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O FILÓSOFO MORAL JAMESIANO E A AUTORIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL NA DECISÃO DA ADPF Nº 54
Ana Carolina de Carvalho Fulco
Dissertação de Mestrado
Recife
2010
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O FILÓSOFO MORAL JAMESIANO E A AUTORIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL NA DECISÃO DA ADPF Nº 54
Ana Carolina de Carvalho Fulco
Dissertação de Mestrado
Recife
2010
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Ana Carolina de Carvalho Fulco
O FILÓSOFO MORAL JAMESIANO E A AUTORIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL NA DECISÃO DA ADPF Nº 54
Dissertação de mestrado apresentada no Programa de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do
Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre.
Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito
Linha de pesquisa: Linguagem e Direito
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Ronaldo da Maia de
Farias
Recife
2010
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Ana Carolina de Carvalho Fulco
O filósofo moral jamesiano e a autoridade do Supremo
Tribunal Federal na decisão da ADPF nº 54
Dissertação de mestrado apresentada no Programa de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do
Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre.
Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito
Linha de pesquisa: Linguagem e Direito
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Ronaldo da Maia de
Farias
A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro,
submeteu o candidato à defesa em nível de Mestrado e o julgou nos seguintes termos:
Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Júnior - UFPE
Julgamento: ____________________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. Joao Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira - UFPE
Julgamento: ____________________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. Marcelo Labanca Corrêa de Araújo - UNICAP
Julgamento: ____________________________ Assinatura: _________________________
MENÇÃO GERAL: __________________________________________________________
Coordenador do Curso:
Prof. Dr. Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti
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A Verdade
A porta da verdade estava aberta, mas só
deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a
verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia
o perfil de meia verdade, E a sua segunda metade
voltava igualmente com meios perfis e os meios
perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade
esplendia seus fogos. Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais
bela. Nenhuma das duas era totalmente bela E
carecia optar.
Cada um optou conforme seu capricho, sua
ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
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Dedico este trabalho à minha família e aos meus mestres.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço o carinho e dedicação de meus pais e irmãos, que sempre estiveram ao meu lado,
me apoiando, me suportando e me ajudando com pequenas concessões de seu tempo e
paciência.
Agradeço a atenção e paciência de meus professores e orientador, Alexandre da Maia, e
também de meu incansável chefe, José Oliveira.
Agradeço a meus colegas do curso que me ajudaram e apoiaram durante o curso,
especialmente Pablo Falcão, a quem devo respeito e gratidão pela grande ajuda e
consideração.
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RESUMO
FULCO, Ana Carolina de Carvalho. O filósofo moral jamesiano e a autoridade do
Supremo Tribunal Federal na decisão da ADPF nº 54. Dissertação (Mestrado em Direito) -
Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
A proposta deste trabalho é compreender as idéias do filósofo pragmático William James
sobre a ordem moral e avaliar seu emprego prático e contribuição à discussão jurídica da
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54/DF (ADPF n° 54), observando
as previsões normativas incindíveis sobre o caso, numa tentativa de atribuir maior clareza ao
debate da problemática da antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia fetal, que
tem natureza eminentemente moralista.
Palavras-chave: Pragmatismo. Moral. Decisão jurídica.
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ABSTRACT
FULCO, Ana Carolina de Carvalho. The jamesian moral philosopher and the authority of
the Supremo Tribunal Federal at the judgment of the ADPF nº 54. Dissertation (Master's
Degree of Law) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas /
FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
The purpose of this study is to understand the ideas of the pragmatist philosopher William
James on the moral order and evaluate its practical use and contribution to the discussion of
the legal claim of Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54/DF (ADPF
No. 54), noting the normative predictions constant in the case, attempting to clarify the debate
of the issue of therapeutic abortion when is diagnosised as anencephalic fetus, which has
eminently moral nature.
Keywords: Pragmatism. Moral. Legal decision.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
CAPÍTULO I – Do ethos ao Direito .......................................................................... 21
1.1 Da sociedade ética .................................................................................. 28
1.2 Ética e direitos humanos ......................................................................... 31
CAPÍTULO II – Aborto, anencefalia e sociedade ................................................... 37
2.1 Contexto social ........................................................................................ 37
2.2 Aborto: previsão normativa e hipóteses de exclusão da ilicitude ........... 43
CAPÍTULO III – Poder jurisdicional do supremo no caso da anencefalia fetal . 47
3.1 Do caso prático: Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 54/04 - DF ............................................................................
47
3.2 O posicionamento do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 54 .......... 50
3.3 Cientificidade do Direito e singularidade de expectativas ...................... 57
CAPÍTULO IV – Pragmatismo e Jurisdição ........................................................... 64
4.1 Pragmatismo: método filosófico para “clarear” idéias e para conceder
um significado prático ....................................................................................
64
4.2 William James: filósofo pragmatista com uma pluralidade de idéias ..... 71
4.3 O filósofo moral jamesiano ..................................................................... 80
CAPÍTULO V - Mundo moral particular: um método a ser considerado para
solução da questão da ATP na anencefalia fetal ...........................
90
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 94
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 98
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INTRODUÇÃO
Assim como no poema “A verdade” de Carlos Drummond de Andrade, o curso de
mestrado não nos põe na direção de encontrar dita “verdade”, mas, tão-somente, permite-nos
caminhar a seu encontro. A sua aproximação torna-se apenas um acaso, vai depender do
olhar, da velocidade em que se caminha e, mais ainda, da vontade de alcançá-la.
Do mesmo modo em que a verdade é termo abstrato e de difícil acesso, para quem tem
pretensões de bem compreender o instituto do Direito, é preciso percorrer longo caminho e
buscar, nas suas origens, o fundamento de sua criação e desenvolvimento. Trata-se de extensa
história, envolta em um emaranhado de razões (ou mesmo com contradições) e permeada de
detalhes obscuros e bastante complexos.
O “viver-em-sociedade” requer disciplina, altruísmo e boa-vontade. Mas isso não
basta, é necessária a imposição de normas de conduta para regrar o convívio social, de onde
surgem as normas morais e, posteriormente, as jurídicas.
Os estudos filosóficos e da teoria do direito aqui se encontram para melhor iluminar os
propósitos do Direito, na medida em que recuperam memórias passadas e refletem os fatos
percebidos, dando-nos condições necessárias para investigar as causas do direito e, também,
sua natureza e finalidade. Eis, em parte, a proposta desta pesquisa. Busca-se, de forma
bastante sintética, fazer se encontrarem Direito e filosofia, expondo traços em comum que
possam permitir ao instituto jurídico fugir à pretensão de universalidade e, tocando os fatos,
mostrar sua abertura a fim de possibilitar decisões jurídicas mais refletidas e acertadas às
necessidades do caso particular e, em ampla medida, aos anseios sociais.
Para tanto, encontramos, no caso prático da problemática de se autorizar a antecipação
terapêutica do parto na ocorrência de gestações de feto anencéfalo, os requisitos essenciais
para tocar o Direito sob uma perspectiva filosófica, razão pela qual nos restringiremos a
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10
apenas analisar esta situação. Isto, contudo, sem a pretensão de concluir uma verdade ou
justiça da hipótese jurídica, mas, simplesmente, iluminando a questão com reais intenções de
caminhar em busca do bem comum, da “melhor verdade”, para a hipótese.
Para aqueles que não estão a par da ação direta, importa esclarecer que foi proposta
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n° 54/DF1), em junho de
2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Nela, discute-se a
temática do abortamento relativamente às gestações de fetos anencéfalos2, buscando a CNTS
a declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da
interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n°
2.848/40) como impeditiva da antecipação terapêutica do parto, naqueles casos, quando
diagnosticados por médico habilitado.
No caso, tem-se o âmbito do Direito Penal brasileiro, campo normativo onde há maior
restrição aplicativa condicionado ao princípio da legalidade estrita, perturbado por esferas
alheia ao Direito, principalmente, pela moral e religião, que lhe constrangem a legitimidade e
efetividade. Diga-se, a força persuasiva destas áreas e a complexidade da matéria pressionam
as limitações do Direito Penal brasileiro contra seus próprios pressupostos de fundamentação,
coibindo a tomada de decisão judicial sem a interferência de imprecisões e incertezas, como
será demonstrado ao longo deste trabalho.
A complexidade do caso abrange choque de princípios constitucionais como os da
liberdade, dignidade e integridade física, relacionados à gestante e ao nascituro. Do ponto de
vista jurídico, enseja-se a discussão sobre o feto ter ou não vida e direitos, fazendo emergir
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n° 54-8/DF. Autor: Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde. Rel. Min. Marco Aurélio. Disponível em:
. Acesso
em: 10 mar. 2009. 2 O feto anencéfalo, segundo o Conselho Federal de Medicina, é o feto desprovido dos “hemisférios cerebrais”,
que são a parte vital do cérebro, sem a qual o ser em gestação não tem como escapar de uma fatal parada
cardiorespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto. Definição encontrada na Resolução n° 1752/04,
publicada no DOU em 13.09.04.
http://13.09.04./
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um forte protecionismo, característicos no contexto de um Estado Democrático de Direito3. Já
sob a ótica da bioética brasileira, o debate sobre o aborto no Brasil é ainda um tema perigoso e
delicado.
A socióloga Débora Diniz aduz que há uma regionalização das legislações restritivas
sobre o aborto, sendo a América Latina uma das áreas de maior resistência à modificação das
regulamentações proibitivas sobre a prática. Observa que os especialistas consideram a forte
influência política e moral da Igreja Católica na região como explicativa deste fenômeno4.
Na própria decisão liminar, o Ministro Relator Marco Aurélio Mendes de farias Mello
expôs a complexidade do caso, evidenciando um reclamo social pela adequação da hipótese
no sistema normativo. Observemos o voto:
(...) Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade
de coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os
valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se
do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à
preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade
da pessoa humana.
O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma
nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de
acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A
alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime
gestação. As percepções aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quando de uma
gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança.
Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes
desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão
dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para
simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas justamente, para
fazê-los cessar.
No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza
igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos
anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando
se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período
que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na
sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor
à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos
riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina.
Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste
realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se
tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação
concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade
3 Retrato disto é a Declaração dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução n° 217 A (III) da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2009. 4 DINIZ, Debora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. 1ª reimpr. Brasilia: Letras Livres,
2004. p. 30.
http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.phphttp://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php
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humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade. A saúde, no sentido
admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os
aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro,
aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de
descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo
acabam por projetar no tempo esdrúxula situação. (...)
Ao observar a hipótese, é fácil perceber a crise de racionalidade do ordenamento
jurídico moderno, que, numa tentativa de redução da complexidade do sistema social para
lograr sua ordenação e dominação, mediante textos normativos consolidados, torna-se
descompassado com o maior grau de exigência da litigiosidade contemporânea.5
Em contraposição à crise de eficácia e legitimidade, a pós-modernidade demanda uma
racionalidade que não esteja vinculada a referenciais absolutos de certeza tradicional, um
suposto saber universal, mas sim que respeite a pluralidade e a contingência dos reclamos
sociais – como nos sugere Boaventura de Souza Santos6, defensor de uma ciência moderna
que acate o topos do senso comum e que assuma uma postura de suspeição epistemológica e
de recuperação pragmática, bem nos moldes do pragmatismo a que ora propomos abordar7 –.
Aqui inserimos nossa discussão, almejando contribuir com uma forma especialmente
filosófica e pragmática, a fim de observar o caso mediante olhares mais generosos, atentando
para as peculiaridades de âmago subjetivistas, intrinsecamente relacionadas a pressupostos
democráticos e morais sociais, com manifesto intuito de demonstrar os laços que unem os
diferentes tipos normativos e que exigem maior atenção do intérprete.
Nosso objetivo é analisar a forma como é considerada a antecipação terapêutica do
parto pelo Supremo, dentro da ADPF nº 54, pressupondo o reconhecimento de uma ordem
5 Neste sentido, vide: MAIA, Alexandre da. História dos conceitos e raciocínio jurídico: analisando o conceito
de direito subjetivo. Recife: mimeo, 2008; FULCO, Ana Carolina; FALCÃO, Pablo. Decisão jurídica sob um
olhar retórico-pragmático. In: Sociedade, direito e decisão em Niklas Luhman. Organização: Moinho Jurídico.
Recife: Universitária UFPE. ISBN 978-85-7315-644-7. 6 Sobre a democratização da justiça, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, defende tratar-se de uma
dimensão fundamental da democratização da vida social, econômica e política de um país, incluindo uma maior
participação dos cidadãos na administração da justiça, com a simplificação dos atos e ampliação dos conceitos de
legitimidade e interesse de agir na causa. Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o
político na pós-modernidade. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 177. 7 FALCÃO, Pablo R. de L. Hermenêutica pragmática e pensamento evolutivo: da possibilidade de diálogo
entre phronesis e sophia. Caruaru: Revista da Faculdade de Direito de Caruaru, v. 37, n.1, jan/dez 2006. p. 207-
236.
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moral brasileira, garantida pela Constituição Federal, que nos permita contrastá-la com as
bases morais efetivamente dispostas por cada um, desenvolvendo um raciocínio sob o ponto
de vista do pragmatismo moral jamesiano, que, de certa forma, possa contribuir para uma
melhor elucidação do problema.
Inicialmente, faremos um breve escorço histórico que exporá a origem do Direito no
ethos, assinalando sua relação com a moral e, ainda, com a religião, campos que, no caso da
ADPF n° 54, permeiam toda a matéria, restando intrínsecos na discussão.
Neste ponto, foi de importância primordial para exposição do tema a obra “Ética e
Direito”, de Henrique Cláudio de Lima Vaz, cujos conhecimentos se estendem da Teologia,
História e Literatura à Filosofia Ocidental, tendo-se tornado filósofo e professor em várias
instituições brasileiras.
À parte de outras fontes literárias, ora utilizadas, sobre a filosofia e teoria do direito,
como a de João Maurício Adeodato (Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica),
David Schnaid (Filosofia do direito e interpretação), Pontes de Miranda (Sistema de ciência
positiva do direito), Cretella Júnior (Curso de filosofia do direito) e Norberto Bobbio (A era
dos direitos), o trabalho de Henrique Vaz foi o que melhor permitiu aprofundar os estudos
que recuperam a história do Direito e o relacionam com a formação da ética.
Num segundo momento, exporemos o contexto social quanto à aceitação e prática do
aborto, inclusive com considerações sobre as expectativas e compreensões relacionadas à
gestação de fetos com deformidades letais, colocando, ainda, a legislação brasileira pertinente
ao aborto e a correspondente compreensão doutrinária.
Será narrado, também, e sucintamente, apenas com as informações indispensáveis ao
mister deste trabalho, o caso prático da ADPF n° 54 e o posicionamento do Supremo Tribunal
Federal, demonstrando-se a complexidade do litígio e a tensão formada entre os diferentes
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planos normativos (moral e religião) e o Direito, razão pela qual se torna premente a procura
de uma solução que dê importância às especificidades do caso e atenção aos seus aspectos
morais.
Destacamos que nos restringimos à observação da decisão interlocutória proferida pelo
Relator da ação, Ministro Marco Aurélio, uma vez que, até então, fora o único a explicitar seu
posicionamento sobre a antecipação do parto, na hipótese apresentada, exceto pelo breve
pronunciamento do Ministro Carlos Ayres Britto, na sessão realizada em 20 de outubro de
2004, na qual se decidiu pela cassação da medida liminar – o que, nem por isso, limitará este
trabalho, uma vez que a partir daquela decisão já teremos material suficiente à demonstração
dos óbices que permeiam a matéria –.
Posto isto, será estudada a corrente filosófica pragmática norte-americana, difundida
como método para esclarecimento e compreensão de significados de fatos e conceitos, o que
nos dará condições de inserir, no debate, as percepções do órgão julgador e a dos próprios
cidadãos brasileiros, destinatários do sistema normativo sobre o assunto examinado.
Explicaremos a forma de desenvolvimento do raciocínio pragmático nas discussões
científicas, demonstrando o modus operandi que permitirá analisar o embate sobre a
legitimidade da antecipação terapêutica do parto, através de outra perspectiva, a qual enseja
um aprofundamento na matéria que tem maior peso na ADPF e que, no entanto, envolve
conceitos subjetivos e imprecisos da ética e da moral: direitos fundamentais como os da
dignidade humana, da liberdade, da autonomia da vontade e da saúde.
Exporemos, na seqüência, as considerações do filósofo pragmático William James
quanto à moral, observando, mais detidamente, a colocação de suas idéias em seu trabalho O
filósofo moral e a vida moral, da obra Pragmatismo8, e, a partir de suas manifestações,
8 JAMES, William. The moral philosopher and the moral life. In: Pragmatism and other essays. 5a reimp.
Nova Iorque: Washington Square Press, 1972. p. 214-235.
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observaremos uma possibilidade de interpretação do sistema normativo, na espécie,
concentrada nos aspectos práticos – embora sejam eles impregnados de subjetivismos.
Justificamos a escolha pelo filósofo William James devido à abordagem de sua
doutrina nos estudos realizados pelo grupo de pesquisa sobre o pragmatismo do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo Prof°
Dr. George Browne. Neste grupo, voltamos os olhos para um mundo com amplas
possibilidades de serem pensados os problemas socio-jurídicos da modernidade através de
soluções refletidas e discutidas a partir de uma abertura do ordenamento jurídico às
peculiaridades dos fatos concretos e os respectivos efeitos da interferência judicial.
A adoção das teorias jamesianas, especificamente, dá-se em razão destas não se
esquivarem das influências religiosas e morais da cultura humana, mas, ao contrário, por
integrá-las na concepção pragmática arquitetada, o que atende aos anseios não somente
jurídicos, mas filosóficos, religiosos e, principalmente, morais do homem.
A importância desta dissertação reside, portanto, na ampliação do debate, com a
explicitação das questões peculiares ao caso e que se encontram carregadas de subjetivismo e
imprecisão, mediante uma perspectiva mais neutralizada e científica, no sentido de que serão
observadas através de uma meta-linguagem cujo único propósito é contribuir para uma maior
clareza e racionalidade no discurso jurídico – racionalidade esta que comumente é realizada
distorcidamente na prolação de decisões judiciárias brasileiras –, sem, para isso, subjugar ou
perder a compreensão moral sobre a matéria.
A finalidade deste trabalho, como dito, é tão-somente ampliar o discurso, colocando
em destaque os aspectos extra-jurídicos e não menos importantes à sua resolução,
evidenciando a crise de eficácia da hipótese do aborto, ou, mais especificamente, da
“antecipação terapêutica do parto”, nas gestações de feto anencéfalo, de modo a podermos
visualizar a importância e o benefício de inserir no âmbito jurídico a abordagem metodológica
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16
pragmática e, no caso, especialmente, as idéias proporcionadas pelo “filósofo moral” de
William James, consoante nos chama atenção Jürgen Habermas9, para quem uma metodologia
da compreensão nas ciências sociais remete a questões de uma teoria da ação orientada ao
entendimento.
De acordo com Habermas, enquanto os participantes refletem sobre as ações
comunicativas, no mínimo se orientam ao entendimento. Levanta a problemática da
compreensão (verstehen) enfrentada pelos estudiosos dos fenômenos sociais, cuja
investigação é carregada de subjetividade, haja vista terem de compartilhar com o objeto de
estudo um saber pretérito advindo de seu status de membro. Acrescenta que, na coleta de
dados, o cientista é obrigado a participar da vida social (pois para descrevê-los deve entendê-
los), ocorrendo um processo de retroalimentação entre a compreensão e a produção do
pesquisador.
No mesmo sentido, Maturana e Varela entendem haver individualidade na percepção
dos fatos, concluindo que a simples captação de algo traz a marca indelével de nossa
estrutura10
.
Habermas argumenta, no entanto, que uma forma de alcançar uma maior objetividade,
seria alterando o status de participante para o de observador, após colher os dados. Sugere,
ainda, que através da inserção de outros observadores, poder-se-ia atribuir maior
racionalidade ao discurso, uma vez que não bastaria ao cientista adotar um papel “fictício” de
um desinteressado, sendo necessário assegurar uma reflexividade por parte dos participantes
que dê condições para se descobrirem eventuais erros cometidos na obtenção dos dados da
comunicação.
9 HABERMAS, Jürgen. La lógica de lãs ciências sociales. 3ª edição. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madrid:
Editorial Tecnos, 1996. p. 453-506. 10
“Todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer”. In: MATURANA, Humberto R.; VARELA,
Francisco J. As bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São
Paulo: Palas Athena, 2001. p. 32.
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17
Diz, finalmente, que a mudança paradigmática da linguagem (relação homem-objeto
para homem-homem), cujos pressupostos são a argumentação, o consenso e as relações
intersubjetivas, traz como resultado a própria ampliação do conceito de racionalidade, numa
tendência a neutralizar as concepções religiosas e metafísicas de cunho individualistas – as
quais, certamente, se sobreporiam além das manifestações culturais imanentes à natureza
humana.
Por oportuno, destacamos que, em conformidade às idéias do pragmatismo, Maturana
e Varela, apesar de também sustentarem a reflexividade do investigador como meio de afastar
as “cegueiras” no ato cognoscitivo, colocam que não podemos nos excluir de nosso domínio
cognitivo11
. Mas entendem que, seguindo uma compreensão mediana entre o objetivista e o
idealista, encontraríamos a regularidade do mundo que experienciamos a cada momento sem
ponto de referência independente de nós e que nos garanta aquela estabilidade absoluta que o
homem vê-se compelido a encontrar como que numa necessidade atávica.
Alegam que a unicidade do ser humano está no acoplamento estrutural social, no qual
a linguagem tem um duplo papel: gerar regularidades e constituir uma dinâmica discursiva
que produz reflexividade, a qual, por sua vez, conduz ao ato de ver sob uma perspectiva mais
ampla.
No que tange à retroalimentação entre a captação dos dados e a produção do
pesquisador, Karl Popper a menciona ao tratar da coexistência de três mundos: o físico, o da
consciência e o dos conteúdos objetivos dos pensamentos (nos quais se encontram as
ciências), dizendo que seria o modo como novos fatos e teorias incrementariam informações
11
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. Op. Cit. p. 368.
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mais próximas da verdade, com o crescimento do conhecimento objetivo12
– à maneira como
enxergamos o progresso dentro da presente temática.
Sustenta, também, que a racionalidade humana dar-se-ia devido à sua capacidade
descritiva e argumentativa através da linguagem, o que tornaria possível o desenvolvimento
do conhecimento objetivo e sua respectiva crítica. Parte do pressuposto da falibilidade do
homem e afirma que, da mesma forma, nossas teses conterão erros, devendo sermos críticos
quanto às mesmas e corrigi-las continuamente.
Este pensamento segue a linha do pragmatismo ora utilizado, uma vez que suscita uma
preocupação em evoluir os conhecimentos científicos mediante o uso do método da
verificabilidade com relação aos fatos. Como Popper aduz, a ciência seria construída com
base na refutabilidade das suas teses; o estado da ciência é sempre provisório e a descoberta
de novos fatos não confirma a teoria (não significa ser a mesma verdadeira ou correta), mas
apenas corrobora com a mesma.
Essas idéias, portanto, respaldam nosso interesse em desenvolver a temática da ADPF
n° 54, na qual deverão ser feitas ponderações a respeito das concepções morais reconhecidas
pelo nosso ordenamento jurídico, consoante demonstramos no posicionamento explicitado na
decisão do relator, bem como as que efetivamente se evidenciam na sociedade brasileira.
É bem verdade que, por mais que se tente afastar as parcialidades dos integrantes do
discurso jurídico, restarão os aspectos históricos e sociológicos imanentes às
“generalizações”13
, como propriamente destacou Thomas Kuhn, motivo pelo qual não
12
POPPER. K. R. Escritos selectos. Tradução de Sergio René M. Báez. 1ª reimpressão. México: fondo de
Cultura Econômica, 1997. p. 74. 13
Paradigmas, segundo explica Thomas Kuhn, que seriam responsáveis pela existência de uma comunicação
interna na comunidade e pela unanimidade relativa do juízo grupal em assuntos profissionais, servindo para
tornar possível a operacionalização da ciência. Vide: KUHN, Thomas S. Estúdios selectos sobre la tradicíon y
el cambio em el âmbito de la ciência. Tradução de Roberto Helier. 2ª reimpressão. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1996. p. 317-364.
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19
manteremos à parte informações sobre a prática social, relativamente à matéria em comento,
que deverão ser consideradas no momento do levantamento pragmático do tema.
Note-se que Kuhn mostrava a ciência não como um produto do contraste entre teoria e
realidade, haja vista não ser possível afastar-se de todos os paradigmas e compará-los de
forma objetiva. Afirmava que um compromisso compartilhado sobre os paradigmas induz a
um compromisso com o resultado, formalizando os trabalhos científicos, numa tentativa de
alcançar respostas mais objetivas – o que, nesta ocasião, se verificou a partir da adoção, no
discurso jurídico, do “paradigma” da “antecipação terapêutica do parto” –.
Ressalte-se que João Maurício Adeodato, ao abordar a problemática da teoria do
conhecimento, afirmou que a relação entre a linguagem humana e as coisas do mundo reduzir-
se-ia a uma convenção estabelecida arbitrariamente pelos homens, mas que isto não implicaria
na determinação subjetiva por cada ser humano, pois o uso corrente das palavras exigiria uma
objetividade convencional14
.
E é, justamente, em atenção a estas convenções que observaremos o emprego
particularizado dos termos “antecipação terapêutica do parto” e “abortamento”, por parte do
intérprete julgador (liminar), de acordo com as distintas situações em que se depara.
Teremos a cautela de analisar a adoção, por parte do magistrado, no julgamento de
casos de aborto típico, de posicionamento no sentido de considerar a tipicidade estrita da
hipótese, considerada ou não a existência de um choque de direitos e princípios entre a
gestante e o nascituro. Mas que, por sua vez, nos casos de anencefalia fetal, tende a afastar o
princípio da estrita legalidade, bem como as considerações sobre supostos direitos do
nascituro, adotando apenas a discussão quanto à existência ou não de direito da gestante de
“antecipar o parto”.
14
ADEODATO, João Marício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição ver. e
amp.São Paulo: Saraiva, 2006. p. 279.
-
20
O resultado proposto, no entanto, como já colocamos, não será demonstrar uma
solução à problemática do feto anencéfalo sob à ótica do direito, mas, especificamente,
explicitar a mudança de paradigmas no julgamento da ADPF, que restringe a complexidade
do caso, evidenciando os temas abordados e possibilitando uma discussão jurídica mais
adequada à hipótese, inserindo o debate ético e moral, mediante o uso da pragmática
jamesiana.
-
21
CAPÍTULO I - DO ETHOS AO DIREITO
João Maurício Adeodato ensina que, etimologicamente, a palavra ethos já parece
trazer uma confluência ou evolução de duas palavras gregas, semelhantes, porém, distintas: de
um lado ΕΘΟΣ (έθος, éthos), significando “costume”, “uso”, “hábito”15
, e de outro ΗΘΟΣ
(ήθος, ěthos), significando “caráter”, “forma de pensar”.16
Assevera que, no grego arcaico, um
termo não se distinguia do outro. Mas, com a diferenciação, percebem-se esses dois sentidos
na palavra ética: um social e um pessoal.17
O ethos designaria, então, um caráter que é resultado do hábito, perceptível na
aparência, nos traços, nas características, no olhar, no porte. Inicialmente, seria o lugar onde
se vive (habita), passando, posteriormente, a designar uso, costume, maneiras. Haveria, ainda,
uma terceira acepção, a de disposição de caráter, no sentido de inclinação a determinadas
atitudes e escolhas humanas; e um quarto, referindo-se à impressão produzida por um orador
nos ouvintes, o que já vai se aproximar do sentido de pathos.
Mediante seu processo de formação (Paidéia) ou de educação ética, o ethos de
determinada sociedade é transmitido aos seus membros, passando do estágio de uma liberdade
natural e arbitrária, à ética, à liberdade racional, cultural, segundo a finalidade escolhida
socialmente como a melhor. Nesta evolução, se a tradição tem papel fundamental, menor
importância não tem a razão, necessária para o julgamento crítico da primeira.
15
De forma semelhante, a palavra “moral” vem de mos, tendo origem latina e designando costume. (SCHNAID,
David. Filosofia do direito e interpretação. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p.
128.) 16
Segundo Henrique Vaz, etimologicamente, “Ethos” designa o hábito de agir de maneira determinada, que,
para ser ética, deve ser voltada para a efetivação do melhor, pelo que o ethos é compreendido como meio de
auto-realização do homem. Significa, assim, valores, costumes, normas, leis regentes da conduta ou do agir
humano, e que se encontra, enquanto produção cultural do homem, em processo de constante construção. (VAZ,
Henrique Cláudio Lima. Ética e direito. São Paulo: Loyola, 2002. p. 10.) 17
ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional. Sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009.
-
22
Na sociedade, o indivíduo eleva-se ao patamar da comunidade ética ao consentir em
integrar-se no corpo normativo do ethos, passando além da contingência de sua
individualidade empírica e referindo-se a um princípio de ordem que dê razão de seu existir
comunitário e de seu agir eticamente qualificado18
.
Os dois sentidos emanados do termo ethos (valores e hábito) são interligados através
do termo mediador práxis, que é a própria ação do homem. À medida que este orienta sua
ação em conformidade com as normas e costumes, tornando-se um hábito, passa-se da
universalidade abstrata do ethos normativo, mediante a particularidade da situação, para a
singularidade do ethos como hábito ou virtude19
.
Ao tempo em que o ethos encontra-se voltado para a práxis, apresenta sua face
deontológica, na cultura, por meio das suas prescrições de dever-ser. Com efeito, o
significado das normas, em especial as jurídicas, está mediata ou imediatamente relacionado
com a ordenação das condutas humanas em sociedade. Elas poderiam ser classificadas em
comandos compostos de sincategoremas - para utilizar a expressão lógica de Lourival
Vilanova20
- como obrigatório, permitido ou proibido, cujo significado é justamente
dogmatizar a ordem social, filtrando os conflitos e regrando as condutas, à medida que
transmitem suas informações.
No domínio do ethos, os questionamentos impostos pela ciência voltam-se para o
próprio homem, portador do logos, incidindo não sobre o indivíduo empírico, sua composição
física, mas sobre o ser portador de sabedoria, do discernimento e da escolha do justo e do
melhor, ou seja, do indivíduo ético, que se define, essencialmente, com referência à polis.
18
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 172. 19
VAZ lembra que a ação, enquanto portadora de significação, é parâmetro de medida, elevando-se sobre o
determinismo das coisas e penetrando o espaço de liberdade. Afirma que o homem habita o símbolo e é
exatamente como métron, como medida ou norma, que o símbolo é ethos, é morada do homem. (p. 34) 20
Sobre o estudo das proposições normativas no âmbito da lógica deôntica, ver: VILANOVA, Lourival.
Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 3ª edição. São Paulo: Noeses, 2005.
-
23
O ethos, portanto, é forma ordenadora da cultura enquanto espaço simbólico onde
vigoram os costumes do grupo social. Destarte, toda cultura é ética, sendo a ética sempre uma
expressão cultural21
.
É na religião que encontramos sua expressão cultural mais antiga e universal. O mito e
a crença aparecem como instrumentos intervenientes da consciência moral e o caminho mais
seguro encontrado pelas sociedades para fundamentar, numa instância transcendente, a
normatividade imanente à ação humana22
.
É impossível separar, na história das grandes civilizações, tradição ética e tradição
religiosa. A revelação do ethos na forma de ensinamento e comportamento religiosos é um
fato universal23
. Há, no entanto, processo histórico-cultural que se encaminha, na civilização
ocidental, para a autonomia recíproca. A passagem do logos mítico e sapiencial ao logos
epistêmico, na cultura ocidental, dá início ao ciclo histórico da ciência.24
A aproximação entre a phýsis e o ethos foi o primeiro passo dado na construção de
uma ciência do ethos. Pressupondo-se a phýsis como objeto por excelência do logos
demonstrativo ou da ciência, dá-se uma revolução conceptual na idéia do ethos, cujas
conseqüências serão decisivas para o aparecimento da Ética como ciência, na qual a primazia
da finalidade da conduta implica a primazia da ordem ou hierarquia das ações25
.
21
A co-extensividade entre ethos e cultura se estabelece a partir do caráter mensurante da ação com respeito à
realidade. E é justamente na explicitação desse métron próprio da práxis que o ethos se constitui e se mostra co-
extensivo a todo o âmbito da cultura. Afirmar que o ethos é co-extensivo à cultura significa afirmar a natureza
essencialmente axiogênica da ação humana. Vide: VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 33-34. 22
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 36. 23
David Schnaid argumenta que a religião é um fenômeno comum a todas as organizações sociais, porque deriva
da necessidade de disciplinar a conduta de seus membros e, por outro lado, tem suas raízes na essência humana,
do sentimento de fragilidade ante as forças da natureza e os mistérios da vida e da morte. Vide: SCHNAID,
David. Op. Cit.. p. 135. 24
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 39. 25
João Maurício ressalta, no entanto, que a palavra “ética” já significaria o conjunto de conhecimentos
relacionados ao ethos, não sendo, porém, apenas a doutrina ou disciplina para estudo do ethos, mas também o
próprio ethos, no sentido de designar simultaneamente a meta-linguagem (estudo do caráter humano) e a
linguagem-objeto (o caráter humano, tal como ele se apresenta). Vide: ADEODATO, João Maurício. Op. Cit..
2008.
-
24
O ethos verdadeiro deixa de ser a expressão do consenso ou da opinião da multidão e
passa a ser o que está de acordo com a razão (katà lógon) e que é, enquanto tal, conhecida
pelo Sábio, remanescendo, no entanto, uma crítica relacionada ao ethos estar fundado na
opinião, embora justificado pela razão.
De início, as reflexões sobre a lei despertam o interesse científico, embora sejam as
transformações sociopolíticas, das quais emerge a pólis como estado democrático, que
impõem a necessidade de uma explicação do ethos como lei, segundo os predicados da
igualdade (isonomia) e da correspondência com a ordem das coisas (eunomía).26
O percurso conceptual da reflexão ética na história da filosofia ocidental parte de uma
ontologia do Bem27
na República, operando a interiorização da lei por cada um. A legislação,
em certas circunstâncias históricas, poderia ser argüida de casuísmo ou de autoritarismo
legiferante, mas nunca deixou de ser o instrumento adequado para a prática da ciência do
“Bem” e para o exercício da “justiça”. A ciência do ethos é estruturada a partir dessa dialética
entre a norma paradigmática e a ação reta28
.
Se o Bem constitui o pólo objetivo unificante da práxis, a virtude (areté, excelência
física, perfeição de uma plenitude de ser) é o seu pólo subjetivo e entre os dois se estabelece o
espaço de racionalidade do ethos, no qual se descreve a trajetória da práxis como ato do
sujeito. A lei, o Bem e a virtude, seriam, portanto, os tópicos fundamentais da nova ciência do
ethos.
Mas, o caráter paradoxal que acompanha a ciência do ethos, desde os primeiros
passos, dá-se em decorrência do fato de nela se cruzarem duas exigências aparentemente
26
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 43. 27
A oposição absoluta entre o bem e o mal que permanece como poderosa sedução de todos os dualismos
ontológicos e éticos é relativizada com a dessubstancialização do mal, com sua “desrealização” na forma de
privação do bem ou de simples amissio boni. Um dos mais obscuros enigmas da existência ética do homem
começa a ser penetrado pela luz da razão (VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 48). 28
A idéia do bem como fim absoluto e transcendente da vida humana permite fundamentar a racionalidade da
práxis (VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 47).
-
25
inconciliáveis: a do logos teórico que se volta para a universalidade e imutabilidade do que é,
e a do logos prático que estabelece as regras e o modelo do que deve ser29
. Acontece que a
contingência inerente à práxis humana, criadora e portadora do ethos, uma vez assumida no
espaço do logos, situa-se entre estes dois pólos. Então, se coloca a seguinte questão: sendo a
práxis a medida das coisas, como irá estabelecer-se uma medida para ela própria, uma vez
que, na sua contingência e particularidade, ela não pode ser medida para si mesma?
A correspondência entre a racionalidade da episthéme e a do ethos supõe, no entanto,
que não seja abandonada à contingência do seu arbítrio, mas seja ação ética, haja vista o
processo de construção da ética não se determinar pela identificação do que é contingente,
transitório ou relativo, mas sim através dos termos coincidentes e invariáveis, que se
organizam de forma lógica.
Trata-se de um saber que constitui regra de uma ação e não somente conhecimento de
um ser (theoria). No sujeito ético, o universal, que se autodetermina em ordem à práxis,
manifesta-se como conhecimento e liberdade na sua inter-relação dialética; ele se particulariza
como deliberação e escolha e se singulariza ou se determina como universal concreto na
consciência moral.3031
A idéia de liberdade, embora esteja estigmatizada por sua característica individualista
e seja pensada na figura histórica da liberdade de um ser finito, delineia-se mediante o
movimento infinito da sua autodeterminação. Manifestada historicamente, é o núcleo
inteligível do ethos e a sua exposição é a expansão discursiva. Em outras palavras: é a
transcrição da realidade histórica do ethos e que se evidencia através da superação de
29
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 53. 30
________. Op. Cit.. p. 56-57. 31
O propósito kantiano da constituição da Metafísica dos Costumes era dotar o homem emancipado de uma
Ética cujos fundamentos metafísicos encontrar-se-iam na própria liberdade, manifestada em sua autonomia pelo
estabelecimento das condições transcendentais (a priori) do uso prático da razão. Os dois conceitos
fundamentais da Ética kantiana são a razão prática, movida pelos interesses de conhecer e agir, e a liberdade.
(VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 69-75).
-
26
conflitos sociais, políticos e culturais que rompem a unidade do ethos, pondo à mostra seu
núcleo.32
O aparecimento e o desenvolvimento da polis caminham em estreita relação com o
ethos, na medida em que a lei (nómos) permite uma correspondência entre medida (métron)
interior, que rege a práxis do indivíduo, e a lei da cidade, que é propriamente nómos e deve
assegurar a participação equitativa (eunomía) dos indivíduos no bem que é comum a todos e
que é o próprio “viver-em-comum”. Assim, se de um lado o ethos é conceptualizado como
hábito (héxis), constituindo-se como teoria da práxis individual, na forma de doutrina da
virtude (areté); de outro, ele também é costume, exprimindo-se na forma de teoria do agir em
comum, como doutrina da lei justa (politéia). 33
Mas, se o problema maior da Ética, como ciência da práxis individual, é a liberdade;
na ciência política, é o da razão do livre consenso e o da realização plena da lei justa. A razão
imanente ao livre consenso e que se explica em leis, regras, prescrições e sentenças é o que se
denomina Direito e que está para a comunidade como a razão reta (orthòs lógos) está para o
indivíduo.
Para Hegel34
, as formas de realização da Liberdade, ou do Espírito, no tempo,
comporiam a filosofia ou a ciência política. As razões da liberdade seriam sempre razões
práticas ou normativas, sendo a ação o corpo da Liberdade realizada. Por sua vez, o Espírito,
na dialética da consciência-de-si é, estruturalmente, um Nós, sendo a exposição das formas de
32
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 66. 33
________. Op. Cit.. p. 205. 34
Hegel (1770-1931) foi um idealista alemão que acreditava que a mente e seus objetos eram inseparáveis
manifestações de uma única realidade por ele chamada de Idéia ou Razão. Seu pensamento apresenta-se como
um grande sistema sem lacunas, completo e perfeito em sua grande estrutura. Defendia a existência de uma
identidade radical entre realidade e racionalidade, porém, à realidade deveria ser assegurada a multiplicidade de
suas determinações, sem que ela deva submeter-se às limitações provenientes do intelecto. Na dialética do finito
e do infinito, encontra-se resumida sua posição sobre a tradição metafísica, que busca superar a razão pura
kantiana, transpondo a fronteira da coisa em si a partir da unidade ontológica entre ser e pensar. (vide: TREIN,
Franklin. Hegel e a Dialética. In: Curso de Filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de
graduação. 13ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005)
-
27
racionalidade prática ou de dever-ser desse Nós, em níveis universais de efetivação da
Liberdade, o propósito da Filosofia do Espírito objetivo ou do Direito.35
Devem ser situados o lugar e o destino do indivíduo na Ética hegeliana, uma vez
reconhecida nele a presença do Espírito como ser subjetivo que nos impõe o imperativo
teórico-prático de realizar-nos objetivamente pela ação, ou seja, de realizar-nos
historicamente como Nós. A filosofia do Espírito objetivo ou do Direito descreve o itinerário
desde a universalidade abstrata do reconhecimento através das coisas (direito abstrato) até a
universalidade concreta do reconhecimento através do consenso das liberdades (Estado ou
sociedade política). Neste diapasão, Hegel entende que o Estado ou a sociedade política
representam a forma mais alta que a humanidade histórica alcançou, como lugar privilegiado
para manifestação do Espírito, de realização efetiva de Liberdade36
.
Temos, assim, que a ética, na qualidade de ciência prática, pode ser definida por
estudar a práxis do homem orientada para o seu fim propriamente humano, deixando de ser
apenas a codificação racional do ethos vivido efetivamente por uma comunidade histórica.
O contra-senso a esta evolução, entretanto, é a crise instalada em nossa civilização,
uma vez que a razão, nela operante, expandiu-se em várias direções (científica, técnica,
política, religiosa), ocasionando uma dificuldade em criar um novo paradigma de Ética
universal para uma civilização universal.
Nas palavras de Henrique Vaz, o clima intelectual do século XIX mostrou-se
antimetafísico e antiteológico, nele dominando a poderosa atração das novas racionalidades
científicas em ascensão na cultura ocidental. Afirma que a rápida diferenciação dos usos da
35
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 125-126. 36
Com Hegel chega ao fim a história das grandes concepções éticas que se iniciara com Platão. O pressuposto
comum que une diferentes concepções é que o agir humano, essencialmente racional e livre, só é pensável dentro
da unidade de um pensamento que englobe o Todo da realidade e que permita ao sujeito da ação referir a esse
âmbito transcendental o fundamento de suas normas e nela descobrir seus fins. (VAZ, Henrique Cláudio Lima.
Op. Cit.. p. 129).
-
28
razão na modernidade e a multiplicação de suas especialidades tornaram cada vez mais
problemática a expressão de uma razão universal, fundamento de uma normatividade
transcendente37
.
1.1 Da sociedade ética
Há uma continuidade necessária entre a Ética e a Política: a dialética particular-
universal-singular desdobra-se, no contexto da existência individual, como circularidade
dialética do ético e, no da existência social, como circularidade dialética do político38
. À
medida que se constitui como ser ético, o homem se torna apto para elevar-se à esfera do ser
político.
A existência política representa a elevação do indivíduo empírico a um plano de
existência universal, de uma vida social regida por normas racionais e obediente ao
imperativo de um dever-ser, o imperativo da lei, ocasião em que a particularidade do
indivíduo é dialeticamente negada pela passagem ao coletivo, na existência sócio-política.
Fica excluída a particularidade, inclusive parte da liberdade individual, que se mantém
fechada em si mesma como centro de referência para a satisfação de suas necessidades
imediatas.
Embora esta individualidade seja negada na passagem à universalidade do logos, ela
se conserva como singularidade, como universalidade concreta, capaz de tornar-se sujeito
enunciador e portador de valores e, como tal, capaz de coexistir junto aos seus semelhantes.
No estágio final, articula-se a universalidade objetiva do logos (a lei e o Direito) com a
37
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 131. 38
________. Op. Cit.. p. 207.
-
29
subjetiva e concreta do cidadão, como ser socializado não no círculo fechado da existência
gregária, mas no espaço livre da existência política.39
A gênese e concepção do Direito estão intrinsecamente ligadas à idéia do homem que
dá razão desse direito que é, por excelência, direito humano, dominante na sociedade, em que
tais direitos são reconhecidos, se não efetivamente respeitados.
Destarte, a razão da vida política é o Direito. E o motivo antropológico fundamental
que rege determinada sociedade reside no nível de universalização, de satisfação, que o
Direito nela vigente permite ao homem alcançar, através da diminuição de suas limitações
contingenciais, tornando operante o princípio da isonomia, que não passa, em verdade, de um
conceito hipotético.
Acontece que, se a tarefa das normas, nas teorias políticas, é pensada segundo as
exigências de otimização que decorrem da própria razão, na realidade histórica, a existência
política é marcada pela contingência que torna impossível a síntese perfeita entre a
universalidade objetiva do logos e a universalidade subjetiva da razão singular.
Segundo Pontes de Miranda, o grupo social impõe a uniformidade, que se dá mediante
dois impulsos: um interno, que leva o indivíduo a ser semelhante aos outros; outro exterior,
que o previne contra os que fogem à normalidade40
.
Persuasão, energia e violência são processos usados para apagar tais exceções
psicológicas e socialmente incômodas. Tomadas em conta, em dadas situações, e como
doutrina provisória, podem ser útil à interpretação individualista, mas então, não se trata de
valor intrínseco, e sim de valor pragmático e contingente, afirma o autor. No fundo, há apenas
diferença tópica de visão: ora do lado do organismo total, ora da unidade componente
39
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 212. 40
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 289.
-
30
(indivíduo). Mas essa divergência é imagem ideológica da física social, do binômio de
adaptação, a que compete abrir o caminho e achar a solução para a continuidade da vida.
Com uma visão semelhante, Boaventura aduz que o desequilíbrio no pilar da
regulação política consistiu no desenvolvimento hipertrofiado do mercado em detrimento do
princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade. Assim, a política
liberal confronta-se, desde o início, com o imperativo de compatibilizar a subjetividade
coletiva do Estado centralizado à dos cidadãos autônomos e livres.41
Com efeito, nas condições variáveis e extremamente complexas em que as
comunidades se realizam na história, sua face ética aparece quase sempre deformada pelos
fatores poderosos que impelem os grupos na direção das necessidades e dos interesses, onde o
encontro com o outro é medido pelas categorias da utilidade, da dominação ou das satisfações
subjetivas42
.
Mas, consoante nos ensina Vaz, o êxito da forma democrática só é pensável a partir da
essência ética do político, entendida como domínio da auto-realização e da autopossessão de
si. A partir de então que se torna possível definir a superioridade do político sobre o despótico
e do democrático sobre o simples político. 43
Mas lembremos: a essência ética do político é reconhecida quando se afirma a
igualdade dos cidadãos perante a lei e a equidade da lei em sua regulação da vida do cidadão:
isonomia (igualdade da lei para todos) e eunomia (eqüidade da lei). Temos, assim, que a
democracia aprofunda tal essência ao definir em termos de liberdade participativa e
responsável a resposta do cidadão à regulação da lei.
41
SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit.. p. 237. 42
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 245. 43
________. Op. Cit.. p. 344.
-
31
David Schnaid assevera que a subjetividade da pessoa deve ser respeitada, na medida
do possível, e a alteridade deve ser preservada na medida do necessário. Afirma que o
princípio supremo de justiça consiste em assegurar a cada um a liberdade necessária para que
se transforme um indivíduo em uma pessoa, para que se “personalize”. Outro elemento para a
compreensão do conceito de justiça seria a igualdade, dado ainda mais abstrato, já que não
existem dois seres iguais. Ela não é uma phýsis, não existe na natureza, sendo criação da
ordem jurídica e decorrente da valoração da dignidade humana.44
1.2 Ética e direitos humanos
Como vimos, o movimento de transformação no mundo moderno caracteriza-se pelo
advento de uma concepção do homem elaborada segundo as categorias da filosofia
racionalista, e de sua derivação empirista45
, que fornece os traços para novas teorias morais e
políticas.
A relação técnica com a natureza, entretanto, acaba por determinar a formação de uma
constelação de valores polarizados em torno do problema da satisfação das necessidades,
ocasionando uma insuficiência conceptual da relação Ética e Direito.
Henrique Vaz defende que a redução dos problemas das comunidades às contradições
da sociedade civil, na qual a primazia é dada ao indivíduo particular e satisfação de suas
necessidades biopsicológicas, bloqueia o movimento dialético constitutivo do ser ético e
político do homem e por meio do qual se eleva de sua particularidade à singularidade concreta
44
SCHNAID, David. Op. Cit.. p. 257. 45
Cretella Júnior ensina que o empirismo (do grego “empeiria”, experiência) afirma que a origem do
conhecimento é a experiência. Pressupondo-se que a fonte do conhecimento é experimental, entende-se não
haver qualquer patrimônio a priori da razão. Para os empiristas, não existe no intelecto conteúdo distinto dos
dados da experiência. Já o racionalismo (do latim “ratio”, razão) vê, não na experiência, mas no pensamento a
fonte principal do conhecimento. Por fim tem-se o posicionamento dos fenomenalistas, para os quais é
impossível conhecer as coisas em si, como realmente são, mas apenas como se revelam ao sujeito cognoscente.
Não vemos o “númeno”, a coisa em si. Apreendemos apenas o fenômeno, a aparência. (CRETELLA JÚNIOR,
José. Curso de filosofia do direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 24-36).
-
32
ou à universalidade efetiva de sujeito de virtude e da lei, o que vem a se tornar o problema
fundamental da organização sociopolítica.46
Se a questão primordial da antiga filosofia prática, no âmbito da vida social, era a
determinação dos requisitos essenciais que asseguravam ao homem, como cidadão, exercer,
na polis, os atos próprios da vida virtuosa para o bem da cidade, o pensamento moderno
assumiu a tarefa de propor uma solução para o problema da associação dos indivíduos,
assegurando a satisfação de suas necessidades vitais, respeitadas suas particularidades
biopsicológicas.
O sistema de Direito requisitado é fundado no postulado igualitarista: na igualdade dos
indivíduos enquanto unidades isoladas, numericamente distintas, no estado de natureza. Nesta
concepção, o “estado de sociedade” é, primeiramente, a soma desses indivíduos vinculados
pelo pacto social.
A generalidade da lei fundamenta a relação de igualdade entre os membros da
comunidade política, ao passo que a comunidade democrática é articulada a partir da
singularidade das liberdades. Contudo, a liberdade que responde ao apelo da comunidade
democrática é a constitutiva de uma consciência moral de cada cidadão.
Com efeito, o estabelecimento dos “direitos do homem” está implicado na dinâmica
organizacional de uma sociedade na qual se difundiu o trabalho livre e a propriedade privada,
bem como a economia de mercado, com a exacerbação dos conflitos de interesses particulares
que reclamam uma garantia jurídica e liberdade formal.
A noção de direito subjetivo não apareceu antes do século XIV47
e se torna decisiva
para a formulação da estrutura democrática do estado, na modernidade48
. Anteriormente, o
46
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 238. 47
________. Op Cit.. p. 355. 48
Aqui abro uma ressalva: não se pretende defender uma determinada estrutura política de democracia.
Tratamos, por ora, de um modelo democrático ideal, no qual haja uma “real” participação de todos os integrantes
-
33
“Estado” não apresentava uma justificação ideológica articulada em torno da noção do
homem e de seus direitos. O mundo antigo conheceu, apenas, a idéia do indivíduo livre dos
laços da tradição e em luta para prevalecer seus interesses e suas ambições.
Boaventura argumenta que o mecanismo regulador da tensão, proveniente da
subjetividade dos agentes na sociedade civil e da subjetividade do Estado, é o princípio da
cidadania que, por um lado, limita os poderes do Estado e, por outro, universaliza e igualiza
as particularidades dos sujeitos de modo a facilitar o controle social de suas atividades e a
regulação social.49
Segundo Norberto Bobbio, o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos estão
na base das constituições democráticas modernas, cuja forma de governo permite o exercício
da cidadania. Diz que os direitos humanos, do ponto de vista teórico, são direitos históricos,
surgindo com o evoluir da sociedade e como resposta às suas necessidades, sendo, portanto,
produto de uma evolução controlada por fatores sociais, políticos e econômicos.50
Mas, como já expusemos, a fragmentação da imagem do homem, numa pluralidade de
culturas e valores, torna problemática a adequação das convicções do indivíduo e de sua
liberdade a idéias e valores universalmente protegidos. E, aqui, reside o paradoxo de uma
comunidade preocupada em definir e proclamar uma lista de direitos humanos, mas impotente
para sair do plano do formalismo abstrato e inoperante desses direitos, efetivando-lhes nas
instituições e práticas sociais.
O fundamento do binômio Ética e Direito é, portanto, buscado na denominada
universalidade hipotética, onde as relações entre as pessoas são deduzidas analitacamente a
da comunidade na direção do Estado. Como bem salienta José Souto Maior Borges, despende-se tempo,
atualmente, tentando evitar danos causados por maus governantes, sendo desgraçado o país que se confia na
honrabilidade de seus representantes como único penhor da preservação da liberdade individual e dos direitos da
pessoa humana. Ademais, acrescenta, a vontade coletiva é algo que, só em precária analogia com a vontade
individual, pode ser entendida. Vide: BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz. 3ª ed. São Paulo: Quartier
Latin, 2007. p. 98-102. 49
SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit.. p. 240. 50
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 1-2.
-
34
partir do pacto de associação ou contrato social, formulado como garantia dos interesses e das
necessidades de cada um, recaindo na idéia sofística de nómos e reabrindo o caminho para o
renascimento da oposição phýsis-nómos.51
O evento histórico da proclamação dos direitos universais do homem aparece como
exigência efetiva de uma civilização que universaliza o trabalho e a propriedade, mas que põe
à mostra uma cisão profunda entre igualdade formal e quantitativa e as novas formas de
desigualdade social e política, manifestadas no processo de estruturação e diferenciação
internas da sociedade.
Não se pode negar o caráter revolucionário que o Direito moderno adquire ao
introduzir, na consciência política da nascente sociedade liberal, as premissas teóricas que
conduzirão às solenes declarações dos direitos do homem. Os chamados “direitos humanos”
tornaram-se tema de alta relevância política nas Declarações solenes, no Direito
Constitucional e no diálogo entre nações.
As primeiras manifestações destes direito, enquanto positivados, surgem com os textos
constitucionais democráticos dos chamados direitos de primeira geração, ou direitos de
liberdade, oponíveis ao Estado, ostentando uma subjetividade e entrando na categoria de
status negativus de Jelinek. Já os direitos de segunda geração, que são direitos sociais,
culturais e econômicos, nasceram abraçados aos princípios da igualdade, razão de ser de sua
própria existência.52
Constata-se, assim, que o fundamento dos direitos humanos dá-se em virtude do
momento mediador da moralidade, cuja transposição na vida ética concreta é o indivíduo na
sociedade civil, não somente em razão da totalidade quantitativa pressuposta ao contrato
51
VAZ, Henrique Cláudio Lima. Op. Cit.. p. 237. 52
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 516-518.
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35
social, mas do processo histórico-cultural do qual emerge o pensamento da consciência
singular dentro dessa universalidade.
O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos
humanos pelo Direito brasileiro foi a ratificação, em 1989, da Convenção Contra a Tortura e
Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. A partir de então, diversos
instrumentos importantes de proteção aos direitos humanos foram também incorporados pelo
Direito brasileiro sob a égide da Constituição Federal de 1988.53
O valor da dignidade humana – elevado ao nível de princípio fundamental, nos termos
do inc. III do art. 1° – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico
brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar o sistema constitucional. A
dignidade humana e outros direitos fundamentais vêm a constituir os princípios
constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo
suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a
ser dotados de especial força expansiva, projetando-se por todo o texto constitucional e
servindo de critério interpretativo54
.
Assim, no tocante à Constituição brasileira de 1988, objeto de nosso estudo, à parte
dos dispositivos que emanam normas programáticas ou que estruturam e ordenam o
funcionamento do Estado55
, as cláusulas garantidoras de direito humanos demonstram sua
natureza ética, desenvolvidas, conforme já exposto, a partir do ethos da comunidade,
asseguradas mediante o poder cogente estatal.
Destarte, à medida que a ADPF n° 54/DF busca demonstrar a existência de desrespeito
aos princípios constitucionais consagradores dos direitos humanos, tais como o da dignidade
53
PIOVESAN, Flávia. A constituição brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos. In: A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil. Brasília: Superior Tribunal de Justiça,
2000. p. 87-104. 54
PIOVESAN, Flávia. Op. Cit.. p. 96. 55
Sobre o tema, vide: MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 41.
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36
da pessoa humana, da autonomia da vontade e o de direito à saúde, torna necessária a
compreensão sobre os valores éticos, normatizados constitucionalmente, motivadores e
justificadores dos atos por parte da sociedade em que incide, mormente quando tais atos
implicam o acionamento do Poder Judiciário, ao qual compete, em ultima instância, verificar
a legitimidade de suas escolhas.
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37
CAPÍTULO II – ABORTO, ANENCEFALIA E SOCIEDADE
2.1 Contexto social
Na comunidade internacional, de forma geral, existe uma prática abortiva clandestina
bastante difundida, embora reprimida por questões morais e religiosas. Trata-se de ato
revelador de um desvirtuamento daqueles valores por parte da população, relativamente à
gestação de um filho, em função, principalmente, das condições de criação no pós-parto, a
despeito de suas crenças e anseios.
Em trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais,
realizado em Caxambú, Minas Gerais, em setembro de 2006, através de apoio do Ministério
da Saúde, Mario Francisco Giani Monteiro e Leila Adesse estimaram que, em 1996,
houveram 1.066.993 (um milhão, sessenta e seis mil e novecentos e noventa e três)
abortamentos induzidos, no Brasil, mantendo-se neste patamar até 2005 (1.054.242 – um
milhão, cinqüenta e quatro mil e duzentos e quarenta e dois abortamentos induzidos).56
A grande maioria destes abortamentos induzidos (três em cada quatro, em 2005),
afirmam, ocorreu nas regiões Nordeste e Sudeste. Com uma redução, na taxa anual, por 100
(cem) mulheres, de quinze a quarenta e nove anos, de 3,69 (três inteiros e sessenta e nove
décimos), em 1992, para 2,07 (dois inteiros e sete décimos), em 2005, ocorrendo em maior
quantidade na região Nordeste.
Concluíram que o número aproximado de abortos induzidos, em 1992, era equivalente
a 43% (quarenta e três por cento) dos nascimentos vivos, mostrando que uma elevada
proporção das gestações não foi desejada, levando estas mulheres a recorrer ao abortamento.
56
Vide: MONTEIRO, Mario Francisco G.; ADESSE, Leila. Estimativas de aborto induzido no Brasil e
grandes regiões (1992-2005). Disponível em: . Acesso em:
25.02.10.
http://www.ipas.org.br/arquivos/ml2006.pdf
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38
Esta proporção cai para 31% (trinta e um por cento), em 1996, e cerca de 30% (trinta por
cento) dos nascimentos em 2005.
Utilizam-se diversas técnicas para interromper a gravidez, incluindo uma ampla
variedade de procedimentos populares, praticados pelas próprias gestantes ou por pessoal não
capacitado, resultando em sérios riscos à saúde destas mulheres, acarretando, ainda, seus
óbitos.
A Comissão de Cidadania e Reprodução noticiou, em outubro de 2007, pesquisa
relacionada ao abortamento, na qual foi constatado que suas taxas são semelhantes entre
países onde a prática é legal e onde é ilegal. O trabalho, realizado, em conjunto, pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Instituto Guttmacher, de Nova York, indica que
a proibição legal não inibe sua prática.57
Os pesquisadores também confirmaram um dado lógico: os abortos são seguros em
países em que a prática é legalizada e perigosos onde são feitos clandestinamente. Asseveram
que, no mundo, 67.000 (sessenta e sete mil) mulheres morrem por complicações decorrentes
dessa prática, a maioria em países em que o aborto é ilegal. Segundo o levantamento, em todo
o mundo os abortos correspondem a 13% (treze por cento) das mortes de mulheres.58
A União Internacional da Saúde da Mulher (Internacional Women´s Health Coalition)
também confirma tais informações. Afirma que “o aborto seguro – a interrupção de uma
gravidez por prestadores de serviço de saúde treinados que utilizam a técnica sanitária correta
e o equipamento apropriado – é um serviço de saúde simples que salva vidas. Todavia, dos 42
milhões de abortos realizados todos os anos, estima-se que 20 milhões são de risco e 97%
deles são realizados nos países em desenvolvimento. Todos os anos, quase 70.000 mulheres
57
Vide: Criminalizar o aborto não reduz sua incidência. Comissão de cidadania e reprodução. Disponível em:
http://www.ccr.org.br/a_noticias_detalhes.asp?cod_noticias=1558. Acesso em: 25.02.10. out. 2007. 58
Neste mesmo sentido, vide periódico O Globo. Abortos matam 70 mil mulheres por ano no mundo. Disponível
em: . Acesso em: 25.02.10. out. 2009.
http://www.ccr.org.br/a_noticias_detalhes.asp?cod_noticias=1558
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39
morrem desnecessariamente em decorrência de complicações de abortos de risco e inúmeras
outras sofrem infecções, infertilidade e lesões debilitantes”.59
Entende que jovens ou idosas que enfrentam punições por terem feito um aborto,
continuam sujeitas a tentar novamente, mas seria menos provável que elas tivessem acesso a
serviços seguros. Quando o aborto é restrito por lei, afirma, os prestadores treinados podem
hesitar instrumentá-lo, mesmo quando permitido, na ocasião. Como não conhecem a lei,
temem a censura da comunidade ou têm crenças pessoais contra o ato, o que vem a forçar as
gestantes a praticá-los clandestinamente, com pessoas menos escrupulosas.
A União defende a capacidade da mulher para exercer seus direitos de controlar o
próprio corpo, para sua autodeterminação e saúde, inclusive com autonomia para definir se
deseja levar a gravidez até o fim. Ademais, protestam pela liberalização de leis restritivas e
implementação de leis que permitam a autonomia feminina quanto à decisão de interromper
ou não a gravidez, tendo acesso a serviços de aborto seguro, os quais fariam parte dos
serviços de saúde reprodutiva e que deveriam ser acessíveis e economicamente viáveis a todas
as mulheres.
Destarte, observa-se que restrições legais não impedem o aborto, simplesmente
tornam o procedimento perigoso. Muitas mulheres são mutiladas ou mortas a cada ano por
não terem acesso ao aborto legal. Investigadores admitem que não é realista evitar totalmente
o procedimento, mas que melhorar o acesso a anticoncepcionais e pressionar pela retirada de
restrições ao aborto é uma meta válida em nível global. Disseram, também, que o atendimento
59
Vide: O acesso ao aborto seguro é um direito humano. Internacional women´s health coalition. Disponível
em: . Acesso em:
25.02.10.
-
40
a mulheres que sofrem lesões devido a abortos arriscados custa cerca de meio bilhão de
dólares60
.
Relativamente às expectativas e aspectos emocionais vividos pela gestante, foi
realizado um trabalho bastante significante, divulgado na Revista Brasileira de Ginecologia e
Obstetrícia, no qual os pesquisadores descreveram os processos emocionais na interrupção da
gestação após o diagnóstico de malformação fetal letal61
.
Nele, foram entrevistadas trinta e cinco gestantes, cujo feto era portador de
malformação fetal, sendo a mais freqüente a anencefalia, com 71,5% (setenta e um e meio por
cento) dos casos, e que realizaram a interrupção da gestação após solicitação de autorização
judicial.
As pacientes foram submetidas à entrevista psicológica, logo após o diagnóstico,
ocasião em que expressaram seus sentimentos e, também, para promoção de reflexão sobre o
assunto. As que solicitaram e tiveram o aborto realizado foram convidadas a retornar para a
segunda entrevista psicológica, dentro de um ou dois meses após o procedimento, quando foi
aplicado questionário para identificar os aspectos emocionais vivenciados e descrever os
sentimentos despertados.
A análise comprovou que 60% (sessenta por cento) relataram ter sofrido sentimentos
negativos, pouco mais da metade afirmou não ter tido dúvidas quanto à decisão tomada.
Pouco mais de noventa por cento (91%) afirmaram que adotariam a mesma atitude em outra
situação semelhante e, a maioria delas (60%), que aconselharia a interrupção a outras mães
60
Abortos matam 70 mil mulheres por ano no mundo. O Globo. Disponível em:
. Acesso em: 25.02.10. out. 2009. 61
BENUTE, Gláucia Rosana Guerra; NOMURA, Roseli Mieko Yamamoto; LUCIA, Mara Cristina Souza de e
ZUGAIB, Marcelo. Interrupção da gestação após o diagnóstico de malformação fetal letal: aspectos emocionais.
Rev. Bras. Ginecol. Obstet. 2006, vol.28, n.1, pp. 10-17. Disponível em:
. Acesso em: 10.02.10. ISSN 0100-7203.
http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=p&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=BENUTE,+GLAUCIA+ROSANA+GUERRAhttp://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=p&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=NOMURA,+ROSELI+MIEKO+YAMAMOTOhttp://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=p&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=LUCIA,+MARA+CRISTINA+SOUZA+DEhttp://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%5Edlibrary&format=iso.pft&lang=p&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=ZUGAIB,+MARCELO
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41
que estivessem indecisas sobre interromper ou não a gestação, nas mesmas condições que a
vivida.
Revelou, ainda, um aspecto bastante importante para o presente trabalho: cerca de
sessenta e cinco por cento das gestantes (65,7%) informaram que a opinião mais importante
na tomada da decisão pela “antecipação terapêutica do parto” era a própria, a despeito das
considerações do parceiro ou quaisquer outras influenciadoras. Observou-se que, quanto às
crenças relativas ao aborto antes da vivência da malformação fetal e da interrupção judicial da
gravidez, quase a metade (45,7%) era contra o aborto.
Ao receber o diagnóstico de malformação fetal, já era esperado que as gestantes
passassem por períodos de dúvidas e questionamentos, buscando outras opiniões, para
confirmar o diagnóstico recebido. Esses sentimentos, comumente, dizem respeito à ansiedade
e apreensão.
O processo de internação hospitalar, a indução e interrupção da gestação são situações
que envolvem sofrimento pessoal relevante, despertando sentimentos mais intensos de
fracasso e frustração, não pela interrupção em si, mas pela incapacidade sentida no gestar,
pela ausência do filho imaginado, pelo filho perdido, mostraram os avaliadores. Quando o
diagnóstico é estabelecido com a gestação avançada, a aceitação do problema torna-se ainda
mais difícil.
A reação dos casais, em face do diagnóstico pré-natal de uma anormalidade fetal,
pode envolver sentimentos de raiva, desespero, inadequação e distúrbios do sono e de
alimentação. Ao investigar a incidência de depressão, após a interrupção da gestação por
anomalias fetais, avaliaram que mais da metade das pacientes apresentaram os sintomas no
segundo trimestre.
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42
Analisaram que, em países onde o aborto é permitido, quando é estabelecido o
diagnóstico de anomalia cromossômica do feto, a opção pela intervenção na gestação ocorre
em elevada percentagem dos casos: 100% (cem por cento) dos casos na Suíça e 94 a 100%
(de noventa e quanto a cem por cento) nos Estados Unidos. Quando se confirma o diagnóstico
de distúrbios metabólicos, 100% (cem por cento) das pacientes realizam a interrupção da
gravidez na Austrália, o mesmo ocorrendo nos Estados Unidos. Observaram que a opção pela
interrupção da gravidez, muitas vezes, está pautada na qualidade de vida do feto, com relatos
de preocupação com o sofrimento do bebê e da família.
De fato, como fora dito, 43% (quarenta e três por cento) das entrevistadas, nesta
pesquisa da revista brasileira de ginecologia e obstetrícia, assumem a tomada de decisões
como ação pragmática de enfrentamento da realidade. As dúvidas vivenciadas pelas pacientes
relacionaram-se principalmente ao diagnóstico. Menor proporção relatou dúvidas de ordem
moral em relação à interrupção da gravidez.
Ressalta-se, no entanto, que, nesta inquirição, todas as pacientes foram acompanhadas
por psicólogo no momento da opção pela intervenção cirúrgica, os conteúdos inconscientes
foram trazidos ao consciente e as pacientes puderam refletir sobre suas posições. Assim, os
pesquisadores entendem ser provável que a ausência de sentimento de culpa ou depressão
pós-interrupção esteja diretamente relacionada a esse processo de intensa revisão de valores
morais, culturais e melhor compreensão dos aspectos psíquicos em funcionamento.
Verificaram que algumas mães necessitam visualizar o feto com todos os problemas,
para que consigam crer plenamente no diagnóstico e estabelecer um sentido psíquico para
essa vivência. Outras preferem não entrar em contato, por acreditar que isso dificultaria o luto.
A escolha é pessoal e mesmo tendo optado pela interrupção, o casal não consegue conceber
esse ato como eliminando a vida do filho. Visualizam o processo como escolhendo o
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momento da perda, mas o vínculo afetivo com a "criança" se mantém; por isso, exigem
respeito e cuidado com o feto durante todo o processo.
Esta análise possibilitou compreender os processos psíquicos vivenciados após a
interrupção da gestação com malformação fetal letal. Houve reconhecimento de que a
intervenção na gravidez foi a melhor escolha e que efetivamente minimizou o sofrimento.