daseinanalyse boss

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Boss, M. & Condrau, G. (1997). Análise Existencial – Daseinsanalyse, Daseinsanalyse, Nos. 1, 2 e 4, pp. 3-23. Apresentação Reunimos, no presente volume, três trabalhos concernentes à Daseinsanalyse. São traduções de artigos que, embora não se conjuguem na tratação de um mesmo tema, têm em comum o fato de introduzirem, de maneira simples, num esboço inicial, temas vistos à luz da Daseinsanalyse e uma perspectiva histórica da mesma. O primeiro trabalho surgiu da colaboração entre Medard Boss e Gion Condrau, respectivamente presidente da Associação Daseinsanalítica de Psicoterapia e Psicossomática, sediados em Zurich. Aí são traçados as origens, fundamentos e horizontes na psicologia e psicopatologia da nova visão proposta pela Daseinsanalyse. Este texto foi primeiramente publicado em maio de 1975 pela Encyclopedie Medicien Chir, Paris. O segundo estudo versa sobre um tema de particular atualidade: comunidade e solidão. Esta monografia de Medard Boss foi especialmente preparada para uma conferência pronunciada durante o XXV RIG (Rencontres Internacionales de Genève). Segue-se um estudo elaborado por Sólon Spanoudis, responsável pela formação da A.B.A.T.E.D. e seu atual presidente. Este trabalho originalmente publicado em 1973, no livro “Medard Boss – Zum Siebzigsten Geburstag” de Gion Condrau, recoloca a questão de um problema que desafia a psicologia em nossos dias – a neurose do tédio.

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Page 1: Daseinanalyse Boss

Boss, M. & Condrau, G. (1997). Análise Existencial – Daseinsanalyse, Daseinsanalyse, Nos. 1, 2 e 4, pp. 3-23.

Apresentação

Reunimos, no presente volume, três trabalhos concernentes à Daseinsanalyse. São

traduções de artigos que, embora não se conjuguem na tratação de um mesmo tema, têm em

comum o fato de introduzirem, de maneira simples, num esboço inicial, temas vistos à luz da

Daseinsanalyse e uma perspectiva histórica da mesma.

O primeiro trabalho surgiu da colaboração entre Medard Boss e Gion Condrau,

respectivamente presidente da Associação Daseinsanalítica de Psicoterapia e Psicossomática,

sediados em Zurich. Aí são traçados as origens, fundamentos e horizontes na psicologia e

psicopatologia da nova visão proposta pela Daseinsanalyse. Este texto foi primeiramente

publicado em maio de 1975 pela Encyclopedie Medicien Chir, Paris. O segundo estudo versa

sobre um tema de particular atualidade: comunidade e solidão. Esta monografia de Medard

Boss foi especialmente preparada para uma conferência pronunciada durante o XXV RIG

(Rencontres Internacionales de Genève). Segue-se um estudo elaborado por Sólon Spanoudis,

responsável pela formação da A.B.A.T.E.D. e seu atual presidente. Este trabalho

originalmente publicado em 1973, no livro “Medard Boss – Zum Siebzigsten Geburstag” de

Gion Condrau, recoloca a questão de um problema que desafia a psicologia em nossos dias –

a neurose do tédio.

A publicação destes estudos, tal como se apresentam, surge sobretudo da

preocupação em difundir e tornar mais acessível a aproximação da Daseinanalyse dificultada,

quase sempre, pelo problema da língua. Neste sentido, tivemos a colaboração de Franklin

Winston Goldgrub e de Isabel da Silva Kahn no cuidado com a tradução dos textos.

Ressaltamos também o incentivo de Medard Boss, a quem agradecemos pela

assessoria na preparação e publicação desta apostila.

A.B.A.T.E.D

Setembro de 1976

Page 2: Daseinanalyse Boss

ANÁLISE EXISTENCIAL – DASEINANALYSE

COMO A DASEINANALYSE ENTROU NA PSIQUIATRIA

O termo “Daseinsanalyse” foi, num primeiro momento, traduzido por “Analyse

Existentielle” em francês, e “Existencial Analysis” em inglês, como o testemunham manuais e

dicionários. Mas esta denominação não tardou a abranger as mais divergentes opiniões da

existência humana e a reagrupar toda uma gama de métodos terapêuticos que,

frequentemente, se encontram em flagrante oposição. Esses conceitos adquiriram, assim, uma

tal extensão que acabaram por perder quase todo o significado. Tentando recuperá-lo, tornou-

se hábito manter o alemão Daseinsanalyse, mesmo em língua estrangeira. Essa medida de

precaução não trouxe, entretanto, a clareza necessária. Um grande número de conceitos

psicológicos e psiquiátricos, assim como inúmeros métodos terapêuticos, continuam se

qualificando como daseinsanalíticos, apesar de terem muito poucos pontos em comum com a

designação original e de, algumas vezes, não se basearem absolutamente na compreensão de

homem que, originalmente, deu seu nome à daseinsanalyse. Para eliminar qualquer

possibilidade de erro, é preferível fazer aqui um rápido retrospecto histórico.

As designações de “análise do Da-sein” e “Daseubs Analyses” apareceram pela

primeira vez numa obra que marcou época – “SER E TEMPO”, publicado em 1927 pelo

filósofo alemão Martin Heidegger. Esses dois termos tinham como único objetivo denominar

a explicitação filosófica das “existenciálias”, isto é, das características ontológicas

constituintes do existir humano. Heidegger descreveu como “existenciálias” a abertura

original ao mundo da “natureza humana”, a temporalidade do homem, sua espacialidade

original, sua afinação ou seu temperamento, seu estar-com-o-outro, sua corporeidade 1, seu

caráter mortal. Heidegger reuniu a análise de cada uma dessas “existenciálias” sob a

denominação de Daseinanalytik. Esta foi e permanece sendo uma tentativa puramente

filosófica, isto é, destinada a determinar a natureza fundamental do ser-aí-humano (do Dasein)

de um modo estritamente concernente a essa última.

Além disso, o verdadeiro intuito de Heidegger não foi nunca o de esclarecer

simplesmente a essência do homem. Visou na realidade, desde o início, esclarecer o sentido

do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que aparecem em “Ser e Tempo”

1- Palavra criada para traduzir o alemão Leibhaftihkeit, designando a essência específica do corpo do homem vivo (Leib) oposta àquela de um corpo inanimado (Karper)

Page 3: Daseinanalyse Boss

devem ser simplesmente consideradas como uma primeira etapa no caminho de seu

pensamento. “Ser e Tempo” nunca teve a pretensão de oferecer de imediato uma antropologia

completa.

Mas negligenciando este fato, Ludwig Binswanger não tardou a descobrir – e nisto

ele foi o primeiro – o quanto a concepção heideggeriana da essência do existir humano era

capital para a psiquiatria, à qual serviria de nova base, e como as características de ser do

homem expostas em “Ser e Tempo” se revestiam da maior importância para a medicina em

seu conjunto e para a psiquiatria em particular. À conselho do psiquiatra suíço Jakob Wirsch,

Ludwig Binswanger utilizou em seguida o conceito de daseinsanalyse que era originalmente

de ordem puramente filosófica e ontológica, num sentido completamente diferente, ôntico.

Desde 1941, Binswanger considerou que a denominação “daseinsanalyse psiquiátrica” trazia

um novo método de investigação que deveria permitir-lhe compreender e descrever, sob um

ângulo fenomenológico, os sintomas e as síndromes concretas, distintos e diretamente

perceptíveis surgidos da psicopatologia. Desviava-se assim, expressamente, do método de

pensamento científico que prevalecia, até então, no domínio da psiquiatria e da psicanálise.

Essas duas disciplinas estabeleceram de fato – como Freud comprazia-se em dizer, de modo

um tanto chocante em nome de todos os cientistas – como princípio absoluto, o interesse

menor pelos fenômenos diretamente perceptíveis, do que pelas forças e tendências supostas e

“escondidas” atrás desses fenômenos.

Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se, então, a um caminho

fenomenológico; julgando não haver nada a procurar atrás dos fenômenos, esforçou-se em

esclarecer, de modo cada vez diferenciado, os significados e as relações que se mostravam

imediatamente a partir deles mesmos.

Certamente, bem antes de tomar conhecimento do pensamento “daseinsanalítico” de

Heidegger, Binswanger tinha percebido os limites do procedimento que consistia em aplicar,

à psiquiatria, o método de pensamento próprio das ciências naturais. Em particular os

trabalhos do psiquiatra parisiense Eugene Minkowski, influenciado por Bergson, tinham

despertado sua atenção. Entretanto, foi necessário, para Binswanger, a forte impulsão do

pensamento heideggeriano para demonstrar, com uma precisão espantosa, até que ponto a

psiquiatria que prevalecia até então, estava carente de bases sólidas. Ele a recriminava por ter

tomado emprestado, inconsiderada e arbitrariamente, a totalidade de seus conceitos

fundamentais das disciplinas científicas mais diversas, entre as quais a neuropsicologia, a

biologia, antropologia ou simplesmente da linguagem falada cotidianamente. Demonstrou,

passo a passo, esse mecanismo, indicando a que nível e como o desenrolar do pensamento das

Page 4: Daseinanalyse Boss

ciências naturais era insuficiente para estudar o comportamento humano e passava

precisamente ao lado do caráter específico da existência humana. Apoiava-se, assim,

essencialmente na “destruição”, empreendida por Heidegger, da idéia fundamental do

matemático e filósofo Descartes, que no século XVII tinha tão desastradamente dividido o

“mundo do homem” em duas partes: a res-cogitans e a res-extensa.

Binswanger descobriu que essa divisão do mundo em objeto e sujeito, estabelecida

por Descartes, provocava danos no domínio da psiquiatria, tendo mesmo chegado a qualificá-

la de verdadeiro câncer dessa ciência. Aquele que nela acreditava não era, na realidade,

somente incapaz de imaginar que um espírito humano assim concebido – isto é,

compreendendo uma res-cogitans existindo primordialmente em si – pudesse se dar conta de

que ao seu lado existia uma coisa tal como o mundo exterior, como ainda menos, que um tal

espírito pudesse sair dele mesmo para descobrir a existência de tudo que compõe esse mundo

exterior e atingí-lo. Também Binswanger desejava suprimir essa divisão sujeito-objeto do

domínio do pensamento psiquiátrico. Empenhou-se nisto, fazendo uma descrição

daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Mas enganou-se na interpretação de um

ponto capital do pensamento heideggeriano. Enganou-se ao sentir-se obrigado a acrescentar

ao conceito heideggeriano de “zelar” 2, o de “amor”. Essa preocupação indica, por si só, que o

termo “zelar”, empregado por Heidegger num sentido estreitamente ontológico, ou seja, para

designar a constituição fundamental do homem, foi tomado em seu significado puramente

ôntico. Não compreendendo o sentido ontológico que Heidegger deu a esse conceito,

Binswanger não compreendeu que não se tratava absolutamente de um comportamento muito

preciso, ôntico, concreto ou, dito de outra forma, de uma relação “zelosa”, preocupada com

este ou aquele dado do mundo. Em “Ser e Tempo” de Heidegger, como em todas suas obras

posteriores, a palavra “zelar” é apenas uma primeira referência ao caráter constituinte

fundamental (ontológico) do existir humano. Isto simplesmente designa que este existir é um

“já-no-mundo-ser” que se encontra sempre, numa relação de entendimento com o que vem ao

seu encontro. É por isso que o termo “zelar”, no sentindo que o entende Heidegger, não

somente não exclui as diversas formas de relações afetivas, como as inclui de imediato. Do

mesmo modo, todas as possibilidades de comportamento concreto, ôntico, do homem

repousam, de fato, sobre essa característica fundamental que é o modo de ser sempre e

primordialmente em relação a alguma coisa.

Finalmente Binswanger descobriu o erro capital que havia cometido em sua

interpretação do pensamento heideggeriano e teve a coragem de reconhecê-lo publicamente.

2 - N.T. – Do alemão “sorge”, que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc.

Page 5: Daseinanalyse Boss

Coerente consigo mesmo, parou logo de qualificar suas pesquisas de “daseinsanalíticas”.

Voltou, então, à posição adotada por Husserl, o mestre de Heidegger, que não tinha ainda

chegado no ponto de ultrapassar a noção de consciência subjetiva existente primordialmente

em si, e penetrando no sentido do fenômeno do “mundo” heideggeriano, Binswanger deu

mesmo um outro nome à nova orientação de sua pesquisa, intitulando-a de “fenomenologia

antropológica”.

Estimulado pelos trabalhos de Binswanger e descontente também, com a obscuridade

dos fundamentos sobre os quais se apoiava a psiquiatria tradicional, o psiquiatra e

psicoterapeuta Medard Boss voltou-se também para o pensamento de Martin Heidegger.

Certamente, existia, desde o início, uma diferença importante entre suas motivações.

Enquanto Binswanger foi antes de tudo, levado a penetrar no pensamento desse filósofo por

um “impulso puramente científico” e não, como Freud, por um interesse de ordem

terapêutica, foram, sobretudo, preocupações terapêuticas que determinaram a escolha de Boss.

Esperava em primeiro lugar, que as recentes considerações filosóficas de Heidegger lhe

fossem úteis no domínio da terapêutica.

Page 6: Daseinanalyse Boss

A CONSTITUIÇÃO FUNDAMENTAL DO HOMEM À LUZ DA

DASEINSANALYSE

Graças ao ensinamento pessoal de Heidegger que Boss e seus alunos receberam, a

partir de 1947, numa série de cursos organizados várias vezes por ano, - os “seminários de

Zollikon”, - a psicopatologia se enriqueceu com um pensamento fundamental novo que não só

se esforçava em procurar uma solução para a distinção cartesiana sujeito-objeto, como nem

mesmo permitia que tal questão se colocasse.

Este pensamento serviu como base para a elaboração de novos caminhos para uma

nova aproximação da medicina e da psicologia. É por isso que a “Daseinsanalyse” não deve

ser considerada como mais uma “escola” que simplesmente se agrupa a todas as que já

existem. É, antes de tudo e primordialmente, uma nova abordagem do conjunto de fenômenos

chamados normais e patológicos do existir humano. Mas esta abordagem não é mais que um

caminho, um meio de acesso. Não leva a um tesouro de conclusões científicas.

O caminho ou a abordagem daseinsanalítica é de ordem fenomenológica. Em outros

termos, tem essencialmente como intuito ver sem deformações aquilo que se mostra a nós de

si-mesmo. Isto parece tratar-se da coisa mais simples, mas, para nós é hoje a mais difícil, uma

vez que perdemos, há muito tempo, a possibilidade de ver a essência das coisas sob as

exigências das inúmeras explicações científicas que nos foram dadas. Entretanto, tenhamos

agora a audácia de apreendermos essa nova forma de ver. Observa-se primeiramente que o

homem não se apresenta no mundo como um corpo inanimado. Um corpo inanimado está

sempre presente num lugar determinado no interior de outro dado inanimado. Também todo

corpo inanimado ocupa uma posição precisa de espaço, determinada por seu volume e sua

superfície. Além disso, esse tipo de corpo está separado dos outros corpos inanimados por

uma certa distância.

Assim, por exemplo, roupas guardadas num armário não sabem absolutamente que

estão nesse lugar e o armário não tem a mínima idéia de que contém roupas. Completamente

diferente, é o ser-no-mundo do homem. O existir não cessa nos limites da pele do homem e

nela não está contido. Senão, nunca uma pessoa olhando pela janela de seu quarto seria capaz

de ver a casa situada à sua frente como uma casa. O homem, aliás, não é para ele somente um

objeto isolado, por assim dizer, suspenso no vazio. Ao primeiro olhar, já lhe é dado ver a casa

como uma casa, que lhe fala por uma série de significados e de relações específicas. A casa

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enquanto tal indica, por exemplo, diretamente para a aquele que a olha, que ela serve de

habitação para os homens. E o leva, em seguida, ao solo que a sustenta. Por intermédio de seu

telhado, se revela como uma proteção tanto do calor solar quanto das tempestades. Essas são

algumas das inumeráveis referências significativas que pertencem, de início, a cada casa. Tais

referências não são feitas posteriormente pelo homem, mas, elas mesmas, pertencem

primordialmente à própria casa.

Mas como essa possibilidade de ver, tanto no sentido “óptico” como no sentido

“figurado”, seria possível se o que se encontra entre a pessoa expectadora e a casa da frente

não fosse aberto, “transparente”? E, além disso, seria impossível para essa pessoa ver uma

casa se ela mesma, enquanto expectadora, não fosse em sua essência aberta, abertura que

consiste em um poder ver a presença que a ela se oferece e em um poder compreender os

diversos significados que chegam a partir dos lugares onde está, o que vem ao seu encontro,

na abertura espacial e temporal de seu mundo. O homem pode perceber uma casa enquanto a

casa de frente, unicamente porque o existir humano subentende, ocupa, ou, melhor ainda, é de

imediato, uma abertura transparente e estendida para o que se encontra no mundo, do mais

próximo ao mais longínquo, tanto no sentido espacial quanto temporal. Podemos também

comparar a essência da existência humana a uma clareira que consiste em um poder ver o que

vem a seu encontro. Assim, o existir humano é sempre conforme sua natureza mais profunda,

um “ek-stare” no sentido próprio do termo e pode enquanto abertura iluminadora estar tanto

aqui como ali e se encontrar numa livre relação com aquilo que se oferece a ele na abertura

iluminadora de seu mundo. Já que em sua essência o homem tem não somente a possibilidade

de escolher ele mesmo que tipo de relação quer estabelecer com os diferentes entes que se

apresentam a ele em meio à multiplicidade de dados do mundo, mas também porque lhe é

necessário, a todo momento, tomar pessoalmente tais decisões, o ser humano - e só ele - deve

ser qualificado de ser-si-mesmo.

Esta possibilidade de existir no modo de ser-si-mesmo, não somente não exclui, mas

na realidade inclui, que todo homem se encontra primordialmente e sempre,

fundamentalmente co-existindo com outras pessoas. Nunca o homem se encontrou

primordialmente como um sujeito individual, subsistindo apenas para si mesmo, sozinho, e

que apenas mais tarde teria sido levado a entrar em contato com outras pessoas. Os homens

estão primordialmente, e sempre, co-existindo perto das mesmas coisas de um mesmo mundo;

contribuem sempre primariamente em comum, embora cada um a seu modo, para manter

aberto este mundo “descoberto”. É isto que constitui o caráter fundamental de ser-com-o-

Page 8: Daseinanalyse Boss

outro primordial e é sobre isto que se fundam os modos mais diversos de desdobramento do

ser-com-o-outro e notadamente a possibilidade de uma ciência como a sociologia.

Assim, o existir humano também se apresenta primordialmente e sempre, como ser-

em-relação, seja com alguma coisa que o toca de perto, seja com outra que o toca de longe e o

deixa indiferente. Esse modo de ser primordial e sempre situado e orientado numa relação de

proximidade ou de afastamento face a face com o que se apresenta no mundo, caracteriza a

natureza da espacialidade original do homem. E, ao mesmo tempo, o existir humano vive o

tempo que lhe é dado situando-se de alguma maneira em relação ao que aparece, e

correspondendo-lhe seja no modo da percepção do pensamento ou da ação. É assim que ela

vive no tempo, ou dito de outra forma, que o existir tem um fim e se completa ao término da

vida terrena. Podemos dizer que o homem tem uma boa morte quando ele soube aceitar o

destino de seu ser primordial e foi capaz de dispor, de modo adequado, de sua qualidade de

abertura iluminante, na qual tudo o que “há para ser” pode aparecer. Por outro lado, tem uma

morte má se não foi capaz de aceitar o destino de seu ser primordial.

É, contudo, precisamente quando o homem morre que fica evidenciado algo também

característico do ser humano. De repente, aquilo que justamente constituía a corporeidade do

homem vivo mudou de característica de ser e tornou-se um corpo inanimado, no espaço físico

mensurável. Por muito tempo, foi freqüente a medicina querer compreender o homem sadio

ou doente a partir da redução de seu existir a cadáver. Mas isto oferecia uma perspectiva de

pesquisa unicamente para o estudo de anatomia. Ora, enquanto um homem ainda existe, sua

corporeidade é de uma natureza completamente diferente que não pode ser comparada

somente ao cadáver. Qualquer corpo vivo não pode, portanto, ser compreendido, conforme

sua natureza, a não ser que seja considerado como a corporeidade da relação com aquilo que

se desvela ao homem. Se, por exemplo, um sapateiro coloca sola num sapato, sua mão direita

não constitui uma parte objetivada de seu corpo, mas é primordialmente integrante do todo

relacional da tarefa em que ele está empenhado. Só se pode dizer de seu corpo que ele é, no

existir humano, aquilo que pode ser e percebido também pelos sentidos e por isso mesmo

medido e calculado até certo ponto como todo objeto inanimado. Entretanto, a verdadeira

essência da corporeidade escapa sempre e imediatamente no momento exato em que se faz

uso da possibilidade de vê-la como qualquer objeto inanimado e mensurável.

Page 9: Daseinanalyse Boss

AS DESCOBERTAS DASEINSANALÍTICAS, BASE TEÓRICA DE UMA NOVA

PSIQUIATRIA

Estas são as grandes linhas que caracterizam a constituição fundamental de ser-aí

humano, tal qual Heidegger nos ensinou a ver e que cada um de nós é capaz de perceber, a

cada momento, se assim o desejar. Essa concepção é de uma importância capital para a

medicina em geral e para a psiquiatria em particular. De fato, qualquer modo de ser-doente só

pode ser compreendido a partir do como de ser-sadio e da constituição fundamental do

homem normal, não perturbado, pois todo modo de ser-doente representa um aspecto

privativo de determinado modo de ser-são. Ora, a essência fundamental do homem sadio

caracteriza-se precisamente pelo seu poder-dispor livremente do conjunto das possibilidades

de relação que lhe foi dado manter com o que se lhe apresenta na abertura livre de seu mundo.

Primordialmente o modo de ser-doente é também holista. Não pode existir a não ser que haja

limitação desta liberdade própria ao homem. É por isso que a questão que do ponto de vista

científico convém ser colocada em relação a cada doente, somente pode se apresentar a

princípio sob estes três aspectos: qual é a possibilidade de relação perturbada? Qual é a esfera

daquilo que vem ao nosso encontro que está visada nessa relação, e enfim, como esta

perturbação relacional se manifesta? Tomando esta interrogação fundamental como ponto de

partida, somos levados a elaborar uma patologia geral mais de acordo.

O modo de ser-doente pode, a grosso modo, subdividir-se em:

1) Ser-doente caracterizado por uma perturbação evidente da corporeidade do

existir humano;

2) Ser-doente caracterizado por uma perturbação pronunciada da espacialidade

de seu ser-no-mundo;

3) Modos do ser-doente constituindo privações importantes na realização da

afinação própria à essência da pessoa.

4) Modos de ser-doente constituindo privações importantes na realização do

ser-aberto e da liberdade.

Page 10: Daseinanalyse Boss

É intencionalmente que nessa classificação falamos de perturbação evidente,

pronunciada ou importante impedindo a realização das diferentes características de ser do

existir humano. Enquanto traços fundamentais do ser-aí, formam todos juntos uma estrutura

total e indivisível. Se um entre eles é perturbado em sua realização, todos os outros não

deixam de sofrer, igualmente, as conseqüências.

A primeira categoria citada reúne, por exemplo, problemas que as classificações da

patologia tradicional colocam muito longe uns dos outros, como uma fratura da perna, uma

paralisia histérica e uma demência pós-traumática devida a uma lesão no cérebro causada por

uma pedra que caiu. Se se considera uma fratura e uma lesão cerebral simplesmente como

uma perturbação de um órgão isolado, chega-se apenas a uma compreensão extremamente

reduzida da doença. Certamente isto pode ser suficiente num plano prático, por exemplo, no

tratamento de uma fratura, na medida em que o acidentado esteja por outro lado sadio e não

apresente propensão para sofrer acidentes. Entretanto, qualquer modo da corporeidade faz

parte a tal ponto e tão diretamente do ser-no-mundo do homem, isto é, de sua existência, que

qualquer redução toca sempre e imediatamente este ser-no-mundo e por isso mesmo, todas as

possibilidades de relação com o mundo. Assim, uma fratura da perna constitui

primordialmente uma redução da possibilidade existencial de se aproximar ou de se afastar

daquilo que se oferece a nosso encontro no mundo, independentemente, aliás, do fato dos

sofrimentos provocados por uma fratura reduzirem consideravelmente a abertura para o

mundo de um “da-sein”, não lhe deixando mais do que um pequeno número de interesse. A

queda de uma pedra que é, no outro exemplo citado, a origem de uma demência traumática,

não prejudicou somente um órgão isolado, mas o que se pode chamar “o cerebral” de uma

existência. Tendo caído, esta pedra intervém diretamente na realização da possibilidade de ser

do homem no espaço em relação ao que se oferecia, se oferece e se oferecerá a ele nesse

espaço. Para compreender uma paralisia histérica, a daseinsanalyse não precisa mais recorrer

à invenção de um “desejo inconsciente” – ou de um conflito provocado por pulsões

inconscientes – cuja energia, seguindo a teoria da conversão psicanalítica, teria sido

transferida aos músculos voluntários. Sem que seja necessário recorrer a hipóteses

metapsicológicas, qualquer paralisia histérica pode ser diretamente compreendida como uma

perturbação que afeta a possibilidade de realizar, na corporeidade, uma certa relação com o

que se apresenta no mundo, isto é, como uma perturbação que consiste em interdições

estranhas à pessoa.

Hoje, mais numerosos que as diversas forma de histeria são os modos de ser-doente

que se caracterizam por uma redução na realização das existenciálias, que são a afinação

Page 11: Daseinanalyse Boss

(“Gestimmtheit”) e o ser-aberto. O quadro clássico da loucura maníaco-depressiva entra

naturalmente nesta categoria. O caminho daseinsanalítico permite, como nenhum outro o

havia feito até o presente, compreender igualmente a constituição fundamental das pessoas

atingidas por essa doença. Esta constituição fundamental foi objeto de uma descrição

detalhada por M. Boss em seu livro “Fundamentos da medicina e da psicologia”. Mas

atualmente, na prática cotidiana, muito mais numerosas do que esses casos de loucura

circular, são as perturbações da afinação que se pode considerar como a forma da neurose

mais representativa de nossa época. Se na época de Charcot e de Freud e até a Primeira

Guerra Mundial inclusive os grandes fenômenos histéricos predominavam entre as neuroses,

foram em seguida as neuroses orgânicas que predominaram. Hoje encontra-se, cada vez mais,

pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do tédio de sua vida. Como essas

pessoas não apresentam nem sintomas psíquicos nem distúrbios psicossomáticos evidentes,

frequentemente nem elas nem seus médicos sabem o que fazer. Na verdade, não se trata de

uma doença no sentido comum do termo. Mesmo os padres e os pastores estão desamparados

diante desse mal. Frequentemente esses doentes tentam durante muito tempo mascarar seu

desespero se entorpecendo, seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas drogas. Mas

definitivamente, esta contínua tapeação não atinge sua finalidade e eles mostram então, de

modo evidente, como nessas distimias depressivas tão freqüentes em nossos dias se revelam o

tédio e o absurdo de sua vida. Eles revelam brutalmente qual distúrbio da abertura para o

mundo do ser-aí é em verdade o tédio. Certamente o homem pode sempre estar aberto para o

que vem a seu encontro enquanto um ente, mas somente de um modo tal que tudo, coisas e

seres, só podem mostrar-se a ele como igualmente desprovidos de mensagem. As pessoas que

sofrem do tédio permanecem fundamentalmente indiferentes a tudo. O que se oferece para

elas retira-se imediatamente e, se não desaparece totalmente, pelo menos se afasta a ponto de

não mais lhes tocar. Seu tédio não se limita a certas coisas. De fato, se entediam

permanentemente; sentem o tempo comprido. 3 Isto quer dizer que no tédio é principalmente a

temporalidade que é afetada. Não existe mais nem verdadeiro futuro, nem passado rico em

experiência, nem presente cheio de sentido para aqueles que se entediam. Essas 3 dimensões

ou momentos temporais “ek-staticos” tornam-se relações que não lhe dizem mais nada.

Todos os modos de ser-doente expostos até agora, apresentam uma perturbação da

realização do caráter fundamental do ser-humano que é seu ser-livremente-aberto-para-o-

mundo que, ao mesmo tempo, lhe revela o mundo. Mas são os esquizofrênicos que sofrem

mais direta e fortemente essa perturbação. Pode-se dizer que a esquizofrenia é o modo de ser-

3- Etimologicamente a palavra alemã Langweile, tédio, se decompõe em Lang: comprido e Weile: o tempo, a duração

Page 12: Daseinanalyse Boss

doente mais humano e ao mesmo tempo mais desumano. É por isso que diz respeito não

somente ao psiquiatra, mas também ao conjunto dos médicos e mais geralmente ainda a todos

os homens. Justamente porque aqui se manifesta abertamente uma grave perturbação do

caráter fundamental do ser humano, isto é, em seu ser-aberto, esta doença mais do que

qualquer outra coisa lança uma luz sobre a natureza mais profunda de nosso existir e por isso

mesmo sobre sua fragilidade.

A esquizofrenia pode ser considerada como uma perturbação específica do “poder-

existir-o-ser-aberto” conforme a essência do ser-aí. A particularidade dessa perturbação reside

numa dupla incapacidade. De um lado, os esquizofrênicos não estão mais aptos a se engajar

por inteiro no que se mostra na abertura de seu existir, ao contrário de seus semelhantes que

estão sadios e em vigília. Consequentemente, não podem também responder por um

engajamento total com o que se apresenta, isto é, em conformidade com os significados

presentes para os outros. Por outro lado, não podem preservar intacto um ser-si-mesmo capaz

de manter uma relação livre com o que aparece e deixar as coisas e os seres percebidos no

lugar que lhes é devido num dado momento, no mundo comum a todos. O esquizofrênico

perde sua liberdade existencial no momento em que, como ser-aí, enquanto possibilidade de

responder aos numerosos significados e às diversas solicitações do que aparece em seu

mundo, se sobrecarrega a tal ponto que ele não é mais capaz de responder ao que aparece

como o fazem todas as pessoas ao seu redor. Ele não é mais capaz de resistir à dissolução de

seu ser na esfera de seu mundo tornado vasto demais. Compreende-se, portanto, facilmente,

porque a esquizofrenia é desconhecida nos animais e tão rara nas crianças, mas que em

compensação aparece muito frequentemente no momento da puberdade e também nas

mulheres depois da primeira ou da segunda maternidade. Nessas duas épocas importantes da

vida, o existir humano, enquanto possibilidade de ver abre-se de fato para novas exigências

muito fortes em relação ao outro: para um deixar-se aproximar, como no amor entre adultos

do sexo oposto, ou ainda para um devotamento total como no amor materno. A isto se

acrescentam ainda muitas outras solicitações da parte dos seres e das coisas às quais a

existência do homem começa a se abrir a partir da puberdade, solicitações que requerem, por

exemplo, uma atitude voltada para o futuro, assumindo a responsabilidade e exigindo o

sentido do planejamento e do progresso.

Isto explica porque ninguém pode ser considerado esquizofrênico de modo geral e

porque a esquizofrenia não pode ser considerada como uma doença em si mesma. Isolada em

si, ela somente pode ser como abstração dos cientistas. É, portanto, mais conveniente em cada

caso a seguinte pergunta: Esquizofrênico diante de qual situação relacional acima de suas

Page 13: Daseinanalyse Boss

forças? Por exemplo, uma mulher que enquanto esposa e mãe de três crianças apresenta cada

vez mais distúrbios de comportamento esquizofrênico pode ter todos os sintomas específicos

da esquizofrenia, inclusive um autismo pronunciado, eliminados rapidamente e para sempre

no momento em que ela for liberada desta situação existencial que exige demais dela, tendo

apenas que responder às exigências que a vida coloca pra uma mulher solteira exercendo sua

profissão. Mesmo nos doentes internados muito atingidos, sofrendo alucinações corporais e

idéias delirantes, toda manifestação esquizofrênica pode cessar de um dia pra o outro se o

psicoterapeuta conseguir obter de seu doente que a criancinha abandonada que ele no fundo

permaneceu se entregue em total confiança e se ponha aos seus cuidados numa espécie de

relação criança-pais, à qual ele é ainda capaz de responder enquanto ser-si-mesmo inteiro.

Essas constatações permitem definir o modo de ser-doente esquizofrênico como privação

extrema que consiste em não poder-ser-si-mesmo de modo livre e autônomo, isto é, não mais

possuir senão numa forma reduzida esse traço distintivo do existir humano. Mas isto quer

dizer, ao mesmo tempo, que a esquizofrenia só pode ser definida negativamente. Não existe

nos esquizofrênicos um único modo de comportamento em relação ao que aparece em seu

mundo que não se encontre igualmente nas pessoas sadias. O caráter patológico desses

doentes reside no fato de lhes faltar uma possibilidade de existir em relação aos seres sãos.

Falta-lhes acentuadamente a capacidade de assumir as possibilidades constitutivas de seu ser-

aí para tornar-se um ser-si-mesmo livre e autônomo, cuja abertura para o mundo possa se

manter firme face a tudo que a eles se oferece. São na realidade de modos diversos, presa de

seus semelhantes assim como das coisas inanimadas que os rodeiam. Seu ser-aí é de algum

modo aspirado pelos outros entes nos quais submerge. Assim, pode-se dizer que existem em

grande parte fora deles mesmos. São tão pouco capazes de assumir as suas possibilidades num

ser-si-mesmo autônomo que somente podem sentir o que se mostra a eles como algo estranho

e imposto de fora. É por isso que tão frequentemente têm a impressão de que o que a eles se

oferece é ditado por “vozes” exteriores e que tudo o que fazem e pensam é feito e pensado por

outras pessoas.

Ainda mais do que nos esquizofrênicos, parece haver uma perturbação da liberdade

existencial nos neuróticos obsessivos. De fato, o que existe de mais oposto à liberdade do que

a obsessão? Na realidade, entretanto, a obsessão nunca é o contrário da liberdade. Toda

obsessão é sempre uma forma particular da liberdade, ainda que muito deficiente. Também só

podemos falar de obsessão em relação aos seres que são, por natureza, dotados de liberdade.

Uma pedra, por exemplo, que é uma coisa desprovida de liberdade e de abertura, não poderá

nunca apresentar um comportamento obsessivo mesmo que, conforme as leis da natureza,

caia, sempre, igualmente de cima pra baixo.

Page 14: Daseinanalyse Boss

As manifestações patológicas da neurose obsessiva e o caráter obsessivo fazem parte

de um comportamento de defesa semelhante à “atitude de afastamento” já mencionada a

propósito dos esquizóides e dos autistas. Nos neuróticos obsessivos igualmente, a liberdade e

a abertura do existir são atingidos: essas pessoas de fato só podem ocupar-se com as coisas

em relações distantes que consistem em reflexões controladas e objetivas sobre aquilo que

percebem. Essa distância controlada é, sobretudo, marcante em relação às coisas que lhes

aparecem como sujas, em decomposição ou patogênicas. Os neuróticos obsessivos são

forçados a se manter rigorosamente à distância dessas coisas e delas se proteger, porque seu

próprio ser-si-mesmo está ameaçado de soçobrar naquilo que eles julgam indigno do homem.

Entretanto, nos neuróticos obsessivos, a realização do ser-aberto e do ser-livre é

atingida da mesma maneira que nos esquizofrênicos. Os neuróticos obsessivos jamais são

completamente absorvidos pelo percebido e não se perdem, enquanto ser-humano, quase que

totalmente nele.

Page 15: Daseinanalyse Boss

O ALCANCE TERAPÊUTICO DA DASEINSANALYSE

A abordagem daseinsanalítica da constituição fundamental do ser-humano não se

limita a permitir uma compreensão dos diferentes modos de ser-doente completamente nova e

mais própria ao homem. É igualmente importante na prática terapêutica. Permite

notavelmente a aplicação terapêutica de uma nova compreensão dos sonhos, assim como uma

concepção completamente diferente daquilo que se chamou, até agora, nas escolas freudianas

e junguianas, de “transferência” entre o paciente e o terapeuta. Menos palpáveis, mas não

menos essenciais, na prática terapêutica, são as modificações que se interpuseram no clima da

análise. Estas, fundamentam-se, sobretudo, no respeito incondicional ao caráter próprio dos

fenômenos do existir humano que se mostram, no aceitar e tomar a sério aquilo que são

enquanto tais. Essa nova atitude do terapeuta contrasta radicalmente com a violação feita aos

fenômenos pelo preconceito da psicanálise, segundo a qual a realidade verdadeira dos

comportamentos consistiria em “pulsões”.

É evidente que uma compreensão daseinsanalítica da constituição fundamental do

existir humano não tem como única aplicação o tratamento de indivíduos doentes, mas abre

igualmente o caminho para uma medicina preventiva e para uma higiene mental significativas

para toda a sociedade. De fato, faz ressaltar nitidamente as limitações patogênicas impostas à

humanidade inteira pelo espírito tecnológico que reina hoje, isto é, a apreciação matemática e

o aumento crescente da produção. Não é que a daseinsanalyse considere que se deva eliminar

a técnica e as ciências naturais que estão na base. Isto levaria apenas a condenar um número

incalculável de pessoas a morrer de fome. Mas é urgente dar aos homens de hoje a noção de

uma relação consideravelmente mais livre com a técnica, pondo fim a sua supremacia.

Page 16: Daseinanalyse Boss

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PESQUISA E DA TERAPÊUTICA

DASEINSANALÍTICA

O afastamento cada vez maior que separa a psicanálise ortodoxa, fundamentada na

metapsicologia filosófica de Freud, e a daseinsanalyse que, por sua vez, se apóia com uma

determinação crescente sobre as concepções filosóficas da Daseinsanalytik, tornou inevitável

uma institucionalização do pensamento daseinsanalítico, quer seja no plano da pesquisa ou

dos métodos terapêuticos. Primeiramente, no outono de 1971, houve a fundação da

“Sociedade Suíça de Daseinsalyse”. Em 1973, foi criada a “Associação Internacional de

Dasinsanalyse”. Essa já compreende um certo número de organizações mais ou menos

rigorosamente institucionalizadas, estando localizadas em: Boston (Estados Unidos), Tel-

Aviv (Israel), Buenos Aires (Argentina), Mendonça (Argentina) e São Paulo (Brasil). Em

1971 houve a criação do “Instituto Daseinsanalítico de Psicoterapia e Psicossomática,

Fundação Médard-Boss”, cujo diretor atual é o professor Gion Condrau, doutor em medicina

e em filosofia. O nome desse instituto pode parecer paradoxal à primeira vista. Reúne

conceitos tão antigos como ambíguos, de “psique” e “psíquico”. Esses foram revistos na

Daseinsanalytik, pelo esclarecimento dos termos “ser-aí”, “existência” e “ser-no-mundo”.

Entretanto, aquele nome foi escolhido em consideração ao grande público, cujas concepções

sobre a essência do homem não devem ser transformadas tão brutalmente.

O Instituto Daseinsanalítico dedica-se primeiramente à formação de futuros

terapeutas “daseinsanalíticos”. Esta compreende a análise didática até o seu final, isto é, até o

momento em que é considerada bem sucedida. Além disso, essa formação é completada por

controles terapêuticos regulares e enfim, por conferências, seminários e sessões organizadas

pelo Instituto. O programa de estudos tem a duração mínima de quatro anos. Além do ensino

prático, é dada uma introdução teórica à psicoterapia, à psicossomática, à sociologia e à

filosofia.