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Descolonizando o Teatro Negro: Reflexões a partir da performance Preta-à-Porter do coletivo NEGA enquanto micropolítica urbana em Florianópolis. Aline Dias dos Santos 1 Palavras-Chave: Teatro Negro, Gênero,Decolonialidade, Movimento Negro, Feminismos Negros. Nos últimos anos nota-se em diversas partes do Brasil que espetáculos liderados por artistas negros têm tido suas salas lotadas,avançando em visibilidade, com mais peças em festivais, mostras e na programação regular de teatros. Em consonância com o cenário nacional, em Santa Catarina o coletivo NEGA, atualmente formado por mulheres negras tem sido protagonista através do teatro, no debate sobre o racismo projetado no corpo das mulheres negras, e está ampliando o debate sobre o tema no interior do estado de maneira rizomática. Pretende-se aqui responder de que forma a postura cênica do coletivo NEGA se coloca como uma performance decolonial. Dentre as diversas apresentações do coletivo, a performance Prêt-à-Porter se destaca, assim, o artigo apresenta uma análise desta performance teatral, compreendendo que quando as teorias viajam pelo corpo potencializam saberes causando fissuras em diversos tempos históricos cristalizados pela branquitude. Num diálogo entre as artes e a história, esse artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento. 1 Doutoranda do programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, vinculada ao laboratório de estudos de gênero LEGH/UFSC. Bolsista Capes. Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas – NEABI MOCINHA (Maria Cezarina Cardoso) Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA/CAMPUS JAGUARÃO

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Descolonizando o Teatro Negro: Reflexões a partir da performance Preta-à-Porter do coletivo NEGA enquanto

micropolítica urbana em Florianópolis.

Aline Dias dos Santos 1

Palavras-Chave: Teatro Negro, Gênero,Decolonialidade, Movimento Negro, Feminismos Negros. Nos últimos anos nota-se em diversas partes do Brasil que espetáculos liderados por artistas negros têm tido suas salas lotadas, avançando em visibilidade, com mais peças em festivais, mostras e na programação regular de teatros. Em consonância com o cenário nacional, em Santa Catarina o coletivo NEGA, atualmente formado por mulheres negras tem sido protagonista através do teatro, no debate sobre o racismo projetado no corpo das mulheres negras, e está ampliando o debate sobre o tema no interior do estado de maneira rizomática. Pretende-se aqui responder de que forma a postura cênica do coletivo NEGA se coloca como uma performance decolonial. Dentre as diversas apresentações do coletivo, a performance Prêt-à-Porter se destaca, assim, o artigo apresenta uma análise desta performance teatral, compreendendo que quando as teorias viajam pelo corpo potencializam saberes causando fissuras em diversos tempos históricos cristalizados pela branquitude. Num diálogo entre as artes e a história, esse artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento.

1 Doutoranda do programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, vinculada ao laboratório de estudos de gênero LEGH/UFSC. Bolsista Capes. 

Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN   Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígenas – NEABI MOCINHA (Maria Cezarina Cardoso) Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA/CAMPUS JAGUARÃO 

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Descolonizando o Teatro Negro: Reflexões a partir da performance Preta-à-Porter do coletivo NEGA enquanto micropolítica urbana em Florianópolis.

 

Estudiosos da artes em geral e do teatro tem discutido que as narrativas que permanecem na memória da maioria das pessoas com relação ao teatro, estão ligadas aos pilares da colonialidade e são eles: crença de que a Europa é a única responsável 2

pela elaboração teórica dos saberes mundiais, disseminação da ideia de que descendentes europeus são naturalmente o padrão de beleza e comportamento a serem copiados; e a certeza de que apenas os povos colonizadores possuem contribuições materiais para a efetivação do sistema mundo moderno . Tais crenças 3

enraizadas na sociedade, manifestam-se nas produções artísticas, que de uma maneira geral priorizam narrativas européias. Observamos essas manifestações no preterimento de atores e atrizes negros, por acreditar que povos africanos e descendentes não se interessam pelo teatro; ou porque não se encaixam na maioria dos personagens criados, que evidentemente são brancos, e a partir da episteme colonial, herdeiros naturais das artes cênicas.

A partir dessa ficção que colabora para manutenção de lugares sociais fixos, observa-se que as ideias do colonialismo estão naturalizadas dentro da estruturas de poder vigente para além das questões econômicas e administrativas que engendram a dominação física de algumas populações e territórios . A Cultura se torna um pilar 4

essencial para entender estas forças, pois em primeiro lugar, afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas, em ambas narrativas, as populações negras estão inseridas. Dentro dessa estrutura

2 Para aprofundar o assunto indico a leitura de três autoras: Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial- Lîlâ Bisiaux. O artigo expõe o que a modernidade/colonialidade produz em termos de hegemonia não apenas epistêmica, mas também estética, e constata a incapacidade do teatro pós-moderno de retirar-se da matriz colonial do poder;Notas sobre o teatro brasileiro: uma perspectiva descolonial - Elisa Belém. No livro a autora aborda uma reflexão importante para pensar práticas teatrais a partir de novas leituras e posturas cênicas. O Decolonial na pesquisa em artes no Brasil - Celina Nunes de Alcântara, o artigo insere as poéticas artísticas negras no pensamento decolonial, não apenas de um novo teatro, mas na gestação de um novo projeto de mundo a partir da arte. 3 Tais exemplos podem ser traduzidos como: colonialidade do ser, saber e poder desenvolvidos por Aníbal Quijano, Walter Mignolo (2003) . Quijano desenvolve que na formação de tais estruturas o conceito de raça é fundamental pois tal conceito foi engajado,justamente, para dar forma a tais estrutura de poder. Nessa estrutura colonial, as pessoas brancas não são racializadas e ocupam o topo do poder, e os grupos racializados são colocados abaixo na pirâmide da burocracia colonial, criando um binarismo colonizado/colonizador, impossível de ser ultrapassado. A ideia de raça e sua diferenciação serve para naturalizar o que era propagado por este discurso colonial. Portanto o racismo é fundamental para a manutenção da colonialidade do ser, saber e poder.(QUIJANO, 2005). 4 FANON, 1965 p. 52.

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colonial , o pensamento hegemônico enraiza que as populações imaginadas como sem 5

cultura, ou pertencentes a culturas colocadas socialmente como exóticas, não produzem arte, produzem entretenimento, folclore. Hierarquizando as produções artísticas.François Bedarrida afirma o contexto como elemento caracterizador da 6

pesquisa, lugar em “que os questionamentos se formulam, que se definem e apuram os métodos e esboçam-se riscos e uma trajetória”, sendo assim, é nos conflitos coloniais contemporâneos que hierarquizam os pensamentos e ações artísticas provenientes de mulheres negras que se dá o contexto deste artigo.

As produções teatrais que fogem, ainda que minimamente da narrativa européia, vem ganhando visibilidade, ainda que pouca, em espaços alternativos. Porém são excluídas do circuito geral, pois em coro a branquitude agindo como braço da colonialidade grita “ isso não é arte!”, e complementa a hierarquização ao olhar os corpos de artistas negros sinalizando que “ vocês não podem fazer arte!”. Ainda que na maioria das seleções não se diga em voz alta, a colonialidade age até mesmo subjetivamente soprando um sonoro não quando um corpo negro aparece nas seleções para atores/atrizes ou apresentam seus projetos com personagens e histórias negras. É com essas vozes coloniais de fundo e esse festival de “ não”, que surge o teatro negro brasileiro . Trato aqui do teatro negro dentro dos moldes tradicionais, 7

criado para ocupar um espaço de prestígio e poder, para tencionar a ideia de que existem “lugares de branco e lugar de negro” e evidenciar o silenciamento dos corpos negros a partir de um marco histórico. Nesse sentido, Kilomba 2016 é assertiva ao dizer que

“[...] as narrativas são silenciadas, porque outras vozes falam mais alto. Não é que nós não estamos a falar, mas sim que nossa voz não é escutada. Então não é que a gente não tenha estado a produzir conhecimento e narração. A gente sempre fala, a gente sempre entrega conhecimento, mas não escutam nossa narração, não escutam nossa história” (Kilomba, 2016).

Na história do teatro brasileiro, o Teatro Experimental do Negro (TEN), é um

marco histórico da experiência negra nas Artes Cênicas brasileiras. Com uma trajetória

5 Utilizo a ideia de estrutura colonial numa tentativa de explicar a modernidade como um processo intrinsecamente vinculado à experiência colonial porque as intenções sociais e ideológicas do período histórico colonial, não desapareceram com a independência ou a descolonização. Pelo contrário, de modernizam e se instrumentalizam ainda de acordo com a ideia central de racialização das pessoas como base para hierarquização, exclusão e morte. Para compreender melhor indico a leitura: MBEMBE, Achille.Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018. 6 (BEDARRIDA 1998, p. 145). 7 Indico a leitura SILVA, Fernanda Rachel da. Axé, energia e espiritualização. Os orixás na construção da personagem teatral. Trabalho de Conclusão de Curso – CEART/UDESC. Florianópolis, 2010.

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iniciada em 1944, no Rio de Janeiro, o nascimento desse grupo iniciou um processo de valorização da população negra no teatro brasileiro, e tal processo reverbera até os dias atuais em diversas estratégias de fortalecimento da população negra por meio dessa linguagem na arte. Abdias nascimento, idealizador do projeto, teve ao seu lado como co- fundadoras Ilena Teixeira, e Marina gonçalves . Elas pensaram o TEN para 8

que funcionasse de forma coletiva e prática, portanto o elenco passava por processos de conscientização racial e alfabetização preparando esse elenco tanto para atuar nas peças, quanto para o mercado de trabalho . Os textos teatrais nesse período, bem 9

como frequentemente se repete na contemporaneidade , não contemplavam a 10

população negra, que dirá, imaginar/aceitar que operários, empregadas domésticas, pessoas que viviam nas favelas poderiam atuar. Segundo Abdias, havia uma rejeição do negro como “personagem e intérprete, e de sua vida própria, com peripécias específicas no campo sociocultural e religioso, como temática da nossa literatura dramática.” (Nascimento, 2004, p. 210).

A existência do TEN como um grupo que abre caminhos nas artes cênicas, viabilizou a existência de atores e atrizes negros buscando reconhecimento como corpos que criam e encenam. Abrir caminhos, significa aderir a uma postura política visando criar realidades onde não haviam nem traços de possibilidade, colocando a arte a serviço de necessidades profundas de mudanças, bem como insere Rosana Paulino ao ser questionada sobre o papel da arte.

“Sempre pensei em arte como um sistema que devesse ser sincero. Para mim, a arte deve servir às necessidades profundas de quem a produz, senão corre o risco de tornar-se superficial. O artista deve sempre trabalhar com as coisas que o tocam profundamente. Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul. Se lhe tocam os problemas relacionados com a sua condição no mundo, trabalhe então com esses problemas.” (Paulino, 1997).

8 Destaco ainda a participação de Arinda Serafim. Arlinda era empregada doméstica quando iniciou a participação no recém-criado Teatro Experimental do Negro (TEN). Ela teve papel de liderança na organização das mulheres negras dentro do TEN, e nas várias iniciativas do grupo em defesa dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas. Atuou ao lado de Ruth de Souza, na estreia do TEN em 1945 no Teatro Municipal. Marina Gonçalves e Guiomar Ferreira de Mattos são outras duas mulheres negras com destacada presença no Teatro Experimental do Negro, segundo o site do Ipeafro. 9 O Teatro Experimental do Negro teve suas atividades em 1961, por causa da Ditadura Militar. Nesse período Abdias teve se exilar e registrou os passos do TEN e da luta negra em várias publicações de sua autoria. Quando retornou ao Brasil pós exílio, participou da política partidária. Foi eleito deputado federal entre 1983 a 1987 e senador de 1997 a 1999. Em 2006, esteve entre os responsáveis pela implantação do feriado da Consciência Negra. 10 SILVA 2016 p.20.

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A partir do TEN diversas atrizes e atores negros puderam desenvolver carreira nas artes cênicas, reiterando o compromisso político de causar fissuras no pensamento relacionado a condição das pessoas negras nas artes cênicas. A luta esteve presente em diversos momentos históricos ainda que a colonialidade estruturante da sociedade brasileira, ainda é barreira para que negros possam existir plenamente, ganhando o mesmo salário e disputando os mesmos personagens que pessoas brancas. Diversas estratégias de articulação se constroem a partir do deslocamento de artistas negras(os) ao longo do século XX, e cada vez mais no sentido de fortalecer as produções e os saberes locais, enfraquecendo a cultura hegemônica. Os circuitos periféricos da diáspora negra tem que ser reconhecidos como afluentes de artistas negros pois estas personagens sempre tiveram presentes compreendendo e vivendo o mundo a partir do próprio mundo em que vivem e de suas próprias epistemologias.

O contexto atual é de florescimento de diversas linguagens teatrais críticas ao hegemônico, até num sentido de rejeição mais forte. Nesse cenário, uma nova geração do teatro negro segue alargando os caminhos, colhendo frutos do TEN, e plantando outras sementes intencionando modificar o bioma teatral. O feminismo negro e sua popularização, tem fortalecido as mulheres negras, e estas estão em evidência em muitos espaços, no teatro não seria diferente.

“Por não serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. (…) Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o ‘outro’ do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o ‘outro’ do outro” (Kilomba, apud Santos, 2017).

A partir desse lugar, as estratégias de resistência colocadas pelas mulheres

negras artísticas às estruturas de dominação da branquitude e aos valores estabelecidos pela maioria, que participam na constituição de sujeitos e subjetividades autônomas e produzem saberes próprios. Nessa corrente de fortalecimento, entre ações de combate ao racismo, discussões sobre os efeitos do racismo no corpo e na existência das mulheres negras , tensionamentos sobre representatividade, narrativas 11

e empregabilidade, a cena teatral catarinense começa a ser questionada a partir da criação do grupo de teatro negro catarinense, o Negras Experimentações Grupo de

11 ALCÂNTARA 2018. 

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Artes, o coletivo NEGA . Atualmente o grupo é composto apenas por mulheres negras, 12

cinco ao total. O recorte de gênero não aconteceu de maneira premeditada, as cotas raciais e os projetos de permanência estudantil, tem interferência direta pois possibilitou a permanência das atrizes negras no espaço acadêmico, podendo engajar-se nos estudos.

Além disso, a reunião de projetos de mundo em comum, acompanhando o contexto histórico em que as atrizes estão inseridas, onde o feminismo negro tem conquistado diversos espaços de debates e modificando profundamente a maneira de ser e estar no mundo das mulheres negras e nos tem feito uma recolocação epistêmica importante. De acordo com Silva 2016, as atrizes que compõem o coletivo nega estão interessadas na prática teatral, e compõem um grupo plural entre acadêmicas e artistas das comunidades da grande florianópolis que “se identificam com o questionamento, a investigação e a transmissão de conhecimento de expressões artísticas e culturais de origem africana” (Silva, 2016 p.24).

As mulheres do coletivo NEGA reunidas passam a encarar cada vez mais de frente, questões específicas que perpassam o corpo e seguem interferindo na existência das mulheres negras. Nesse sentido, Kilomba 2017 traduz parte das inquietações que fazem parte das mulheres negras da diáspora

“Quem pode falar? Quem pode produzir conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal? […] Acho muito fascinante trabalhar dentro das artes com conhecimento e sublinhar que se está a produzir conhecimento. […] Numa estrutura académica e artística cujas hierarquias de poder ainda são brancas e patriarcais. Sou o sujeito, não o objecto. Trabalho para mim, para perceber quem sou, para completar um puzzle que foi fragmentado. Essa é a diferença de um trabalho feminista e descolonial para um trabalho clássico. […] É uma forma de subverter as práticas artísticas que têm sido representadas pelo homem branco, pelo sujeito dominante.Eu não sou apenas uma mulher, sou uma mulher negra. Para mim é importante pensar nessa complexidade e trazê-la para a minha arte” (Kilomba, 2017).

Centralizar a questão da raça, do gênero, da sexualidade como partes

inseparáveis de um discurso, é compreender a existência das mulheres negras e de todas as pessoas fora das caixinhas coloniais limitantes, e surge inevitavelmente na arte do coletivo NEGA, que está imerso numa parte do país onde as raízes coloniais permanecem quase intactas.Os resultados dessa colonialidade pulsante, se reverbera em diversos silenciamentos e apagamentos sobre as contribuições históricas das

12 O coletivo mantém parcerias com órgãos importantes em Santa Catarina, como a Coordenadoria de Políticas Públicas para Igualdade Racial (COPPIR), Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FCFCC), Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB-UDESC) e Grupo Africatarina de Arte e Arte-Educação. A professora Fátima continua coordenando o grupo, atualmente (Silva, 2016 p.24).

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populações negras nessa parte do país, onde até muito recentemente era divulgado em todas as mídias como a europa brasileira, lugar no Brasil onde não há negros. Tal afirmativa, nega completamente a participação das populações africanas e afrodescendentes não só na contabilidade populacional, mas ao dizer que não há negros no sul do Brasil, apaga-se completamente as contribuições sociais, históricas e intelectuais dessa população, e cria-se uma fantasia de que tudo o que há na realidade material dessa parte do país, foi criado e mantido por populações de origem européia, ou seja, brancos. Ser negra e viver numa cidade que nega a sua existência e de suas ancestrais, interfere no bem viver das populações negras, tanto as que nasceram e se criaram na região, quanto as que migraram posteriormente.

A partir do marco teórico e social que tem sido o feminismo negro, e o impacto desse projeto de mundo gestado por mulheres negras no interior do coletivo NEGA, é que escolhi falar da performance Preta-à-Porter. A fonte utilizada para a escrita deste artigo, são os trabalhos publicados pelas atrizes, diretora e coordenadora da performance, além de dados coletados em trabalho de campo e acompanhando rodas de conversas ao final das apresentações. A performance nasceu em 2011 inicialmente Preto-à Porter , mas como tem caráter orgânico, a performance é modificada de 13

acordo com as inquietações poéticas e políticas do elenco. Sendo assim, a partir de 2015 com a permanência apenas de mulheres, o nome e as narrativas tornaram-se femininas. Nas palavras de uma das atrizes da performance, Thuanny Paes

“ Construímos coletivamente novas cenas e falas para atrizes negras, focando na relação da cultura negra com a população branca, na violência contra a mulher e, principalmente, na força de luta e resistência da mulher negra”. (PAES 2017 p.53).

A dramaturgia da performance aborda as experiências dessas atrizes negras

na sociedade em que estão inseridas, particularmente as experiências combinadas de racismo e machismo conforme evidenciado nas linhas acima, e alinhadas as feministas negras pois [...] o projeto feminista negro desde sua fundação trabalha o marcador racial para superar estereótipos de gênero, privilégios de classe, cisheteronormatividades articuladas em nível global. (AKOTIRENE, 2018 p.18.).

O espelho que reflete apenas o que os racializados podem ver : As mulheres negras na plateia.

13 O nome Preto-à-Porter foi sugerido pela professora Fátima Lima, que pensou no conceito da moda, pret-a-porter, trazido pelo estilista francês J.C. Weil, depois do fim da segunda guerra mundial. a escolha se deu pela mudança profunda que esse conceito causou na história da moda, fazendo com que deixasse de ser restrita a alta costura. (Silva 2016 p.27).

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A partir da postura cênica das atrizes e da fala da platéia negra, observo que o

coletivo Nega mantém viva uma das principais propostas de suas precursoras no TEN, que é a de “ fazer com que a questão da consciência negra não se perca, não perca a sua força e se faça cada vez mais presente, de forma respeitosa e se fazendo respeitar através da arte” (Silva 2016 p.25). Esse compromisso é reafirmado em forma de aliança quando as mulheres negras na platéia tem suas vozes projetadas através da fala das atrizes, que narram situações de racismo e machismo que são rotineiras no cotidiano dessas mulheres. Na gestação da Performance já havia uma preocupação latente sobre como as mensagens seriam passadas em cena. Durante o processo de montagem, houveram momentos onde as atrizes levaram momentos da infância, adolescência através de fotos ou recordações. Tal ação revela a reconexão com elas mesmas e com suas ancestrais, contribuindo para construir uma narrativa que já nasceu coletiva. Aqui, corroboro com rosana Paulino pois,

Acredito que a produção de arte está diretamente ligada a quem você é, ao local que ocupa no mundo. Neste sentido, os objetos que me rodeiam e que, muitas vezes, estiveram presentes durante minha formação – e estão, ainda hoje, em minha vida – são importantes para pensar quem eu sou, qual minha relação com a sociedade na qual eu vivo.(Rosana Paulino apud FERREIRA 2018 p, 166)

Nesse processo de gestação a diretora do espetáculo faz uma colocação

essencial para compreender a afetividade como lugar de criação destas atrizes negras:

“Que esse espetáculo seja forte e delicado, assim como eu sou. Muita gente vê minha delicadeza e pensa que sou frágil, não fazem idéia do que eu já passei. Me defino como uma poesia, que pode ser forte e delicada ao mesmo tempo, usando palavras doces pra dizer coisas bem sérias e profundas. Gostaria de uma peça teatral que falasse de mim, onde cada um de nós pudesse falar de nós mesmos, de quem a gente é. Contar isso pras pessoas, sabe. Contação de histórias verdadeiras, com poesia, música, dança. Mas falando do que a gente sofre, também, no dia-a-dia, com esse racismo todo aí. Um espetáculo que seja forte e ao mesmo tempo delicado. Como um beijo e um tapa na cara! Entendem? “ (Silva 2016 p.27).

As mulheres negras em diáspora sobrevivem com ternura e fúria habitando o

mesmo corpo, e numa sociedade racista, em muitos momentos a fúria se faz muito mais presente e potente. Ver a fúria sendo encenada, quanto encenar a fúria, permite que laços ancestrais sejam aprofundados e pode possibilitar a fruição da ternura como possibilidade de ser/estar no mundo, causando fissuras na ficção criada pela colonialidade, pois como bem afirmou Lélia Gonzalez: “Quando se analisa a estratégia

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utilizada pelos países europeus em suas colônias, verifica-se que o racismo desempenha um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados” ( Gonzalez, 1988, p. 72-73). Ao final das apresentações, acontecem rodas de conversas, e frequentemente surgem relatos de fúria, relembrados através das cenas desenvolvidas em prêt-a-porter, mas também de ternura, quando algumas mulheres negras da platéia projetam suas vontades nas atrizes “ você falou o que eu queria falar”, frase comumente apresentada por mulheres negras que assistiram a peça, e tais trocas permite ao Coletivo NEGA atualizar o conteúdo em cena, a forma teatral do trabalho e a agenda de coletivo militante pela causa negra (Paes 2017 p.42).

No campo das artes, que atua também como geradora de representação, as mulheres negras se deparam com a seguinte realidade,

Eu vejo aquilo que eu não sou, vejo-me a mim mesmo ou a minha identidade ser representada de uma forma que eu não sou. Mas sou também forçado a olhar para mim através da perspectiva dominante do sujeito branco. E isto é a base da alienação, trauma e decepção. (KILOMBA, 2016.)

Assistir a performance Preta-á-Porter e se deparar com novas narrativas de si,

possibilita a criação de afetividade entre mulheres negras pois toca em feridas que só quem possui a marca da cor e gênero enxerga. Ao tornar visíveis essas feridas, possibilita iniciar o processo de cura. Esse regime de percepção a que estas espectadoras são colocadas durante a performance, diz respeito à outras possibilidades de existência para mulheres negras, e acredito que tal estratégia é uma das chaves para que ocorra um giro, uma inversão nos papéis coloniais. Nesse giro, a prioridade são as existências negras em diálogo a partir desse corpo negro em cena, na medida em que através destes corpos, tanto em cena quanto na platéia, se produzem atravessamentos profundos que propõem uma materialidade que não seja distante do corpo e da alma, partes inerentes a existência negra em diáspora, estabelecendo um novo diálogo de maneira tão profunda que o conceito de representatividade se mostra insuficiente para nos elucidar.

Quebrando o espelho da colonialidade: A branquitude como platéia

O teatro negro surge para iniciar um diálogo onde as narrativas negras são

geradoras de novos contextos na narrativa teatral.Esse diálogo acontece principalmente no tensionamento da relação branco e preto, encaro aqui esse tensionamento como pedagogia necessária para encontrarmos o caminho para a equidade. Em Preta-à-Porter o teatro negro se introduz tencionando uma subversão do teatro como lugar do primado da inteligência e do refinamento cultural reservada aos herdeiros coloniais brancos. Frente a frente com esse público, mas no lugar que tanto

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fora negado. A partir desse lugar de negação, as atrizes negras obriga a branquitude a olhar para sua obra, o racismo. Nas palavras da coordenadora do Grupo Fatima Lima,

por um lado essa performance se apresenta na lacuna do cotidiano: sua situação teatral se define como tradicional suspensão da realidade social num ambiente entendido a priori como espaço de representação: o palco teatral. Mas, por outro lado, suas cenas acolhem fragmentos dessa mesma realidade social em seus conteúdos dramatúrgicos, o que instaura pelo menos duas diferenças no que tange à relação palco-plateia. A primeira diferença concerne à representação propriamente dita quando, por exemplo, a plateia se surpreende com o ineditismo de um grupo de teatro formado por corpos negros. A segunda diferença se instaura em relação à própria realidade social, já que o público de maioria branca de Preto-à-Porter, ao contrário do elenco, não costuma conviver no dia a dia com experiências de racismo como as encenadas teatralmente. (LIMA 2015 p.04).

Quando o corpo negro se coloca no palco, obriga a platéia a olhar e ver a existência desses corpos de mulheres negras, existindo fora dos limites coloniais onde ideia de servilismo doméstico e sexual ficou marcada no que concerne à imagem da mulher negra . No momento em que a platéia majoritariamente branca, imersa numa 14

sociedade colonial, acostumadas com privilégios de poder e prestígio presenteados pela branquitude, se depara com corpos negros no lugar diferente daquele projetado pela colonialidade e manifestados pelo racismo, é percebida uma inquietação, notada em várias etapas. A atriz do coletivo NEGA Thuanny Paes 2017 diz que quando as pessoas brancas acadêmicas eram informadas sobre um projeto teatral com foco a juntar atores negros, reclamavam de “racismo ao contrário”, demonstrando a colonialidade enraizada que naturaliza os coros brancos na narrativa teatral e o tensionamento causado pela existência do coletivo nesse espaço naturalizado branco. Combatendo tais posturas, a coordenadora do Coletivo NEGA, uma professora branca reflete sua carreira e nas palavras de Thuanny

14 Foi através dos corpos negros, principalmente das mulheres, que o processo colonizador legitimou suas práticas de objetificação.Lélia Gonzalez na década de 1980 denuncia que para as mulheres negras existem apenas três possibilidades de existência: A mulata, a doméstica ou a mãe preta. E ainda insere que "A mulher negra é vista pelo restante da sociedade a partir de dois tipos de qualificação “profissional”: doméstica e mulata. A profissão de “mulata” é uma das mais recentes criações do sistema hegemônico no sentido de um tipo especial de “mercado de trabalho” (...) produto de exportação” (Gonzalez 1983 p.223-244). . Para aprofundar nestas questões indico a leitura: GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2,1983.  

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 “ A coordenadora do Programa NEGA, porém, afirmava que o que ela estranhava era o fato de que, em mais de três décadas de trabalho no teatro como atriz e cenógrafa, nunca recebera nenhum questionamento quando participou de elencos total ou majoritariamente brancos. Porque, então, alguém se surpreenderia com a ideia de um elenco total ou majoritariamente negro?

Um desconforto visível, que se trata materialmente de um tensionamento na

naturalidade colonial racista. No projeto da branquitude, a sociedade é hierarquizada com papéis raciais e de gênero fixos, onde as mulheres negras não tem espaço para falar e existir de maneira livre. Às mulheres negras ainda estão reservados papéis de subalternidade, pois entende-se que esse é o lugar natural desse grupo de mulheres, o lugar da obediência, não da fala, do posicionamento e da própria reinvenção. Assim,

A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os (as) brancos (as) querem – e precisam – controlar e,consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido. (KILOMBA, 2016, p. 172.)

O poder de fala enquanto as atrizes estão em cena, evocam o lugar de cala para

a branquitude, que não está acostumada a não ser protagonista, menos ainda em ser afrontada pelo reflexo de suas violências e questionada sobre sua responsabilidade na manutenção destas hierarquias asfixiantes. Esse tensionamento é agravado no desenvolvimento da performance, quando as atrizes começam a encenar experiências de machismo e racismo vividas por elas e trazidas por contribuições ao final de cada apresentação quando acontece uma roda de conversa e mulheres negras que foram platéia muitas vezes se sentem à vontade para dividir. A branquitude sendo platéia de situações de racismo causadas por seus pares, encenadas pelas atrizes negras de forma a ridicularizar a colonialidade e o pensamento racista, evoca a independência das mulheres negras frente aos imperativos universalizantes e hierárquicos dentro dos moldes do teatro tradicional, mas transpassando a arquitetura causando questionamentos sobre a organização da cidade, e do Estado dentro desse sistema mundo. Jota mombaça 2015 é assertiva ao dizer que

“ O silenciamento dos sujeitos negros permite que a fala colonial branca se consolide como verdade sem a interferência de discursos contrários. A inviabilidade de manifestação da fala negra é a condição por meio da qual o sujeito branco se reproduz. Assim é que, no marco do racismo, o sujeito branco depende da produção arbitrária do sujeito negro como “Outro” silenciado para se constituir, atualizando, a partir do binômio branco/negro, uma série de outras fórmulas binárias tais como bem/mal, certo/errado, humano/inumano, racional/selvagem, nas quais o negro

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 não cessa de ser representado como mal, errado, inumano, selvagem. Dessa maneira, não é jamais o sujeito negro que está em questão, mas as imagens e narrativas dominantes produzidas desde um ponto-de-vista colonial acerca dele”. (MOMBAÇA 2015).

O espelho colocado frente a platéia branca desnaturaliza os papéis históricos, se

coloca como um momento importante de análise pois o encontro do teatro de mulheres negras com questões sociais até então não conversadas no corpo da cidade de florianópolis, questiona e tensiona mudanças no corpo dessa sociedade, movimentando personagens históricas e trazendo as mulheres negras contemporâneas para se auto inscreverem na história da cidade. A performance mostra os mecanismos do racismo, mas faz isso expondo o papel da branquitude nesse processo, evoca a responsabilidade desse grupo com a manutenção do racismo quando os obriga a olhar para esse lugar de privilégio. O diferencial da performance é que as falas sobre racismo e machismo são encenadas não para reafirmar as narrativas de poder, mas, sim, para que a branquitude olhe para eles do lugar que se deve, como platéia responsável pela existência do coletivo NEGA e da performance, pois como diz a diretora “ Se não existisse racismo não existiria o NEGA” (Silva 2015 p.24). O incômodo da platéia branca é notório, e necessário para que se nomeie os responsáveis pela manutenção das estruturas de poder que alimentam existência do racismo e obviamente, o genocídio da população negra e indígena.

Considerações finais

Toda e qualquer escrita da história implica pensar como o presente se articula a

outras dimensões históricas, definindo o que permanece, se altera ou é singular , A 15

postura cênica do coletivo NEGA faz convergir diversos tempos históricos e questiona saberes/poderes coloniais enraizados em Santa Catarina, pois materializa por meio da performance a branquitude do enraizada num estado, que se reafirma constantemente europeu, e portanto não há participação negra na sua constituição e manutenção. O coletivo NEGA é o primeiro coletivo de teatro negro de Santa Catarina, a performance preta-à-porter existe a quase uma década, e em consonância com diversas movimentações dos movimentos negros pelo estado, diversas movimentações têm ocorrido visibilizando as contribuições sociais e intelectuais da população negra para o estado. Tem havido um esforço em visibilizar o teatro negro, e estas produções têm apresentado sessões cada vez mais cheias, inclusive as apresentações do próprio coletivo NEGA, demonstrando que de alguma maneira, a branquitude está interessada nos ensinamentos propostos pelo teatro negro e movimentos negros.

Evidentemente que o racismo é arquitetado por etapas continuadas, século a século, a ideia do corpo diferente colocada aos corpos racializados foi construída

15 (KOSELLECK, 2014) 

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paulatinamente, sob diversos tipos de violência. De alguma maneira o preta-à-porter devolve a agência dos corpos para as pessoas negras que aceitam esse convite-provocação. A proposta política do coletivo NEGA, compreendendo sua importância sendo o único coletivo de teatro negro de Santa Catarina, é a de seguir “atacando os saberes/poderes historicamente instituídos pelo longo curso de imposição colonial ”, por isso amplia constantemente seu território de luta. Continua ocupando o 16

espaço importante que é o teatro, e trabalha com a difusão da arte negra nas escolas, plantando as sementes que germinarão em novas atrizes e atores não mais enraizados na cultura colonial que enaltece a branquitude.

Não apenas resistir a colonialidade, mas participa na constituição de sujeitos e subjetividades, uma vez que produz saberes que ensinam modos de ser e estar na cultura e na época em que se vive. Torna-se importante para toda a sociedade a busca pela quebra dessas hierarquias, pois viver numa sociedade separada, hierarquizada racialmente não faz bem para ninguém, o jogo de espelhos aqui colocado como metáfora, pretende provocar para que olhemos para os danos que nós enquanto grupo social racializado, projetamos e introjetamos enquanto sujeitos históricos. Nós precisamos de um novo projeto de mundo partindo de um olhar decolonial reivindicando novas respostas para os problemas que afligem o mundo contemporâneo que é edificado num padrão de violência instaurado com o colonialismo moderno. De acordo com Kilomba,

“Eu acho que o próprio processo de descolonização é colocar novas questões que nos ajudam a desmantelar o colonialismo. O racismo coloca-nos fora da condição humana e isso é muito violento. E muitas vezes nós achamos que alcançar essa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, eu vou dizer que sei ainda mais. E para mim é muito importante desmistificar isso. Eu quero ser eu, não quero ser idealizada e nem inferiorizada” (Kilomba, 2016).

Uma postura decolonial é um processo que existe através da prática, e necessita

o tempo todo que observemos nossas posturas e os reflexos dela em sociedade, o coletivo NEGA tem sido protagonista dessas práticas por meio do teatro em Santa Catarina. O que acontece nas artes é consequência de uma rede de movimentos sociais e políticos que têm pensado estratégias para a compreensão de todos na necessidade de equidade, nos espaços de liderança, não apenas no que se refere à representação, mas na intenção de balizar a realização de projetos de mundo não pautados na violência. Precisamos sacudir essa proposta, inclusive na historiografia, necessitamos “modificar as posições de enunciação” (PRECIADO, 2014, p. 27) para que tenhamos cada vez mais redes e diálogos equalizados.

16 (ALCANTARA 2018).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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