deuses iorubás na África e no novo mundo ll

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Orixás na África ll

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Deuses Iorubs na frica e no Novo Mundo ll(Traduo de Maria Aparecida da Nbrega)

SincretismoEsses mesmos santos, que haviam protegido os interesses dos negreiros e a vida de uma parte dos negros transportada, tiveram o bom senso de realizar em seguida um exame de conscincia, do qual resultou uma troca de posio: passaram a proteger os escravos, ajudando-os a mistificar os seus senhores..

Talvez tivessem partilhado os remorsos tardios do Padre Bartolomeu de Ls Casas, o qual, levado pela piedosa inteno de preservar as vidas dos ndios carabas, tentativa, alis, sem resultados, desempenhou, no sculo XVI, o papel de instigador do trfico transatlntico de negros. Alis, esse trfico frica, Europa j existia h bastante tempo. Espanha e Portugal abasteciam-se, ainda que modestamente, de escravos mouros e negros barbarescos do norte da frica, ao longo da costa do Atlntico. Os pases barbarescos do norte da frica faziam precisamente mesmo, capturando os infiis, neste caso os cristos, e colocando esses ces a remar nos bancos das suas galeras. Emcontrapartida, os pores da galera estavam repletos de mouros.

Mas, voltando aos santos do paraso catlico, certo que eles ajudaram os escravos a lograr e a despistar os seus senhores sobre a natureza das danas que estavam autorizados a realizar, aos domingos, quando se reagrupavam em batuques por naes de origem. Em 1758, o Conde dos Arcos, stimo vice-rei do Brasil, mostrava-se partidrio de distraes dessa natureza, no por esprito filantrpico, mas por julgar til que os escravos guardassem a lembrana de suas origens e no esquecessem os sentimentos de averso recproca que os levaram a se guerrear em terras da frica. Assim divididos, eles no se arriscariam a um levante em conjunto, como iriam faze-lo cinqenta anos mais tarde contra os seus senhores. Estes ltimos, vendo os seus escravos danarem de acordo com os seus hbitos e cantarem nas suas prprias lnguas, julgavam no haver ali seno divertimentos de negros nostlgicos. Na realidade, no desconfiavam que o que eles cantavam, no decorrer de tais reunies, eram preces e louvaes a seus orixs, a seus vodun, a seus inkissi. Quando precisam justificar o sentido dos seus cantos, os escravos declaravam que louvavam, nas suas lnguas, os santos do paraso. Na Verdade, o que eles pediam era ajuda e proteo aos seus prprios deuses.

No se pode afirmar que j se tratava de sincretismo entre os deuses da frica, por um lado, e os santos catlicos, por outro, pois, no sculo XVIII, as caractersticas das divindades africanas eram ainda desconhecidas dos senhores e do clero portugus, enquanto os escravos no podiam tambm conhecer os detalhes da vida dos santos.

As primeiras menes s religies africanas no Brasil so de 160, por ocasio das pesquisas do Santo Oficio da Inquisio, quando Sebastio Barreto denunciava o costume que tinham os negros, na Bahia, de matar animais, quando de luto... Para lavar-se no sangue, dizendo que a alma, ento, deixava o corpo para subir ao cu. Por volta da Costa da Mina que fazia bailes s escondidas, com uma preta mestra e com altar de dolos, adorando bodes vivos, untando seus corpos com diversos leos, sangue de galo e dando a comer bolos de milho depois de diversas bnos supersticiosas...

difcil precisar o momento exato em que esse sincretismo se estabeleceu. Parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre detalhes das estampas religiosas que poderiam lembrar certas caractersticas dos deuses africanos.

Pode parecer estranho, primeira vista, que Xang, deus do trovo, violento e viril tenha sido comparado a So Jernimo, representado por um ancio calvo e inclinado sobre velhos livros, mas que freqentemente acompanhado, em suas imagens, por um leo docilmente deitado a seus ps. E como o leo um dos smbolos de realeza entre os iorubs, so Jernimo foi comparado a Xang, o terceiro soberano dessa nao.

A aproximao entre Obalua e So Lzaro mais evidente, pois o primeiro o deus da varola e o corpo do segundo representado coberto de feridas e abscessos.

Iemanj, me de numerosos outros orixs, foi sincretizada com Nossa Senhora da Conceio, e Nan Buruku, a mais idosa das divindades das guas, foi comparada a SantAna, me da Virgem Maria.

Oi-Ians, primeira mulher de Xang, ligada s tempestades e aos relmpagos, foi identificada com Santa Brbara. Segundo a lenda, o pai dessa santa sacrificou-a devido sua converso ao cristianismo, sendo ele prprio, logo em seguida, atingido por um raio e reduzir a cinzas.

A relao entre o Senhor do Bonfim e Oxal, divindade da criao, mais dificilmente explicvel, a no ser pelo imenso respeito e amor que ambos inspiram.

Na Bahia, So Jorge identificado com Oxossi, deus dos caadores, mas, no Rio de Janeiro, ligado a ogum, deus da guerra, o eu compreensvel em relao aos dois orixs, pois So Jorge apresentado nas gravuras como um valente cavaleiro, vestido em brilhante armadura, montado sobre um cavalo ricamente ajaezado em ferro, que bate no cho com as patas e caracola. Armado com uma lana, So Jorge da Capadcia Mata um drago enfurecido, caa predileta do deus dos caadores. Para maior satisfao do deus dos guerreiros, no Rio de Janeiro, desde os tempos do Imprio, segundo Arthur Ramos, So Jorge aparecia nas procisses montado num cavalo branco, com honras de coronel e recebendo as continncias da tropa sua passagem. Na Bahia, porm, com Santo Antnio que Ogum vai ser sincretizado.

Esta aproximao entre Ogum, deus da guerra, e Santo Antnio parece surpreendente, pois o santo geralmente representado com uma aparncia suave e atraente, trazendo uma flor-de-lis na mo e carregando, em seus braos, o Menino Jesus. Foi, no entanto, cognominado o martelador dos herticos por causa da extrema violncia verbal que usava para fustigar os maus pensadores e os monges sacrlegos. A chave do mistrio dessa estranha associao nos dada nas recordaes das viagens feitas, em 1839, por Daniel P. Kidder: Uma frota o escrevia, comandado por luteranos, deixou a Franas em 1595, com a inteno de conquistar a Bahia. No caminho, os protestantes atacaram Argoim, uma ilhota ao largo da costa da frica, pertencente aos portugueses, e, depois de se atirarem ao saque e destruio, levaram entre outras coisas uma imagem de Santo Antnio. Logo que prosseguiram viagem, foram atacados por uma forte tempestade, o que causou a perda de vrios navios. Os que escaparam tormenta foram acometidos pela peste, e durante essa provao, por dio ao catolicismo, jogaram a imagem no mar, aps terem-na mutilado com golpes de faco. O navio que transportava chegou a um porto de Sergipe, onde todos os que estavam a bordo foram presos. Mandados para a Bahia, a primeira coisa que viram na praia foi imagem que tanto haviam maltratado... Os frades franciscanos levaram-na, em solene procisso, para o seu convento... Mas os frades, malsatisfeitos com a aparncia velha e feia da imagem, substituram-na por outra imagem, mais pomposa e elegante e que foi batizada com o mesmo, tendo, em princpio, herdado sua virtudes... Santo Antnio foi alistado, como soldado, no Forte da Barra, que tem o seu nome. Como soldado, recebeu regularmente o soldo at que foi promovido ao posto de capito, em 16 de julho de 1705, pelo governador Rodrigo da Costa. A Cpia da ordem, dada por aquele governador, est publicada no livro de Kidder, e determina que o procurador do convento est autorizado a receber o montante deste soldo de capito. Durante a ltima guerra mundial, Santo Antnio foi promovido a major. Os franciscanos da Bahia conservam o uniforme de gala oferecido por uma rica devota. Debret relata as horrias militares concedidas a santo Antnio nas diferentes provncias do Brasil. Fala, talvez com exagero, do seu ttulo de marechal dos exrcitos do rei Joo VI e de comendador da Orem de Cristo na Bahia, de coronel e gr-cruz da Ordem de cristo no Rio de Janeiro, ou mesmo, mais modestamente, de simples cavalheiro de cristo no Rio Grande.

Ao que parece, certos membros do clero catlico julgaram conveniente favorecer esse sincretismo, como o Padre Boucher havia sugerido, na prpria frica, ao descrever a esttua da Iangb, mulher de Oxal, nos seguintes termos: esta deusa que muito se parece com a Santa Virgem, pois tanto uma como a outra salvaram os homens.

Os santos catlicos, ao se aproximarem dos deuses africanos, tornavam-se mais compreensveis e familiares aos recm-convertidos. difcil saber se essa tentativa contribuiu efetivamente para converter os africanos, ou se ela os encorajou na utilizao dos santos para dissimular as sua verdadeiras crenas. o que Nina Rodrigues indagava em 1890, numa poca em que o sincretismo entre orixs e santos catlicos ainda estava em formao e onde a equivalncia entre eles era flutuante e varivel de acordo com os terreiros. Existia ainda, na poca, a tendncia de se identificar Xang com Santa Brbara, como se v at hoje em Cuba, apesar da diferena de sexo, pois o argumento das relaes com o trovo parecia dominar. Nina Rodrigues escrevia, ento: Aqui na Bahia, como em todas as misses de catequese dos negros africanos, seja ele catlico, protestante ou maometano, longe de o negro converter-se ao catolicismo, protestantismo ou ao islamismo, acontece, ao contrrio influenci-los com seu fetichismo e adapta-los ao animismo do negro.

Basta, para compreender o fenmeno, assistir aos servios divinos nos templos protestantes do Harlem, em Nova York, ou mesmo na frica, aos cultos de numerosas seitas mais ou menos sincrticas, como a dos querubins e Serafim, onde os fiis so visitados e possudos, violentamente algumas vezes, pelo Esprito Santo.

Nos candombls, as duas religies permanecem separadas, e Nina Rodrigues constatava que, em fins do ltimo sculo, a converso religiosa no fez mais que justapor as exterioridades muito mal compreendidas do culto catlico s suas crenas e prticas fetichistas que em nada se modificaram. Concebem os seus santos ou orixs e os santos catlicos como de categoria igual, embora perfeitamente distintos.

Os africanos escravizados se declaravam e aparentavam convertidos ao catolicismo; as prticas fetichistas puderam manter-se entre eles at hoje quase to estremes de mescla como na frica.

Depois, as viagens constantes para a frica com navegao e relaes comerciais diretas... Facilitaram a reimportao de crenas e prticas, porventura um momento esquecido ou adulterado.

Com o passar do tempo, com a participao de descendentes de africanos e de mulatos Ada vez mais numerosa, educada num igual respeito pelas duas religies, tornaram-se eles to sinceramente catlicos quando vo igreja, como ligados s tradies africanas, quando participam, zelosamente, das cerimnias de candombl

Primeiros terreiros de candombl

A instituio de confrarias religiosas, sob a gide da Igreja Catlica, separava as etnias africanas. Os pretos de Angola formavam a Venervel Ordem Terceira do Rosrio de Nossa Senhora das Portas do Carmo, fundada na Igreja Nossa Senhora do Rosrio do Pelourinho. Os daomeanos (gges) reuniamse sob a devoo de Nosso Senhor Bom Jesus da Necessidade e Redeno dos Homens Pretos, na Capela do Corpo Santo, na Cidade baixa. Os nags, cuja maioria pertencia nao Kto, formavam duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte; outra reservada aos homens, a de Nosso Senhor dos Martrios.

Essa separao por etnias completava o que j havia esboado a instituio dos batuques do sculo precedem e permitia aos escravos, libertos ou no, assim reagrupados, praticar juntos novamente, em locais situados fora das igrejas, o culto de seus deuses africanos.

Varias mulheres enrgicas e voluntariosas, originrias de Kto, antigas escravas libertas, pertencentes Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, teriam tomado a iniciativa de criar um terreiro de candombl chamado y Omi se ir Intile, numa casa situada na Ladeira do Berquo, hoje Rua Visconde de Itaparica, prxima Igreja da Barroquinha.

As verses sobre o assunto so numerosas e variam bastante quando relatam as diversas peripcias que acompanharam essa realizao. Os nomes dessas mulheres so eles mesmos controversos. Duas delas, chamadas Iyaluss Danadana e Iyanass Akal, segundo uns, e Iyanass Ok, segundo outros, auxiliadas por um certo Bab Assik, saudado como Essa Assik no pad do qual falaremos mais tarde, teriam sedo as fundadoras do terreiro de se ir Intil. Iyaluss Danadana, segundo consta, regressou frica e l morreu. Iyanass teria, pelo seu lado, viajado a Kto, acompanhada por Marcelina da Silva. No se sabe exatamente se esta era sua filha de sangue, ou filha espiritual, isto iniciada por ele no culto dos orixs, ou ainda, se tratava de uma prima sua. As opinies sobre o assunto so controversas e tornam-se objeto de eruditas discusses, estando, porm todos de acordo em declarar que seu nome de iniciada era Obatoss.

Marcelina-Obatoss fez-se acompanhar nessa viagem por sua filha Madalena. Aps sete anos de permanncia em kto, o pequeno grupo voltou acrescido de duas crianas que Madalena tivera na frica, e grvida de uma terceira, Claudiana, que ser por sua vez me de Maria Bibiana do esprito Santo, Me Senhora, Oxum Miua, da qual tive a insigne honra de tornar-se filho espiritual.

Iyanass e Obatoss trouxeram de Kto, alm dessas filhas e netas, um africano chamado Bangbox, que recebeu na Bahia o nome de Rodolfo Martins de Andrade, e, no pad ao qual me referi acima, saudado como Essa Obitik.

O terreiro situado, quando de sua fundao, por trs da Barroquinha mudou-se por diversas vezes e, aps haver passado pelo Calabar na Baixa de So Lzaro, instalou-se sob o nome de Il Iyanass na Avenida Vasco da Gama, onde ainda hoje se encontra, sendo familiarmente chamado de Casa Branca do Engenho Velho, e no qual Marcelina Obatoss tornou-se a me-de-santo aps a morte de Iyanass

Verifica-se ligeira divergncia na verso dada por Dona Menininha relativa s origens dos terreiros provenientes da Barroquinha. O nome de Iyaluss danadana no mencionado. A primeira me-desanto teria sido Iya Akal (distinta de Iyanass), que, tendo regressado frica, a mesmo veio a falecer. A segunda me-de-santo teria sido Iyanass Ok (e no Akal).

No se sabe com preciso a data de todos esses acontecimentos, pois, no incio do sculo XIX, a religio catlica era ainda a nica autorizada. As reunies de protestantes eram toleradas s para os estrangeiros; o islamismo, que provocara uma srie de revoltas de escravos entre 1808 e 1835, era formalmente proibido e perseguido com extremo rigor; os cultos aos deuses africanos eram ignorados e passavam por prticas supersticiosas. Tais cultos tinham um carter clandestino e as pessoas que neles tomavam parte eram perseguidas pelas autoridades.

Por volta de 1826, a polcia da Bahia havia, no decorrer de buscar efetuadas com o objetivo de prevenir possvel levantes de africanos, escravos ou livres, na cidade ou nas redondezas, recolhido atabaques, espanta-moscas e outros objetos que pareciam mais adequados ao candombl do que a uma sangrenta revoluo. Nina Rodrigues refere-se a certo quilombo, existente nas matas de Urubu, em Piraj, o qual se mantinha com o auxlio de uma casa de fetiche da vizinha, chamada a Casa do Candombl.

Um artigo do Jornal da Bahia, de 3 de maio de 1855, faz aluso a uma reunio na casa Il Iyanass: foram presos e colocados disposio da policia Cristvo Francisco Tavares, africano emancipado, Maria Salom, Joana Francisco, Leopoldina Maria da Conceio, Escolstica Maria da Conceio, crioulo livres; os escravos Rodolfo Arajo S Barreto, mulato; Melnio, crioulo, e as africanas Maria Tereza, Benedita, Silvana... Que estavam no local chamado Engenho Velho, numa reunio que chamava de candombl. curioso encontrar nesse documento o nome, pouco comum, de Escolstica Maria da Conceio, o mesmo com o qual seriam batizados, trinta e cinco anos mais tarde, Dona menininha, a famosa me-de-santo do Gantois, cujos pais, a essa poca, sem dvida, freqentavam ou faziam parte do terreiro de Il Iyanass, onde houve essa ao policial.

Com a morte de Marcelina-Obatoss, foi Maria Jlia Figueiredo,Omonike, Iyld, tambm chamada Erel na sociedade dos gelede, que se tornou a nova me-de-santo. Isso provocou srias discusses entre os membros mais antigos do terreiro de Il Iyanass, tendo como conseqncia a criao de dois novos terreiros, originrios do primeiro; Jlia Maria da Conceio Nazar, cujo orix era Dada Bayn jk, fundou um terreiro chamado Iy Omi se Iymase, no Alto do Gantois, cuja me-desanto atual, e quarta a ocupar este lugar, Dona Escolstica Maria da Conceio Nazar, Menininha, a ltima das famosas mes-de-santo da antiga gerao. Segundo Menininha, Jlia Maria da Conceio Nazar, fundadora do Terreiro do Gantois, teria sido a irm-de-santo, e no filha-de-santo, de Marcelina-Obatoss. Uma personagem importante nos meios do candombl, chamada Bab Adet Okanled, consagrada a Oxossi e originria de Kto, teria tido um papel importante quando foi criado o Terreiro do Gantois, Iy Omi se ymase.

Eugnia Ana Santos, Aninha Obabii, cujo orix era Xang, auxiliada por Joaquim Vieira da Silva, basanya, um africano vindo do Recife e saudado Essa Obur, no pad ao qual j fizemos aluso, fundaram outro terreiro sado do Il Iyanass e chamado Centro Cruz Santa do Ax ter funcionado provisoriamente no lugar denominado Camaro, no bairro do Rio Vermelho.

Sob o impulso dessa grande me-de-santo, o novo terreiro rapidamente se igualou aos outros, e talvez tenha mesmo ultrapassado em reputao os outros candombls kto.

Maria da Purificao Lopes, Tia Bad Olufandei, sucedeu, em 1938, a Aninha e deixou, em 1941, o encargo do terreiro a Maria Bibiana do Esprito Santo, Me Senhora Oxum Miua, filha espiritual de Aninha Obabii.

Pelo jogo complicado das filiaes, Senhora era bisneta de Obatoss por laos de sangue e sua neta pelos laos espirituais da iniciao. Em outros termos, Iyanass Akal (ou Ok) foi, na gerao anterior, ao mesmo tempo a bisav e a trisav de Senhora. Mas as coisas tornaram-se mais complicadas ainda quando Senhora recebeu, em 1952, o ttulo honorfico de Iyanass pelo Alfin y da Nigria, atravs de uma carta da qual tivemos a honra de ser opartador. Senhora, abolindo o tempo passado graas a essa distino, tornou-se espiritualmente a fundadora dessa famlia de terreiros de candombl da nao Kto, na Bahia, todos originrios da Barroquinha. Confirmou to elevada posio, em 1962, quando foi presidir, seguida de seus ogs, o Axex, ou cerimnia morturia, da saudade e mais que centenria me-de-santo do Il Iyanass da Casa Branca do Engenho Velho, Maximiana Maria da Conceio, Tia Massi Oinfunk.

Essa dignidade recebida da frica por Senhora provocou, diga-se de passagem, comentrios e rumores, os fuxicos que agitam e apaixonam as pessoas que pertencem a esse pequeno mundo cheio de tradio, onde as questes de etiqueta, de direitos, fundamentadas sobre o valo dos nascimentos espirituais, de primazias, de gradao nas formas elaboradas de saudaes, de prosternaes, de ajoelhamentos so observadas, discutidas e criticadas apaixonadamente; nesse mundo onde o beijamo, as curvaturas, as deferentes inclinaes de cabea, as mos ligeiramente balanadas em gestos abenoadores representam um papel to minucioso e docilmente praticado como na corte do Rei Sol. Os terreiros de candombl so os ltimos lugares onde as regras do bom-tom reinam ainda soberanamente.

Aps o desaparecimento da saudosa Me Senhora, em 1967, duas novas mes-de-santo lhe sucederam frente do Ax Op Afonj. A atual, Maria Estella de Azevedo Santos, Odeksyd, retomando a tradio de Iyanass e de Obatoss, realizou uma viagem s fontes, na Nigria e no ex-Daom.

Outros terreiros foram criados, originrios do Ax Op Afonj, formando uma terceira, ou mesmo uma quarta gerao dessa famlia de candombls que nasceu na barroquinha. Citemos o Ax Op Aganju, de Balbino Daniel de Paula, baraim, que viajou para frica e ai participou das festas para Xang, com perfeita naturalidade e como se sua famlia no houvesse deixado aquele pas h vrias geraes. Recebeu a novo nome africano, Gbbagnl, o rei desce sobre a terra. Indiquemos tambm o terreiro Il rnl Funfun, instalado em Guarulhos, So Paulo, pelo esforos de Idrito do Nascimento Corral, filho-de-santo de menininha do Gantois. Este pai-de-santo fez, em campainha de um dos seus filhos-de-santo, Tasso Gadzanis, de Ogum, vrias peregrinaes frica, onde recebeu de Olufun, rei de Ifon, o ttulo invejvel de wr slfn.

No Estado do Rio de Janeiro instalaram-se nmeros candombl, originrios dos trs terreiros kto da Bahia. Citemos, entre os mais prestigiosos, o Ax Op Afonj em Coelho da Rocha, ligado quele de mesmo nome, estabelecido na Bahia pela clebre Aninha; em Miguel Couto, o terreiro de Nossa Senhora das Candeias, fundado por Nitinha de Oxum, Filha-de-santo de Tia Massi da Casa Branca da Bahia.

Tudo isso mostra a vitalidade, o crescimento e a multiplicao dos terreiros de candombl originrios da Barroquinha.

Existem numerosos outros terreiros que seguem o ritual kto, como o de Il Mariolaje, no Matatu, mais conhecido sob o nome de Alakto, cuja me-de-santo atual, Olga Francisca Regis,Oyafnmi, j vrias vezes frica. Citemos, ainda, o terreiro de Il Ogunj, tambm no matatu, do falecido pai-desanto Procpio Xavier de Souza, gnjobi.

Ao lado dos terreiros nag-kto, h na Bahia os da nao Ijex. O mais digno dentre eles o de Eduardo Ijex, ou Eduardo Antnio Mangabeira, meio-irmo de Otvio Mangabeira, ex-governador do Estado da Bahia. Durante a dcada de 50, ele enviou cartas redigidas em perfeito iorub a seu distante parente, o rei de Ijex, que as recebeu de nossa mos bastante emocionado.

Limitamos o tema desta obra aos orixs iorubs; portanto no falaremos dos terreiros cujas origens esto situadas em outras regies da frica. Assinalamos, entretanto, que o ritual nag parece ter tido uma grande influncia sobre os que so realizados nesses outros terreiros. No se pode excluir tambm a possibilidade de que certas influncias bantus se tivessem produzido entre os nags, levando em conta que foram trazidos, em grande nmero, escravos do Congo e de Angola at os fins do sculo XVII para todo o Brasil. Relaes mais intensas estabeleceram-se, nos sculos seguintes, entre Bahia e Pernambuco e a Costa dos Escravos. A maioria dos Cativos, desembarcada nessas duas provncias, foi gge e nag (daomeanos e iorubs). J expusemos em outras obras as razoes comerciais, fundamentadas na presena do fumo na Bahia e em Pernambuco e a sua ausncia nas outras regies do Brasil, que determinaram essa afluncia de gge e nags, mais exclusivamente nessas duas provncias, enquanto os congoleses e angolanos continuaram a ser importados em outras regies do Brasil.

A palavra candombl, que designa na Bahia as religies africanas em geral, de origem bantu. provvel que as influencias das religies vindas de regies da frica situadas nas imediaes do quadro no se limitem apenas ao nome das cerimnias, mas tenham dado aos cultos gge e nag, na Bahia, uma forma que os diferencia, em certos pontos, dessas mesmas manifestaes na frica.

Relaes Bahia-frica

Entre os filhos de africanos da primeira gerao, que retornaram no sculo passado para educar-se ou iniciar um aprendizado em Lagos, voltando depois Bahia, onde tiveram uma certa influncia sobre a reafricanizao dos cultos, temos que citar dois, cujos nomes ficaram gravados nos anais dos candombls.

Um deles foi o mui digno Martiniano Eliseu de Bonfim, Ajimd, cujo pai, trazido por volta de 1840 como escravo, comprou a de sua mulher. Martiniano nasceu livre, por volta de 1859, e acompanhou seu pai, aos dezesseis anos, a Lagos, onde trabalhou como aprendiz de marceneiro. Seu pai regressou Bahia e s se reencontraram em 1880, quando este passou dez meses em Lagos. Martiniano voltou Bahia por volta de 1886, aos vinte e sete anos, sendo recebido de braos aberto nos meios do candombl. Sua permanncia na frica tinha lhe muito prestgio e tornou-se rapidamente um babala muito procurado. Ele possua o ttulo de Ojelad entre aqueles que, na Bahia, cultuavam o esprito dos mortos, os Egngn. Muito amigo de Aninha, ele a ajudava com seus conselhos e conhecimentos sobre a histria dos iorubs, o que o levou a criar, no Op Afonj, em 1935, os ttulos honorficos de doze Obs de Xang, reis ou ministros da regio de Oy, concedidos aos amigos e protetores do terreiro.

O rival mais importante de Martiniano Eliseu do Bonfim era Felisberto Amrico Souza, Cujo nome foi inglesada para sowser e Cognominado Benzinho, ironicamente talvez, pois era freqentemente agressivo. Felisberto era tambm um babala, um dos ltimos da Bahia. Seu pai, africano, nasceu por volta de 1833, em Abeokut. No Brasil, recebeu o nome de Eduardo Amrico de Souza Gomes e com Jlia Maria de Andrade (filha de Rodolfo Martins de Andrade, Bmgbs Obiik, trazido de kto p Marcelina-Obatoss) teve Felisberto Benzinho. Eduardo voltou para a frica, onde teve numerosa prole. Felisberto fez o mesmo na Bahia, e suas filhas Irene Souza dos Santos e Caetane Amrico Sowser tm mantido fielmente as tradies trazidas da frica. Na gerao seguinte, Ary Sowser tornou-se pai-de-santo de um terreiro na Boca do Rio muito bem organizado e onde, com muita pompa, Oxagui, a quem consagrado.

Nem todos os africanos libertos e seus descendentes que voltaram frica retornaram ao Brasil, depois de terem completado seus conhecimentos do ritual do culto dos orixs. Muitos deles regressaram frica para a permanecer. Curiosamente, eles chegavam abrasileirados, como fez notar Gilberto Freyre, desafricanizados, aparentemente cristianizados, vestidos ocidental, construindo casas assobradas de estilo brasileiro e formando uma sociedade fechada, sem se misturar facilmente com os seus antigos compatriotas africanos. Tinham conservado relaes comerciais com a Bahia e faziam freqentes viagens de uma margem a outra do atlntico, a bordo de numerosos veleiros que continuavam a navegar entre os dois continentes e que, embora carregassem do Brasil fumo de rolo, barris de cachaa e carne de sol, no transportava mais escravos dede 1851, ano em que foi definitivamente abandonado o trfico negreiro. As mercadorias provenientes da frica consistiam em azeite de dend, nozes de cola, panos da costa e muitos outros produtos necessrios realizao do culto dos deuses iorubs, pois, se muitas receitas dos pratos africanos, glria da apimentada culinria da Bahia, chegaram at ns que foram fielmente conservadas e transmitidas de mes para filhas pelas baianas vendedora de quitutes nas ruas. Acontecia s vezes que, antes de sair de casa, elas faziam oferendas de parte das comidas nos altares de seus orixs. Quando as pessoas compravam e comiam acaraj, participavam, sem saber, de uma comida em comum com Ians; e se era caruru, tambm chamado amal nos terreiros de candombl, era com xang que comungavam. Assim, por considerao aos gostos dos orixs, nasceram e perpetuaram-se os vrios quitutes da Bahia.

O culto dos Orixs

Na frica, cada orix estava ligado originalmente a uma cidade ou a um pas inteiro. Tratava-se de uma srie de cultos regionais ou nacionais, Sng em Oy, Yemoja na regio de Egb, Iyewa em Egbado, gn em Ekiti e Ond, sun em Ijex e Ijebu, Erinl em Ilobu, Lgunde em Ilex, Otin em Inix, sl-Obtl em If, subdivididos em slfon em Ifan e sgiyan em Ejigb...

Os Orixs viajaram, em seguida, para outras regies africana, levadas pelos povos no curso de suas migraes. Se as pessoas formavam um grupo numeroso, o orix tomava tal amplitude que englobava o conjunto da famlia, e alguns olorixs, sacerdotes do orix, asseguravam o culto para todo o grupo. Se algum se fixa com a sua famlia restrita sua mulher e aos seus filhos, o orix assumia uma feio mais pessoal. Quando o africano era transportado para o Brasil, o orix tomava um carter individual, ligado sorte do escravo, agora separado do seu grupo familiar de origem.

A qualidade das relaes entre um indivduo e o seu orix , pois, diferente, caso ele se encontre na frica ou no Novo Mundo. Na frica, a realizao das cerimnias de adorao ao orix assegurada pelos sacerdotes designados para tal. Os outros membros da famlia ou grupo no tm outros deveres seno o de contribuir materialmente para os custos do culto, podendo, entretanto, se assim o desejarem, participar nos cantos, danas e festas animadas que acompanham essas celebraes. Devem, alm disso, respeitar as proibies alimentares e outras, ligadas ao culto, ligadas ao culto de seu orix, e, assim agindo, esto perfeitamente em regra com as suas obrigaes.

No Brasil, ao contrrio, cada um deve assegurar pessoalmente as minuciosas exigncias do orix, tendo, porm, a possibilidade de encontrar num terreiro de candombl um meio onde inserir-se, e um pai ou me de santo competente, capaz de gui-lo e ajuda-lo a cumprir corretamente suas obrigaes em relaes ao seu orix. Se a pessoa for chamada a tornar-se filho de santo, caber igualmente ao pai ou me de santo a tarefa de levar a bom termo a sua iniciao, e preparar o assento de seu orix individual (o vaso que contm os seus ta, as pedras sagradas, receptculos da fora do deus). Existem, assim, em cada terreiro de candombl mltiplo orixs pessoais, reunidos em torno do orix do terreiro, smbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo trfico.

Arqutipos

Com o passar do tempo, a definio e a concepo do que o orix no Brasil tendem a evoluir. Em se tratando de africanos escravizados no Novo Mundo ou de seus descentes a nascidos, sejam eles de sangue africano ou mulatos, to claros de pelo quanto possvel, no havia e no h problemas, pois o sangue africano que corre de pele quanto possvel, no havia e no h problemas, pois o sangue africano eu corre em suas veias, no importando a proporo, justifica a dependncia ao orixancestral.

Progressivamente, o candombl viu aumentar o nmero de seus adeptos, no somente de mulatos cada vez mais claros, como tambm de europeus, e at de asiticos, absolutamente destitudos de razes africanas.

Os transes de possesso dessas pessoas tm geralmente um carter de perfeita autenticidade, mas parece difcil inclu-los na definio acima apresentada; a do orix-ancestral que volta a terra para se reencarnar, durante um momento, no corpo de um de seus descendentes.

Embora os crentes no africanos no possam reivindicar laos de sangue com os seus orixs, pode haver, no entanto, entre eles, certas afinidades de temperamento.

Africanos e no africanos tm em comum tendncia inatas e um comportamento geral correspondente quele de um orix, como a virilidade devastadora e vigorosa de Xang, a feminilidade elegante e coquete de Oxum, a sensualidade desenfreada de Oi-Ians, a calma benevolente de Nan Buruku, a vivacidade e a independncia de Oxossi, o masoquismo e o desejo de expiao de Omolu, etc

Gisele Cossard observa que se examinarem os iniciados, agrupando-os por orixs, nota-se que eles possuem, geralmente, traos comuns, tanto no bitipo como em caractersticas psicolgicas. Os corpos parecem trazer, mais ou menos profundamente, segundo os indivduos, a marca das foras mentais e psicolgicas que os anima.

Podemos chamar essas tendncias de arqutipos da personalidade escondidas pessoas. Dizemos escondidas porque, no h nenhuma duvida, certas tendncias inatas no podem desenvolver-se livremente dentro de cada um, no decorrer de sua existncia, vivem. A educao recebida e as experincias vividas, muitas vezes alienantes, so as fontes seguras de sentimentos de frustrao e de complexos, e seus conseqentes bloqueios e dificuldades.

Se uma pessoa, vtima de problemas no solucionados, escolhida como filho ou filha de santo pelo orix, cujo arqutipo corresponde a essas tendncias escondidas, isso ser para ela a experincia mais aliviadora e reconfortante pela qual possa passar. No momento do transe, ela comporta-se, inconscientemente, como o orix, seu arqutipo, e exatamente a isso que aspiram as suas tendncias secretas e reprimidas.

Toda essa experincia permanecendo no domnio do inconsciente, o resultado da interveno do orix pode ser comparado ao dos psicodramas de Moreno, com a diferena, porm, que, ao invs de ser um processo que tende a liberar um doente de suas angstias, no meio deprimente de uma clnica, o inexprimvel mais poeticamente exteriorizado numa atmosfera de agradvel aprovao de admiradores fascinados.

Os arqutipos de personalidade das pessoas no so to rgidos e uniformes como os descritos nos captulos seguintes, pois existem nuances provenientes da diversidade de qualidades atribudas a cada orix. Oxum, por exemplo, pode ser guerreira, coquete ou maternal, dependendo do nome que leva. Como veremos, diz-se que h doze Xangs, sete Oguns, sete Iemanjs, dezesseis oxals (na frica eles seriam cento e cinqenta e quatro), tendo cada um suas caractersticas particulares. Eles so, segundo os casos, jovens ou velhos, amveis ou ranzinzas, pacficos ou guerreiros, benevolentes ou no.

Brasil, alm do mais, cada indivduo possui dois orixs. Um deles mais aparente, aquele que pode provocar crises de possesso, o outro mais discreto e assentado, fixado, acalmado. Apesar disso, ele influencia tambm o comportamento das pessoas. O carter particular e diferenciado de cada indivduo resulta da combinao e do equilbrio que se estabelecem entre esses elementos da personalidade.