“CHOREI O MEU CHORO PRIMEIRO, EU CHOREI POR INTEIRO PRA
NÃO MAIS CHORAR”: OS PROCESSOS DE RESSIGNIFICAÇÃO DO
CHORO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO CENTRO DE ÓPERA POPULAR
DE ACARI
André Cesari Batista de Lima
Universidade Federal Fluminense
Resumo: O presente trabalho pretende abordar a relação do ensino de música, mais
precisamente do gênero choro, através de projetos sociais, compreendendo também o
processo de ressignificação deste estilo, onde passa a ser ensinado também em projetos
sociais da cidade. Visa como objetivos: compreender as relações que envolvem as origens
deste gênero musical, seus processos de transformação ao longo dos anos e sua
ressignificação. Percebendo como o choro, que tem suas origens ligadas a uma classe
social emergente, formada por negros e mulatos, no qual, com o passar do tempo, transita
por diversos lugares, até sua consolidação enquanto estilo, no qual, passa a ser apropriado
também por projetos sociais para o seu ensino em regiões consideradas “carentes” da
cidade. Como objeto de estudo para este artigo, primeiramente, para compreender como
se dá esse processo de ressignificação deste gênero, será feito uma análise do processo
histórico do choro, entendo as questões que estão envolvidas em sua trajetória ao longo
desses anos, até ser utilizada como gênero musical ensinado em projetos sociais da cidade.
A partir de então, farei uma análise sobre o projeto Centro de Ópera Popular de Acari,
projeto do qual fui aluno e professor. O projeto surgiu nos anos 2000, com o nome ABC
& Arte, idealizado pela professora Avamar Pantoja, na Escola Municipal Alexandre de
Gusmão, no qual era diretora, e, a partir de 2005, ano que mudou de nome para Centro
de Ópera Popular de Acari e que sua localização, passando para um salão próximo à
escola onde o projeto começou e devido à falta de recursos encerrou as suas atividades
no ano de 2017.
Palavras-chaves: Música; Choro; Projeto social.
O Processo Histórico do Choro
Nesta primeira parte, irei fazer uma abordagem sobre as origens em torno da
criação do gênero choro, compreendendo os aspectos históricos, sociais e culturais.
Buscarei trazer como, ao longo dos anos, o choro vai transitando por diversos lugares, e
analiso como essa circulação vai influenciando para uma consolidação deste estilo
enquanto música e prática cultural essencialmente brasileira.
Primeiramente, compreendendo as definições sobre gênero musical, o autor Pedro
Aragão (2011), aborda a seguinte definição:
Aquilo que identificamos usualmente como “gênero musical” seria mais
propriamente definido como um feixe de discursos e ideias sobre determinadas
práticas do que simplesmente por uma definição “fechada” sobre determinado
discurso sonoro (ARAGÃO, 2011, p. 150).
Portanto, para entender esse processo de prática cultural do choro, compreendo
que um gênero musical representa não apenas um determinado ritmo, som, ou melodia e
sim de uma série de discursos, além de um processo simbólico e cultural de representação
que está envolvido durante esse processo.
Em relação as origens do choro, estas encontram-se ligadas principalmente a
junção de dois gêneros musicais, a polca e o lundu (DINIZ, 2003; CAZES, 1998). Por
volta de 1845 temos, vinda da Europa, a chegada da polca ao Brasil. Em um primeiro
momento, esse gênero, foi muito dançado nos bailes das classes mais altas do Rio de
Janeiro fazendo grande sucesso durante essa época, porém aos poucos passa a ser dançada
também pelas classes mais pobres, no qual, há um processo de apropriação da mesma e
após algum tempo serve como base para o choro.
Originária da Boêmia foi largamente tocada e aceita pelo público, tornando-se
uma das danças mais populares do Rio de Janeiro. Importada pela elite foi
levada primeiramente aos salões, para depois ser dançada pelas camadas
pobres da sociedade, onde na sua maioria viviam negros ou descendentes
destes (MARCÍLIO, 2009, p.71).
Já o lundu, é um ritmo de origem africana à base de percussão e que circulou entre
os negros desde os tempos do trabalho escravo no país.
Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música a base
de percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos do
trabalho escravo nas lavouras de açúcar da Colônia. Ao ganhar as áreas urbanas
no século XIX, tornou-se música cantada e apreciada por diversos setores da
sociedade (DINIZ, 2003, p. 17).
Deste modo, enquanto a polca é um gênero de origem europeia que circula
primeiramente nos grandes salões, para depois ser incorporado também pelas classes
populares; o lundu, ao contrário, é um ritmo de origem africana e compartilhado entre os
escravos, que, por isso, já transitava nas classes mais baixas da população. A partir da
influência da polca e do lundu, temos por volta de 1870 o surgimento dos primeiros
grupos de choro no Brasil, que, nesta época, eram formados por flauta, violão e
cavaquinho.
Com relação às origens da palavra choro, temos definições muito variadas de
como se chegou a esse termo. Henrique Cazes (1998), traz uma breve discussão de alguns
autores sobre a origem do termo choro na música. Enquanto alguns teóricos apontam
como derivado de xolo, que se tratava de um baile no qual, escravos faziam nas fazendas,
e com o passar do tempo foi mudando para xoro, até chegar em choro. Aponta também
como origem os "choromeleiros", que eram uma corporação de músicos de importância
no período colonial e que o povo passou a chamar qualquer tipo de formação instrumental
de choromeleiros, em seguida passando a chamar apenas choro, encurtando o seu nome.
Destaca também que para alguns autores, o choro surgiu através da noção de
melancolia que era gerada através das baixarias do violão. Em seguida, o autor dá a sua
definição, com a qual irei trabalhar, na qual propõe que: "a palavra Choro seja uma
decorrência da maneira chorosa de frasear, que teria gerado o termo chorão, que
designava o músico que "amolecia" as polcas" (CAZES, 1998, p. 19).
Durante o século XIX, alguns músicos tiveram grande destaque para a difusão do
choro enquanto gênero musical: Joaquim Callado, que é considerado “o pai dos chorões”
(DINIZ, 2003); Chiquinha Gonzaga, primeira música a tocar choro e a utilizar o piano
neste gênero musical, tendo também um grande destaque no teatro onde fundou a
Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT, em 1917, uma associação para a
regulação do direito autoral nessa área; Ernesto Nazareth, que atuou nas salas de cinema
da época; e, Anacleto de Medeiros, pois, além de suas composições, teve uma
participação em bandas militares e civis, onde, em sua maioria, tinham o choro em seu
repertório.
Podemos destacar também como processo de difusão do choro, além das bandas
militares e civis, o rádio, a partir da década de 1920, pois, no início, os programas de rádio
precisavam de músicos para tocarem e muitos chorões passaram a trabalhar nesses
espaços, possibilitando assim, uma maneira de profissionalização dos mesmos.
Como primeiro veículo de comunicação de massa, o rádio tornou-se parte do
cotidiano de seus ouvintes[...]. Abriu também um grande mercado de trabalho
para compositores, cantores, instrumentistas e arranjadores, gerando uma
demanda emergencial de formação de artistas talentosos (DINIZ, 2003, p. 31).
Ao mesmo tempo que o choro ia ganhando espaço com o rádio e as primeiras
gravações, este também ia circulando nas festas realizadas nas casas destes músicos, que
se reuniam para tocarem, possibilitando também espaços de conhecimento e troca para
este gênero musical.
Diversos músicos participaram dessas festas, dentre eles podemos destacar
Pixinguinha, que é uma das referências como músico e compositor do choro. Este, atuou
ao lado de diversos músicos, e sua parceria mais conhecida foi com o músico Benedito
Lacerda, com o qual dividiu a autoria de algumas canções. Pixinguinha forma com mais
alguns músicos o grupo Os Oito Batutas, posteriormente chamado apenas de Os Batutas
(CAZES, 1998), no qual, em 1922, realizou uma viagem para Paris, que resultou em uma
intensa crítica sobre o fato dos músicos desse grupo serem negros e estarem viajando para
a Europa representando a música brasileira da época.
Um ponto a se compreender, como uma característica dos primeiros músicos de
choro durante o século XIX e a primeira metade do século XX é a questão de raça, pois
muitos músicos do choro nessa época eram negros, o que ocasionou uma crítica muito
forte feita por grande parte da mídia da época. Considero que a questão de raça está
atravessada durante esse processo de construção do choro, pois, assim como citado acima
vários dos músicos deste gênero musical em seu início, eram afrodescendentes, onde
muitos eram filhos de ex escravos.
Outro músico que também frequentava as rodas de choro realizadas nas casas dos
chorões foi Villa-Lobos. O compositor demonstrou num primeiro momento essa
transitoriedade do choro, pois, ao participar das festas realizadas nas casas dos chorões e
depois escrever uma série de 12 obras com o título choro, se apropriou das características
musicais desse gênero musical em algumas de suas composições.
Durante a década de 1930, vale ressaltar como o choro, assim como o samba, é
apropriado pelo governo de Getúlio Vargas, que, a partir de uma série de políticas
culturais, buscou-se através de alguns itens culturais, pensando a partir de uma ideia de
brasilidade, que teve o samba como maior protagonista assim como o choro, pois, nesse
período os dois gêneros musicais tinham seus espaços de circulação muito ligados.
Essa apropriação teve a participação de alguns intelectuais da época, dentre eles,
o já citado Villa-Lobos, que pensou a música como elemento para exaltar o trabalho e
criar uma harmonia entre as classes mais baixas.
O ciclo modernista do nacionalismo musical compreende assim uma pedida
estético-social: sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular,
como forma de conquistar uma linguagem que concilie o país na
horizontalidade do território e na verticalidade de classes (WISNIK, 1982,
p.148).
Após um período de estudos em Paris, onde teve contato com o movimento
modernista brasileiro e, ao retornar ao país, Villa-Lobos passou a pesquisar e compor
pensando os ritmos brasileiros em suas obras. Desta forma, num primeiro momento, o
choro começou a ter alguns de seus clichês característicos fazendo parte do universo da
música erudita, porém, em peças deste mesmo gênero, no qual, os instrumentos que fazem
parte destas composições continuam sendo os que fazem parte do universo clássico da
época e não os do choro.
Jacob Pick Bittencourt, mais conhecido como Jacob do Bandolim, foi um dos
músicos mais influentes para o desenvolvimento do choro, pois, além de suas
composições, era também um pesquisador (CAZES, 1998; ARAGÃO, 2011). Durante o
mesmo período de Jacob do Bandolim, outro músico chamava a atenção por uma
composição de grande sucesso: o cavaquinhista Waldir Azevedo, que teve como música
mais conhecida o “Brasileirinho”; no qual podemos compreender como, o choro se
popularizou.
Em oposição a essa popularização, no ano de 1956, o músico Radamés Gnattali
compôs a “Suíte Retratos”. A obra marca na história do choro um fator muito importante,
pois, pela primeira vez o choro, com os seus instrumentos característicos do gênero,
assume um papel de aproximação com a música erudita, "a semente dessas mudanças foi
plantada no passado pelo maestro Radamés Gnattalli. Ao compor a suíte Retratos,
Radamés aproximou a música erudita e a música dos chorões" (DINIZ, 2003, p. 58).
Aos poucos o rádio começa a perder espaço, através do surgimento e da
popularização da televisão, resultando no fechamento das rádios pelo país. Sendo assim,
os chorões passam a cada vez mais terem locais mais restritos para tocarem, e perdem
muitos programas que eles se apresentavam.
Com isso, surgem diversos programas de auditório na televisão e concursos de
música, onde, num primeiro momento, vemos também o choro ligado à televisão, na qual,
diversas canções são tocadas como trilha sonora de novelas. Porém, com o passar dos
anos, esse espaço vai cada vez mais diminuindo, principalmente com a consolidação da
bossa nova e de outros movimentos, como os da jovem guarda, a tropicália e o rock
nacional.
Ao mesmo tempo em que esses novos ritmos surgem e se consolidam no país, o
choro continua sua trajetória. Durante os anos de 1977 e 1978, foi organizado, pela TV
Bandeirantes, o Festival Nacional do Choro, que tiveram como premiados, os músicos
Rossini Ferreira, na edição de 1977 e K-Ximbinho, na edição de 1978.
Na parte de novos músicos para o gênero, temos no ano de 1977, o surgimento do
grupo Os Carioquinhas, com grande importância para o choro (CAZES, 1998). Enquanto
isso, surge, alguns anos depois, através do músico Joel Nascimento, a Camerata Carioca,
formada junto com alguns dos ex integrantes do grupo Os Carioquinhas, a partir da ideia
de Joel para tocar a “Suíte Retratos” apenas com os instrumentos ligados ao choro e pediu
ao compositor um arranjo para a formação do grupo. Após isso, e com o sucesso do
grupo, Radamés Gnattali, criou além de arranjos com compositores populares como
Pixinguinha, quanto eruditos como Vivaldi, fazendo com que esta formação transitasse
por diversos gêneros musicais e consolidando assim para um processo de eruditização do
choro como uma música.
Em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, ocorreu um processo de
retomada do choro. Junto deste movimento, surgem alguns projetos e escolas de música
com foco nesse estilo, contribuindo não só para o resgate histórico e a retomada deste
estilo, mas possibilitando também o surgimento de novos músicos dedicados a esse
gênero musical. Além disso, houve uma revitalização urbana na região da Lapa, que, a
partir da criação de uma série de espaços de apresentação, como bares, restaurantes e
teatros, proporcionou-se uma circulação de músicos de choro no território, contribuindo
para este processo de retomada.
Assim como o samba, há muito o choro faz parte da cena musical da Lapa. Em
meados da década de 90, houve uma grande proliferação de espaços com rodas
de choro, que tinham como público profissionais liberais, músicos, jornalistas,
escritores e estudantes (GÓES, 2007, p. 118).
Junto a isto, no ano de 1999, surgiu a gravadora Acari Records, voltada para a
gravação de músicos do choro, pois, por um certo período, não haviam gravadoras
voltadas para este estilo no país, por não ter a mesma repercussão que outros ritmos como
o samba e a MPB.
No ano 2000, através de músicos ligados ao choro, surge a Escola Portátil de
Música, que propõe como objetivo, o resgate histórico e o ensino das práticas musicais
deste estilo, buscando difundir o gênero musical junto às novas gerações. Com a criação
da Escola Portátil, o choro começa a ter um processo de retomada, buscando um resgate
histórico do gênero e procurando um retorno a um espaço que antes ele ocupava, como
as rádios e televisões.
A busca pelas raízes do choro [...] cria para os grupos desse universo musical
uma reputação diferenciadora em relação a outros. Percebe-se que o fato de
vender pouco ou para um público ‘selecionado’ confere ao artista um status
que o distingue dos demais. É como se essa condição agregasse as ideias de
autenticidade e originalidade, determinando que o produto destina-se a um
consumidor engajado, que não compartilha com as práticas da grande indústria
da música (GÓES, 2007, p. 122).
Portanto, o choro, que tem suas origens ligadas a uma classe de trabalhadores
livres do final do século XIX, filhos de ex-escravos e negros, vê ao longo de sua trajetória,
através de compositores como Villa-Lobos e Radamés, aproximar-se da música erudita,
em termos de circulação e fruição do mesmo, perfazendo um processo de ressignificação
desse gênero, pois, por mais que mantenha características - como as rodas de choro nos
quintais dos músicos - assume aos poucos novos lugares de circulação, e com isso, uma
aproximação com este estilo.
Dessa forma, compreendo que o choro, enquanto prática musical, passou por um
processo de eruditização, no qual, através dos anos, passou das rodas de choro nos
quintais de músicos, por uma apropriação, primeiramente por Villa-Lobos, de figuras
rítmicas ligadas a gêneros populares nas suas composições. Além disso, ocupou um lugar
no rádio, proporcionando uma profissionalização de diversos chorões, virou sucesso com
“Brasileirinho” de Waldir Azevedo, que se tornou a música mais conhecida no país. Em
seguida, através da “Suíte Retratos” de Radamés Gnattali, aproximou-se da música
erudita, e com o passar dos anos passou a ficar cada vez mais concentrada em termos de
circulação e ensino.
O PROJETO CENTRO DE ÓPERA POPULAR DE ACARI
No ano 2000, dentro da Escola Municipal Alexandre de Gusmão, no bairro do
Parque Colúmbia, localizado no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, surgiu o Projeto
ABC & Arte, com oficinas de música (violão, cavaquinho, percussão, flauta doce e
canto), teatro e dança. Primeiramente, o projeto começou com aulas aos sábados
atendendo apenas aos alunos que estudavam na própria escola, porém, logo em seguida,
abriram-se vagas para alunos do próprio bairro e de localidades vizinhas com interesse
em aprender alguma dessas atividades e também começaram a ter aulas durante a semana.
Até o ano de 2005, o projeto funcionou dentro da Escola Municipal Alexandre de
Gusmão, porém, com o aumento e a demanda de novos alunos, houve uma mudança de
sede para um salão alugado para a realização das oficinas, onde a instituição permaneceu
até o encerramento de suas atividades no ano de 2017.
A partir dessa troca de espaço, ocorreu também a troca de nome, passando a se
chamar Centro de Ópera Popular de Acari. Com a mudança de local, houve também uma
expansão da instituição, proporcionando um aumento do número de alunos atingidos pelo
projeto. Como gênero musical ensinado aos alunos do projeto temos o choro, gostaria
também de apresentar uma análise e discussão sobre o conceito de cultura e também das
relações musicais no Centro de Ópera Popular de Acari.
Primeiramente, ao pensarmos na música, devemos compreende-la como:
Um acontecimento, como algo que existe para além de sua estrutura sonora,
pois está inserida numa estrutura social que não pode de forma alguma ser
desconsiderada. Quando a música é tocada ela interfere num sem número de
acontecimentos. Um gravador pode captá-la, mas não dá conta de captar esse
contexto no qual ela acontece e que acaba por influenciá-la. (ALVES, 2009, p. 40)
Já o termo cultura, contém em si mesma uma tensão entre produzir e ser produzido
(WLLIAMS, 2000). Para Hall (2003), a cultura popular tem o duplo movimento de conter
e resistir, além disso, para o autor, a cultura popular é o terreno sobre o qual as
transformações são operadas. Desta forma, uma das funções que considero importantes a
serem ressaltadas sobre a música é a luta por reconhecimento e legitimação de um gênero
musical, e também pelas transformações em seus usos e na circulação que certos gêneros
musicais recebem com o passar do tempo, como exemplo, o choro é considerada uma
“boa música”, porém, em sua trajetória passou por um processo de ressignificação e de
disputas, principalmente de seus músicos por espaços de reconhecimento desta prática
enquanto gênero musical.
Também podemos compreender a cultura como processos sociais, nos quais
acontecem embates e negociação, que, sentidos e valores são construídos, atribuídos,
vivenciados socialmente, sendo que os sentidos e significados não estão dados, são
constantemente disputados.
Em relação a localização do projeto este ficava localizado no Parque Colúmbia,
subúrbio. Segundo dados do censo do IBGE do ano 2000, mostram que os bairros
Acari/Parque Colúmbia apresentam um IDH de 0,720, ocupando a posição número 124
de um total de 126 bairros listados no Rio de Janeiro, ficando à frente apenas de Costa
Barros e do Complexo do Alemão, tendo já estado com o pior Índice de todo o município
no Censo anterior, ou seja, na época do início do projeto, se tratava do bairro com o pior
IDH da cidade.
O foco do Centro de Ópera Popular de Acari em sua trajetória, focou no
atendimento a crianças e jovens, apesar do projeto ser aberto a alunos de todas as idades.
A base do ensino musical para esses estudantes tinha como foco o choro, na música
erudita e na MPB. Dessa forma, considero que certos gêneros musicais como o choro e a
música erudita são estilos que, dentro das disputas no campo da música, são vistos como
tendo um capital cultural mais elevado do que outros gêneros que estão muito presentes
em áreas do subúrbio e comunidades, como o funk. Em entrevista realizada com a ex-
diretora do projeto Avamar Pantoja, ao ser abordada sobre como se deu essa escolha do
choro como linguagem a ser ensinada no projeto ela diz que:
Eu acho que o projeto ele caminha meio sentindo o que é melhor e o que é mais
verdadeiro na arte e na cultura brasileira e o choro é unanimidade né, então assim eu acho que não poderíamos deixar o choro de fora, acho que essa é
como eu falei anteriormente, são as questões mesmo de um sentimento de
brasilidade, de realidade, uma coisa das raízes e de uma música de qualidade,
por que o choro é uma música de excelente qualidade, as vezes eu fico me
questionando meio que pensando que o choro é para o Brasil como um símbolo
nacional de musicalidade. (Informação verbal).
Avamar Pantoja – diretora
Além disso, alguns projetos sociais – como o Centro de Ópera Popular de Acari –
se apropriam do choro para o ensino desses alunos. Pensando em como este gênero
musical revela um sentimento de “brasilidade” e de uma música de “qualidade” que
justifiquem o seu ensino em certos projetos.
Em relação a formação artística do Centro Ópera, este teve durante a sua trajetória
grupos artísticos nas áreas de música e dança, no qual, o trabalho desenvolvido pelas
oficinas de balé do projeto resultou na formação de um corpo de baile. Além da parte de
dança, a parte de canto também montou um grupo artístico, já que a ideia do projeto era
a construção de uma ópera com a participação dos alunos formados pela escola. Na área
de música, o grupo Acariocamerata foi o grupo de maior destaque do projeto, tendo
realizado apresentações em festivais de música no Brasil e na França e também gravado
um CD que foi indicado ao Prêmio Tim de Música no ano de 2008.
Além disso, como parte dessa formação do projeto, haviam sempre a realização
de apresentações pelos alunos em espaços culturais ou em eventos. Abaixo um trecho de
uma matéria que saiu sobre uma apresentação realizada no ano de 2015 na estação
Carioca do Metrô da cidade do Rio de Janeiro.
Iniciativa que recebe o apoio da concessionária MetrôRio, a organização não
governamental (ONG) Centro de Ópera Popular de Acari, criada em 2003, tem
na orquestra uma de suas atividades de inclusão social e cultural. De acordo
com a coordenadora geral do projeto, Avamar Pantoja, o objetivo das
apresentações de fim de ano é proporcionar às crianças a experiência com o
público.
“Eles se percebem participantes da cultura da cidade, merecedores de estar
incluídos, porque, infelizmente, existe uma exclusão enorme na área de cultura
e arte”, destacou o ex-aluno do projeto, Sérgio Ricardo Nunes de Santos, que hoje é professor de música e compartilha o aprendizado com os novos
estudantes.
“Há um tempo atrás eu estava na posição deles, sem muita perspectiva, mas
sonhando com uma oportunidade de viver bem fazendo o que gosto”, disse o
professor. Um exemplo desses alunos é Luís Gustavo Pereira, de 18 anos, que
toca contrabaixo há um ano na orquestra e quer seguir a carreira de músico. “É
uma experiência muito boa, que eu não teria em outro lugar. E me trouxe mais
visão musical trabalhar com a orquestra e mais alma artística para desenvolver
meu talento. Depois que conheci o projeto, me deu mais vontade de seguir a
carreira de músico”, contou o jovem.
(http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2015-12/orquestra-formada-por-jovens-de-comunidades-se-apresenta-no-metro-carioca Acesso em: 08 de
julho de 2019)
Considero importante apontar alguns fatores que demonstram um jogo de
performance que está envolvida por alunos, professores de projetos sociais e também o
público. Frases como “inclusão social e cultural”, “percebem participantes da cultura da
cidade”, estão na maioria das vezes pautando tanto aquele que vê quanto aquele que
trabalha neste tipo de atividade.
Essa noção de pertencimento e reconhecimento através da cultura, traz também
uma outra questão, que é a de pensar a cultura por uma visão "salvacionista" (TOMMASI,
2016), na qual, considera-se levar um projeto social para uma comunidade, ou regiões de
baixo poder econômico, para salvar esses lugares, onde por muitas vezes possuem um
alto índice de violência e que a partir de então, pode-se proporcionar aos jovens o poder
de ocupar o tempo ocioso com atividades culturais.
Neste caso, podemos pontuar e complexificar algumas questões. A primeira delas
é a de que como projetos sociais se apropriam de gêneros musicais que possuem um
capital cultural mais elevado perante outros, como o choro e o erudito, e, a partir disso,
passa a ser ensinado a estes jovens em projetos sociais, criando a partir daí uma nova
atribuição de sentido e de gosto para estes alunos sobre estes estilos musicais. Outro fator,
é como a música assume um papel transformador, seja ele social, cultural ou econômico,
e como isso pode gerar uma inclusão para as pessoas. Assim como a questão da
profissionalização destes alunos, seja na área da música, ou em outras áreas, porém,
principalmente como, a partir da entrada desses jovens no projeto, a música assume este
papel de mudança na vida dos mesmos.
Considerações finais
Ao longo deste artigo, foi abordado primeiramente a questão histórica do choro,
traçando desde quais ritmos musicais serviram como base para a sua construção, passando
pelos primeiros músicos deste gênero, até os dias atuais.
Num primeiro momento, quais os músicos fizeram parte para a consolidação deste
gênero, que também foi tocado nas bandas civis e militares, onde teve uma grande
contribuição para a difusão deste gênero.
Mostrando também, a consolidação deste gênero no mercado fonográfico e em
programas de rádio, além de uma primeira apropriação da música erudita por parte de
Villa-Lobos com a composição dos choros, porém, ao mesmo tempo, um fator que está
bastante presente neste gênero é a questão das rodas nas casas dos músicos.
Ao longo deste processo histórico, temos como expoentes deste gênero músicos
como Joaquim Callado que é considerado o “pai dos chorões” (DINIZ, 2003), Chiquinha
Gonzaga, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Radamés
Gnattalli que através da composição da Suíte Retratos aproxima ainda mais o choro do
universo erudito.
Em questões de circulação, o choro conseguiu grande espaço para isto.
Primeiramente, por causa do surgimento das rádios no país, onde diversos músicos deste
gênero passaram a tocar em seus programas, além de gravações de discos e o sucesso de
composições como Carinhoso, de Pixinguinha, e Brasileirinho, de Waldir Azevedo.
Passou por um momento de um enfraquecimento perante o público com o
surgimento de novos gêneros musicais e estes, ocupando um lugar que o choro ocupava
na mídia. Outro fator que colaborou com isso foi o surgimento das televisões e uma
diminuição no número de rádios do país.
Nos anos 1990 e início dos anos 2000, o choro passou por um resgate histórico e
uma retomada, com a criação de uma série de projetos como a Escola Portátil de Música
e também o desenvolvimento de projetos sociais na cidade do Rio de Janeiro, como o
Centro de Ópera Popular de Acari, onde assume uma função de levar uma chamada “boa
música” em locais que tem gêneros musicais muito criticados como o funk.
Enquanto a Escola Portátil tem suas atividades desenvolvidas na Urca e no Centro,
na Casa do Choro, tem como público voltado a uma classe média ou a músicos que
tenham uma ligação com o gênero. Os projetos sociais que surgem em regiões da cidade
com o foco no ensino do choro, veem no seu ensino um estilo que possui um capital
cultural maior perante outros gêneros para ser lecionado nesses locais.
Esse processo só é possível, pois, durante esse período histórico, percebe-se como
o choro começa ligado a uma classe mais popular e vai passando por uma sucessão de
ciclos, onde vai, aos poucos, sendo também relacionado a um universo mais erudito e
passa a ganhar status de uma música de qualidade.
Ao analisar textos, pesquisas e espaços de aprendizados ou de fruição relacionadas
ao choro, vemos que esse gênero musical possui uma certa circulação em determinadas
regiões. Espaços como o Bar Semente na Lapa, a Praça São Salvador em Laranjeiras, a
Escola Portátil de Música, que funciona na Unirio, a Casa do Choro na Rua da Carioca,
os projetos Escola de Música da Rocinha, a Escola de Música da AMC e Centro de Ópera
Popular de Acari, nos últimos anos, constituíram um espaço de prática desse estilo.
Importante lembrar que devido à crise econômica e com uma série de cortes no
orçamento de patrocínio na área da cultura, alguns desses espaços estão fechando como
é o caso do Bar Semente e o Centro de Ópera Popular de Acari e alguns outros continuam,
mas enfrentando uma série de dificuldades.
Esses espaços citados acima, vem demonstrando uma transitoriedade em relação
tanto a sua prática, quanto a seu aprendizado e circulação. Também pode-se compreender
que “o campo da música, com as suas subdivisões, caracteriza-se por ser um espaço de
tensões e de disputas por prestígio e reconhecimento”. (FRYDBERG, 2011, p. 138)
Compreender a potência do gênero em sua transitoriedade, as disputas e as tensões
dentro do campo da música em torno da legitimação pelo qual alguns gêneros musicais
passam e como o ensino do choro nessas localidades também se relaciona a muitos outros
fatores para além do musical. Para o autor Pierre Bourdieu (2007), o gosto é socialmente
construído, sendo:
O gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma
determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras, é
a fórmula generalizada que está no princípio do estilo de vida. O estilo de vida
é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica
específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário,
linguagem ou hexis corporal – a mesma intenção expressiva. (BOURDIEU,
2007, p.165)
Entendo assim que há uma relação na questão de um capital cultural e social
(BOURDIEU, 1989) perante o ensino de um gênero musical já legitimado ao longo desses
anos. Diante disto, compreendo neste trabalho a influência do aprendizado desse estilo e
as estruturações que as hierarquizações de certos estilos são pensadas para a sua prática.
A partir de então, podemos pensar como o choro, ao longo desses anos, está muito
ligado também a uma ideia de uma música erudita popular, na qual, há uma questão de
legitimação por se tratar de um gênero que além de ter suas origens a uma camada mais
popular, retorna agora nesse processo de ensino para assumir uma função “salvacionista”
(TOMMASI, 2016).
Neste trabalho procurei complexificar as relações que estão voltadas para as
questões do ensino do choro em projetos sociais, pretendendo assim analisar as
importâncias e problemas em torno da sua prática. Analisando como a partir do ensino de
um gênero musical legitimado durante a sua trajetória, passa a fazer parte dessas
instituições e quais são os desdobramentos disso, tanto por parte desses projetos, quanto
pensando na questão destes alunos que frequentam essas escolas.
REFERÊNCIAS
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