despret, vinciane - acabando com o luto, pensando com os mortos

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  • AcAbAndo com o luto, pensAndo com os mortosHVinciane DespretHH

    resumo

    Quando os mortos esto mortos eles se tornam inexistentes? Esse campo de indagao abre o seminrio. As teorias so produzidas por dispositivos sociais, histricos, culturais e nos informam sobre a nossa maneira de viver. Interessa a autora investigar a experincia de luto como resistncia dos mortos ao esquecimento. Analisa romances, sries americanas de televiso e trabalhos etnogrficos como efeitos de um movimento que resiste, como intervenes pelas quais os mortos falam. Lana mo dos contrastes em busca de algo que nos informe sobre ns mesmos, e que no reduza a riqueza dos mltiplos sentidos do luto a aspectos patolgicos.

    Palavras-chave: luto; esquecimento; resistncia.

    mourning no more - thinking with the deAdAbstrAct

    Would the dead become nonexistent after death? This field of investigation opens the seminar. Theories are produced by social, historical and cultural devices and provide information about our way of living. The authoress is interested in discussing the mourning experience as a resistance of the dead to the sinking into oblivion. She analyses novels, American TV series and ethnographic studies as effects of a movement that resists, interventions through which dead people speak. She also uses contrasts, seeking something that tells us about ourselves and do not oversimplify the multitude of meanings of mourning to its pathological aspects.

    Keywords: mourning; oblivion; resistance.

    H Traduo de Louise A.N. Bonitz. Revisado por Ronald J. J. Arendt.HHDoutoraemFilosofiaeLetras.DepartamentodeFilosofia.UniversidadedeLigePlaceduXX

    Aout74000Lige,Blgica. E-mail:[email protected]

  • Vinciane Despret

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    Nestetextoabordareiaquestodolutoeaformacomoasteoriasinfor-mamnossamaneiradeviv-lo.Gostariademostrar,comestaquesto,umoutroaspectosobrecomoanossaformadevivenciaraexperinciapodeestarligadasteoriasquedescrevemestaexperincia,ecomoestasteoriasestoarticuladasadispositivossociais,histricosouculturais.Gostariatambmdemostrarnosomente sua contingncia,maso fatodeparecerememergir, por razes aindaobscurasparamim,umasriedebolsesderesistncia.Egostariaigualmentedelhesfalardesteassunto,poiselemepermiteensinar-lhesabuscar,foradosnossoslugareshabituaisdepesquisa,parapensarnoqueacontececonoscoou,pelomenos,tentarfazerumdiagnstico.Querofalardosromancesnotobonsedassriestelevisivas,sobretudo,dasamericanas.Emsetembrode2008,apa-recenaslivrariasolivrodocomediantePatrickChesnais,Il est ou Ferdinand? (OndeestFerdinand?).Estelivrofoiescritoapsamorteacidentaldeseufi-lho,haproximadamentedoisanos.AjornalistadoperidicoLibration,Alexan-draSchwartzbrod(2008,online),noartigoquelheconsagra,sublinhaofatodequeestelivroumverdadeirodilogo:sim,nsdissemosdilogo,poisFerdinandestalivivo,emcadapalavra.Durantealgumtempo,opaideixoumensagensnacaixapostaldocelulardofilho.Hoje,socartas:Falandodeti,evocando-te,euesperoquevivasmaisalgunsanos,deoutramaneira(CHESNAIS,2008,p.22)registraopai.Masajornalistavisivelmentenopdedaradevidadimensoquiloqueelasublinhacomoeficaz,pois,aotecercomentriossobreolivro,elaseencaminhaparaumainterpretaocompletamentediferentequelapropostaporNicoleGarcia,realizadoraeamigadocomediante,paraquemascartasteriamsidoumaformadesobrevivnciaparaopai.

    Oquenosdiz esta interpretaoqual a jornalista se agarra com tantaavidez?Segundoqueregimedemal-entendidosdevemoscompreend-la?Poisaspalavrasdopai,emlugaralgum,assinalamquesetratadesuaprpriasobrevi-vncia,trata-sedefazerviverumdesaparecido,umdesaparecidocujaevocaoouinvocao?,numdilogo,ofereceumaprorrogaodeexistncia.Eoqueestaprorrogaoimplicaque,nascondiesdesuarealizao,senoprestar-mosmaisatenoaosmortos,elesdeixamdeexistir.

    Semeprendoaestemal-entendido,aestefatodenoquererentender,porquemepareceque,hoje,creiopoderencontraraquieacolfocosderesis-tnciaquilosobreoqualelesefundamenta.OqueNicoleGarciasubentendena sua resposta est evidente para alguns dentre ns: quandoosmortos estomortos,eles se tornam inexistentes.Estepressupostocertamentebvio,masvisivelmente,temosquerelembr-lo.Esetemosquerelembr-lo,porqueelenocompartilhadoportodos,permanecemalgumasdvidase,detodomodo,algumasdvidasquantorazoabilidadedaspessoas.

    Deincio,vamossublinharqueestepressupostoestlongedesercompar-tilhadopor todomundo.A etnopsiquiatria nos ajudou consideravelmente comrelaoaesteassunto:oquenosensinaoencontrocomoutrasculturasnosre-metenossasingularidade,eudiriamesmoaestaespantosaexceoculturalqueconstituinossatradiodosmortos.Somospraticamenteosnicosapensarquequandoosmortosestomortos,elesestomortos.

  • Acabandocomoluto,pensandocomosmortos

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    Sebemque,sepensarmos,estaideiadequequandoosmortosestomor-tos, elesestomortospodesergeralmentecompartilhada.a formadecom-preenderestafrase,oqueeladaentender,quemudaconsideravelmente:entrens,estafrasedesignaoquechamamosumatautologia,nofazemossenodizeramesmacoisanaprimeiraenasegundapartedafrase,noacrescentamosnada.Mas,numaoutracultura,estafrasepoderiadesignaralgocompletamentediferente,arepetionoinduzaumatautologia,masofereceumdeslizamentodesentido.umpoucocomonocasodaexpresso,comumentrens,ondepodemosdizerqueumtostoumtosto;nestequadro,sabemosqueosegundotermonoequivaleaoprimeiro,quehumganhodesignificadonapassagemdeumladoparaooutrodoverbo,equeoverboser,longededesignaraequivalncia,passaarecus-la,aenriquec-la:umtostomaisqueumtostoquerdizerexatamentequeumtostovalemaisqueumtosto,seprestarmosateno.Humsuperenriquecimentonestapseudo-equivalncia.O termosuperenriquecimentonofoiescolhidoaoacaso;humsuperenriquecimentobancrio,osegundotostovalemaisqueoprimeiroqueoanunciaeotraz,mashtambmoqueeuassinalavacomoumsignificadopossvel:umtostonovalerumtostoseprestarmosatenoaele.Estedesliza-mentodatautologiabuscandoalgomaistorna-semaispertinenteaindaquandosetratadamorte,oumelhor,dosmortos:osuperenriquecimentodeveigualmentesercompreendidoemtermoscomoamarmaisainda.

    Quandoosmortosestomortos,elesestomortos,nestequadro,equan-dodeixamosatautologialeigaqueobrigaosvivosaseresolvercomrelaoinexistnciadosmortos,designaentoumprocesso,umprocessodetransforma-oquenonegaaexistncia,que,aocontrrio,afirmacertosmodosdeexistn-cia,econsequentementecertosmodosdepresena.Eoqueaetnopsiquiatrianosensina:arepetioquandoosmortosestomortosindicaqueumameta-morfoseestemandamento.

    TobieNathan(NATHAN;DAGOGNET,1999,p.108)contaqueduranteumadesuasconsultasemumafamliadeTogocomconflitosmuitoexplosivos,quandotodosgritavam,oscoterapeutascomeavamafalarentresi,equetudopareciairporguaabaixo,derepente, tomadodeumaintuio,elepegouumcopoqueestavasuafrente,oencheuderumeojogouparaochogritando:Ummortoestreclamandoaqui!Continuemafingirquenoouvemeacabaroporsematar!.Todomundoficoucaladoduranteumlongomomento.Depoisametomouapalavraparacontarsuahistriaeosoutrosaescutaramnumsilncioprofundo.Seumaridohaviamorridohseisanos, tendosidoencontradonumcarro,assassinado.Ora,comocomumnafrica,assuspeitascontraamulherforamimediatamenteformuladas:omaridoteriatalvezsidovtimadeumata-quedebruxaria,queelapoderiaterinstigado.Eraentoprecisoumlongoritualparaaofinalpoderinocent-la.Elanotinhaconseguidosuportarehaviafugidoapsalgunsdias.Eelaacabavadeverseumaridoreaparecer,seisanosdepois,naconsulta.OqueNathanfezaoquebrarestecopofoiobrigaraspessoasdestafamliaainterrogarestesersobresuasintenes.Oqueeleestpedindo?Erane-

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    cessriorealizarumasriedeaespararesponderaestaquesto,pararesponderquestodoquequeomortoreclama.Eseestahipteseestivessecorreta,asmanifestaescessariam.

    Interpretaoestranha,tantoquantoestepragmatismofilosfico:osmortosreclamamenstemoscertezadeterrespondidossuasreclamaesseelesseacalmameseelesaceitamdeixarosvivosviver.

    Estainterpretao,entretanto,foidurantemuitotempoanossa,apesardenopertenceraumapoca to longnqua.Precisamosapenasvoltarao sculoXII.EoqueconstatamosnosculoXII?Umfenmenoinesperadoqueumbomnmerodeliteratosdapocairtranscreveresobreoqueirotestemunhar:osmortos retornam emmassa para falar aos vivos. E, sobretudo, para reclamar.Todosaquelesquetestemunharamconcordamnumponto:estaexplosoderetor-nosumfenmenototalmenteindito.Comoexplicarestaexploso?SegundoohistoriadorJean-ClaudeSchmitt(1994),amultiplicaodofenmenoestligadaaumfato:ainvenodoPurgatrio,comefeito,muitorecente.Estainvenovaifavorecerodesenvolvimentodocultodosmortoseconsequentementeaprticadasmissasedossufrgiosaelearticulados.Osmortosretornam,ento,parapedirajudaparasairdelesomenteasoraesdosvivospodemmudarseudestino.

    Quemconvocaquemnestahistria?claro,serelermosestahistrialuzdoquepensamoshoje,soosvivosqueconvocamosmortos.Mas,seformoslerdaformaqueaspessoasainterpretavam,precisamospensarocontrrio:soosmortosquesetornaramaptosaconvocarosvivos.Eanovidadesedeveaumamudana:Deusagoraautorizaosmortosapedirajudaaosvivos.OPurgatrioseria,ento,oefeitodestamagnanimidade.

    difcilhojepensarnestestermos.Enfim,talveznemtantoassim,pois,eeuvejoaprova,Schmitt(1994)irsemcessarcolocarseuleitoralertacontraestetipodeinterpretao:aprimeirafrasedaprimeirapginadeseulivropode-riaparecerbizarra,senotivermosistonacabea:Osmortos,escreveele,notmoutraexistnciasenoaquelaqueosvivosimaginamparaeles(SCHMITT,1994,p.13).H,portanto,umanecessidadedeseestaratento.Eestaprevenoirse repetirao longodo livro.Oque interessantequeestaprevenofazexatamenteamesmacoisa,squeaocontrriodashiptesesqueanimamorela-cionamentocomosmortosnafrica:oqueasliga,oqueastornasemelhantes,queambassoindispensveisconstruodeumnovomodelorelacionalcomomorto.Entretanto,ahiptesequeamorteresultedeumatointencional,quepre-valecefrequentementenafricaequeentoobrigaconduoderituaisepro-cedimentos,ageaocontrriodotrabalhodelutohipotticoqueinformanossosprpriosrelacionamentoscomosmortos.Eladefatooinversoexato:omodorelacional,entrens,deveseconstruirsobreaideiadequeomortoestmortoeportantonoexistemais,precisotrat-locomouminexistente;nafricaemcontrapartida,osrituais ligadossuspeitademorteintencionalsorituaisquevoforarossobreviventesaaceitaravitalidadedomorto.

  • Acabandocomoluto,pensandocomosmortos

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    Masestealertadohistoriadordeverealmenteterumaimportnciamaior.Epossoprovarqueestealertavailev-lo(eelenoopodeignorar)adar,dopontodevistaepistemolgico,umgrandetropeo,umafastamentodasexign-ciasde suaprtica.Lembrandoesta tomadadeposio leiga, lembrandoqueosmortos spodemexistirno imaginriodosvivos,ohistoriadornos levaaler oquepensavamaspessoasdopassado luzdas convicesdopresente.Ora,estaatitude,nomnimo,problemtica:aprofissodehistoriadorconsistejustamenteemfazerocontrrio.Istoaparececommaisnfasequandooautornosdiz:Assimpode-secompreenderquemeramosfantasmasmedievais.Eleseramosmortos rarosque, comobstinao eduranteumbreve tempoaps amorte, [...]colocavamobstculosaoencaminhamentonecessriodotrabalhodeluto(SCHMITT,1994,p.18).Haquidoqueseespantaraindamais.

    Oprojetodohistoriadorquejustamentedehistoriar,demostrarcomoasconcepes,asrelaes,asconscincias,osmodosdeexistnciaseroautoriza-dosporcertoscontextosparticularespareceapresentar,nestecaso,ummomen-todefraqueza.Opesquisadordeveria,emprincpio,historiararelaocomosmortos,mostraraquepontoestasrelaesdiferemdasformasqueasprecederamediferemdoque,hoje,caracterizanossarelaocomosfalecidos;elefazissoderrapando:eisaspessoasdaIdadeMdiaforadasafazerotrabalhodeluto;eisento,comsetesculosdeantecipao,nossosantepassadossetornandofreu-dianos.Arelaocomosmortosperdederepentetodaformadehistoricidade:emtodosostempos,devamosfazerotrabalhodolutomesmosemosaber.OqueaspessoasdaIdadeMdiapensavamdosmortospodeserrelativizado(eisoquepoca,porumaououtracircunstnciahistrica,aspessoasacreditavam),oquenspensamoshojerecebemilagrosamenteoprivilgiodevaleremtodaparte,deserverdadeiroindependentementedascircunstncias.

    Parece-mequeestetropeodenotaalgumacoisa:sejaque,podendohaverperigonademora,precisoabsolutamenteseprevenircontraqualquerformadeirracionalidade,aqualquerpreo;ouainda,ateoriadolutoadquiriutalforadeevidnciaquenopodemaisaparecerpeloqueelaumateoriarelativaaumahistria,adalutacontraascrendicesreligiosasepopulares,adalaicizaodamedicina,dapsiquiatriaedarelaocomosfalecidos.

    Novoudiscutiraquiesteenormemal-entendidoqueestateoriadotra-balhodoluto,queajulgarpelomagnficotrabalhodopsicanalistaJeanAllouchfinalmentetambmnonosconvm,nonosdescrevemelhordoquefazcomaspessoasdaIdadeMdia.,alis,estacrticaeofatodeconstatarqueaspessoasnovivemolutocomoospsispensamquefazemAllouch1(1995apudMOLINI,2006,p.68)escreverquejtempodosmdicosabandonaremestaincongrun-ciaqueconsisteemnosedarcontadadiferenaentresuasideiaseasquestesque habitam seus pacientes emesmo em assimil-las a simples crendices emnomedeumaposioacadmicaquenoencarasenoovazioapsamorte.

    Gostariadevoltarquiloquemeinteressanestetropeodohistoriador,as-simcomonomal-entendidosuscitadoemtornodolivroparaseufilhodePatrickChesnais:estetropeoassimcomoestanecessidadedetraduzirdeoutraforma

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    (aatividadedosmortosnaIdadeMdia,osmotivosqueguiamPatrickChesnais)nosindicamalgumacoisadensmesmos.Novamentevoumevalerdaliodocontrasteeconvocarotestemunhodeoutracultura.

    TobieNathanassistiuumdiaaotrabalhoteraputicodeumacurandeiradasIlhasReunio.Ohomemqueestavasendotratadoapresentavasintomasdotipomelancoliagrave,incluindoummutismocompletoeumaanorexiaprolongada,desdeosuicdiodesuafilhaquehaviasejogadodoaltodeumpenhascoquatroanosatrs.Sevocsnoseimportam,vamosdarumaolhadaporuminstantenoquens,informadoscomosomossobreasteoriasdolutoedapsique,diramosdestecaso:umaprimeirapossibilidade,apesardemalsustentada,nosconduziriaaelaborarahiptesequeestehomem,assimcomosuafilhaalis,apresentavamsintomasdepressivosgraves,osquaispoderamospensarhereditrios.Mascomoexisteoluto,ahiptesemaissimplesseriadizerqueestehomemapresentaossintomasdeumlutopatolgico:otrabalhointrapsiquiconecessrioaotrabalhodolutonopdeserealizar.

    Ora,aquiquealiodocontrastepodetrazerseusfrutos:acurandeiranovai,emnenhummomento,evocaratristezadopaipelodesaparecimentodesuafilha.Emnenhummomento,supequeestetipodesentimentopoderiapro-vocaraanorexiaeomutismoemqueovelhohaviaseenclausurado.Elapropeaexplicaoseguinteeosrituaisteraputicosquearticulamestediagnstico:afilhateriasidopossudaporumtipodegniocanibal.Quandooespritoacaboudedevorarafilha,oqueprovocaraseugestosuicida,elesejogou,faminto,sobreopai,enfraquecidopelatristeza.

    Trata-seentoparaacurandeiradeatrairesteespritoparaumaarmadilha,fech-lonumcofreearremess-lodoaltodopenhasco.

    Ocontraste entre as duas linhas interpretativas aparece claramente: pri-meiroahiptesedacurandeiraenglobaaomesmotempoadoenadafilhaeadopaievairesponderaomesmotempoquestocolocadapelosuicdioequestoetiolgicadadoenadopai.Elavai,dealgumamaneira,darumaformadeleiturasistmica, por um lado englobando numamesma corrente explicativa os doissofrimentos; e vai, igualmente, oferecer uma resposta pragmtica quepermitelig-losdeumaformaquepermitaagir.

    Masumaoutragrandediferenaaparecemostrandoasescolhasdenossatradio,tornandovisvelaquiloqueosmortospodemnosensinarsobrens:asduashiptesesquenosvmnaturalmentementefazemambasrefernciaapro-cessosinternos:arelaocausaldosofrimentoestacantonadanointrapsquico.

    Eassimqueseestabelecenossarelaocomosmortos,nossapsiquesendoonicolocaldeseudestino.Eonicopapelqueomortotemadesempenharodesefazeresquecer,oudeserumdiasubstitudoporumobjetosubstitutivo.Somosento, juntocomosnossosmortos,osherdeirosdeumahistria,no fundonomuitolonga,quevaidametadedosculoXIXcomAugusteComtepsicanlise,passandoporCharcot e suashistricas; ahistriadeumprocessode laicizaoprogressivadomundo,dosseresqueocompem,daquiloqueosafetaeosfazagir.

  • Acabandocomoluto,pensandocomosmortos

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    Oque o contraste que acabo de esboar de formamuito breve pe emevidnciaqueesteprocessodelaicizaotomouaforma,tantonodomniodapsicopatologiaquantodasrelaescomosdesaparecidos,deumprocessodein-teriorizao:doladodosvivos,ascausasdomalseroapartirdeagorapsquicasenomaisofatodeseresinvisveisdotadosdeintencionalidade;quantoaosmortos,elessetornamentidadespertencentesaomundointernodaspessoas:oalmsetornouumalmpsquico.Daapossibilidadedeencarararelaocomosmortoscomoumtrabalhoessencialmenteintrapsquico,terminando,normalmen-te,emumtestederealidade.Eseosmortosresistempropostaquelhesfeitadesetornarementidadesinternas,seelespermanecemobstinadosamantercontatocomosvivos,sosilusesouaosfantasmasdestesltimosqueprecisores-ponsabilizar.Defato,nosdamoscontadequeateoriadolutooperarelacionadasconvicesqueprevaleciam,eprincipalmentedepoisdaIdadeMdia,aumasriedeinverses:ali,ondeosmortosreclamavam,ateoriadolutotraduzqueoenlutadoseautoacusa;ali,ondeoutroraosmortosresistiamativamenteaoesque-cimento,nsosreduzimosatualmentenosomenteaostatusdeobjeto,masaostatusdeobjetopassveldesubstituio;ali,ondeovivosepropunhaarealizaroquehaviapermanecidoinacabado,sabendoquefazercomoacondiodeumfazerdeoutraformaquepermitehonrareherdar,ateoriatraduzsobotermodeidentificaocomomortoarepetiodomesmo.

    Entretanto,secolocoemperspectivaopassadoeopresentesomenteparaapresentarumcontrasteclaroentreateoriaquedformaaosenlutadoseoutrasma-neirasdeefetuaraexperincia.Poisestarelaoqueacabodedesenharnoumarelaodopassadoedopresente.Comoeudisse,nossarelaocomolutoestsemo-dificando.Euproponhoaleituradestametamorfosesobosignodeumaresistncia.

    Emprincpio,vamosdeixarclaro,diversos ndicesnosmostramquehresistnciaequeestaresistnciaseddemaneiracadavezmaisintensa.Oteste-munhodePatrickChesnaisnomaisdoqueumadenumerosasformas.Olutonomaisoqueera.Arelaocomosmortos,visivelmente,buscaoutrasformasparasedefinir.Epodemospensarquetemboasrazesdesereinventar:podemos,efetivamente, seguir JeanAllouch(1995,p.114)quandoeleconstataqueestateoriadotrabalhodolutotornaascoisasbemdifceis:

    Reduzindoestealm[queantigamenteestabeleciaarelaocom os mortos] somente ao psiquismo do enlutado, quemaisisol-loapenasnosseuseloscomosausentes,Freud,de alguma forma, o encarrega de uma responsabilidadesagrada[estaapalavra].Istopesamuitosobreosombrosdo enlutado. E nos espantamos ao verificar que para osfreudianos os lutos sejam interminveis, como se notivessemcontribudomuitoparaisso.

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    Podemos,emparticular,marcarestastransformaeseestasinovaesemlugaresqueeutraduziriacomolugaresderesistnciacoletivaepopularquesoassriesdeteleviso,osromancesdetestemunhoouosfilmes.Voumedeternassriestelevisivas(osromancesmetomariammuitotempoepedemanlisesmaislongas)assriesemcontrapartidanoprecisamdemuitodetalhamento.

    Antesdecomear,queroassinalarumfatototalmenteinesperadoquesus-tentouestediagnstico:halgunsmeses,a revistacientficaCultural Geogra-phies (2008,online),umarevistatotalmenteacadmicaeidnea,consagrouumnmeroespecialaumcampodepesquisasnomnimosurpreendente:aespectro-geografia.Estenovoramodageografiasepropeaestudarcommuitaseriedadeeinteresseacartografiadoslugaresassombrados,lugaresondeformasdepresenadopassadoparecempersistirdeformamuitoativa.Maisespantosoaindaquealgunsespectro-gegrafosinsistiramnanecessidadeeafecundidadedeumapo-siovoluntariamentehesitantequantoaostatusaserdadoaessesseresqueassombram.Estahesitaoaparecemaisdoquenecessria,dizem,poisoqueas-sombratraduzfrequentementeumaresistncianegaoouaoesquecimento.

    Nassriesrecentesesuperabundantesquetratamdesteassunto,estahip-teseavanamaisradicalmenteainda:algunsmortospoderiamvoltar,outrosestosemprel,mesmoquedeoutraforma,outrosaindapedemparaseralimentados,suportados,pensadosparacontinuaraexistir.2 Six feet under3(2001-2005)seim-peevidentementepelofatodeahistriasepassarnumafunerria.Masseimpemaisainda,poisanarrativanohesitaemdarumpapelativoacertosfalecidosque interferemna vida dos vivos umcadver que, de repente, se levanta damesadetrabalhopararecriminar,ouaindaopai,mortonoprimeiroepisdioqueregularmenteapareceaofilhoouviva.Umatemticacomumatravessaumsemnmerodestassries:osmortosseobstinamaficarporqueelesesperamalgumacoisa dos vivos.A herona deGhost Whisperer (Melinda entre doismundos 2005-2010)4introduzcadaepisdiolembrandoqueosespritoserrantesqueaprocurampedindoajudasoaquelesquenopassaramparaooutroladoporquetemassuntosaresolvercomosvivos.Dentrodeumalinhasimilar,nasrieMe-dium5 (2005-2011),AllisonDuBois resolveuma srie de trabalhos que lhe soconfiadoscomunicando-secomosdefuntos,damesmaformacomoofazRaines,opolicialdoseriadodemesmonome,conversandocomasvtimasqueestoaseucargo (RAINES,62007).SeCold Case7(2003-2010)nofazintervirdeformaativaaspessoasfalecidasduranteoandamentodoinqurito,nopodemosdeixardeserinterpeladosnofimdequasetodoepisdio:osmortosestofrequentemen-tepresentesnomomentoemqueosinspetoresfechamacaixadodossi,ataliprematuramenteclassificado,naformadetestemunhassilenciosasesorridentes.

    Estaliamoladetodasestasintrigas:ofechamentodoinquritotraz,en-fim,aosmortosacalmajque,emtodososcasospr-citados,elesdesaparecemumavezqueoculpadopreso.Omotivodetodoinqurito,ento,duplo:punirosculpadoseatenderdemandadasvtimasmortasqueajustialhessejafeita.

  • Acabandocomoluto,pensandocomosmortos

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    Certamente,estavoltadosmortosdeulugaraexplicaesmuitoracionaisemuito tranquilizantes.Umaboapartedelasnos remete invenodenovastcnicas.AondadosmortosquevoltavamnassessesespritasnosculoXIXjtinharecebidoestacausa:segundoalguns,seriaainvenodotelgrafo,segundooutrosainvenodotelefoneoudofongrafo,porqueelesdissociamosom(ouamensagem)daquelequeproduzestesom,oqueteriasuscitadoapossibilidadedecolocardoismundosemcontato;noperodomaisrecente,asnovastcnicasdecomunicaotenderiamaaboliradistnciaentreoaquieoalmeencorajariamamesclaroslimitesentreovisveleoinvisvel.Vemosigualmentequeasnovastecnologiasdovirtualtenderiamamesclaroslimitesentreoqueexisterealmenteeoquedailusodeexistir.Orecuodamorte(eaindefiniodasfronteirasentreavidaeamorte)seriaaindaumacausajquepodemosestarmortossemoestar,comoaspessoasquesomantidascomvidaparadoaodergos.Masorecursoaestascausasmeparecetestemunharumacertainquietudetecnfobaquemarca as transformaes: as novas tcnicas seriam responsveis por umaelevaodoirracionalque,sabemos,umacoisamuitoruim.Poroutrolado,estetipodeexplicaesdeixapensarqueaspessoasestosempreprontasasedeixarenganarpelasnovastecnologias,quefariamnasceroutrastantasiluses.

    Estascausas,denovo,sefundamentamsobreumaparcialidadeimplcitaquealimentaateoriadoluto,poiselasnoslevamdevoltasrelaescomosmortosnocampodoimaginrio.Masestesfilmes,romancesesriesnosdizemalgumacoisaquepodeserlidanasencenaes:sobrecadaumadestashistriaspesaumaobrigao,frequentementeumcrimequenofoipunido,masfrequen-tementetambmumahistriaquenopdeserealizar.SemdvidaumahiptesesimilardeNathan(NATHAN;DAGOGNET,1999)poderiaserconsiderada:soasencenaesqueconstrangemosvivosaaceitaravitalidadedosmortos.Maspoderamosigualmentevislumbrarumaoutraquelevaemconsideraoocontextonoqual vivemos: talvez, nomomento emque se imponha comumaintensidadeinigualvelaideiadenossaresponsabilidadeemrelaoquelesqueseseguiroans,abra-seapossibilidadedeumaresponsabilidadecomrelaoquelesquenosprecederam.Ecomelaaideiadequeumaheranaspassaatersentidonasuarealizao,nofatodere-suscitar:umaheranare-suscita.Cabeansver,nestemomento,seumateoriadolutoqueassumeativamenteoencargoderealizaredere-suscitarpodernosajudar.

    notAs1MolinicitaaquiAllouch,J.(Erotique du deuil au temps de la mort sche),cujotrabalhoalimentou,deformamuitointeressantessuaanlise.

    2Porexemplo,Chesnais(2008),Didion(2005),Frame(2002).3Sriecriadaem2001porAlanBall,apsamortedesuairm.4Sriecriadaem2005porJohnGray.5Criadaem2005porGlennGodonCardon.6CriadaporGrahamYostem2007.7Affaireclasse,sriecriadaemsetembro2003porMeredithStiehm

  • Vinciane Despret

    82 Fractal: Revista de Psicologia, v. 23 n. 1, p. 73-82, Jan./Abr. 2011

    refernciAs

    ALLOUCH,J.Erotique du deuil au temps de la mort sche.Paris:Epel,1995.

    CHESNAIS,P.Il est o Ferdinand?:journaldunpreorphelin.Paris:SuccsdeLivre,2008.

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    Recebidoem:setembrode2010

    Aceitoem:dezembrode2010