comemir fazer sur& a novidade pura da dana, numa situao que sempre histhrica, logo irnuura, e em articular, no que concerne i dana. em parte teatral." (Badiou, apud B d , 1993, p. 240-24 1) (grifos meus)
A dana, sendo possibilidade & arte inscrita no corpo, metfora do
pensamento e realidade do corpo.
Se a dana serve como metfora do pensamento - no de qualquer pensamento,
mas do pensamento nascente, indeciso, no fixado e, no entanto, intensificado - porque
Badiou (apud Bruni, 1993), invoca as qualidades visveis da dana:
- o no fmo, o que evanescente e fugaz; - a mobilidade ligada a um centro, ou seja, os movimentos centrados em um
corpo, que se projetam e que retomam a ele, gerando impulsos e contenes;
- a espacialidade obrigathria, o espago como elemento essencial da dana;
-
- a suspenso do tempo no espaqo, ou seja, a partir da espacialidade obrigatria
e do carter transitbrio do movimento, a indeterminao de um antes e de um depois, a
simultaneidade dos eventos.
Realidade do corpo, pois a dana estrutura-se neste corpo: se ela veiculo de
libertao do corpo, como quer Sachs (19441, ela tambm molda, conforma, transforma e
disciplina este mesmo corpo quando nele se faz presente. Por outro lado, o corpo que dana
no uma irnitaso, ele no figura um personagem ou uma singularidade: ele o emblema do
puro surgimento, aparecimento, manifesta$& do movimento, no instante mesmo em que
este movimento se institui. Ao mesmo tempo, o corpo que dana no exprime alguma
interioridade, ele 4 todo superficie: o que se busca nele, pode encontrar-se a partir de sua
presena real, corprea, material e a partir dos movimentos que dele surgem. Este corpo ,
tambm, intensidade, visto que o centro de onde partem e para onde refluem os
movimentos. E no um corpo dotado de poderes "extra-corpreos":
"A dana como realidade do corpo o tema de uma mobilidade fortemente ligada a ele [ao corpo], uma mobilidade que no se inscreve numa determinao exterior, mas que no de destaca de seu prprio centro. Uma mobilidade no imposta, que se desdobra como se fosse uma expanso de seu prprio centro." (Badioy apud Bruni, 1993, p. 13)
A dana t indcio da arte no corpo porque mostra que um corpo capaz de ser
arte, de se fazer, enquanto corpo e movimento, encarnao artstica. A dana possibilidade
de arte encarnada no corpo.
-
2. A dana o corpo transfigurando-se em formas
"A dana um ato puro de metamorfoses. O instante gera a fortua, e a forma faz ver o instanh'
(Valry, apud Sasportes, 1983, p. 75)
A dana identificada com um formar, ou seja, com um processo de transformao de matria-prima atravs de procedimentos tcnicos, resultando em fomias que
sHo manifesta6es artsticas o tema a ser abordado a partir de agora. Para desenvolv-lo,
utilizo-me, principalmente, de Pareyson (1 993), cuja Esttica: m o teoria da fmatividnde prope uma reflexllo sobre a experincia esttica a partir do ponto de vista do homem
enquanto autor da arte, no ato de fazer arte. O que possibilita entender a arte como um
processo de criao e permite v-la a partir da perspectiva de quem est. diretamente envolvido
neste processo.
-
2.1. Formar para ser ... forma
Formar pode ter vrios sentidos: fazer e operar; conceber e imaginar; construir,
compor e constituir; fundar, criar, preparar. Em todos est presente uma idia de atividade.
Para Pareyson (19931, o formar e uma atividade e uma das especificidades do
comportamento humano:
"Toda operago humana sempre ou especulativa ou prtica, ou fornativa mas, seja qual for a sua especificao, E sempre ao mesmo tempo tanto pensamento como mordidade e formatividade. Uma operao no se determina a no ser especificando uma atividade enw as outras, mas no pode faze-10 a no ser concentrando em si todas as outras simultaneamente. Em toda operago existe, ao mesmo tempo, espeeQicao de uma atividade e concentra& de todas as atividades (...) A especificao consiste no acentuar uma atividade a ponto de temi-Ia predominante sobre as outras e intencional em uma operab. (...) [w no se pode pensar sem ao mesmo tempo agir e formar, nem agir sem ao mesmo tempo pensar e formar, nem formar sem ao mesmo tempo pensar e agir." (Pareyson, 1993, p. 24) (grifos do autor)
Quando o formar predominante sobre as outras atividades e intencional em
uma operaio do comportamento hurnano, surge a possibilidade de reaiizago de uma
atividade artstica. A atividade artstica pressupe o formar", mas ela s existe quando o
formar no se prope mais a formar pensamentos, raciocnios, sistemas ou a6es, virtudes,
caracteres ou objetos teis a um fim preestabelecido. A atividade artstica pressupe um fomiar preacupado especificamente com ...
o prprio formar, Formar, em arte, fazer, inventando, simultaneamente, o modo de fazer; realizar, procedendo por ensaio, por tentativa e erro; um processo de produgo que , ao mesmo tempo e indissolwelmente, inveno e que resulta em obras que so formas. Portanto,
Partt dos tericos da arte tmbdhm, embora de mmeim diferemiada, sob este ponto de vista Ver, por exemplo, Ostrower (1 989) para quem alar, em arte, basicamente formar, poder dar forma a algo novo. Ver t a m b Bosi (1991), para quem a arte d um fazer, d um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matria oferecida pela natureza e pela nil!ma
-
o resultado & um processo de formar, em arte, uma forma cuja finalidade ser, justamente, forma. Ela no tem, necessariamente, fins utilitrios e tudo o que puder ser lido, interpretado, dito ou pensado dela &corre da sua especificidade enquanto forma.
A forma ngo um conceito, nem tampouco um invlucro ou uma embalagem
em que algo est contido. A forma um sistema de relaes, o modo como se relacionam os
fenmenos, o modo como se configuram certas relaes dentro de um contexto:
"Forma: organismo, que goza de vida prpria e tem sua prpria legalidade h-eca: totalidade -tive1 em sua singdaridade, independente em sua autonomia, exemplar em seu valor, fechada e aberta ao mesmo tempo, f i t a e ao mesmo tempo encerrando um infinito, perfeita na harmonia e unidade de sua lei de coerncia, inteira na adequao recproca entre as partes e o todo." (Pareyson, 1993, p.9- 10)
A forma tambm uma ordenao, uma configurago de matria fisica ou
psquica, materialidadel2, concretude e no pode ser abstrada, reduzida, traduzida,
transposta ou desvinculada de seu especfico carter material. Como quer Ostrower (1989)
"...a forma no traduz, ela ; ela capta o mais exclusivo do fenmeno porque jamais se
desvincda da matria em questo." (Ostrower, 1 989, p.69)
Se a forma no se desvincda da matria, no pode deswicdar-se, tambm, do
seu processo de prodyo: a forma s pode ser entendida quando se considera seu modo de ser
formada, de ser produzida. No processo de produo, de feitura de uma f o m , modifica-se
uma matria, criando ou recriando os modos e maneiras de atuar sobre esta matria: todo fazer
abrange a forma no seu como fazer.
I2Segundo Ostrower (1 989), a materialidade a matria com suas qualificaqes e seus compromissos culWs. A materialidade no t um fato meramente fisico, mesmo quando sua matria o t, pois a rnaterialidade se coloca num plano simb6lico para os homens.
-
A dana, em qualquer de suas manfestaes e mesmo no sendo uma ago que
resulta em obras de arte, uma atividade de formatividade, direcionada essencialmente ao
Em dana, a forma isto tudo h pouco descrito:
- um sistema de relages dentro de um contexto. O contexto a prpria
coreografia, organizada a partir das relaes estabelecidas entre o corpo que realiza
movimentos e os elementos como tempo, espao, peso, tema, msica, intenqes;
- configurao e modificao de uma matria: o movimento humano;
- constante criao de processos para transformaqo desta matria: as tcnicas
corporais, os exerccios de improvisao, os processos de investigao e todas as alternativas
que coregrafos e danarinos julgarem necessrias. A forma em dana no deve ser entendida simplesmente enquanto desenho do
movimento no espao, mas enquanto fator gerador e organizador do movimento, enquanto
principio do movimento, enquanto motor de impulso mas tambm enquanto fora de
reteno do movimento.
A forma, em dana, no o invlucro de algo, seja este algo sentimento, idia,
inteno. Ela nHo precisa ser explicada ou traduzida: no preciso pedir licena i emoo, ou
a uma lgica exterior A lgica da cria$% em dana para que se encontre o justo movimento
numa criao coreogr&a. No processo de criago intervm, fundamentalmente, o sentido de
adequao, de organicidade, de necessidade, que decorre de urna solicitao da prbpria forma.
Isso G o significa que uma coreoma no possa se inspirar em algum tema, idia, msica,
sentimento ou emoqo. Mas sim que h uma passagem, uma troca constante, pautada pelas
necessidades fornativas da prpria obra que est sendo formada. Assim, se a idia, o
-
sentimento ou a msica suscitam f o m s , as formas induzem, provocam, estimulam
sentimentos, idias e interpretaes da msica.
Enfim, se a f o m em dana configurao de matria, no processo de
configurago da matria da dana - o movimento corporal - quem dmga se configura,
transforma o seu prprio corpo, se molda e se remodela, se reconfigura: quando a danp se
manifesta no corpo, a todo instante, reconfigura e transforma este corpo, multiplicando-o,
diversificando-o, tornando-o vkrios corpos que se sucedem ...
2.2. O movimento: matria-prima e visibilidade da dana
"V-se melhor, considerando o corpo em movimento, como ele habita o espao ( e aiis o tempo) porque o movimento no se contenta em sofrer o espao e o tempo, ele os assume ativamente, ele os retoma em sua significab ori@ que se apaga na banalidade das situaes adquiridas." (Merleau-Ponty, 1971, p. 113-114)
A matria-prima da dana o movimento. O movimento do corpo que dana.
No entanto, em dana, a forma - a matria configurada - efmera, fugaz, transitria: a dana
se realiza no corpo atravs de movimentos que fazem e se desfazem com rapidez, que se
desmancham assim que se constituem, quase instantaneamente: "Quando irrompe no corpo, o
movimento, ele mesmo, j um resultado, se presentifica como um nico. IrrepetveI. Porque
da qualidade do movimento morrer a cada vez que nasce." (Katz, 1994, p.5 8)
O movimento no corpo danante designa um deslocamento, uma transformao
e identifica-se com impulso corporal, com a capacidade de projego do corpo no tempo e no
espao. Um corpo ao danqar, entrega-se ao impulso do movimento, deixa-se deslocar, deixa-
-
se transformar. Ele atravessa o espao, joga com o tempo, brinca com as foras e leis fsicas,
diverte-se com seu peso, provoca dinmicas inusitadas.
Mas para que haja o movimento preciso tambm haver o no-movimenta, a
quietude, o silncio do corpo danante. Deve haver o imvel como o que sustenta o
movimento, assim como o vazio, o no movimento, solicita e empurra o movimento para ser
ele mesmo...
O movimento em dana, como sustenta Badiou (apud B m i , 1993), no
somente a demonstrao de gestos corporais e a perfeio de seus desenhos, mas tambm
uma fora de reteno, um trao que atravessa e sustenta a unidade de um gesto. O
movimento no somente o impulso corporal liberado. Ele tambm a demonstrao
corporal de uma desobedincia a um impulso: um corpo que, para poder danar, tambm
deve resistir ao impulso do movimento, gerando uma forga de retenqo.
Do mesmo modo, se o movimento de dana transformao e velocidade, ele
traz tambm a capacidade de manifestar a lentido secreta do que rpido: o movimento em
dana de uma extrema prontido, e virtuose na rapidez, mas ele tambm habitado por uma
lentido latente, por uma potincia de reteno, que surge da capacidade de resistncia do
corpo ao prprio movimento. O mesmo corpo que se entrega ao movimento tambm resiste a
ele. E desta dinmica que surge a danqa.
Da virtude de estar quieta componho o meu movimento.
Por indireta e direta, perturbo eslpelm e vento.
Sou a pmsagem da seta e a seta, - em cada momento.
(Can~o, Ceclia Meireles, 1983, p. 13 1)
-
Busco me inspirar tambm em Barthes (1990) quando fala do trao de um
artista graficol3, para dizer que o movimento, em dana, est fadado a desaparecer, mas pode
sofrer de um suave desaparecimento: como um trao apagado que deixa sua marca na folha de
papel, o fim de um movimento j pressupe o comeo de outro. Ou melhor, o movimento
seguinte s existe como conseqncia do anterior. No corpo que realiza o movimento,
permanece uma tnue impresso do movimento realizado.. . Deste modo, este corpo reiline,
quase que simultaneamente, aquilo que aparece e aquilo que desaparece. Como postulava
Isadora Duncan (1 877-1 927 1 EUA), precursora da dana moderna e primeira a romper com os
princpios do bal clssico: "Jamais os movimentos parecem se deter, cada movimento
conserva a foqa de dar vida a outro movimento." (Duncan, apud Baril, 1977, p.27)
O fundamento bsico da danqa de Isadora Duncan era seguir o ritmo das
manifestaes da natureza: os movimentos das rvores, das nuvens, das ondas do mar.
Duncan no chegou a sistematizar seus princpios em m a tcnica de dana. No entanto, suas
dana seguiam alguns pressupostos bsicos: a) movimentos que partem do cen*o do tronco,
mais especificamente da regio do plexo solar; b) fluidez de movimentos, cada movimento
estii logicamente ligado ao seguinte e d impulso a outro movimento. A sucesso dos
movimentos se converte em uma Iinha contnua, flexvel e harmoniosa; c) a respirao um
princpio fundamental para a dana.
l 3 "... o trao no t apoiado, ao contrrio, esfumaa-se, no dissimulando a marca sutil deixada pela borracha: a mo traou algo que seria urna flor e, em seguida, ps-se a preguiar sobre as linhas hadas; a flor foi escrita e, depois, d d t a ; os dois movimentos continuam vagamente superpostos; trs textos (. ..) esto diante de nhs, um tendendo a apagar o ouixo, mas com o nico objetivo de fazer com que possamos ler esse apagar: verdadeira filosofia do tempo. Como sempre, necesslirio que a vida (a arte, o gesto, o trabalho) testemunhe sem desespero seu inelutvel desaparecimento: ao entrelaqar-se, (...) ao mostrar seu nascimento, as f o m j no cantam as maraviihas da criao, nem as mornas esterilidades da repetio; dir-se-ia que ihes cabe unir, em um nico estado, aquilo que aparece e aquilo que desaparece ..." (Barthes, 1990, p. 1 50)
-
O movimento no corpo que dana transitoriedade e trao que deixa marcas;
impulso e conteno; velocidade e lentido; imobilidade e ao. O movimento matria-
prima da dana, pois que a torna realidade e ihe d visibilidade.
2.3. O saber e o fazer tcnicos: a tcnica como f e c h e Techne, em grego, designa oficio, habilidade, arte. De acordo com Peters
(1974), Plato a utiliza para descrever qualquer habilidade no fazer, e mais especificamente,
uma espcie de competncia profissional oposta h capacidade instintiva ou ao mero acaso.
Como especifica Chaui (1994), tcnica para os gregos, run saber prtico obtido por
experincia e realizado por habilidade, referindo-se a toda atividade humana realizada de
acordo com regras que ordenam a experincia, exigindo grande capacidade de observao,
memria e senso de oportunidade. A tcnica transforma a matria em alguma coisa que a
matria est apta a receber:
"... a tcnica opera com formas visveis (eidos) que so descobertas ou trazidas existncia como uma potencialidade da matria (4namis) ou da Natureza; o arteso d forma (produz um ekbs) porque conhece a matria e conhece as formas (os elde) que so adequados a cada matria; (...)" (Chaui, 1994, p.117)
Em Aristteles, uma caracterstica mais dirigida produo do que ao,
que emerge da experincia de casos individuais e passa de experincia a techne quando as
expectativas individuais 5o generalizadas num conhecimento de causas: o homem
experimentando sabe como mas no o porqu. Temos, ento: do saber-como (saber
experimental) ao saber-porqu (conhecimento das causas) e deste, ao saber-fazer (criativo,
potico). A techne torna-se, ento, um tipo de conhecimento que pode ser ensinado.
-
um saber fazer. Um saber fazer que pode ser continuamente reinventado, tornando-se um formar. Pois como bem ressalta Pareyson (19931, o fazer torna-se um f o m
no quando se limita a executar algo j planejado, a aplicar uma tcnica j predisposta ou a submeter-se a regras j fixadas. O fazer toma-se um formar suando. durante o processo de transformao da matria, a concepo, o planejamento e a execuo so aries
concomitantes: suando as regras sgo definidas durante o ato criador e suando o fazer inventa
o prprio modo de fazer. Este processo de inveno do modo de fazer permite um constante
recriar da tcnica.
Em dana, o saber fazer diz respeito ao movimento e ao corpo; ao modo como
o corpo se movimenta para danar. A tkcnica, em dana, & uma maneira de realizar os
movimentos e de organiz-los segundo as intenes formativas de quem dana. Est presente
tanto nos processos de criqo coreogrfica quanto nos processos de aprendizagem de novos
estilos de dana. , por isso, um modo de informar o corpo e, ao mesmo tempo, um modo de facilitar o manifestar & danga no corpo. Ou tornar o corpo que danga ainda mais danante.
2.4. A matria-prima em transformao : movimento em processo de techne
O movimento, enquanto matria da dana e assim como qualquer matria que
se oferece a uma inteno fornativa, j i vem carregado de leis, usos, intenqbes, tradiwes. No
caso da dana, no podemos esquecer que o movimento no uma "entidade abstrata".
Embora fugaz e transitrio, o movimento existe no corpo dangante. E o corpo hgante est
sujeito a possibilidades e restries de ordem biolgica, social e cultural.
-
Se corpos humanos, quando dissecados matomicamente, parecem
comportarem mais semelhanas do que diferenas14, 0 mesmo no pode ser dito de corpos
vivos, de pessoas em suas relaes de prazer, de trabalho, de sofrimento, de amor, enfim, em
suas relaes de vida.
O corpo humano no referendado somente pelas suas condies biolgicas. O
corpo sempre construido.
Como diz Santin:
"... a arquitetura do corpo no mais reduzida a engenharia gentica, mas resultado de um processo do imagmhio humano. (...) a constnib do corpo d o pode ser vista apenas como corpo individual que eu construo, mas se trata de um corpo que eu construo sob o olhar do outro e para que ele possa ser olhado pelo outro." (Santin, 1 995, p. 4 1)
O corpo - ou os corpos - esto sendo constantemente criados1 estnrtwadosl
construdos; destrudosl desestnituradosl desconstmdosl; recriados1 reconstrudosl
reestruturados, de acordo com valores, padres, ideoIogias, perspectivas sociais, estticas e
polticas, coletivas e individuais.
Um corpo danpante igualmente um corpo em permanente constnio. E um
corpo onde os movimentos so possveis a partir do que se informa e do que se oferece a este
corpo. No h "corpo virgem", assim como no h movimento humano "natural e universal ",
pelo menos em &$a.
14 De acordo com Santin (1996), j no sculo XViiI, Goethe denuncia que a anatomia em ca&ver& no encoma mais o essencial do corpo. Do mesmo modo Sam, em nosso secdo, proclama que "a reconstituio sinttica do vivente feita pela hiologia a partir de cadveres est condenada, desde o incio, a nada compreender da vida, pois ela a concebe simplesmente como moddihde particular da morte. A matomia, tambm, como emdo da eximioridade, s 6 perceptvel num cadver, o qual apenas o passado de uma vida, um simples vestigio." (Sartre, apud Santin, 1996, p.20)
-
Mauss (1 974) ensina que os fatos relacionados aos movimentos, atitudes e
Mbitos do homem tm de ser entendidos no contexto em que ocorrem15. Assim, no h. uma
maneira natural de caminhar, de sentar, ou de dormir que seja comum a toda a humanidade.
Existem, sim, diferentes modos para realizar determinadas aes, diferentes tcnicas
corporais. Como refere-se Mauss, as tcnicas corporais so "...maneiras pelas quais os
homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos."
(Mauss, 1974, p. 212). As tcnicas corporais so, portanto, caracteristicas de determinados
grupos sociais e so transmitidas atravs da educaqo, da imitago, da conviv2ncia, da
tradio. Desse modo, os atos, atitudes e hbitos corporais, muitas vezes percebidos como
fatos naturais, relacionados apenas s caractersticas biolgicas ou psicoMgicas dos
indivduos, so conseqncia, principalmente, de processos educativos e de padres sociais.
Assim que, em dana, no h, igualmente, movimentos naturais: os
movimentos de dana tambm constituem tcnicas corporais. Katz (1995) trabalha com
preciso esta questo:
"Para ser existente, o corpo se conskbi fisicamente, isto , se molda de acordo com as series motoras que recebe enquanto insmes. Tem o seu modo de existir como corpo (...) Aldm dele existir com seus contornos e pesos, se move de acordo com a tcnica que o treinou. Condicionantes em excesso para algo funcionar to somente como tabula rasa. (...) O corpo se dh a ver dentro da tal linguagem que adquiriu, isto , da tcnica que o conformou. Na motricidade de cada corpo se recolhem os sinais indicadores do que ele reteve como seu." (Katz, 1995)
Mesmo que no tenham sido submetidos a um processo formal de
aprendizagem em dana, quando homens e mulheres danam, seus movimentos foram de
l5 Maus se refere a Aristteles para trabalhar com a n q b de habitw, indicando que este termo traduz com mais preciso o que Aristoteles entendia por fatuidades de repetio da aima ou Mbitos metafisicos.
-
alguma forma trabalhados, moldados de acordo com suas experincias anteriores. Aprender a
danar pode acontecer a partir de vivncias coletivas elou a partir da observao e execugo
de movimentos tradicionalmente realizados por determinados grupos, sem que ningum
precise deter-se a ensinar passos de dana. Do mesmo modo, pode-se criar tcnicas pessoais,
que reinventaro gestos, passos e movimentos, propiciando um modo particular de se dangar.
Mas, certamente, tais tcnicas estaro ligadas, de alguma maneira, As experincias dos
indivduos em sociedade: a presena do danarino sempre uma presena datada e localizada.
2.4,l. Tcnicas extra-cotidianas: o cotidiano do corpo que dana
Volli (apud Barba & Savarese, 1988) faz uma distiwgo entre tcnicas
corporais cotidianas e extra-cotidianas. Baseando-se tambm na concepo de Maws, define
tcnicas cotidianas como as tcnicas que podern ser consideradas "normais" por diferentes
culturas: os modos de caminhar, saltar, levantar pesos, comer, parir, domir, etc. Qualquer
membro de uma sociedade, que se encontra eventualmente em condies apropriadas de sexo
e de idade, domina as tcnicas cotidianas, cujo aprendizado ocorre, geralmente, em situaes no-formais, a partir do ncleo social minimo.
Por outro lado, as tcnicas extra-cotidianas esao relacionadas com furiqes especficas, geralmente pblicas, no campo da religio, da magia, do exerccio do poder, da
representao teatral e da dana, sendo utilizadas, por exemplo, tanto por sacerdotes, bruxos,
xams como por oradores, atores e danarinos. O aprendizado das tcnicas extra-cotidianas se
d de maneira mais ou menos formal, por um tempo prolongado ou por um perodo
determinado. Em geral, as tcnicas extra-cotidianas produzem um desvio considervel do uso
"normal" do corpo, uma alterao dos ritmos, das posies, da utilizago da energia, da dor e
da fadiga. Toda cultura pode criar espaos de expresso extra-cotidianos, que, m a i s do que
-
espaos de interao social, so a estnihirao & uma experincia que estabelece o nexo entre
o fisico e o sociall6.
H& uma estreita relao entre as tcnicas extra-cotidianas e as sociedades em
que so criadas, pois a &kio social, os contedos transmitidos, os cdigos formais, as
normas ticas, os critrios & eficcia, os paradigmas estilsticos so elaborados por cada
sociedade e deteminam profundamente a forma concreta destas tcnicas.
Na verdade, as tcnicas extra-cotidianas so como que uma segunda cultura de
movimento, estruturadas, num corpo, em justaposio s tcnicas cotidianas, ainda que,
muitas vezes, as tcnicas extra-cotidianas se afirmem em contraposio ou enquanto
deformago das cotidianas. Um exemplo trazido por Barba & Savarese (1988) diz respeito
alteraio do equiIibrio corporal, presente em diferentes prticas de teatro e de dana:
?No teatro N japons o ator caminha sem levantar os ps do solo. Avana sempre arrastando os ps sobre o cenrio. Se tenta-se caminhar desta forma, consta-se que o centro de gravidade do nosso corpo desloca-se e, em conseqhcia, o equil~hrio muda. Se algum quer caminhar como um ator N, v-se obrigado a flexionar ligeiramente os joelhos, o que implica numa presso da coluna vertebral - e por tanto de todo o corpo - para o solo. (...) Na [dana] i l s s i hindu, o corpo das danarinas deve arquear-se como um S que passa atravs da cabea, dos ombros e dos quadris. Em toda estaturia clhssica Rindu o principio da sinuosidade (...I parece evidente. Tambm no teatro Kabuki Ijapons], o ator desloca seu corpo em uma onduiao lateral. Este movimento ondulatrio comporta uma ao contnua da coluna vertebral que produz incessantemente uma mudana do equilbrio e por tanto uma relaqo enke o peso do corpo e sua base: os pts. No teatro bdins, o ator-bailarino se apoia sobre a planta dos ps. No entanto, levanta o quanto pode a parte anterior e os dedos. Esta disposio reduz quase metade a base de apoio do corpo. Para evitar que caia, o ator se v obrigado a afastar as pernas e a flexionar os joeihos." (Barba & Savarese, 1988, p. 176-177)
16 Ver Jardim, apud L&, 1995.
-
A esta alterao do equilbrio corporal, que modifica a posio cotidiana das
pernas, a forma de apoiar os ps no solo, reduzindo consideravelmente sua base & apoio e
que se reflete tanto no modo de caminhar, de deslocar-se pelo espao, quanto no modo de
manter-se esttico, Barba & Savarese (1988) chamam de 'equilbrio de luxo', um equilibrio
que, em aparncia, 6 inutilmente complexo, suprfluo, e que requer um maior gasto de
energia. Mas que, no entanto, permite ao ator ou bailarino uma intensificaqo da sua presena
corporal.
O mesmo "artifcio" de alterar o equilbrio corporal proposto, no Ocidente,
pelo bal clssico. As posies bsicas do bal compreendem uma rotao externa das coxas,
pernas e ps (o famoso en dehors), que resultam numa postura e num equilibro corporal
diferenciados do que tido como 'normal'. Isto sem falar no uso das pontas para as bailarinas,
que difere radicalmente do equilibrio cotidiano. Do mesmo modo, boa parte do repertrio do
bal concentra-se no movimento das pernas, nas transferncias do peso do corpo de uma perna
para outra e na execuo de movimentos com a perna livre.
O bal remonta As cortes italianas e h c e s a s , nos sculos XVI e XWI, tendo
evoludo a partir do Renascimento e definindo-se dentro de uma viso de mundo que
procurava o conhecimento racional das coisas e dos homens. A tcnica do bal foi
desenvolvida de acordo com os princpios cartesianos: separao entre corpo e mente,
hgmentao do corpo humano em segmentos independentes, mecaniza930 dos movimentos.
Nos primeiros tempos, a tcnica da dana clssica estava em estreita relao com o gestual da
corte, j altamente codificado. Beauchampsl7, mestre de bal da corte francesa, trabalhando de
1655 a 1687 na Academia Real de Msica e Dana, sistematizou movimentos, gestos e passos
l7 Piem Beauchamps (1 636-1 705), Frana.
-
do bal, criando posiges b8sicas de ps e braos e muitos passos que permanecem no
repertrio a W .
Bourcier (1987) relata a transformao de um salto normal"^^ em um
sofisticado salto de bal, um g r d jet:
"O gpand jet originalmente, um salto em comprimento: as pernas esto esticadas, a perna a d i a r est atrs da outra e mais abaixo.; o torso trazido para fiente para favorecer a amplido do saIto; os braos estb um a hnte, para auxiliar o esforo do torso, oubo para triis para servir de balanceio; a cabea acompanha namalmente o esforo do torso. O movimento de dana a idealizapo deste salto natural: deve mostrar com evidncia a essncia do salto, ou seja, a libertao do peso. Tudo deve ser concebido logicamente para dar a impresso de leveza, o que faz a beleza do gesto: as pernas esticadas em oposio, o mais horizontalmente possvel, projetando-se ao mesmo tempo que a trajetria; o tono est ereto, sem rigidez; os braos esto estendidos, em oposio 5 altura dos ombros, projetando-se tambm na trajetria; a cabea permanece reta sobre o torso ou volta-se para o pblico. Fimra mamfica, em que o como se torna imfiondervel. em que a aparncia de esforo est completamente disfarada." (Bourcier, 1989, p. 118)
Constata-se, assim, que a evoluo de uma tcnica de movimento est
diretamente relacionada ao projeto social, ao contexto culturaI, aos valores ticos e estticos:
t o m o corpo impondervel, leve, difano, disfarar qualquer esfoqo humano quando
realizar movimentos cada vez mais complexos, tomando o bailarino uma criatura especial,
que reflete os valores de uma nobreza mpar eram alguns dos objetivos do bal, esbimirados, no corpo, atravs das tcnicas extra-cotidianas.
18 Nonnal entendido u>mo o que possvel de ser executados pela maioria das pessoas no contexto da epoca.
-
Um dos objetivos das tcnicas de dana , justamente, naturalizar o
movimento: um movimento que no natural, que motivado e construdo torna-se
aparentemente natural, torna-se de fcil execuo para o bailarino (ou ao menos aparenta ser
de fcil execqo). Esse movimento passa a pertencer a seu repertbrio de movimentos, passa a fazer parte do seu modo de ser corpo. Mais do que disfarar o esforo, necessrio incorpor-
10 e torn-lo dana,
Se o bal tem como um de seus princpio bsicos verticalidade e conseqente
distanciamento do solo, j a dana moderna procura modificar radicalmente a relao do
danarino com o cho: ao invs de uma fuga da fora da gravidade, prope intensificar o
contato com o solo, seja atravs de movimentos em posies sentadas, deitadas ou ajoehdas,
seja atravs do uso dos ps descalos. Mesmo assim, as diferentes tcnicas de dana moderna
tambm operam uma transformago dos movimentos cotidianos e uma alterao do equilLbrio
"normal", o que ocorre, porm, em acordo com a viso esttica e poltica dos seus criadores.
A dana modema, desde o seu surgimento no incio do sculo XX, na Europa e
nos Estados Unidos, teve como um dos seus principais objetivos expressar as inquietaes e
contradies do seu tempo. Desenvolveram-se vnas tcnicas de danqa moderna, partindo de
diferentes concepes de homem, de corpo e de movimento. Ao wntrhio do bal clssico, ela
no pretendeu estabelecer um novo cdigo, perrneado por rgidos princpios tcnicos e
universalmente vlido. Desse modo, no se estabeleceu um sistema nico para a criao,
execuqo e o ensino da dana moderna. Ao contrrio, foram criados diversos mtodos que
deveriam atender is diferentes conceppks, necessidades e intenes de seus criadores
Para Martha GTahaml9 a tcnica deve permitir ao corpo chegar sua plena
expressividade: a tcnica da dana tem como fm treinar o corpo para responder a qualquer
' 9 Merdia Graham ( 1 894-1991), americana, uma das mais importantes criadoras da dana modema am&eaoa
-
Estas formas criadas por Graham esto em pleno acordo com sua viso de
mundo e sua postura de vida: G r h consolida os princpios tcnicos de sua daqa entre os
anos 30 e 40, buscando, nas suas criaes, refletir as angstias provocadas por uma crise
econmica e por uma situao politica instvel, o perodo entre-guerras. Os impulsos
violentos, as tores bruscas do tronco e as contraqes percussivas - verdadeiras marcas
registradas no trabalho de Graham - expressam as preocupaes desta artista que em 1937 cria
Immediate Trage4 e Deep Song, inspiradas na Guerra Civil Espanhola.
Buscando exemplos na dana Ocidental, v-se que a chamada dana ps-
moderna20 buscou contniir repertrios gestuais sem rela2io alguma com as formas de dana
at ento existentes no contexto da danqa teatral do Ocidente, ou seja, o bal clssico e as
diferentes tcnicas de dana modema. Na sua tentativa de buscar um "grau zero da dana"
reconheceram nos movimentos e ages do dia a dia - caminhar, correr, sentar, vestir-se,
despir-se - os elementos a partir dos quais seria possvel elabrar urna dana em dihlogo com a
realidade cotidiana.
A pesquisa e a experimentao, na dana ps-moderna, esto aliceradas na
observao e anlise dos movimentos corporais, mas tambm se apoiam numa matriz
ideolgica em que est5o presentes a contestao ao modo de vida americano, as lutas pelos
direitos das minorias e urna nova forma compreenso do corpo: o corpo como o Iugar onde
tudo acontece - a repressgo, mas tambm o desregramento; a inspirqo, mas tambm a
materia para a criaglo.
20 A dana ps-modema e um movimento &cano que teve inicio nos anos 60, a partir das experihcias de um grupo que realizava performances na Judson Church, em Nova York. Peflormanea e no representaes ou espetculos, pois os performers so aqueles que executam urna ao. Os ps-modemos colocaram em questo os valores e prticas da dana modema. As eqerihcias na Judon Church encerram-se nos primeiros anos da &cada de 70. No entanto, seus artistas continuarm seus trabalhos, criando novas linhas de pesquisa em dana. Os principais nomes da dana ps-modema silo: Lucinda Childs, Trisha Brown, Meredith Monk, David Gordon, Steve Paxton, Yvorme Rainer, Simoni Forti.
-
exigncia de um esprito que saiba o que se quer dizer. Os princpios da tcnica de Graharn
so:
- o ato de respirar como ponto de partida para o movimento: os movimentos se
originam do ritmo criado pela alteraiio entre inspirao e expirao, entre contraqo e
relaxamento;
- a regio plvica e genital a base de apoio para todos os movimentos do
corpo, os movimentos se originam a partir do centro do corpo, o corpo trabalhado enquanto
totalidade, sem segmentao entre troncos e membros;
- o movimento se intensifica e se dinamiza;
- a relao com o chgo, com a terra uma presena constante.
Na tcnica de Graham, mesmo os exerccios realizados no solo provocam
alteraes da postura e do equilbrio cotidianos, originando movimentos intensos e
dinmicos, que se traduzem, muitas vezes, em impulsos bruscos e convulsivos e em projees
violentas do corpo inteiro, nas quais espasmos e esforos silo visveis.
tamentatlm - Marlha Graham. In ESPIE, 1988, p.02
-
Ao mesmo tempo em que M uma "bandeira poltica", expressa no e pelo corpo,
os processos de investigao, de pesquisa e de experimentao voltam-se para o prprio
corpo, para os movimentos cotidianos do corpo. H um aprofundamento nas possibilidades de
movimento deste corpo, um corpo que no foi treinado pelo bal ou pela dana moderna, mas
um corpo comum, que vai sendo observado, analisado, estudado, reestnitwado por mtodos
inventados pelos coregrafos e tambm por prticas estranhas a dana ocidentaI, como artes
marciais, yoga, prticas corporais teraputicas.
possvel acreditar que a dana ps-moderna rompe com o pressuposto de que a dana se faz modificando, transformando os movimentos cotidianos? possvel pensar que a dana ps-moderna aboliu o virtual, o espetacular, o 60 -usual da dana?
Nem tanto. Apesar de dizerem 'Wo ao espetculo, no ao virtuosismo, no h
magia e a iluso, n3o imagem de astm, no ao estilo, no ao erotismo, n8o a emoqo."
(Rainer apud Michel & Ginot, 1 995, p. 143) e de proclamarem que desejavam fazer danqa com tudo, menos com movimentos de dana, as investigaes conduziam e conduzem a
transformao dos movimentos cotidianos.
Trisha Brown, por exemplo, preocupou-se em estudar a aqo da fora de
gravidade sobre o corpo. Explorou movimentos elementares, como a rnmha~caminhada,
porm sobre suportes no-horizontais, o que permitiu-lhe examinar os efeitos do peso sobre o
corpo posicionado em condies gravitacionais diferentes das habituais: numa de suas
performances - Man Walking down bhe Side of a Building? de 1970 - um bailarino caminha
pela parede de um edificio. Realiza um movimento cotidiano - caminhar - porm em um
contexto completamente diferenciado do contexto usual, numa situao que provoca uma
readequao em sua postura e no modo de executar os movimentos. Remetendo-nos s notes
de tcnica e de tcnica extra-cotidianas trabalhadas at aqui, possivel entender que esta
-
criao proposta por Trisha Brown engendrou uma tcnica de movimento particular, destinada
a uma danqa singular.
plml - Trlsha Brown. In MicW & Ginot, 1995 p 245
Como sugerem Michel & Ginot (1995) , os coregrafos e dangarinos ps- modernos, a partir de seus processos de experimentao, criaram tcnicas de movimento
diferentes das existentes:
" Set e Reset (1983) [de Trisha Brown] sobre uma msica obstinada de Laurie Anderson, retoma a explorao do espao vertical, ocupado por telas flutuantes de Rauschenberg, que projetam imagens turbulentadestouradas do mundo de hoje. E o 'perodo vigoroso', segundo seus prprios termos, de uma corebgrafa que produz, aos poucos e lentamente, cada pea fazendo-a objeto de uma pesquisa autentica; deste modo, a intensidade dos jogos de quedas e recuperaes se encaminha para maior wulncia, os bailarinos projetados e interceptados em pleno v60 devem seu virtuosimo a uma