dissertação gil vieira costa
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Mestrado em Artes ufpaTRANSCRIPT
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5/19/2018 Dissertao Gil Vieira Costa
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(DES)TERRITRIOS DA ARTE CONTEMPORNEA:
MULTITERRITORIALIDADES NA PRODUO ARTSTICA PARAENSE
GIL VIEIRA COSTA
MESTRADO EM ARTES
INSTITUTO DE CINCIAS DA ARTE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR
BELM
2011
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PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES
INSTITUTO DE CINCIAS DA ARTE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR
(DES)TERRITRIOS DA ARTE CONTEMPORNEA:
MULTITERRITORIALIDADES NA PRODUO ARTSTICA PARAENSE
GIL VIEIRA COSTA
BELM
2011
Dissertao apresentada Banca Examinadora do Instituto de
Cincias da Arte da Universidade Federal do Par, como
exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre no
Programa de Ps-Graduao em Artes, sob a orientao da
Professora Doutora Valzeli Figueira Sampaio.
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Biblioteca do ICA/UFPA, Belm-PA
Costa, Gil Vieira(Des)territrios da Arte Contempornea: multiterritorialidades na
produo artstica paraense / Gil Vieira Costa; orientadora Prof DrValzeli Figueira Sampaio. 2011.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Par, Institutode Cincias da Arte, Programa de Ps-graduao em Artes, 2011
1. Arte Contempornea - Par. 2. Arte Sculo XX. 3. Arte e
Cultura - Par. I. Ttulo.
CDD - 22. ed. 709.04
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A pesquisa que resultou nesta dissertao foi financiada com
bolsa de estudos concedida atravs do Programa de Fomento
Ps-Graduao da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal
de Nvel Superior-CAPES.
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Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a
reproduo total ou parcial desta dissertao por processos
fotocopiadores ou eletrnicos, desde que mantida a referncia
autoral. As imagens contidas nesta dissertao, por serem
pertencentes a acervo privado, s podero ser reproduzidas com
a expressa autorizao dos detentores do direito de reproduo.
Assinatura: ___________________________________
Local e Data: __________________________________
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AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal de Ensino Superior) pelo financiamento, atravs de bolsa de pesquisa, do
trabalho aqui registrado.
Da mesma forma agradeo professora Valzeli Sampaio, orientadora desta
pesquisa, pela pacincia, apoio, conselhos prestativos e pelo tempo a mim dedicado
no decorrer deste processo.
Agradeo, igualmente, a todos os outros professores do PPGARTES da UFPA,
especialmente a Afonso Medeiros, Cesrio Pimentel, Edison Farias, Luizan Pinheiro,
Orlando Maneschy e Ubiralcio Malheiros, pelas aulas bastante fecundas com a qual
nos agraciaram durante o curso.
Aos professores Marisa Mokarzel (UNAMA) e Orlando Maneschy (UFPA)
pelas sugestes e orientaes a respeito desta pesquisa, durante o exame de
qualificao e participao na banca examinadora.
Meu agradecimento a todos os funcionrios do Instituto de Cincias da Arte da
UFPA durante o perodo de realizao desta pesquisa, especialmente a Ailana GutaVieira e Wnia Oliveira Contente, pelo esforo e presteza que dedicaram turma
pioneira da qual fiz parte.
A todos os companheiros de turma, pelas sugestes, conversas, ajudas, debates
e reflexes esclarecedoras para esta pesquisa.
Aos amigos Adriele da Silva, Andra Feij, Gergia Bittencourt, Ilton Ribeiro e
Joo Cirilo, pelas reflexes, informaes e documentos concedidos.
Aos representantes das instituies, por seu prestativo auxlio, especialmente aDaniela Oliveira (Salo Arte Par), Renato Torres (Galeria Theodoro Braga) e Ruma
(Espao Cultural Banco da Amaznia).
E, especialmente, aos artistas que se dispuseram a contribuir, dos quais no
citarei os nomes aqui para evitar uma lista expansiva e por j estarem citados no
corpo da pesquisa, meus cordiais agradecimentos pelas informaes e pelo tempo
dedicado.
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Para meus pais, Gilvaldo e Almira, pela confiana e estmulo
constante durante esta ainda curta jornada.
Para os professores Lindalva Lopes, Meire Torres, Neder
Charone, Roseli Sousa, Sanchris Santos e Tadeu Nunes, pelos
primeiros passos que me fizeram dar e pela amizade que
continuamos nutrindo, mesmo longe.
E para todos os pssaros que, mesmo sabendo-se engaiolados,
continuam a cantar.
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o artista hoje tambm participa da desterritorializao da arte
ao questionar o conceito reconhecido de arte e ao libertar a arte,
tal como uma imagem, da moldura que a isolara do seu ambiente.
Hans Belting, no livro O fim da histria da arte.
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RESUMO
Esta pesquisa analisa a constituio de territorialidades na arte contempornea,
observando prticas artsticas desenvolvidas mais especificamente a partir da
segunda metade do sculo XX. Aplico o conceito de multiterritorialidade arte
contempornea, observando de que forma espaos convencionais e no
convencionais so utilizados nas prticas artsticas analisadas. Alguns exemplos so
mencionados, para explicitar os processos de desterritorializao, reterritorializao e
multiterritorializao da arte na contemporaneidade, priorizando-se as prticas
artsticas desenvolvidas no estado do Par.
Palavras-chave:
Multiterritorialidade; Sistemas da arte contempornea; Arte paraense.
ABSTRACT
This research analyzes the establishment of territorialities in the contemporary art,
observing art practices developed specifically from the second half of the twentieth
century. I apply the concept of multi-territoriality for contemporary art, studying how
conventional and unconventional spaces are used in artistic practices analyzed. Some
examples are mentioned to explain the processes of deterritorialization,
reterritorialization and multiterritorialization, in contemporary art, focusing on
artistic practices developed in the state of Par.
Key words:
Multi-territoriality; Contemporary art systems; Paraense art.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Imagem da interveno no Mercado de Carne, emAbaetetuba, Armando Queiroz, 2003.
69
Figura 2 Imagem da interveno no Mercado de Carne, emAbaetetuba, Armando Queiroz, 2003.
70
Figura 3 Imagem da interveno no Engenho Senhor Manteigueira(abandonado), em Abaetetuba, Carlos Meigue, 2003.
70
Figura 4 Imagem da interveno no Engenho Senhor Manteigueira
(abandonado), em Abaetetuba, Carlos Meigue, 2003.
71
Figura 5 Imagem da interveno na Fbrica de compensados, emAbaetetuba, Chico Paes, 2003.
71
Figura 6 Imagem da interveno no Matadouro, em Abaetetuba,Cledyr Pinheiro, 2003.
72
Figura 7 Imagem da interveno no Matadouro, em Abaetetuba,Cledyr Pinheiro, 2003.
72
Figura 8 Imagem da interveno na beira do rio, em Abaetetuba,Margalho, 2003.
72
Figura 9 Imagem da interveno na beira do rio, em Abaetetuba,Margalho, 2003.
73
Figura 10 Imagem da interveno no Hotel desativado, emAbaetetuba, Nio, 2003.
73
Figura 11 Processo de confeco da indumentria utilizada na aoFlutuantes, em Quatipuru, Lcia Gomes, 2003.
75
Figura 12Imagem da ao Flutuantes, em Quatipuru, Lcia Gomes,2003. 76
Figura 13Imagem da aoSanitrio ou Santurio?, em Ananindeua,Lcia Gomes, 2003.
76
Figura 14Imagem da ao Olhar de Viv, em Colares, Lcia Gomes,2003.
77
Figura 15Ttulo eleitoral cancelado, Paulo Bruscky, 1976. 90
Figura 16 Imagem da ao Espao de no-violncia, em Belm,coletivo Novas Mdias, 2010. 92
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Figura 17 Imagem da ao Espao de no-violncia, em Belm,coletivo Novas Mdias, 2010.
92
Figura 18Imagem da aoMnstruo Mostra Monstro Mostarda, em
Belm, Lcia Gomes, 2006.
95
Figura 19Imagem de umaJabiraca, Fernando de Pdua de Azevedo. 96
Figura 20 Imagem da performance Vit(r)al, em Belm, LucianaMagno, 2009.
102
Figura 21Vista interna de The Louis Kahn Lecture Room(A sala deleitura de Louis Kahn), Estados Unidos, Siah Armajani, 1982.
108
Figura 22Exposio coletivaIndicial, Belm, 2010. 109
Figura 23Exposio coletivaIndicial, Belm, 2010. 110
Figura 24Imagem da obra de Flvio Arajo, no projeto Itinerrios,Belm, 2005.
111
Figura 25Imagem da obra de Maria Jos Batista, na segunda ediodo projetoItinerrios, Belm, 2007.
112
Figura 26Imagem da interveno Cerne, Belm, Berna Reale, 2006. 115
Figura 27Imagem da interveno Cerne, Belm, Berna Reale, 2006. 115
Figura 28Imagem da ao Das guas, os Peixes, em Belm, MiguelChikaoka, 2006.
116
Figura 29MonumentoMariensule, Graz ustria. 126
Figura 30Imagem da interveno Und ihr habt doch gesiegt (E noentanto vocs eram os vencedores), ustria, Hans Haacke, 1988.
126
Figura 31 Imagem da interveno Lmina, em Belm, ArmandoQueiroz, 2005.
129
Figura 32 Imagem da interveno Presena-Ausncia, em Belm,Berna Reale, 2005.
130
Figura 33Imagem do altar de Oriandina Lima de Oliveira transpostopara o MHEP, instalao Transumncia, em Belm, Jocatos, 2005.
130
Figura 34 Imagem do altar criado por Jocatos para a instalaoTransumncia, na casa de Oriandina Lima de Oliveira, Belm, 2005.
131
Figura 35Imagem de uma das intervenes de der Oliveira, Belm,2006.
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Figura 36Imagem da instalao Permanncia, em Belm, MarianoKlautau e Valzeli Sampaio, 2007.
132
Figura 37 Imagem do ato Glria Aleluia e a Mo de Deus, na
performance Gallus Sapiens(Parte 2), em Belm, Victor de La Rocque,2008.
133
Figura 38Imagem do ato Come, ainda tens tempo, na performanceGallus Sapiens(Parte 2), em Belm, Victor de La Rocque, 2008.
134
Figura 39Imagem do ato Entre os meus e os seus, na performanceGallus Sapiens(Parte 2), em Belm, Victor de La Rocque, 2008.
134
Figura 40 Imagem da exibio do registro videogrfico daperformance Gallus Sapiens(Parte 2), em Belm, Victor de La Rocque,
2008.
135
Figura 41 Imagem da ao Sudrios, em Santarm, Egon Pacheco,2009.
136
Figura 42Registro da ao Bicicletas Brancas, dentro da exposioDeslocamentos, de Murilo Rodrigues, Belm, 2009.
146
Figura 43 Um dos espaos da exposio Deslocamentos, de MuriloRodrigues, no Espao Cultural Banco da Amaznia, Belm, 2009.
146
Figura 44Registro da performance de Bruno Oliveira em nibus de
Belm, no projetoPerformaes Urbanas, de Carla Evanovitch, 2009.
148
Figura 45 Registro (vdeo) e dinheiro coletado na performance deBruno Oliveira, na exposio Performaes Urbanas, de CarlaEvanovitch, Belm, 2009.
148
Figura 46 Imagem da interveno Fractais, em Belm, HeraldoSilva, 2009.
149
Figura 47 Imagem da obra Lminas dgua - cavernando, noMangal das Garas, Belm, Geraldo Teixeira, 2005.
163
Figura 48 Imagem da obra Expresso Imaginrio, no TerminalRodovirio de Belm, Emanuel Franco, 2006.
164
Figura 49Imagem da interveno urbana na barraca do Dr. Raiz, emBelm, Mestre Nato, 2006.
166
Figura 50Imagem da obraDona Francisca, na residncia da mesma,em Nazar do Mocajuba, Alexandre Sequeira, 2005.
168
Figura 51 Imagem da interveno urbana no prdio do MHEP,
Belm, Daniely Meireles, 2006.
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Figura 52 Imagem da ao Trancas, no projeto Pretrito doPresente, em Belm, Roberta Carvalho, 2006.
171
Figura 53 Imagem da interveno Symbiosis, em Belm, Roberta
Carvalho, 2010.
172
Figura 54 Imagem da interveno Trnsitos Mutantes, CarlaEvanovitch, Eduardo Wagner e Murilo Rodrigues, Ananindeua, 2007.
173
Figura 55 Imagem da interveno Paisagem, em Belm, AndraFeij, 2007.
174
Figura 56 Imagens da interveno urbana Monga, em Belm,Nailana Thiely, 2008.
176
Figura 57 Imagens da interveno urbana Monga, em Belm,Nailana Thiely, 2008.
176
Figura 58 Imagens da interveno urbana XY, em Ananindeua,Douglas Caleja, 2010.
177
Figura 59 Imagem da ao televisionada Satellite Art Project, KitGalloway e Sherrie Rabinowitz, 1977.
184
Figura 60 Imagem da obra A-Volve, Japo, Christa Sommerer eLaurent Mignonneau, 1993-1994.
185
Figura 61Quatro slides da obraHF02AQLFPNCC20H, Lcia Gomes,2009.
188
Figura 62 Imagem da ao de Victor de La Rocque (projeo emvdeo na parede) durante oIV Atrito, em Belm, 2008.
190
Figura 63Imagem da aoLuz no Manoel, dentro do projeto CidadeRede, em Belm, Val Sampaio, 2008.
192
Figura 64Imagem da aoLuz no Manoel, dentro do projeto CidadeRede, em Belm, Val Sampaio, 2008.
192
Figura 65Imagem da performance Third Hand, Stelarc, 1976. 199
Figura 66Imagem da obraHistria Natural do Enigma, ouEdunia,Eduardo Kac, 2003-2008.
200
Figura 67 Imagem da ao Sangria Desatada, em Belm, Rede[Aparelho]-:, 2009.
203
Figura 68Imagens da aoPipaz, em Belm, Lcia Gomes, 2006. 205
Figura 69 Imagem da interveno realizada no Cemitrio NossaSenhora da Soledade, em Belm, Armando Queiroz e Lilo Karsten, 2007.
206
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Figura 70 Imagem da interveno realizada no Cemitrio NossaSenhora da Soledade, em Belm, Armando Queiroz e Lilo Karsten, 2007.
206
Figura 71Imagem da ao Adote um urubu, em Maiandeua, Andra
Feij, 2008.
207
Figura 72Imagem da aoAdote um urubu, em Maiandeua, AndraFeij, 2008.
208
Figura 73 Imagem da performance Anti Moda, em Belm, JaimeBarradas, 2005.
210
Figura 74 Imagem da performance Entre peixe, pssaros...homem,em Belm, Jaime Barradas, 2008.
210
Figura 75 Imagem da ao Bl bl bl, em Belm, Luciana Magno,2010.
212
Figura 76 Imagem da performance Cafetinagem, em Belm, BrunoCanturia, Luciana Magno e Ricardo Macdo, 2010.
212
Figura 77 Fotografia do trptico Quando todos calam, em Belm,Berna Reale, 2009.
214
Figura 78Imagem da performance A sangue frio, em Belm, BernaReale, 2010.
214
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SUMRIO
Introduo 18
1 A ARTE ENQUANTO SISTEMA SCIO-HISTRICO:
DELIMITANDO UM ESPAO CONCEITUAL 21
1.1 Caractersticas da contemporaneidade 28
1.2 Breve introduo arte contempornea no Par 36
2 O ESTABELECIMENTO DE TERRITRIOS ARTSTICOS 47
2.1 Multiterritorialidades na arte contempornea 60
3 DINMICA DOS TERRITRIOS 80
3.1 Desterritorializaes: espaos no institucionais 83
3.2 Reterritorializaes: dispositivos de apropriao 98
3.2.1 Instituies 105
3.2.2 Regulamentaes 121
3.2.3 Intermidialidades 138
4 MULTITERRITORIALIDADES NOS
SISTEMAS DA ARTE CONTEMPORNEA 1514.1 Os espaos geogrficos 155
4.1.1 Aes permanentes 161
4.1.2 Aes efmeras 166
4.2 Os espaos virtuais 179
4.3 Os espaos biolgicos 194
4.3.1 Biomodificaes 197
4.3.2 Processos corporais transitrios 202Consideraes finais 217
Bibliografia 221
ndice Onomstico 230
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INTRODUO
inegvel que a arte contempornea tem abarcado prticas bastante
heterodoxas no curto espao de aproximadamente cinco dcadas. Desde a segunda
metade do sculo XX que os artistas e suas prticas tm divergido excessivamente nas
suas escolhas (sejam elas materiais, tcnicas, conceituais, polticas, dentre outras). O
surgimento destas prticas diferenciadas se deu, grosso modo, na inteno de ruptura
com sistemas culturais que mantinham (e mantm) a arte contempornea. Mas isto
no quer, de forma alguma, dizer que as nicas implicaes destas prticas artsticas
foram de ruptura com os modelos institudos. Pelo contrrio, grande parte destes
elementos subversivos foram transformados, apropriados e deglutidos em prol da
manuteno de sistemas culturais. As implicaes foram tantas, e to diversas, que
seria at mesmo ingnua a pretenso de caracteriz-las como avano ou retrocesso
para a arte contempornea.
Abandonando um possvel tom idealista ou maniquesta, nesta pesquisa
pretendo salientar que a heterodoxia destas prticas artsticas causou inmeras
mudanas no entendimento do que vem a ser (ou do que compreendido por) a artecontempornea. Uma destas mudanas diz respeito territorialidade da mesma, e
justamente a anlise destas territorialidades que so estabelecidas a partir destas
prticas no usuais (que atualmente poderamos, sem problema algum, chamar de
prticas usuais, dada a sua adoo por inmeros artistas e coletivos inseridos nos
sistemas da arte contempornea) que ser realizada no decorrer desta dissertao.
A metodologia utilizada nesta pesquisa qualitativa, principalmente baseada
nas metodologias de pesquisa em cincias humanas e sociais. Na anlise de contedoconstituiu-se um levantamento bibliogrfico e documental recorrendo a livros,
catlogos, jornais, sites, imagens, vdeos, visitao in loco e demais formas de
documentao para construir um banco de dados e um referencial terico
suficiente para o desenvolvimento da pesquisa. Assim, no faz parte da metodologia
desta pesquisa o juzo esttico ou crtico a respeito das prticas artsticas analisadas.
Mas, ainda que aqui no caiba a anlise propriamente esttica, nem por isso no ser
parte integrante da pesquisa a anlise da pertinncia de tais obras dentro de um
sistema social estabelecido e, portanto, a anlise das relaes que mediam a
concretizao de tais prticas artsticas.
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importante dizer que os exemplos de obras e artistas aqui usados priorizam a
produo realizada no estado do Par, mas de modo algum se constitui, nesta
pesquisa, um levantamento histrico que pretenda ser completo. Antes, utilizo-me
de exemplos de acordo com a representatividade dos mesmos para os interesses do
presente estudo, traando um percurso labirntico, ao invs de elaborar uma rgida
cronologia histrica j que o interesse aqui clarificar conceitos. Assim, provvel
que algumas lacunas fiquem aparentes e alguns casos de multiterritorialidade na arte
paraense no sejam citados, o que no constitui um prejuzo pesquisa. Alguns
exemplos de outros contextos tambm sero utilizados, no intuito de evidenciar os
conceitos aqui propostos, mas respeitando as diferenas internas entre sistemas da
arte, histrica e geograficamente distintos.No primeiro captulo busco situar minha pesquisa dentro de um campo terico
e conceitual, no qual as noes de arte e de sistema da arte possuem um papel
fundamental, pois sedimentam o pensamento na inteno de analisar as
territorialidades estabelecidas, j que no existe territrio se no houver determinada
conveno simblica (cultural). As caractersticas da arte contempornea e das
sociedades atuais como um todo so observadas e discutidas. Um esboo da
trajetria recente da produo artstica contempornea no estado do Par tambm realizado, para fornecer uma contextualizao histrica aos exemplos que sero
usados no decorrer da dissertao.
No segundo captulo discuto de forma mais aprofundada a conceituao de
territrio que ser utilizada no decorrer do texto. As matrizes de pensamento das
cincias humanas (especialmente sociolgicas e geogrficas) so usadas para discutir
as territorialidades na arte, e, especialmente, o conceito de multiterritorialidade
trazido da obra de Rogrio Haesbaert (2004) que permeia toda a dissertao.
No terceiro captulo busco evidenciar as relaes de desterritorializao e
reterritorializao na arte contempornea, que so justamente as relaes que
possibilitam a existncia da multiterritorialidade. Na subseo chamada
Desterritorializaes, passo anlise das prticas e mecanismos utilizados pelos
artistas para transgredir os territrios convencionais da arte, no qual as prticas
artsticas possuem um tom de ruptura, um modo utpico de antiarte e antissistema.
Verifico de que forma os territrios outrora convencionais da arte so subvertidos e
transgredidos, originando posteriormente outras territorialidades diferenciadas. Na
subseo seguinte, denominada Reterritorializaes, analiso os processos
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subsequentes s desterritorializaes da arte contempornea, verificando alguns
dispositivos e mecanismos utilizados para concretizar tais processos. Esses
mecanismos so distribudos em trs categorias interdependentes: instituies,
regulamentaes e intermidialidades. a partir destes movimentos dentro do
sistema social da arte que identifico a multiterritorialidade na arte contempornea,
enquanto multiplicidade dos possveis espaos ocupados pela mesma, em funo de
toda uma flexibilidade tpica das sociedades contemporneas.
Por fim, no quarto e ltimo captulo desta pesquisa analiso os processos da
multiterritorialidade dos sistemas da arte contempornea, ainda priorizando
exemplos da produo realizada no estado do Par. As multiterritorialidades so
analisadas partindo de trs eixos coexistentes: o espao geogrfico, o espao virtual eo espao biolgico. Cada um destes eixos descrito e discutido conforme o
embasamento terico formulado por diversos pesquisadores, e exemplificado
conforme os casos distintos que constituem tais multiterritorialidades.
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1
AARTEENQUANTOSISTEMASCIO-HISTRICO:
DELIMITANDOUMESPAOCONCEITUAL
Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta,
que no h ningum que explique e ningum que no entenda...
Ceclia Meireles.
Definir termos to desprovidos de limites, como arte ou cultura, certamente
uma tarefa complicada. No entanto, em certos momentos torna-se necessrio
arriscar-se nestes exerccios filosficos, para que se estabeleam parmetros
necessrios compreenso e ao dilogo. o que me ocorre neste momento. No que
esteja assumindo a rdua tarefa de definio de um conceito, por menor que ele seja
(e este no o caso do conceito de arte ou cultura), mas proponho que estes limites
possam ser, pelo menos provisoriamente, delineados desde que somente nestecontexto scio histrico no qual esta pesquisa est inserida.
Parto do princpio de que, para analisar os mecanismos de produo de poder
simblico do sistema da arte contempornea, necessrio primeiro compreender os
mecanismos das relaes sociais, as caractersticas da estrutura da sociedade como
um todo e em suas partes, estrutura na qual este sistema age. evidente que, no caso
desta pesquisa, deverei tratar no com um sistema da arte de uma sociedade
contempornea, mas com sistemas da arte de sociedades contemporneas peculiares,distintas entre si (apesar de manterem semelhanas em diversos pontos essenciais).
Isso ficar evidente conforme surgirem exemplos no corpo da pesquisa, abordando
prticas artsticas situadas em perodos histricos e grupos sociais distintos.
As caractersticas econmicas, polticas, geogrficas, histricas, ecolgicas,
tecnolgicas etc. que fazem com que as sociedades se diferenciem entre si por
estarem em locais geograficamente distintos; ou dentro de uma mesma sociedade
continuada, mas em momentos histricos diferentes; e ainda sociedades que
compartilhem de um mesmo espao-tempo, mas que se distingam pelas
caractersticas econmicas, tecnolgicas etc. As caractersticas supracitadas de certa
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forma condicionam a caracterstica cultural de cada organismo social. Essa hiptese
me parece coerente, pois no resvala em um determinismo ingnuo do meio sobre o
homem (e sobre a sociedade), j reavaliado pelos tericos da atualidade.
Antes de apresentar as caractersticas atravs das quais a nossa sociedade
experimentada por seus agentes, quero partir de uma delimitao conceitual para
cultura, j que posso situar o conceito de arte dentro desse caldeiro abarcado pelo
termo cultura, e posteriormente situar a arte contempornea dentro do conceito
generalizado de arte. Definir cultura certamente uma tarefa rdua, dadas as
propores que a palavra tomou, em suas diversas acepes e usos construdos
historicamente. No entanto, posso situar o termo, dentro desta pesquisa, em uma
perspectiva contempornea, emprestada dos avanos nas cincias sociais. Sigo atrilha de Raymond Williams (1992: 13), quando diz que
Assim, h certa convergncia prtica entre (i) os sentidos antropolgico esociolgico de cultura como modo de vida global distinto, dentro do qualpercebe-se, hoje, um sistema de significaes bem definido no s comoessencial, mas como essencialmente envolvido em todas as formas deatividade social, e (ii) o sentido mais especializado, ainda que tambm maiscomum, de cultura como atividades artsticas e intelectuais, embora estas,devido nfase em um sistema de significaes geral, sejam agora definidasde maneira muito mais ampla, de modo a incluir no apenas as artes e asformas de produo intelectual tradicionais, mas tambm todas as prticassignificativas desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, at ojornalismo, moda e publicidade que agora constituem esse campocomplexo e necessariamente extenso.
Portanto, existem alguns pressupostos que gostaria de assumir, para
identificar a delimitao que o termo cultura ir adquirir em sua utilizao nesta
pesquisa. Assim, o sistema de significaes citado acima por Williams nada mais
do que o estabelecimento de estruturas simblicas, valores socialmente construdos,
que interferem nos procedimentos, nas prticas, atravs das quais os homens
relacionam-se entre si e com o meio em que vivem.
Dentro deste aparato conceitual, posso colocar as estruturas simblicas que se
referem linguagem, ao comportamento sexual, alimentao, ao poder poltico, ao
vesturio, aos significados dos acontecimentos (como a morte, a vida, o sagrado etc.)
e dos objetos (utenslios e ferramentas, objetos artsticos, objetos de valor afetivo
etc.), dentre outras, conforme explicita Williams (1992).
Tambm Renato Barilli (1995) um dos pesquisadores que aborda a
conceituao de cultura, e revela aspectos fundamentais para esta compreenso
quando apresenta a cultura (humana) como conjuno de dois estratos, o material e o
ideal. Entretanto, Barilli no hierarquiza estes estratos, como outros autores vieram a
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fazer, dando a entender que para a cultura o estrato das ideias mais importante e
determina o estrato material, ou vice-versa. A cultura condicionada e construda
partindo de diversos aspectos que so oferecidos pelo contexto em questo, e no qual
toda mudana no mbito material pode implicar mudana no mbito intelectual,
assim como o contrrio tambm possvel. Para Barilli (1995: 21)
(...) o homem o nico animal que pode valer-se de uma memria extra-orgnica, entregue a corpos materiais extrnsecos, durveis para alm doespao de uma vida fisiolgica, de tal modo que os filhos, os descendentes, osencontram, podendo adquiri-los em tempos acelerados e por sua vez integr-los, enriquec-los ou contest-los e rev-los segundo outros parmetros.
Este pensamento bastante eficaz quando aplicado ao mbito da arte, pois
podemos notar como os conceitos, os materiais, as tcnicas, as estticas, dentre
outros fatores, se acumulam atravs do tempo, em um processo de transitoriedade.Da tambm a possibilidade de levantar a hiptese de que a arte ("visual")
contempornea passe, atualmente, por este processo de trnsito, integrao e
contestao das caractersticas culturalmente adquiridas, forjando novos espaos e
territorialidades que necessitam ser melhor observados. O terceiro e quarto captulos
desta pesquisa se debruam justamente sobre estas relaes, nas quais uma parte das
prticas artsticas contemporneas construda a partir da reformulao de prticas,
conceitos, tcnicas, materiais etc. usados em meados do sculo XX. importante salientar que em nossa sociedade, assim como na maioria das
sociedades contemporneas, h uma imbricao de reas anteriormente distintas.
Refiro-me impregnao da cultura emeporoutras reas da existncia social, como
a economia. Fredric Jameson (2001: 73) argumenta que
(...) tal conjuntura marcada por uma desdiferenciao de campos, de modoque a economia acabou por coincidir com a cultura, fazendo com que tudo,inclusive a produo de mercadorias e a alta especulao financeira, setornasse cultural, enquanto que a cultura tornou-se profundamente
econmica, igualmente orientada para a produo de mercadorias.Desta forma, devemos admitir que uma anlise como a que proposta por esta
pesquisa, de produes e prticas culturais artsticas, deve necessariamente estar
atenta tessitura de relaes estruturadas entre este objeto (cultural) de pesquisa e
as configuraes de um sistema capitalista, de um mercado fludo e caracterizado
pelo consumo.
Nesta pesquisa no pretendo tocar nas questes referentes delimitao de
termos como cultura popular, erudita, de massa, contempornea, tradicional, dentre
outros termos de difcil conceituao, algumas vezes anacrnicos. Desde que se
compreenda que, quando aponto cultura, me refiro a uma estrutura de representao
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de valores, atravs da qual o ser humano media suas prprias relaes em sociedade,
no ser preciso ir alm ao aprofundamento do conceito.
Diferente do que acontece no caso do termo arte, igualmente complexo, porm
mais necessrio para esta pesquisa do que o termo anterior. A arte situa-se dentro da
cultura, uma de suas constituies, uma forma do ser humano lidar com seus
objetos materiais conferindo-lhes determinados valores tidos como espirituais ou
intelectuais, e ainda expressivos. Tudo isto, claro, foi dito grosso modo.
Na contemporaneidade importante, por exemplo, notar as divergncias
existentes acerca das formas de conhecimento construdas pela arte, pela cincia e
pela filosofia, conforme estudado por Gilles Deleuze e Flix Guattari (1992). O
conhecimento criado pela primeira, segundo os autores, independente de seureferencial, e at mesmo de seu criador. A arte conserva as sensaes atravs de sua
prpria constituio material, e persiste aps a destruio de seu suposto modelo
(uma pintura continua aps a destruio da paisagem retratada). Deleuze e Guattari
(1992: 214) chegam a afirmar que, por vezes, necessrio que a obra se distancie do
modelo atravs da inverossimilhana, da imperfeio e da anomalia, para que possa
se sustentar enquanto bloco de sensaes pertinentes. Este sustentar-sediz respeito
arte enquanto capacidade de testemunhar sensaes e percepes humanas por si s.So as prprias possibilidades estticas do material que a arte utiliza para se
constituir. este mesmo material a nica coisa de que a mesma depende para
subsistir (mesmo as artes conceitual e virtual necessitam de algum suporte material
para se realizarem, ou seja, tornarem-se experimentveis). Ainda que independa de
seu criador, e at mesmo de seu modelo referencial, a arte depende da durabilidade
de seu material para poder persistir enquanto texto, enquanto sensaes. Na era da
reprodutibilidade informtica h diversas possibilidades de persistir atravs dos
mecanismos digitais, j que todo tipo de documento pode ser convertido em um
cdigo binrio, para depois ser decodificado, mantendo intactas as sensaes
evocadas pela arte. J no h mais um original, mas sim uma obra que independe de
um nico suporte material para manter-se existindo e transmitindo conhecimentos
conseguidos pelo artista. As sensaes evocadas pela arte so culturalmente
concebidas e aprendidas, e no autnomas e universais, como se chegou a pensar.
E quando cito as diferenas do conhecimento adquirido pela arte, pela cincia
e pela filosofia, problematizo a localizao da minha prpria pesquisa. Esta anlise
aqui empreendida aproxima-se muito mais dos estudos sociais do que da pesquisa
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em arte propriamente dita, conforme conceituada metodologicamente por Slvio
Zamboni (no livro A pesquisa em arte, lanado em 2001). certo que o
conhecimento, para ser adquirido, entrecruza as experimentaes filosficas,
cientficas e artsticas, como os prprios Deleuze e Guattari afirmaram. Esta pesquisa,
portanto, provavelmente possui matizes de pensamentos diferenciados, conforme a
apropriao para cada fase da construo do conhecimento.
Retornemos, portanto, delineao de uma estrutura conceitual para o termo
arte. Concordo com o antroplogo Clifford Geertz (1997: 178) quando o autor afirma
ser a mesma um sistema cultural, e quando diz que
(...) o dito sentido de beleza, ou seja l o nome que se d a essa habilidadede responder inteligentemente a cicatrizes em faces, a formas ovais pintadas,
a pavilhes com cpulas, ou a insultos rimados, no menos um artefatocultural que os objetos e instrumentos inventados para sensibiliz-la .
Nestes termos, a arte apenas um modo social e historicamente produzido
de representar (e, portanto, compreender) as experincias estticas (enquanto aes
sensibilizantes e materiais) de determinada sociedade. Claro que, posto nestes
termos, o complexo pensamento de Geertz parece simplista. De certa forma, o que
pretendo dizer que a arte, enquanto termo geral e que diz respeito tradio
ocidental, uma construo de valores sociais que confere significado simblico a
funes, objetos, procedimentos e relaes do ser humano e entre seres humanos, em
um determinado contexto social e histrico. As diferentes caractersticas que a arte
enquanto representao coletiva vai adquirir, conforme as diferenas culturais, no
cabem a esta pesquisa. H diferenas sensveis, inclusive, entre grupos dentro de uma
mesma sociedade, e entre indivduos dentro de um mesmo grupo, e at mesmo entre
categorizaes mentais em um nico indivduo, no que diz respeito ao entendimento
do que vem a ser arte. Delimitar este termo com maior preciso no to interessante
para esta pesquisa.Muito mais urgente dizer que no quero adotar, nesta pesquisa, a viso de
uma arte universal e transcendental, portanto maiscula. Esta configurao para a
ideia de arte, que se desenvolve com bastante vigor no Iluminismo, resvalando
inclusive nos movimentos modernistas, abandonada pelos tericos da
contemporaneidade. Se a arte corresponde a um sistema de valores culturais e
histricos, porque um conceito estritamente social, e no universal. Rgis Debray
(1993b: 147-148), falando sobre esta ideia progressista da arte, diz:Houve a pretenso de nos levar a acreditar que a Arte um invariante, regiodo ser ou canto da alma, que seria, pouco a pouco, ocupada por imagensfabricadas aqui e l. Procedia-se como se o escoamento das imagens desde
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h trinta mil anos declinasse, no decorrer dos sculos, uma estrutura ideal,conjunto de propriedades comuns definindo uma certa classe de objetos queseriam atualizados, em cada poca, em determinado trao ou segmento.
Mais do que isso, um pouco mais adiante Debray (1993b: 150) afirma a
indissolvel relao da arte com as caractersticas do contexto que a gerou, para que
haja uma compreenso profunda de como operam estes valores e representaes.
O ndice de autonomizao das formas plsticas iminentemente varivel.Todos ns sabemos que impossvel compreender a produo esttica de umgrupo humano sem reposicion-la no meio dos outros aspectos de sua vida,tcnica, jurdica, econmica ou poltica. O que chamamos arte podemuitssimo bem no constituir em si mesmo um subconjunto significativodistinto de todos os outros.
O autor fala de variabilidade na autonomia das formas plsticas em
representar ou significar algo, o que bastante claro. Um desenho realista de um
cavalo no requer grandes conhecimentos da cultura e sociedade na qual foi
produzido, a no ser o conhecimento prvio do que vem a ser um cavalo e sua
representao material. J o mesmo desenho, situado dentro de um museu de arte,
adquire significaes bastante diferentes e mais complexas, que exigiriam um
aprofundamento nas caractersticas da arte enquanto um sistema institucional
(museu), que confere valores a determinadas produes culturais. por este motivo
que pretendo abordar as caractersticas das sociedades contemporneas antes de
avanar no estudo das produes artsticas s quais esta pesquisa se refere.
Na contemporaneidade, preciso deixar claro, h um estilhaamento de
teorias que dizem respeito arte. Posso tomar por base, entretanto, o pensamento de
Jameson (2001), quando o autor cita o perodo anterior ao moderno como
impregnado de uma arte voltada para a ideia do belo (kantiano). O perodo moderno
se configura como a substituio gradual da arte como belo pela arte como sublime
(igualmente kantiano), ou seja, o propsito da esttica moderna da arte como
possibilidade de alcanar o absoluto, o transcendente. Mas o moderno tambm temseu fim, conforme Jameson (2001: 85).
Agora, entretanto, creio que estejamos numa posio melhor para identificaresse fim de algo, que s pode ser o fim do moderno, ou o fim do sublime, adissoluo da vocao artstica de atingir o absoluto. (...) O fim do moderno,o surgimento gradual do ps-moderno ao longo de vrias dcadas, constituium evento cujas avaliaes mutveis e instveis merecem um estudoparticular.
Aquilo que este autor (e muitos outros alm dele) caracteriza como ps-
moderno a poca (no sentido de ser o modo como se configuram nossas
subjetivaes e relaes sociais podendo, claro, existir sociedades hoje que no se
enquadram no conceito de ps-moderno) em que nos encontramos, na qual parece
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surgir uma nova ideia de arte, distinta daquela que se aproximava do belo, e tambm
distinta daquela que se aproximava do sublime, mas sem negar ou desfazer-se por
completo de nenhum dos dois. A arte nessa nova era parece ter retrocedido quele
antigo papel culinrio que ela possua antes do domnio do sublime, diz o prprio
Jameson (2001: 87). a contemporaneidade que traz a tona uma sociedade
caracterizada pelo visual, numa sobreposio exacerbada das imagens como forma de
existncia prpria, refletindo mesmo na arte.
Jean Baudrillard (1996) um dos autores que adotam posies extremas no
que diz respeito ao posicionamento diante da arte. Este autor nos fala de
transesttica, quando a Arte (dos movimentos modernos) desaparece, no cabendo
mais a distino entre belo e feio, j que tudo esttico, e ao mesmo tempo j noexistem valores capazes de examinar e relacionar um objeto com outro. Para
Baudrillard (1996: 23):
Atravs da liberao de formas, linhas, cores e concepes estticas,atravs da mixagem de todas as culturas e de todos os estilos, nossa culturaproduziu uma estetizao geral, uma promoo de todas as formas decultura, sem esquecer as formas de anticultura, uma assuno de todos osmodelos de representao e de anti-representao. (...) At a antiarte, a maisradical das utopias artsticas, foi realizada, desde que Duchamp instalou seuporta-garrafas e que Andy Warhol quis tornar-se uma mquina. Toda amaquinaria industrial do mundo ficou estetizada, toda a insignificncia domundo viu-se transfigurada pelo esttico.
Espero no ter sido reducionista demais ao apontar estes conceitos, nem
tampouco evasivo ao ponto de deixar margens para ambiguidades ou dvidas sobre o
que pretendo dizer a partir daqui.
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1.1 Caractersticas da contemporaneidade
As caractersticas que pretendo abordar nesta subseo dizem respeito a uma
srie de teorias e autores distintos, formando, portanto, uma malha fragmentria de
conceitos sobrepostos. De certa forma, estes conceitos so gerais, pois dizem respeito
ao modo como se configuram diversas sociedades atravessadas pela globalizao.
evidente que no so caractersticas universais, havendo inclusive a insuficincia de
teorias que se adequem aos grupos sociais perifricos (como o estado do Par,
abordado nesta dissertao). Entretanto, interessante analisar como estas
caractersticas da contemporaneidade so refletidas, ou antes refratadas, em
sociedades diferentes ainda que seja impossvel qualquer totalizao das concluses
obtidas nos estudos sobre sociedades, em uma poca marcada por relaes
complexas, ciclos cada vez mais fludos e efmeros, hibridaes culturais cada vez
mais contnuas.
Clifford Geertz (2001) fala em enfraquecimento do etnocentrismo, e dos
limites entre culturas. Ele aponta o etnocentrismo como uma atitude que no
podemos abandonar, por mais que tentssemos faz-lo, j que a garantia de
diversidade de modos de vida algo bom, para evitar uma entropia moral, ou umapadronizao de comportamentos sociais e humanos. Por outro lado, tambm fala
que o uso que fazemos do etnocentrismo no pode ser irresponsvel, a ponto de
subestimar ou superestimar outras culturas. As questes que este autor levanta
tm especial relevncia principalmente por mostrar que
as questes morais provenientes da diversidade cultural ( que, claro, estolonge de ser todas as questes morais que existem), as quais, se quechegavam a surgir, surgiam sobretudo entre sociedades aquele tipo decoisa dos costumes contrrios razo e moral de que se alimentou o
imperialismo , surgem agora, cada vez mais, dentro delas. As fronteirassociais e culturais tm uma coincidncia cada vez menor (...), num processode baralhamento que j vem acontecendo h um bom tempo, claro (naBlgica, no Canad, no Lbano, na frica do Sul, e nem a Roma dos Csaresera l muito homognea), mas que, em nossos dias, aproxima-se depropores extremas e quase universais (GEERTZ, 2001: 77).
Experimentamos, portanto, uma sociedade das metrpoles cosmopolitas, onde
as culturas se fundem umas s outras, no para uma homogeneizao (que talvez
sequer seja uma possibilidade), mas para a proliferao de culturas hibridizadas,
conforme tambm aponta Nstor Canclini (2008). Ao se suprimir (ou melhor, ao se
atenuar), atravs da tecnologia, as barreiras de tempo-espao, provocou-se um
choque de modos de representao, um contgio de sistemas simblicos, que no
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fluem para uma convergncia de opinies, nas palavras de Geertz (2001: 76), mas
a uma mistura delas.
A cultura da maioria dos pases desenvolvidos e tambm a de pases
subdesenvolvidos, porm industrializados, como o Brasil apresenta caractersticas
de supresso de fronteiras tnicas, sociais e culturais h algum tempo, como
demonstrou Geertz, mas estas relaes foram intensificadas e estendidas ao extremo
com as evolues tecnolgicas proporcionadas a partir do sculo XX. Especialmente
no que diz respeito s novas tecnologias digitais e eletrnicas, que possibilitaram no
s a eliminao de grandes distncias atravs da diminuio do tempo de
deslocamento (compare as viagens de avio com as viagens de navios a vapor, ou o
tempo de viagem gasto em um veculo de trao animal com o gasto por umautomvel), mas tambm a telepresena atravs de mecanismos tecnolgicos,
especialmente o ciberespao, possibilitando a conexo com outras partes do planeta
sem exigir o deslocamento, atravs da (paradoxal) existncia virtual.
At mesmo as cidades so repensadas e experimentadas de outras maneiras,
partindo destas caractersticas. Nelson Peixoto (2004) analisa as novas concepes
relativas rea na atual geografia urbana, e considera a existncia de novas formas de
percepo do espao, que s podem ser compreendidas atravs de grandes escalas.Nestas grandes escalas torna-se evidente que, em diversas situaes, cidades em
continentes diferentes (como Paris e Nova York) so relativamente mais prximas do
que cidades dentro de um mesmo pas (tal qual a distncia entre as capitais e certas
localidades remotas da Amaznia). Para Peixoto (2004: 397) A percepo do espao
passa a ser determinada pela velocidade, inviabilizando o reconhecimento pedestre,
tpico das configuraes locais tradicionais.
Este processo de supresso dos espaos e do tempo entre culturas e locais
distintos, que se convencionou chamar de globalizao, tem influenciado as
identidades culturais na maioria dos pases, especialmente aqueles que vivem em um
sistema capitalista, mas no necessariamente tendendo a uma homogeneizao das
sociedades, segundo Stuart Hall (2006). Este autor fala sobre algumas hipteses que
foram levantadas acerca da influncia do processo de globalizao sobre estas
identidades nacionais j que as fronteiras culturais entre as naes esto cada vez
mais diludas. Em um determinado momento, Hall (2006: 77) aponta algumas
teorias que demonstram que ao lado da tendncia em direo homogeneizao
global, h tambm uma fascinao com a diferenae com a mercantilizao da etnia
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e da alteridade. H, juntamente com o impacto do global, um novo interesse pelo
local, mas, por outro lado, o prprio Hall, apesar de enxergar no interesse pela
alteridade um exacerbado consumismo, no acredita em um processo de
homogeneizao, quando diz que parece improvvel que a globalizao v
simplesmente destruir as identidades nacionais. mais provvel que ela v produzir,
simultaneamente, novas identificaes globais e novas identificaes locais
(HALL, 2006: 78).
J Flix Guattari (1992: 19) aborda as novas configuraes urbanas partindo
de um prisma psicanaltico, nas relaes do indivduo com a sociedade e o espao,
onde a subjetividade que seria o conjunto das condies que torna possvel que
instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de emergir como territrioexistencial auto-referencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma
alteridade ela mesma subjetiva acompanha o fluxo de relaes, informaes e
territorialidades das sociedades contemporneas. Diz Guattari (1992: 169) que:
O ser humano contemporneo fundamentalmente desterritorializado. Comisso quero dizer que seus territrios etolgicos originrios corpo, cl,aldeia, culto, corporao... no esto mais dispostos em um ponto precisoda terra, mas se incrustam, no essencial, em universos incorporais. Asubjetividade entrou no reino de um nomadismo generalizado.
Onde estariam, portanto, as novas identidades culturais dentro destas naesglobais, uma das perguntas que Stuart Hall tenta responder, citando alguns
exemplos. Porm, aquilo que realmente interessa a esta pesquisa saber que estes
processos tm implicaes diretas sobre as constituies de sistemas para a arte
contempornea, seja em Belm ou em Paris e Nova York. Os movimentos culturais
artsticos provenientes da Europa, que demoraram dcadas para chegar ao Brasil,
agora esto a distncias espao-temporais comparativamente menores. As cidades
contaminam-se umas s outras, e os artistas tambm interferem uns nos outros, ao
conectarem-se em redes. Segundo Hall (2006: 75):
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mdia epelos sistemas de comunicao globalmente interligados, mais asidentidades se tornam desvinculadas desalojadas de tempos, lugares,histrias e tradies especficos e parecem flutuar livremente.
O autor chega concluso de que as identidades que so provocadas por estes
novos processos so identidades em fluxo. Hibridaes culturais que provavelmente
fazem da arte contempornea um circuito mundial de ideias e proposies, ao fazer
circular artistas e produes em um fluxo que no mais estanque ou estritamente
hegemnico (no que diz respeito aos centros culturais ocidentais). Para Hall (2006:
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87) a globalizao tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma
variedade de possibilidades e novas posies de identificao. E mais adiante este
autor chega a uma sntese, que mostra a situao (provisria) das identidades em
nossa poca:Em toda parte, esto emergindo identidades culturais que no so fixas, masque esto suspensas, em transio, entre diferentes posies; que retiramseus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradies culturais; e que so oproduto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que so cadavez mais comuns num mundo globalizado (HALL, 2006: 88).
Uma caracterstica essencial, partindo do ponto de vista desta pesquisa, a
multiterritorialidade tpica da contemporaneidade, conforme assinala o gegrafo
Rogrio Haesbaert (2004). Este autor defende a ideia segundo a qual os territrios
que configuram nossa existncia social, principalmente nos grandes centros urbanos,no esto mais rigidamente calcados sobre a constituio de regies, zonas, mas esto
calcados tambm em redes, fluxos, fato que cria uma falsa (segundo Haesbaert)
noo de desterritorializao, ou melhor, de contemporaneidade desterritorializada.
Este gegrafo faz um amplo estudo a respeito das concepes de desterritorializao
nas diversas reas do pensamento atual. Haesbaert (2004: 365) conclui que a
desterritorializao simplesmente a outra face, sempre ambivalente, da construo
de territrios.Portanto, mais do que simplesmente desterritorializar, a condio
contempornea possibilita multiterritorializar. A arte contempornea situa-se nesta
perspectiva, e esta pesquisa aborda a concepo de multiterritorialidade aplicada aos
sistemas da arte contempornea, ao invs de limitar-se a apontar uma
desterritorializao imanente. preciso verificar quais novos territrios e
territorializaes so criados aps este movimento de desterritorializao. Processo
que contnuo, porque situado ele mesmo no prprio movimento (processo) e no
nos extremos (espaos) tal qual os prprios fluxos e redes que caracterizam a mescla
de territorialidades no mundo contemporneo. E estas multiterritorialidades so
objeto de estudo dos prximos captulos desta pesquisa.
Novas relaes so tecidas no entendimento do ser humano com o espao, com
o tempo e at mesmo com o prprio corpo. Com a evoluo de tecnologias, que
segundo Mario Costa (1995) se mostram sublimes diante do ser humano, o que
sobressai a prpria obsolescncia de um corpo-limite, perecvel, quase um
entrave existncia, na compreenso de muitos pensadores e artistas
contemporneos. Uma nova forma dualista de opor a matria ao esprito, da qual
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David Le Breton (2007: 194) diz que Sob a gide do desmantelamento do corpo, as
fronteiras entre humanidade e mquina confundem-se. A tecnologia incorporada a
um corpo violentado, torcido, prolongado, fragmentado de diversas formas, sem, no
entanto, deixar de ser essencialmente carne. Para Le Breton (2007: 28):O corpo no mais apenas, em nossas sociedades contemporneas, adeterminao de uma identidade intangvel, a encarnao irredutvel dosujeito, o ser-no-mundo, mas uma construo, uma instncia de conexo,um terminal, um objeto transitrio e manipulvel suscetvel de muitosemparelhamentos. Deixou de ser identidade de si, destino da pessoa, para setornar um kit, uma soma de partes eventualmente destacveis disposiode um indivduo apreendido em uma manipulao de si e para quemjustamente o corpo a pea principal da afirmao pessoal.
Este autor analisa minuciosamente a antropologia contempornea do corpo
em nossas sociedades globais, e seu pensamento ser retomado adiante, aoobservarmos o uso do corpo dentro de um sistema simblico que faz funcionar a arte
contempornea.
A arquitetura das cidades, tambm, passa a ter uma nova representao dentro
das sociedades, por ter que adaptar-se aos fluxos contemporneos. As formas mais
extremas de modernizao convivem com novas condies urbanas informais,
transitrias, clandestinas geradas pela integrao global, nas palavras de Nelson
Peixoto (2004: 393). A cidade torna-se nodal, apropriada conforme as
disponibilidades e intencionalidades. A metrpole se converte numa nebulosa
dilacerada, desprovida de localizao, distribuda em torno das vias de transporte em
alta velocidade que a atravessam de ponta a ponta, segundo Peixoto (2004: 352), e
chega a ser metaforizada por este autor como a figura bblica da torre de Babel. Esta
metfora apresenta a cidade contempornea ao mesmo tempo como intuito e
impossibilidade, quando a construo to desproporcional a seus habitantes que
se torna impossvel para estes considerarem-na por uma s forma.
O que Peixoto (2004) deixa claro que as metrpoles contemporneas j no
so mais cidades, no sentido de designar razes, fundamentos, alicerces de uma
comunidade, mas so inabitveis porque so espaos de fluxo, deslocamento,
incomunicabilidade. Vivemos nas margens, na desarticulao da cidade enquanto
arquitetura, e na sua articulao enquanto trnsito, um no espaoconcreto.
Ressalto, necessrio repensar teorias deste tipo quando se pretende analisar
cidades amaznicas como Belm, que no se configuram como megalpoles
contemporneas. Nstor Canclini (2008: 67), falando a respeito das relaes econtradies entre modernismo e modernizao na Amrica Latina, diz:
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A hiptese mais reiterada na literatura sobre a modernidade latino-americana pode ser resumida assim: tivemos um modernismo exuberante euma modernizao deficiente. (...) Posto que fomos colonizados pelas naeseuropias mais atrasadas, submetidos Contra-Reforma e a outrosmovimentos antimodernos, apenas com a independncia pudemos iniciar a
atualizao de nossos pases. Desde ento, houve ondas de modernizao.Assim, especialmente quando falamos da regio amaznica, onde o Par se
situa, o que temos no propriamente uma globalizao consolidada tal qual aponta
as teorias (elaboradas do ponto de vista das grandes metrpoles ocidentais), mas sim
uma globalizao que atravessada por relaes com uma modernizao (tecnolgica
e educacional) deficiente e hibridaes entre culturas populares autctones e culturas
propriamente estrangeiras. As cidades em questo no esto excludas das relaes
globalizadas, mas as experimentam de formas peculiares.
Haesbaert (2006) tambm explora a configurao das cartografias atuais das
metrpoles, e indica a expanso das cidades como expanso tentacular, em rede. Para
Haesbaert (2006: 89) evidente a inexistncia de um avano padronizado e regular,
quando as redes metropolitanas fazem aflorar ou capturam estruturas fora de seus
limites fsicos imediatamente contguos, culminando na existncia de intervalos, que
Haesbaert chama de hiatos, dentro destas malhas urbanas.
Esta distribuio desigual de equipamentos e servios no est restrita a um
nvel fsico, mas tambm estendida ao nvel das relaes sociais, quando Haesbaert
(2006: 93) aponta uma complexa rede de relaes entre grupos que traam laos de
identidade com o espao que ocupam, criam formas de apropriao e lutam pela
ocupao e garantia de seus territrios.
Estas configuraes atuais esto diretamente ligadas a um esfacelamento
econmico, a uma possibilidade constante de evolues tecnolgicas e a uma
descontinuidade cultural provocada pelo contato global. O estado perde o domnio
sobre a metrpole, tendo que administrar os problemas criados por sua prpriaadministrao. O monoplio do capital e dos meios de produo excluiu cada vez
mais os destitudos dos mesmos, que reagem de formas diversas. Segundo Nelson
Peixoto (2004: 404):
Surgem configuraes informes que escorrem e vazam, preenchendo todosos vazios existentes. O nmade o sem-teto, o camel, o favelado, omigrante opera nesses espaos intersticiais secretados pela metrpole. Onmade ocupa o territrio pelo deslocamento, por trajetos que distribuemhomens e coisas num espao aberto e indefinido: os terrenos vagos, os vazioscriados pela implantao de infra-estrutura, os espaos pblicosabandonados, os vos entre as edificaes. Sua ao ditada pelanecessidade de sobrevivncia individual.
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Uma ltima caracterstica da contemporaneidade que quero salientar nesta
pesquisa o estabelecimento de processos comunicativos a um nvel planetrio,
principalmente no que diz respeito rede internet e aos avanos informticos. Nosso
tempo visivelmente marcado pela existncia de um espao virtual, que interliga
pessoas e sociedades. Esse espao potencializa novas relaes em todas as reas da
experincia humana, inclusive novas relaes econmicas e de poder. Para Pierre
Lvy (2000) a aparente inexistncia de fronteiras no territrio digital viabiliza
novas relaes de trnsito tanto de informaes quanto de pessoas e produtos.
Diversas comunidades internacionais e virtuais comprovam estas mediaes
estabelecidas no impalpvel do ciberespao que, entretanto, possuem
consequncias diretas sobre o palpvel das relaes materiais.As novas tecnologias implicam diversas reflexes, que sero novamente
abordadas no quarto captulo desta pesquisa. importante conhecer, entretanto,
aquilo que Mario Costa afirmou sobre estas novas tecnologias, no que tange serem
elas expresso da potencialidade que o ser humano foi capaz de produzir, sem, no
entanto, ser capaz de manter sob seu domnio. Costa (1995: 37) diz que
Elas no podem ser consideradas, de modo nenhum, na sua essncia, comouma nova forma de linguagem, cujo destino ainda e sempre aquele de
encarregar-se das intencionalidades expressivas e comunicativas do homem:as novas tecnologias no so uma linguagem, so um ser que excede todapaisagem interior ao sujeito e instaura uma nova situao material.
Entre as caractersticas principais que constituem o ciberespao est a noo
de hipertextualidade: a ideia de inteligncia coletiva, da qual falou Pierre Lvy. Uma
construo contnua e ilimitada da produo humana, na qual a informao
rizomtica, descentralizada, interativa, da qual Lvy (1993: 33) diz:
Tecnicamente, um hipertexto um conjunto de ns ligados por conexes. Osns podem ser palavras, pginas, imagens, grficos ou partes de grficos,seqncias sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos serhipertextos. Os itens de informao no so ligados linearmente, como emuma corda com ns, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexesem estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa portantodesenhar um percurso em uma rede que pode ser to complicada quantopossvel. Porque cada n pode, por sua vez, conter uma rede inteira.
A arte, enquanto sistema social, tambm influenciada por estas
caractersticas, principalmente no que diz respeito organizao do seu territrio em
redes, que perpassam pelo ciberespao, mas tambm pelos centros tradicionais e
fsicos (espaos expositivos tal qual o museu).
Assim, pois, as novas tecnologias criadas pelo ser humano (dentre as quais asrecentes tecnologias digitais), estabelecem mais um espao no qual a prpria
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humanidade se reconfigura, alterando diversas modalidades da experincia humana.
Uma produo contnua de imagens, culminado naquilo que alguns identificam como
sociedade do espetculo, ou das imagens, mas que Debray (1993b: 274-275) captou
como videosfera, onde entrevemos o fim da sociedade do espetculo. Se h
catstrofe, estaria a. Estvamos dianteda imagem, estamos novisual. A forma-fluxo
j no uma forma para ser contemplada, mas um parasita como fundo: o rudo dos
olhos. Esta ideia similar quela postulada por Costa (1995: 54), quando identifica
as novas tecnologias ao sublime, e quando diz que
(...) a idia que definitivamente foi evocada pelas novas imagens a darealizao da potncia humana: a imagem sinttica, enquanto efetuao deum projeto de uma alteridade auto-subsistente, atesta o mais completoalcance da potncia humana, e esta que, em ltima anlise, realmenteoferecida nossa extasiada contemplao.
Haja vista que a contemporaneidade foi relativamente abordada em suas
caractersticas, cumpre abordar tambm o modo pelo qual a arte estabelece suas
territorialidades nos nossos grupos sociais, tema que ser desenvolvido no segundo
captulo desta pesquisa. Tambm ser necessrio, neste momento, fazer alguns
apontamentos a respeito da arte contempornea paraense, para contextualizao das
prticas artsticas que sero analisadas no decorrer da dissertao.
Por arte contempornea definirei as prticas artsticas que so socialmenteaceitas e constitudas enquanto tal atravs de um discurso/territrio atualmente
vigente, conforme o segundo captulo desta dissertao. Fugindo s discusses acerca
da demarcao temporal de um perodo moderno e um perodo contemporneo (nas
artes), situarei a contemporaneidade artstica na segunda metade do sculo XX em
diante, mais especificamente a partir das prticas artsticas que se disseminaram
desde a dcada de 1960, chamadas neovanguardas por alguns autores.
A arte contempornea, portanto, o conjunto de prticas que se constitui
utilizando os preceitos prprios da contemporaneidade, como: o questionamento da
arte como objeto, a proposio da arte como processo, o questionamento da noo de
autoria, o uso de materiais os mais diversos, o hibridismo entre a arte e outros
campos da existncia humana, o uso descontextualizado do repertrio histrico da
arte, dentre outras caractersticas. Tais caractersticas da produo de arte atual a
diferenciam da arte produzida no paradigma modernista, por exemplo, por no
enquadrarem esta produo dentro do discurso/territrio que sedimentou e
constituiu a arte modernista.
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1.2 Breve introduo arte contempornea no Par
A grande dificuldade de analisar os processos sociais da arte contempornea
no estado do Par, nesta pesquisa, a aparente inadequao das teorias da arte (e da
cultura em geral) para o sistema estabelecido no estado. necessrio levar em conta
o lugar de onde geralmente falam os tericos da cultura: sistemas sociais localizados
em metrpoles cosmopolitas, geralmente centros econmicos e culturais a nvel
nacional, e algumas vezes global. O Par, entretanto, um estado que carrega o
estigma de ser perifrico, tanto de um prisma cultural quanto econmico perifrico
por se localizar em um pas ainda marginal em relao aos centros econmicos do
planeta, e perifrico em relao aos centros culturais/econmicos do sudeste do
Brasil. , portanto, indispensvel analisar com acuidade de que forma podemos
aplicar as grandes teorias (geralmente eurocntricas) ao sistema da arte
contempornea paraense.
No sem propsito que Afonso Medeiros (2009a) analisa as condies
perifricas tanto da arte (enquanto conhecimento) em relao a outras cincias,
quanto das periferias econmicas/culturais em relao aos centros hegemnicos
dentro do Brasil, e ainda a condio perifrica do Brasil em relao aos pases deprimeiro mundo. Afirma Medeiros (2009a: 1998) que:
A relao centro/periferia , sob qualquer ponto de vista, dinmica. Um afetao outro, em muitos nveis e circunstncias. Ambos produzem cultura, mas inegvel que a indstria cultural funciona mais como caixa de ressonnciados centros hegemnicos do que das periferias. Mesmo que os estudiosos dacibercultura afirmem, com certa razo, os deslocamentos ou a pulverizaoou a inexistncia de centros, o mundo da mdia, inclusive na internet, aindase comporta predominantemente daquela maneira.
Estando evidente, portanto, que a relao de trocas culturais dinmica, nem
por isso deixa de ser desigual. A distncia geogrfica de Belm em relao smetrpoles nacionais um dos fatores que provoca esta desigualdade, fato que vem
sendo remediado muito lentamente pela popularizao das novas tecnologias. O Par
aparentemente apresentou uma espcie de descontinuidade epistemolgica no que
tange o sistema da arte contempornea, mas essa espcie de atraso provavelmente
consequncia muito mais dessa condio de periferia econmica e cultural do estado
na segunda metade do sculo XX, do que propriamente consequncia de uma
inabilidade artstica ou cultural. Basta citar que o modernismo brasileiro tambm
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teve um correlato em Belm1, assim como em outras capitais alm de So Paulo e Rio
de Janeiro, levando em conta que no incio do sculo XX a cidade de Belm ainda
vivia o fim do ciclo da borracha, que alavancou a economia da regio.
Paulo Herkenhoff, no catlogo Amaznia, a Arte(2010: 81), identifica quatro
ciclos de modernidade na Amaznia, entremeados por saltos e estagnao: (1) o
iluminismo no Gro-Par; (2) o ciclo da borracha; (3) o modernismo e (4) as rupturas
ps-modernas. So ciclos de consolidao poltica, conhecimento e produo
simblica. Tambm vale dizer que o atraso ou descontinuidade das prticas
artsticas contemporneas no Par s pode ser assim nomeado a partir de uma
perspectiva dos grandes centros culturais, que seriam tomados como modelo ou
padro para as periferias.A respeito dos ciclos observados pro Herkenhoff, podemos dizer que a
produo artstica identificada nesta dissertao enquanto multiterritorializada
enquadra-se no ciclo referente s rupturas ps-modernas. Tais prticas, tardias (de
certa forma) em relao aos centros culturais, alinham a produo paraense com as
propostas pertinentes na contemporaneidade. Por outro lado tais prticas no esto
atreladas aos carros de bois puxados pelo eixo Rio-So Paulo, apesar de
epistemologicamente alinhadas com este eixo. O que se verifica na produocontempornea paraense, ao observ-la do prisma das multiterritorialidades, que a
arte contempornea local se estrutura de uma forma talvez nica (dada a ausncia de
um mercado de arte consolidado), alm de discutir questes prprias e consolidar
prticas artsticas pertinentes e diferenciadas dos modelos propostos (ou impostos?)
pelos centros culturais do Brasil e do mundo.
O atraso do Par em relao s prticas da arte contempornea deve-se, em
grande parte, aos entraves econmicos da regio dos quais a distncia geogrfica
somente um dos fatores , que consequentemente dificultam a insero de recursos
na educao e na cultura, que permitiriam que a produo artstica se desenvolvesse
num ritmo semelhante ao dos centros do pas.
Para Marisa Mokarzel (2006: 81)
A histria da Amaznia foi constituindo-se, durante anos, direcionada para aEuropa, ligada, do sculo XVII ao XVIII, diretamente a Portugal, e,culturalmente, no perodo da Belle poque, Frana, permanecendo dessa
1O modernismo em Belm considerado, na literatura, como paralelo e inicialmente desvinculado domodernismo paulista, por autores como Joaquim Inojosa (1994), citando os grupos que se formaramao redor das revistas Efmeris (1916) e Belm Nova (1923), com nomes como Bruno de Menezes,Eneida de Moraes e Raul Bopp.
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forma isolada do resto do Brasil. Dessa experincia herda-se um olhar quesente nostalgia do passado e persegue eternamente o futuro.
Qual seria este eterno perseguir do Par (enquanto regio amaznica)
buscando o futuro? Vejamos o campo educacional (em relao arte), para perceber
de que forma se d esse retardo experimentado na regio.
Acompanhe as seguintes cronologias. Na USP (Universidade de So Paulo) o
MAC (Museu de Arte Contempornea) foi criado em 1963 e a Escola de
Comunicaes Culturais em 1966 (posteriormente ECA Escola de Comunicaes e
Artes), a primeira ps-graduao na rea de artes data de 1968 (Histria da Arte, do
Departamento de Histria e posteriormente do ECA), a primeira graduao em
Educao Artstica do Brasil foi criada em 1972, seguida pelos primeiros programas
de mestrado e doutorado na rea (1974 e 1980, respectivamente). J na UFPA
(Universidade Federal do Par) o primeiro curso de graduao em artes (Educao
Artstica, habilitao em Artes Plsticas) foi criado somente em 19742, e a primeira
ps-graduao lato sensu s em 1994, ministrada por uma parceria de outras
universidades com a UFPA. Somente dez anos depois, em 2004, criou-se a
especializao em Semitica e Artes Visuais, do extinto Ncleo de Artes, totalmente
ministrada por professores da prpria UFPA. Esta especializao deixa de ser
oferecida quando o ICA (Instituto de Cincias da Arte) aprova o Mestrado em Artes,
com a primeira turma em 2009, que, segundo Medeiros (2009b: 221), pioneiro em
toda a Amaznia. O primeiro mestrado da regio amaznica, na rea de artes (UFPA),
surge trinta e cinco anos depois que o primeiro mestrado do Brasil na rea (USP).
Evidentemente a produo artstica no dependente da educao formal,
apesar de influenciada pela mesma. As instituies educativas, porm, fomentam um
solo cultural no qual a produo artstica pode amadurecer. Outras reas e
instituies tambm influenciam diretamente a produo artstica em determinadocontexto, como os meios de comunicao, as associaes de artistas etc. Dada a
condio de periferia poltico-econmica experimentada na regio, carecer de um
sistema de educao formal (voltado para a arte) equiparado ao dos centros do pas
apenas agrava a situao.
2Vale destacar que o curso de graduao em Arquitetura da UFPA, em funcionamento desde 1964,contribuiu bastante para a formao de artistas plsticos, inclusive formando profissionais queposteriormente formariam a primeira gerao de professores na graduao em Educao Artstica,como ressalta Medeiros (2009b: 215).
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Entretanto, justamente essa condio de perifricos que faz com que a
produo artstica no Par se estabelea de formas diferenciadas dos modelos
experimentados nos grandes centros. E so essas peculiaridades que fazem com que
haja, no Par, a possibilidade de se construir outras prticas sociais e artsticas para a
arte contempornea, inclusive na relao com as instituies de arte, que so os
maiores (se no nicos) sustentculos da produo artstica e de um sistema da arte
contempornea atualmente no Par. Cito novamente Medeiros (2009a: 2011),
quando afirma que A questo, portanto, no est no fato de sermos marginais e
perifricos, mas no que fazemos a partir do lcus marginal e perifrico em que nos
encontramos. Tambm cabem as palavras de Orlando Maneschy no catlogo
Amaznia, a Arte(2010: 11), no qual o autor aponta:Diante desse contexto de isolamentos e fluxos, as singularidades de viver aregio manifestam-se de forma particular na experincia esttica dos artistasque habitam a Amaznia e operam em sistemas paralelos de arte, que ora oscolocam tambm em proximidade com o resto do mundo, ora os mantmdesvinculados do trnsito operado no Centro-Sul do pas, gerando, por vezes,uma instabilidade na produo, tanto artstica quanto de projetosinstitucionais para a arte. Esta situao de fragilidade e inconstncia reflexo das polticas que se inscreveram na regio ao longo de sua histria,mas que, por outro lado, propiciaram uma produo artstica menoscomprometida com apelos do mercado e mais concentrada nas relaes comseu lugar de origem, suas particularidades socioculturais, fazendo com que
artistas, tanto de forma coletiva, quanto individual, realizassem obrasconsistentes, de grande potncia (...).
Para que haja uma noo do aparente atraso de mbito artstico no estado,
podemos tentar situar a transio para um paradigma contemporneo nas artes.
Vejamos que o abstracionismo aparece em Belm somente em 19593, abstracionismo
que representa ainda um paradigma modernista da arte enquanto manifestao
universal, da qual se poderia alcanar um estado puro atravs da abstrao. Durante
a dcada de 1960 so realizadas duas edies (1963 e 1965) do Salo Universitrio de
Artes Plsticas da UFPA, promovidas pelo ento Reitor da UFPA Jos da SilveiraNeto, tendo Benedito Nunes e Eneida de Moraes na equipe de organizao, foi um
marco (...) ao apresentar obras de artistas consagrados, como Fayga Ostrower
(MEDEIROS, 2009b: 214). Participam destes eventos inclusive artistas de outros
estados da regio Norte, e so distribudos prmios entre os participantes, que
consistiam em viagem para a visitao da Bienal de So Paulo (1963 e 1965). O
3Em exposio de Jos de Moraes Rego, poca um jovem artista que fazia parte do grupo conhecido
como CAPA (Clube de Artes Plsticas da Amaznia) ao lado de importantes artistas paraenses, dosquais surgiriam os introdutores do abstracionismo no Par, como Benedicto Mello, Concy Cutrim,Dionorte Drummond, Roberto de La Rocque Soares e Ruy Meira. Posteriormente haveria a exposiocoletiva dos artistas abstracionistas do CAPA. Conferir a obra de Accio Sobral (2002).
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contato de alguns artistas paraenses com estas edies da Bienal de So Paulo pode
ser citado como um dos fatores que contribui para o estabelecimento de novas
prticas efetivamente contemporneas, na arte local.
Em 1971, dois artistas paraenses so selecionados para a XI Bienal
Internacional de So Paulo, so eles Valdir Sarubbi e Branco de Melo, com obras que
expandiam o suporte tradicional da pintura e escultura, e (especialmente a obra
Xumucus, de Sarubbi) instauravam tambm o processo como prtica artstica, e no
somente o objeto, segundo Ilton Ribeiro (2010b).
H, entretanto, todo um contexto social que ocasiona a participao destes
artistas na Bienal de So Paulo, e convm esclarec-lo. Segundo Renata Zago (2009),
em 1969 h um boicote a nvel nacional e internacional dos artistas convidados aparticipar da X Bienal Internacional de So Paulo, como forma de protesto censura
imposta pelo governo militar a duas exposies artsticas antecedentes: a II Bienal
Nacional de Artes Plsticas, realizada em Salvador em 1968, e a mostra dos artistas
brasileiros que representariam o Brasil na Bienal de Paris, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 1969. Em 1970, portanto, a Bienal de So Paulo
organiza a primeira Bienal Nacional, visando selecionar artistas de todo territrio
nacional para a Bienal Internacional no ano seguinte, dada a possibilidade de umboicote semelhante ao ocorrido em 1969. Belm uma das cidades onde ocorre a
seleo de artistas para participao nessa Bienal Nacional, da qual foram escolhidos
trinta artistas para participao na Bienal Internacional de 1971, dentre eles os
paraenses Branco de Melo e Valdir Sarubbi. Nas cidades como Belm, nas quais
foram realizadas as chamadas Pr-Bienais, diz Zago (2009) que estava presente um
jri formado por um membro enviado pela Fundao Bienal e outros membros
escolhidos de acordo com o critrio de cada regio.
A movimentao estabelecida em torno desta seleo para a Bienal Nacional
de So Paulo em 1970, que marca o pice da transio, no Par, para um paradigma
contemporneo nas artes, j que promove, entre os artistas locais, esse sentido de
experimentao de novas prticas. Transio que j vinha se consolidando desde as
duas edies do Salo Universitrio de Artes Plsticas da UFPA, com as viagens
patrocinadas a alguns artistas.
Para analisar este momento de transio, tambm podemos citar a lista de
artistas contemporneos no Par, no relatrio As artes plsticas no Par de Paolo
Ricci, apresentado a FUNARTE em 1978, citado por Edison Farias (2003: 128).
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Fazem parte da lista de artistas contemporneos (para Paolo Ricci, em 1978): Accio
Sobral, Branco de Melo, Dina Oliveira, Mrio Pinto Guimares, Osmar Pinheiro Jr. e
Ronaldo Moraes Rego.
Cabe salientar que desde a dcada de 1960, nos centros culturais do Brasil, j
fervilhavam propostas que quebravam com a noo de arte como objeto, discutiam a
crise das instituies e da crtica de arte e questionavam o papel do artista e de sua
produo dentro da sociedade, como vemos nas propostas de Hlio Oiticica, Lygia
Clark, Cildo Meireles, Artur Barrio e nas edies da JAC (Jovem Arte
Contempornea), no MAC-USP (Museu de Arte Contempornea), dentre outros
exemplos. O Par, portanto, ainda tentava se adequar a uma exposio (Bienal
Nacional) que estava aqum das prticas artsticas mais recentes e pertinentes aomomento, chamadas por alguns autores de neovanguardas.
Foram realizadas quatro edies da Bienal Nacional de So Paulo (1970, 1972,
1974 e 1976), posteriormente transformada em Bienal Latino-Americana (de 1978 em
diante). Na ltima edio da Bienal Nacional, em 1976, Renata Zago (2009: 2626)
ressalta que no houve seleo prvia, mas todos os artistas inscritos participaram da
exposio. Nota-se que se perde, assim, o carter primeiro da Bienal Nacional, que
era selecionar artistas para participao brasileira na Bienal Internacional de SoPaulo (realizada nos anos mpares).
A respeito da dcada de 1970, no contexto das artes no Par, cito Gileno Mller
Chaves, no artigo Panorama sinttico da histria da arte paraense4 (escrito em
2000):
Explode, felizmente, a melhor gerao das artes plsticas paraenses nacoletiva de inaugurao do Banco Lar Brasileiro e na mostra Jovens ArtistasPlsticos do Par, inaugurada no ms de outubro (de 1970), na Galeriangelus [j extinta, funcionava no Theatro da Paz]. Nesse elencopontificaram Arnaldo Vieira, Paulo Chaves, Antnio Lamaro, Demaria(Dina Oliveira), E. Nassar, Nestor B. Junior, Osmar Pinheiro Junior e VESarubbi. Mais se destacaram e se destacam Sarubbi, E Nassar,Osmarzinho e Dina, porque participaram de duas bienais internacionais deSo Paulo (Nassar, Sarubbi, Osmar); figuram nas publicaes recentes quecontam a Histria da Arte Brasileira; e, compareceram e comparecem agrandes eventos internacionais.
Em 1977, 31 de maro a 16 de abril, foi realizada na cidade de Paris (Frana)
uma exposio de artesanato e arte contempornea (no sentido de ser atual ao
perodo) da Amaznia, para comemorar a inaugurao da nova escala na cidade de
4 No site da Elf Galeria, de Gileno Mller Chaves. Disponvel em: Acesso em 23 de abril de2010.
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Manaus da empresa de transporte areo Air France. Os artistas pintores e
escultores paraenses (ou residentes no estado) que expuseram no evento foram os
seguintes: Benedicto Mello, Dina de Oliveira, Dionorte Drummond, Joo Pinto, Jos
de Moraes Rego, Lilia Silvestre, Maria Madalena, Mrio Pinto Guimares, Nestor
Bastos Jr., Osmar Pinheiro Jr., Paolo Ricci, Ronaldo Moraes Rego e Ruy Meira.
Segundo Farias (2003: 113-114), meses aps a exposio amaznida na Frana, foi
inaugurada em Belm a Galeria Theodoro Braga, cuja exposio inaugural trazia estes
mesmos artistas. A Galeria Theodoro Braga localiza-se na Fundao Cultural do Par
Tancredo Neves, e est em funcionamento desde 1977 at os dias atuais.
Em 1981 foi inaugurada em Belm a Elf Galeria, sob a administrao de Gileno
Mller Chaves, que tambm representou um importante espao para a artecontempornea, principalmente no decorrer da dcada de 1980. Segundo o site da Elf
Galeria5:
A inaugurao da galeria aconteceu com uma mega exposio de gravuras.Nomes como Volpi, Lvio Abramo, Maria Bonomi, Renina Katz, RomildoPaiva, Sarubbi, Helenos, Fayga, Claudio Tozzi, Ubirajara Ribeiro e AldemirMartins fizeram parte da primeira exposio. No decorrer de 7 anos a galeriafoi um espao exclusivo de promoo das artes visuais, local de encontro dachamada gerao 80 (dos artistas paraenses) e cenrio de mostras de artistasj consagrados em So Paulo, como Ubirajara Ribeiro, Decio Soncini, JairGlass, Inacio Rodrigues e Claudio Tozzi. A galeria, tambm, abriu espaopara o lanamento de novos talentos. Foi na Elf que Alex Cerveny (SP),Marinaldo Santos e Margalho (PA) estrearam no mundo das artes.
Em 1981 criada a Fundao Rmulo Maiorana, em Belm. Em 1982 esta
fundao d incio quele que posteriormente assumiria o posto de principal evento
de arte contempornea no Par e na regio norte do pas: o Salo Arte Par. A
primeira edio do evento teve como espao o segundo andar do prdio ocupado pelo
jornal O Liberal, das Organizaes Rmulo Maiorana. Entretanto, posteriormente
outros espaos foram utilizados pelo Arte Par, como o Museu de Arte de Belm, o
Museu Histrico do Estado do Par, o Museu de Arte Sacra, Museu da Universidade
Federal do Par, alm de, na dcada de 2000, ocupar tambm espaos no
convencionais, como mercados e feiras em Belm, como veremos em alguns
exemplos no decorrer desta dissertao.
Chega a Belm, em 1983, o fotgrafo Miguel Chikaoka, que funda no ano
seguinte a Associao Fotoativa (em funcionamento at os dias atuais), responsvel
por oferecer oficinas, colquios, cursos, exposies e diversas outras atividades
5Disponvel em Acesso em 23 de abril de 2010.
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ligadas fotografia, influenciando grande nmero de artistas paraenses, alguns dos
quais alcanaram projeo nacional.
Em 1987 comea a se formar o grupo Raioqueoparta!, e em 1989 realizada a
exposio do coletivo na Galeria Theodoro Braga, formado pelos artistas Branco
Medeiros, Nando Lima, Nio e Tadeu Lobato. O Raioqueoparta!, segundo Tadeu
Lobato (no jornal O Liberal de 28 de setembro de 2006), foi responsvel pelas
primeiras experimentaes de vdeo arte no Par.
Outros artistas importantes e pioneiros na utilizao do vdeo, no Par, so
citados por Orlando Maneschy e Danielle Silva (2009: 2545): Anbal Pacha, Nando
Lima (j citado), Jorane Castro, Dnio Maus, Mariano Klautau Filho, Orlando
Maneschy, Marta Nassar e Val Sampaio.Em 1990 se d o incio das atividades da Fundao Curro Velho, sob a direo
de Dina Oliveira, que permaneceu no cargo at 2006. O Curro Velho um centro que
oferece workshops, oficinas e outras atividades artsticas, tendo contribudo para a
formao artstica informal no estado, principalmente em seus projetos voltados para
as comunidades de baixa renda.
Na dcada de 1990 tambm h a formao do grupo Caixa de Pandora,
composto pelos artistas Flvya Mutran (que posteriormente deixou o grupo), CludiaLeo, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy. O Caixa de Pandora, com a
primeira exposio em 1993, responsvel por propor novas utilizaes da fotografia,
em confluncia com outras linguagens e suportes.
Durante trs anos seguidos, de 1992 a 1994, so realizadas em Belm as trs
edies do SPAC (Salo Paraense de Arte Contempornea), pela Secretaria de Cultura
do estado e Associao de Artistas Plsticos do Par, premiando e expondo nomes
emergentes na arte contempornea paraense. As edies do SPAC, segundo Ilton
Ribeiro (2010a), so responsveis por injetar novo flego, revigorando as prticas
artsticas na cidade ao introduzir novos suportes e mdias. , por exemplo, no II
SPAC (1993) que um vdeo arte ser exposto em Belm, como ressaltam Maneschy e
Silva (2009: 2549):
Depois das primeiras tentativas que difundir a produo local de vdeo, estesomente entrou nos espaos dos sales de arte no II Salo Paraense de ArteContempornea, em 1992 [sic], com o vdeo Delrio, de Val Sampaio, edepois regressa em 2001 na 20 edio do Salo Arte Par, com obras dedois artistas de cidades diferentes (...). Mas foi em 2002 que o Salo Arte
Par exibiu a primeira obra em vdeo de um artista paraense, intituladoDris, realizado por Alberto Bitar e Paulo Almeida, os primeiros artistas aexibir esta modalidade dentro de um Salo de Arte de nossa regio.
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Em 1991 inaugurada a galeria do CCBEU (Centro Cultural Brasil Estados
Unidos). No ano seguinte realizada a primeira edio do Salo Primeiros Passos,
realizado anualmente at os dias atuais. O Primeiros Passos possui a peculiaridade de
ser um salo voltado para jovens artistas (a condio de inscrio que nunca tenha
realizado exposio individual).
Outro ponto a ser destacado a transformao da UNESPA (Unio das Escolas
Superiores do Par) em UNAMA (Universidade da Amaznia), em 1993, na qual era
oferecido o curso de graduao em Educao Artstica. Em novembro de 1993
inaugurada, na UNAMA, a Galeria Graa Landeira, espao para exposio de obras
inclusive dos professores-artistas e alunos da instituio. Em 1995 a UNAMA realiza
a primeira edio do Salo Pequenos Formatos (a nvel nacional), eventocaracterizado pela necessria dimenso reduzida das obras inscritas, e que realizado
anualmente at os dias atuais. Posteriormente, em 2000, o curso de graduao em
Educao Artstica seria reformulado e renomeado para Artes Visuais e Tecnologia da
Imagem. Em 2009 a UNAMA tambm passou a oferecer o curso de Mestrado em
Comunicao, Linguagens e Cultura. A graduao em Artes Visuais e Tecnologia da
Imagem e o Salo de Pequenos Formatos, da UNAMA, so dois referenciais que tem
contribudo para o estabelecimento da arte contempornea no Par, promovendo oensino e pesquisa em artes e a premiao de artistas no Salo Pequenos Formatos.
Em Marab, municpio no interior do estado do Par, criado em 1997 o GAM
(Galpo de Artes de Marab), transformando o antigo Galpo Industrial, criado por
Mestre Botelho em meados da dcada de 1970, em um espao destinado promoo
de cultura. O GAM mantido atualmente pela empresa cultural marabaense
Tallentus Amaznia e pela FUNARTE (Fundao Nacional de Artes), reconhecido
pelo governo federal como Ponto de Cultura. A iniciativa foi iniciada pela ARMA
(Associao dos Artistas Plsticos de Marab), que lanou, entre outros nomes da
arte contempornea paraense, o artista Marcone Moreira, com exposies individuais
e coletivas a nvel nacional e internacional. Tambm em Marab criada a Galeria
Vitria Barros, em 2002. Em Santarm, outro municpio no interior do estado,
criado o Ncleo Cultural da FIT (Faculdades Integradas do Tapajs), assim como o
Espao de Arte Graa Landeira, da mesma instituio de ensino.
Em 1999 criado o IAP (Instituto de Artes do Par), qu