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Antonio de Araujo Silva
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Calabouço contos e outros
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Antonio de Araujo Silva
Calabouço:
Contos e outros
São Paulo 1ª Edição - 2012
Antonio de Araujo Silva
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Copyright ©2012 – Todos os direitos reservados a:
Antonio de Araujo Silva
ISBN: 000-00-0000-000-0
1ª Edição
Junho 2012
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Calabouço contos e outros
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Calabouço contos e outros
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Colaboradores:
Diagramação: Antonio de Araujo Silva
Capa: Criação, design, e acabamento:
Vinicius Yagui
Revisão de Texto: Profa. Giovanna Wrubel Brants
Ao meu querido neto, “Arthur”.
Que a sua vida seja repleta de grandes sonhos e fabulosas
realizações.
Antonio de Araujo Silva
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Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, direta ou
indiretamente, colaboraram para que mais este projeto se
tornasse realidade.
Calabouço contos e outros
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Sobre o autor
Antonio de Araujo Silva, nascido na cidade de Ouricuri -
PE, desde 1990 reside em São Bernardo do Campo. SP.
Formado em Naturopatia, Massoterapia, e Terapias
Complementares pela Humaniversidade Holística de São Paulo.
Reiki master, pela escola tradicional Mikao Usui. Ministra
atividades terapêuticas relacionadas à qualidade de vida.
Facebook/dearaujosilva
Antonio de Araujo Silva
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Sinopse
“Calabouço: contos e outros” traz um universo novo em sete
narrativas, com enredos de desconstrução literária, de uma
forma provocativa à ditadura acadêmica imposta e às situações
de adversidade da cultura brasileira.
“O sábio e a lesma” é um convite à reflexão sobre o que
vivemos pessoalmente, e o que verdadeiramente somos em um
contexto em que, salvo em raras exceções, nos tornamos
escravos do desejo e das necessidades impostas pelo modelo de
sociedade em que vivemos.
Já “O monopólio da dor de dente” é uma narrativa suave e
divertida de uma situação cotidiana, na qual demonstramos toda
a nossa incapacidade de lidarmos com o novo, e desta forma,
para livrarmos do indesejado, procuramos os recursos mais
inusitados, tornando-nos, assim, alvos fácéis aos oportunistas de
plantão.
“Calabouço” traz, com uma lucidez explícita, a fragilidade
humana diante as tragédias do percurso das nossas vidas, onde
quase sempre entregamos a nossa felicidade nas mãos alheias e
nos esquecemos de que não somos seres eternos. E torna-se
inevitável o conflito extremo entre o viver sem razão, ou
encontrar uma nova razão para viver.
“Ventríloquos do ego”, de uma forma mais descontraída, traça
um paralelo entre os desejos e as necessidades, onde o ego está
sempre acima de todas as nossas escolhas. Um tema pesado,
porém, tratado com leveza e descontração.
“A morte do planeta azul” é um alerta sobre a falta de respeito
que temos em relação ao planeta no qual vivemos e as
consequências que isso pode trazer para a raça humana, e a toda
a forma de vida terrestre.
“A dívida” ressalta o doce paradoxo do querer além do poder, e
de suas consequências.
“Diferenças” é uma indagação da razão pela qual a raça humana
está perdendo o bom senso diante da corrupção: há tanta gente
vendendo o que nos é dado de graça e, ao mesmo tempo, tantos
outros estão pagando por coisas que não se compram.
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Sumário
Primeiro capítulo:
O sábio e a lesma 12
O monopólio da dor de dente 18
Calabouço 21
Segundo capítulo:
Ventríloquos do ego. 39
A morte do planeta azul 79
A dívida 90
Diferenças 105
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Primeiro capítulo
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O sábio e a lesma
Em uma bela manhã de primavera em um lugar inconteste
diante de sua localização geográfica, um homem, quase que
surgido do nada, caminhava ao redor de um lago que ficava
entre duas imensas avenidas, um lugar surreal, onde quatro
imensas seringueiras o cercavam e davam suporte a um
pequeno jardim.
Aquele homem com um olhar triste e o semblante de
desolação, senta-se à beira do lago, e passa a observar
lentamente que o barulho que vinha das duas avenidas era
ensurdecedor, o sol brilhava intensamente e a brisa quente que
aquecia sua face também formava pequenas ondas na água fria
do lago. Depois de alguns minutos de contemplação, ele
percebe que, do outro lado do lago, havia mais alguém além
dele naquela imensidão.
Calmamente, ele levantou-se e começou a contornar o
lago. Ao chegar mais próximo, ele pôde observar que se tratava
de um jovem senhor de barba e cabelos brancos e longos, tinha
um corpo esguio e uma face serena e tranquila, quase plástica.
A forma com a qual aquele velho homem contemplava a
imensidão dava a entender que o mesmo ignorava aquele
mundo ao seu redor.
Aquele homem triste sentou-se ao seu lado sendo quase
despercebido.
E, depois de algum tempo, com aquela indiferença
provocadora, o homem triste arisca uma breve pergunta:
- Como pode o senhor observar com este olhar de tanto
esplendor, como se estivesse vendo a mais bela paisagem do
universo?
Estático, e como se não tivesse ouvido a pergunta, o
velho homem nada lhe respondeu. Por alguns segundos, os
semblantes dos dois homens se misturam naquele torpor que os
envolvia. O homem triste não desiste da possibilidade de um
dialogo, dirigindo uma nova pergunta:
- Será que o senhor consegue ver algo de tão nobre neste
velho lago no meio do nada? O velho homem parecia estar
imune a qualquer interferência que viesse do seu exterior.
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Decepcionado e constrangido, o homem triste levanta-se e
contorna vagarosamente todo o lago, e desaparece na imensidão
daquela paisagem cinzenta.
Alguns dias depois o homem triste retorna ao lago, entra no
pequeno jardim como o fez da outra vez, e logo pode observar que
o velho homem lá está, como se nunca tivesse dali saído.
Então o homem triste começa a contornar o lago, como o fez na
primeira vez; sentou-se novamente ao lado do velho homem, e
mais uma vez tentou iniciar um diálogo: - Veja só, cá estamos nós,
lado a lado, a observar esta imensidão de pessoas, cada uma
lutando para alcançar um lugar ao sol dos desesperados. O senhor
não acha um absurdo esta corrida frenética que imprimimos às
nossas vidas, de tal forma que, às vezes, até nos esqueçamos do
óbvio, que é simplesmente viver?
E com a mesma forma de quietude e silêncio em que se
encontrava, o velho homem continuou estático e indiferente, sem
esboçar qualquer reação.
O homem triste, mesmo assim, permaneceu ali por algum
tempo; depois, da mesma forma que chegou, levantou-se e
contornou lentamente o lago até a saída, tentando imaginar por que
aquele velho homem ficava tanto tempo inerte a observar a
imensidão do horizonte, como se buscasse a si mesmo. E assim,
mais uma vez, ele se perde na fumaça da sua inevitável realidade.
Passaram-se algumas semanas e o homem triste retornou ao
lago e, inexplicavelmente, estava lá o velho homem inerte e
tranquilo a observá-lo.
O homem triste contornou o lago como sempre fez e, já
imaginando não ter sucesso em sua investida, sentou, aquietou-se e
fingiu uma calma inexistente.
Virando-se para o velho homem, ele começa seu diálogo solitário:
- Sabe, meu senhor... Em todas as últimas manhãs da minha
existência tenho me perguntado por que, apesar de ter conseguido
meu bom emprego, minha bela casa, meu belo carro, e a minha
mulher ser a melhor esposa do mundo e que amo, e ter meus filhos,
mesmo assim, um vazio imenso tem me consumido por toda minha
existência.
Para sua surpresa, o velho homem vira em sua direção e lhe
pergunta:
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- O que tanto perturba seu espírito, filho, o que o torna
tão triste, qual a razão desta inquietude desesperada na sua
alma?Acalme-se, pois não há mal que não tenha reparação.
Aquiete sua alma e alimente o seu espírito com o que há de
melhor no mundo. Por que fugir do caos se ele é o princípio de
todo equilíbrio? Esqueça o seu meio e resgate sua essência, pois
lá não existe aflição ou medo, apenas o existir pleno.
Com voz quase oculta, o homem triste, sentindo-se insultado
diante suas dificuldades, responde ao velho homem:
- Como é fácil definir soluções para os problemas alheios,
como é nobre a capacidade de se viver em equilíbrio, quando
tudo está dando certo em sua vida.
O velho homem, sem alterar o seu semblante, e com
uma voz quase celestial, responde-lhe:
- Certamente que não, filho, mas me responda: As suas
inquietações e preocupações, raivas e ódio, já lhe foram úteis?
Em algum momento lhe trouxeram a solução ou eliminaram
algum problema? Pare de gastar sua valiosa energia
concentrando-se nos problemas; ao invés disso, foque toda sua
energia na busca de soluções. Responda-me com sinceridade:
quando você abre o seu armário ou a sua geladeira, o que de
fato tem dentro dela que você realmente escolheu e comprou,
pensando exatamente no seu prazer e satisfação? Acho que não
há nada, pois, para os insatisfeitos, isso não tem tanta
importância, geralmente compram para os outros, o outro está
sempre em primeiro lugar. Por acaso eles conseguem ser feliz
por você, sentir prazer por você?
Quantas calças, camisas, sapatos, você escolheu e
comprou? Você, pelo menos, sabe quantos têm?
No modelo que escolhemos para viver, com o passar do tempo,
nos preocupamos mais com a vida dos outros do que com a
nossa. Propomo-nos a fazer sempre pelos outros e fatalmente
esquecemos que não podemos fazer pelo próximo nada que não
possamos fazer por nós mesmos.
Há quanto tempo você não pratica o exercício do prazer e
da diversão, o que você gostava de fazer, ia ao teatro, cinema,
um bom futebol? E música, a quantos eventos musicais você foi
ultimamente?
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Quanto tempo faz que você não se delicia com o seu
prato predileto? E, mesmo assim, você acredita que não sabe de
onde vem o vazio que lhe consome? Por acaso você acha que
está sempre fazendo o que é possível?
Pois saiba, meu caro homem triste, você simplesmente
está na contramão dos seus desejos, e certamente tudo isso é
muito pouco para quem quer alcançar a tão sonhada felicidade.
Quando é que vamos deixar de fazer sempre o possível e passar
a fazer sempre o que é necessário?
Você pode até ter uma grande vida, mas nada do que você
tem escolheu pensando exclusivamente em si mesmo. Quantas
paredes de sua casa você pintou da cor que mais gostava?
Sinceramente, acho que nenhuma. E a cor do seu carro, é a que
você mais gosta? Ou você comprou daquela cor porque todas as
pessoas que julga importante têm carro naquela cor? Você se
acha importante por seu carro ter esta cor? Você sente-se feliz
ou satisfeito com esta escolha?
Você escolheu e ama o que faz? Ou simplesmente o
salário é compensador, e assim pode proporcionar conforto para
você e sua família? O seu casamento ainda vale a pena, ou
simplesmente ainda é tolerável? Onde vocês esqueceram a
paixão, em que lugar guardaram o desejo de estar sempre junto,
o que fizeram com o amor que existia entre os dois?
Enterraram-no nos jardins das insatisfações? Onde está aquele
casal que um dia fez juras eternas, que veredas e atalhos
construíram para os quais não possam retornar? Quantas horas
passam juntos com seus amados filhos?
Mesmo assim, vocês insistem em falar de forma
possessiva: meu emprego, minha mulher, meus filhos, e onde
está a nossa felicidade?
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O monopólio da dor de dente
E, como todo bom brasileiro, você acorda e se dá conta
de que finalmente chegou a tão sonhada, esperada, festejada e
maravilhosa manhã de domingo. Nada de congestionamento,
busão lotado, trem empilhado ou metrô encaixotado, nada disso.
Acordar cedo! Nem pensar. Você abre o olho, um de cada
vez para se certificar que não é ilusão de ótica, olha em direção
à janela do seu quarto e a réstia de luz que entra pela fresta da
janela denuncia uma bela manhã de sol. E logo vem à sua mente
futebol, churrasco, muita cerveja e aquele animado papo
informal com os amigos. E olha que muitos homens às vezes até
se esquecem de que têm uma bela mulher deitada ao seu lado.
Mas vamos deixar estas questões paralelas para outra
oportunidade.
Aquela mesma réstia que denuncia o sol é a mesma que
deixou a brisa fria da madrugada que inunda todo o seu quarto,
então você se recolhe ao aconchego do calor do corpo da sua
amada.
Mas logo você nota que algo está diferente: você percebe
que a sua arcada dentária superior lateja infernalmente.
Parabéns, pois aquele inútil e imprestável dente do siso resolveu
estragar a sua bela manhã de domingo.
Você nem vai se lembrar que é domingo e que
provavelmente o dentista mais próximo deve estar a uns
cinquenta quilômetros de distância de sua casa, e você não tem
sequer o seu número de telefone.
Então você pensa: “calma, eu sou um cara tranquilo e
equilibrado, isso é fácil de controlar, nada que dez minutos de
relaxamento e meditação não resolvam”. E aí, depois de um
esforço quase sobrenatural, você adormece feito um anjo.
Bem, claro que sua doce e amada companheira também
esperou a semana inteira pela aquela bela manhã de domingo
para poder recompensar todos aqueles desencontros da semana
inteira. Pois finalmente ela vai poder lhe dar o prazer de te
acordar, com um beijo apaixonado e não com aquele som
ridículo do despertador do celular. Com aquela musiquinha
chinesa irritante e que você não consegue substituir, afinal os
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aparelhos Xing Ling não vêm com nenhum manual de instrução
e os que têm, vêm escritos em mandarim, vê se pode, por acaso
você conhece algum tradutor? Porque nem o Google consegue
traduzir aquelas letrinhas infames.
Aí sua doce amada te acorda com um belo beijo
cinematográfico, para não dizer de desentupir pia, pois é
literariamente inconveniente e mal educado, e você sente como
se estivessem sugando o seu maxilar que lateja
insuportavelmente, e a sensação é como se você estivesse sido
atingido por um cruzado de direita do Mike Tyson.
O que fazer em um momento desses? Você agradece?
Não, apenas padece calado, pois a coitada não sabe o que se
passa, ou então, simplesmente xinga.
Calma, afinal você é um cara equilibrado, afinal é só
um maldito e inútil dente do siso que lateja sem parar,
ressoando em seu cérebro como a batida de uma marreta em
uma maldita bigorna de aço.
Mas como toda boa esposa, ela não se apega aos
problemas e sim, às soluções. Aí começa a via sacra da dor:
gelo não funciona, água morna também não, partimos pra
cachaça - não deu jeito, então fomos para a dipirona - falhou,
Aspirina não combinou, apelamos para uma ação mais forte,
veio então a ideia, que é quase a morte, de tomar paracetamol,
mas também fracassou. Acupuntura, Reiki, benzedeira,
meditação, relaxamento e até um pouco de unguento - nada
solucionava; bem, agora só restavam os santos para fazer
promessa. Começamos com São Judas Tadeu, que é das causas
urgentes, acho que estava ocupado, pois o milagre foi recusado,
aí bateu o desespero, apelamos então para Santo Expedito, que é
das causas impossíveis, acho houve falha na conexão, pois
fiquei na mão.
Nesta altura do campeonato lembrei-me de Nossa
Senhora, saí em desespero, entrei em um terreiro, pois podia
jurar que na entrada tinha uma estátua da santa. Mas para
piorar, foi engano, na verdade era de Iemanjá. Aí, meu amigo,
nessa hora baixou a entidade e, para o meu desespero, baixou
exu.
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Calabouço
E como já era de costume naquele momento da vida de
Drailson Pereira, ele acordou com uma cara de quem tinha
dormido uma eternidade, mal conseguia se livrar do seu imenso
cobertor.
Pois, apesar de estarmos em janeiro, com calor quase que
sertanejo, ele dormia com um cobertor daqueles de inverno
rigoroso; claro que não há nada que aqueça quando o frio vem
da própria alma. Quase sempre inexplicavelmente, nos seus
momentos mais difíceis, o ser demonstra a sua incapacidade de
entender a dimensão da criação e os seus propósitos. O ser em
sua infinita impaciência recusa-se a seguir a lógica da criação,
assim sendo, molda seus caminhos em valores equivocados,
onde a lógica é revertida ao seu bel prazer. Mal sabe ele que
ninguém foge da colheita de suas escolhas e sua meta traçada.
Pode-se até adiar alguns eventos, mas o tempo se encarregará
de reabrir o ciclo anterior, então você se dá conta que suas
escolhas foram em vão. Nesse momento, as decisões são
inevitáveis e o preço a se pagar, muito elevado. Drailson já não
entendia por que a sua existência tinha tomado aquela direção,
mas não tinha como fugir do efêmero destino.
O desespero de quem achou que poderia alcançar o mais
alto degrau, sem passar pelos inevitáveis e turbulentos degraus
intermediários de sua existência. Pois ninguém jamais
conseguiu chegar ao topo da escada sem ter de galgar os
primeiros degraus. Ele, na sua infinita ingenuidade, adquirida
pelo tempo gasto com coisas insignificantes, atropelou os seus
sentimentos, sem se dar conta dos valores inestimáveis de uma
boa convivência entre as pessoas que se amam. Sem perceber,
ele esquece que nos foi dada a vida para ser vivida com
determinação; então, jamais esqueça que um ser superior rege
as regras do jogo sem pedir licença. Despretensiosamente, deixou o seu legado de dor aos que
achavam o sofrer, a perda da vida antes da morte. Apenas são
sepultados aqueles que adquirem uma doença incurável, pois
vejam que a sua interminável dor supera qualquer doença,
porque nada é mais doloroso do que se estar vivo e não ver um
Calabouço contos e outros
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sentido para tal. Drailson, em sua trajetória de dor, em que a
razão deixa de existir, a lógica se desprende do ser e todas as
coisas que faziam sentido perdem a razão de ser, trazem-lhe a
sensação do não existir, afinal, estamos todos muito ocupados
em saber qual vai ser o fim da novela, a cotação do dólar ou do
euro, não importa, já não temos tempo para sequer nos ver,
imagine o próximo. A cada dia que passava, ele se desprendia
da realidade das pessoas que faziam parte da sua vida. Irmão,
vizinho e até mesmo da sua amada. Como pôde ter se
distanciado tanto sem se dar conta da enorme necessidade que
ele tinha de compartilhar o seu dia a dia com alguém que
compreendesse suas aflições e desejos.
Até quando ele poderia achar que conseguiria preencher sua
mente com futilidades para se omitir dos seus deveres para com
a sua amada?
Era quinta feira, 7 de agosto de um ano qualquer,
precisamente 3 horas da manhã, e apesar do desânimo
inevitável, ele tenta recomeçar um novo dia. Como se para os
infelizes existisse o novo, afinal, todos os dias são iguais: têm
vinte e quatro horas, e o sol nasce e se põe com a precisão do
inexplicável, mas para ele já não trazia um novo amanhecer.
É como estar fora de contexto em uma pintura eterna, do
nada a lugar nenhum. Como se tornou tão vago, o não ser o não
estar o não crer, e o não poder... Ele levanta, faz o seu café, sem
nem mesmo saber o porquê, ele continuava a tomar aquele café.
Afinal, qual a diferença entre café, chá, leite ou simplesmente
água, se o viver já não lhe permitia o prazer de sentir o seu
próprio paladar? Talvez fosse o hábito de existir sobrepondo-se
ao ser, mas aos poucos a paisagem para ele foi se tornando
sempre a mesma.
Todos os dias, já não importava a hora, para ele as
pessoas tinham um mesmo rosto, com o mesmo sorriso
hipócrita estampado em suas faces - até parecia que eram todos
felizes.
Para Drailson alguns são, ou pelo menos pensam que
são felizes. Talvez isso fosse a única diferença entre o “ser” e o
“estar”. Outros estão ou simplesmente fingem estar felizes. Ele
Antonio de Araujo Silva
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já não tinha esta capacidade hipócrita de demonstrar para o
mundo uma falsa alegria.
Para ele, naquele momento, os dias as cores eram todas
no mesmo tom, não lhe fazia diferença o azul do amarelo, o
vermelho do preto. Então como que por simples instinto, ele
resolve mais uma vez sair de casa. Esta era a sua rotina atual,
vagar nesse ermo de solidão entre uma floresta de concretos,
onde os canibais urbanos transitam como seres dóceis e
inofensivos, onde a caça é tão voraz quanto o próprio caçador,
onde a solidão é doce como fel da sua própria existência. Às
vezes ele se surpreendia refletindo sobre o porquê de existir se
todos têm o mesmo fim; para ele, as pessoas continuavam com
o mesmo rosto, com o mesmo gosto, e o mesmo desgosto em
seu rosto. Seguindo uma trilha sem rumo, como se todos
tivessem o mesmo pensamento, consumindo o que lhe
consome.
A tarde cai e revela a noite que desce para ele como um
obscuro manto negro. E mais um dia passa na vaga existência
de um ser atormentado pela quase obrigatoriedade do viver, sem
nenhuma lógica do existir.
Para Drailson, o amanhã certamente não será diferente do
hoje, que foi um retrato mal feito do ontem. É como se os dias
se repetissem continuamente com o mesmo tom de uma mesma
melodia morta.
Com a chegada da noite, deveria lhe vir o sono. O dormir, para
ele, era como padecer numa escuridão da eternidade serena e
pequena.
Pequena por que logo o sol renasce, e tudo está exatamente do
mesmo jeito, inalterada e inexplicavelmente, o não existir
continua nele como a nódoa na roupa branca.
O convívio com os amigos já não mais existia. Apesar de
que, certamente, ninguém gostaria estar ao lado de uma pessoa
tão vaga e inútil. O dia se arrasta lentamente e logo a noite cai
novamente, feito navalha que dilacera a alma, quase inexistente.
Como um desabafo para ele mesmo e os seus pensamentos tão
confusos, perguntava se lhe restou algum sentimento, ou se
simplesmente, neste curto espaço de tempo, ele se transformou
apenas em um amontoado de frases soltas.
Calabouço contos e outros
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Mas naquela noite, por algum motivo que ele
desconhecia, o sono não era sua companhia e, como se não
bastassem os dias intermináveis, agora as noites serão também
como uma tortura negra, e imperceptível aos olhos dos que
dormem o sono dos justos. Ele já não tinha argumento para
avaliar o porquê do ter ou não sono. Sentindo em si o desfalecer
da madrugada, ele não sabia diferenciar o sono ou mesmo o
adormecer eterno...
E como para todos que vivos aqui estão, um novo dia
sempre nasce à revelia do seu desejo, e assim recomeça mais
um fatídico mergulho no desconhecido de mais uma jornada
diária. Por algum motivo, hoje ele sentia-se estranho e, mesmo
descrente da possibilidade de um novo dia, certamente lá fora o
mundo está justamente como ele se tornou: vazio e inútil.
Vejam as pessoas com aquele mesmo sorriso amarelo e pálido
como a própria existência. Às vezes imaginava por que ele já
não via o mundo com esses seus olhos da inocência e sem a
malícia do verdadeiro ser que há em cada um de nós, mas o
amargo passar dos tempos lhe trouxe a verdadeira transparência
de cada um.
Um ser que está abrindo mão do bem mais precioso que o
criador lhe deu, ainda acha tempo para um lamento vago e
inconteste para seus dias. Como seria a vida se todos nós
pudéssemos ver um ao outro como a face da mesma moeda?
Acho que o tempo e o falso brilho do verniz da hipocrisia nos
deixam cegos para a realidade daqueles que nos cercam.
É a partir deste exato momento que lamentamos o
padecer de cada um, pois isso nos da a visão amarga dos seres
que vivem para o não viver do seu semelhante, mas vamos
deixar bem claro que ele não pretende ser o senhor da verdade,
mesmo porque, ele não acredita em verdade, em absoluto. As
verdades são como os sonhos, sempre haverá novos.
E assim lá se foi mais um dia e novamente ele se nega a
acreditar na sua existência, em como os dias se arrastam feito
cobra manca, e o seu existir se transforma em um sacrifício
interminável, pois a noite apenas separa o falso renovar de um
ser não renovável. E isso lhe sufoca, e o prende a uma
intolerância banal e insignificante; logo, ele não pode continuar,
Antonio de Araujo Silva
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se o que para todos é um novo amanhecer, para ele é só a
continuação de uma tortura anterior.
O amargo viver sem vida soma-se ao querer não existir,
então a tormenta de cada segundo vivido lhe é inevitável.
Poderíamos muito bem estarmos nos perguntando o que leva
um ser a pensar com um pessimismo quase que perverso. Claro
que todas estas decisões drásticas são decorrentes de um
amontoado de problemas que sempre se subestimou.
Vamos fazer uma breve passagem pelas suas memórias.
Talvez possamos entender o porquê de todo esse desencanto
com a vida.
Ele nasceu em uma pequena e longínqua cidade do
interior, nessas cidades onde você sabe o nome de quase todos
os habitantes, inclusive os animais de rua - sempre aparece um
engraçado para lhe dar um nome, mesmo que seja bizarro.
Ele, como o sexto filho de uma família pobre, criado com
uma educação calcada na honra e princípios rígidos. Apesar de
poucas posses, isso não quer dizer que eles não fossem felizes, e
como disse anteriormente, era o irmão caçula de seis. O mais
velho, o Joça, depois vinha o Ginelson, e o Gerilson, e tinha a
Gerilda e a Ginelsa. Nomes tão esquisitos... é que as pessoas lá
do interior têm essa mania de rimar os nomes dos seus filhos,
talvez seja uma influência da sua cultura. Refiro-me à difundida
naquela região, talvez seja simplesmente porque eles costumem
seguir uma analogia dos seus próprios nomes, pois a mãe se
chamava Geraldina, e seu pai Gedinilson. Filho de pais
analfabetos. Quando eles foram registrar o menino, o coitado do
tabelião, também semianalfabeto (se você dissesse que Joaquim
era com G ele também registraria). Mas vamos deixar essas
questões paralelas de lado e vamos aos fatos interessantes.
Ele era e sempre foi um jovem apático a festas, danças e
badalação, em geral teve uma infância feliz dentro das
limitações. Mesmo porque o sistema os limitava. Até os dez
anos ele não tinha nem um tipo de responsabilidade com o
mundo, aos 12 anos começou a trabalhar. Não era, digamos, um
trabalho de futuro, mas o suficiente para tomar gosto pela coisa;
nunca foi lá um bom aluno, era um garoto rebelde. Então veio a
adolescência - tempo bom aquele em que a mudança de
Calabouço contos e outros
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comportamento é radical e, junto a ela, surgem os problemas.
Você tem uma vaga noção de liberdade, mas precisa saber
como exatamente lidar com ela. Aos quinze anos ele já
colecionava um punhado de dúvidas que lhe consumiam e
assolava o seu pensamento adolescente, e que vieram a lhe
transformar cada vez mais em uma pessoa que não se encaixava
no sistema.
Então veio a maioridade e, junto a ela, as
responsabilidades que ele sempre ignorou, então aquela cidade
de uma cara só, já não servia para ele. Tratou de arrumar a mala
e pegou a estrada, porque ele não aguentava mais os mesmos
rostos, os mesmo gostos, a diversão era conversar na venda do
seu Zé, aquilo se tornava uma prisão para ele que sonhava
grande, mal sabia que, quanto maior o sonho, maior pode ser a
decepção, ou mesmo o tombo. Como ia dizendo, pegou a
estrada e veio parar nesta selva de concreto. Aqui passou por
tudo que ainda não tinha experimentado, mas nada lhe tirava o
sonho, morou na rua, trabalhou em quase tudo que você possa
imaginar, de catador de papel, a gerente de uma grande
empresa; como você pode imaginar, sua vida foi, a principio,
uma aventura maravilhosa.
Mas como sempre ele queria mais, nunca estava
satisfeito, ele tinha uma posição social confortável. Contudo,
com tanta luta, ele não tinha tido tempo para o amor.
Bem, amigo, acho que aí começou o reverso da conquista
pessoal, foi quando ele conheceu Verônica, uma moça formosa,
estatura média, cabelos longos, lisos e loiros como ouro. Tinha
um sorriso leal, enigmático, acolhedor e sincero. Era uma
criatura que impressionava pela sua fala farta, e um senso de
humor de encantar o mais intrépido dos homens, e ele que tinha
se privado por tanto tempo de um relacionamento mais sério, se
encantou com a beleza daquela criatura, não demorou muito,
eram praticamente um só, e com dez meses de namoro eles já
estavam casados.
Ele era o mais feliz dos homens, a vida passou a ter um
novo sentido, a felicidade era cada vez mais crescente, suas
manhãs era como sonhos de primaveras, quentes e floridos.
Antonio de Araujo Silva
27
Resolveu então ter o seu primeiro filho. Quando faltava
mais ou menos uma semana para o seu nascimento, a empresa
em que ele trabalhava lhe fez um pedido para que fosse para
uma de suas filiais em outro estado. Era próxima, coisa rápida, a
empresa estava tendo alguns problemas e o diretor geral achava
que, em no máximo dois dias, conseguiria contornar os
problemas lá existentes.
A princípio, ele repudiou a ideia e estava quase
irredutível, mas a Verônica acabou lhe convencendo do
contrario. Então ele viajou e, de fato, em dois dias ele contornou
a situação e imediatamente ele pegou a estrada de volta. 3000
km lhe separavam da sua tão sonhada felicidade, Aquele filho
fazia Drailson vibrar de alegria, afinal, depois de toda aquela
luta para criar as condições necessárias para educar o seu filho,
finalmente estava tão próximo de realizar seu grande sonho de
constituir sua própria família.
Mal sabia ele o que o destino lhe reservava. Quando
retornava de sua viagem, na metade do caminho, subitamente
ele perde o controle do veículo em uma curva e capota o carro
por varias vezes. Sofrendo um grave acidente, coisa do destino,
fatalidade ou, quem sabe, o acaso, ficou três semanas em coma,
e como por castigo, ele volta do coma como se não tivesse
acontecido nada, como que por milagre, sem numa sequela
aparente, ao menos era isso que os médicos diziam.
Ao retornar daquele coma, era como voltar de uma longa
noite de sono, mal sabia ele que ali começava o seu triste e
inevitável calvário. Quando acordou, a sua primeira pergunta
foi sobre o que tinha acontecido e qual era o dia da semana, pois
não se lembrava de nada.
Era normal, diante da gravidade do acidente. Foi
informada a primeira lembrança na sua mente: o nascimento do
seu filho, pois ele teria nascido no dia anterior, então logo ele
entendeu por que aqueles lindos olhos não estavam ali a sua
frente quando acordou.
Dois dias tinham se passado da sua saída do coma, e então
alguns dos seus amigos vieram lhe visitar. A princípio, ele ficou
um pouco irritado, afinal, ele estava a uma hora de viagem da
sua casa e ninguém tinha indo lhe visitar.
Calabouço contos e outros
28
Ao quarto dia entrou na sala o médico e uma enfermeira
com um olhar pouco convincente disse-lhe que era hora de
tomar seus remédios, “afinal, você não vai querer passar a vida
inteira nesta cama não é mesmo?”. Ele tomou as suas cápsulas,
olhou nos olhos do médico, e perguntou se ele tinha alguma
coisa para lhe falar e não estava encontrando as palavras exatas.
Primeiro, ele achou que se tratava de alguma sequela do
acidente que os médicos estavam lhe escondendo. Mas logo o
médico lhe traquilizou, afirmando que ele estava muito bem,
apesar do susto.
Então ele começou a ficar alterado, jamais ele imaginaria
o que realmente teria acontecido; o médico, então, lhe relatou os
fatos que tinham ocorrido enquanto ele esteve em coma. Sua
esposa, ao saber do seu acidente, entrou em desespero, e tomou
uma dose muito elevada de calmantes. E, infelizmente, quando
ela foi socorrida, já não era possível fazer mais nada, tanto em
relação a ela, quanto ao bebê.
E neste exato momento ele morreu. Não fisicamente, mas
era como se sua própria alma tivesse sido arrancada à força do
seu corpo, afastando aos poucos do seu corpo, qualquer desejo
de viver. O que o medico lhe falou depois disso ele nem chegou
a ouvir mais. Pois naquele momento o mundo estava desabando
sobre a sua cabeça, e o que era felicidade virou tormento.
Drailson passou mais três semanas internado em estado
de choque, e cada vez que ele abria os olhos, para ele era como
se tivessem apagado o azul do céu. Ele recusava-se a acreditar
nos fatos, é isso, nem se quer pôde ir ao sepultamento da sua
querida esposa e do fruto daquele imenso amor, e porque não,
dizer neste momento o sepultamento da sua vida e da sua
felicidade - tudo no mesmo túmulo; acabava ali qualquer desejo
de continuar a viver, pois já não existia razão para isso. Dali em
diante, os dias se passaram, mas a dor e a angústia da eterna
solidão só aumentava. Sentia-se sempre como um ser que o pai
lhe tirou a vida, mas esqueceu do corpo a vagar sozinho no
meio de uma multidão com a mesma face. O hoje, para ele, não
passa do prenúncio de um sonho que um dia viveu, e como uma
enxurrada de pensamentos, todos os seus fracassos povoavam
sua mente que já não tinha paz. Agora você pode ter a dimensão
Antonio de Araujo Silva
29
exata do termo padecer, com tudo que aconteceu em sua vida,
desde daquele efêmero dia, a sua vida não foi mais a mesma, e
não podia ser diferente. Bem, os fatos que aconteceram no decorrer dos dias, a
partir daquela data, foram o início do epílogo da sua existência.
Acho que você já pode imaginar o que veio nos dias que se
seguiram. Ele passou, ao todo, seis semanas no hospital, teve
alta e voltou para casa.
Mas aquele já não era mais o seu lar, sinceramente, não
encontro palavras para descrever o sentimento exato daquele
momento, era como se ele estivesse fora do contexto de tudo
que havia naquele lugar. Por um breve instante ele ficou
completamente pálido e inerte, contemplando a paisagem do
desespero, ele podia sentir o cheiro do doce perfume de sua
amada em cada objeto ali presente. Com o olhar fixo, ele podia
ver ali, naquele momento, o prelúdio do fim. Era como um
pesadelo onde só ele era real.
Dali em diante, para ele, os dias passavam à revelia da
sua existência, como se a vida nele não mais existisse..foi
degustando a dor a cada dia, mas, infelizmente, o ar que agora
respirava passou a ser tal como navalhas de tortura que
dilaceravam seu espírito inebriado pela perda do sentido de
viver.
Hoje já estamos em 5 de agosto e, certamente, você já
sabe um pouco sobre a sua pessoa, como você pode observar o
sol nascer no mesmo horizonte de sempre, com a precessão do
absoluto. Mas a ausência nem sempre tem a consciência do
poder da solidão que, aos poucos, nos leva a desejar um fim,
mesmo que seja breve, como se pudéssemos recomeçar, e o não
existir passa a ser seu objeto vital.
Voltamos ao passeio diário, sim, isso mesmo, ele continua
a fazer isso todos os dias, afinal o mundo passou a ser o seu
purgatório. E como numa réstia, ele pendura as suas ilusões
para secar ao vento morno das incompreensões, então a noite
cai e o espírito seca ao prenúncio de um amanhecer que só
acrescenta o seu padecer; ele já pode até sentir o cheiro
perverso da coberta que lhe cobre...
Calabouço contos e outros
30
Antonio de Araujo Silva
31
Segundo capítulo
Calabouço contos e outros
32
Ventríloquos do ego
Em um mundo cada vez mais moderno e consumista,
onde o ter é tão importante quanto o ser, o homem carrega em si
a responsabilidade de resguardar o seu caráter sem que seu ego,
absorva para si esta última linha tênue que o separa dos
irracionais. Assim, iniciamos este embate entre o criador e a
criatura, em um intempestivo duelo de ideias e pontos de vista
incoerentes com a realidade de cada um.
E sem mais demanda. Em um palco qualquer desta
abençoada Pátria:
Com uma cadeira ao centro uma mesa posta com um bule
de café que se imagina ser fresco, e duas xícaras. João do nego
e seu comandado iniciam mais um... Quem sabe... - Olá, boa noite a todos, eu sou João do nego, e este é
Cicinho, como vão vocês? Olha só Cicinho, quanta gente aqui,
num é que nos ta ficando importante, está que até parece
espetáculo da bróde.
- E o que é brode? Hein? Padim.
- Eita que também, lá vem tu querendo saber tudo, pelo
menos vamos esperar todo mundo tomar seus assentos, não é
Cicinho? Porque aí, enquanto a gente conversa, nós toma um
cafezinho pra nós esquentar o espírito não é mesmo? Mas vocês
que estão aí desculpe pela indelicadeza, mas é que o Cicinho
num é de dá atenção a qualquer coisa, num sabe. Não, eu não
quero dizer que vocês é qualquer coisa não, mais é que esse pau
preto é todo metido a besta, é que nem burro brabo só vê o que
tá na frente do nariz. Mas como eu sei que vocês tudo tão
cansado depois de um dia de trabalho, cada um de sua maneira
não é mesmo, teve o trabalho de vir aqui vê esse matuto e suas
histórias bestas, isso mesmo, porque se num fosse besta num
tinha graça, não é mesmo?
E por falar em historia besta, acho que vou começar esta
noite contanto um causo que aconteceu há muito tempo atrás
com o meu amigo Jessé de dona maroca.
Antonio de Araujo Silva
33
- Eita, Padim, que num aguento mais ouvir esse causo!
Será que num da prá inovar, mudar o repertório não, Padim?
- Num tô dizendo se você dá liberdade prá preto é isso
que acontece, o bicho acha que é gente.
- Ôchi! O Padim perdeu a noção do perigo, foi? Por acaso
o Padin num se lembra mais, que se o Padim continuar a me
ofender me chamando de preto, eu posso processar o Padim,
lembra mais não, é?
- Num tô falando, agora vocês aí da plateia por acaso tem
algum idiota que acredite que alguma lei vai acabar com o
preconceito, hein? Me digam.
- Olha aqui, meu Padim, se vai acabar eu não sei, mas que
vai botar um monte de cabra na cadeia, isso vai.
- Largue de ser besta, então tu acha que nesse mundo
quem tem dinheiro vai conhecer o xilindró, algum dia, hein?
- Ôchi! Padim, a gente tem que acreditar na justiça, e olha
que o Padim mesmo que me falou, num foi?
- Tudo bem, Cicinho, mas vamos mudar de assunto
porque o povo aí já tá é ficando aperreado com tanta lenga,
lenga sem futuro, num sabe.
- Padim.
- Fala Cicinho.
- Eu também posso contar uma história besta, posso?
- Claro que pode, mas que história você quer contar,
Cicinho?
- Posso contar aquela...
- Qual menino de deus?
- Ah! Vai dizer que o Padim não se lembra de mais
daquela do embaraço da ribeira de baixo.
- Olha aqui, seu neguinho magrelo, se você começar, vai
se arrepender de ter nascido, já tá na hora de você me respeitar
seu moleque.
- Ôchi! Padim precisa ficar nervoso não, eu tava só
brincando, ôchi!
Calabouço contos e outros
34
- Tudo bem, vamos deixar isso pra lá e vamos ao que
interessa.Há muitos anos atrás, quando eu ainda morava lá na
ribeira de baixo...
- Num é por nada não mais se eu fosse o sinhô, Padim,
num contava essa não.
- Num é que o pau preto ficou todo sentido, só porque eu
vou falar do seu antigo patrão, é?
- Oia aqui Padim, primeiro meu nome num é pau preto, é
Cicinho, segundo, se Padim continuar me ofendendo, eu vou
denunciar o Padim por racismo, e lhe meto na cadeia.
- Mas olha, olha, vê se tem jeito uma coisa dessas, a gente
dá casa comida e roupa lavada para o infeliz e o peste ainda
ameaça pôr o sujeito na cadeia. Num tô dizendo que esse
mundo ta perdido? Porque no tempo do meu avô, esses pretos
trabalhavam de sol a sol e de graça, e se fizesse corpo mole ia
direto para reio, hoje em dia eles tem cota pra tudo, do jeito que
vai nós vai é virá escravo deles, não é mesmo?
- Oia aqui Padim, acho melhor a gente parar por aqui se
não isso vai feder, num sabe.
- E num adianta ameaçar não porque eu vou contar.
Vocês desculpa, mas é que toda vez que eu falo dessa história
ele fica nervoso. Num sei porque, tudo bem que é uma coisa um
pouco pessoal, mais nem por isso eu vou deixar toda essa gente
sem saber porque o seu antigo patrão te chamava por esse nome
de Ciço bananeira, não é. Pelo que eu sei, num existe esse
sobrenome em lugar nenhum.
Ele era ainda jovem, vichi! Que isso faz tempo não é
mesmo Cicinho? Porque o tiçãozinho aqui só tem cara de novo,
mas esse bichinho pisou na lama do dilúvio, num sabe.
- Padim, acho melhor o sinhô pará.
- Tudo bem, num faz tanto tempo assim, mas vamos dizer
que num existia ainda essa tal de televisão, computador, pelo
menos aqui pra gente da roça. Mas pensando bem, Cicinho,
naquela época a diversão era bem melhor não é mesmo Cicinho,
Virche Maria! A gente arrumava um rabo de saia e a diversão
tava garantida. Tá certo que naquele tempo menino nascia que
nem coelho, era de ninhada, mas quem se importava? Se Deus
deixou nascer é porque vai ajudar a criar, não é mesmo?
Antonio de Araujo Silva
35
- Eita que o Padim hoje tá com a peste. Dá pra
desembuchar logo essa história prá esse povo, ou tá difícil,
hein? Padim.
- Mas como eu ia dizer, e num adianta fazer bico, nem
cara feia, porque eu vou contar tim, tim, por tim, tim, num sabe.
Olha que a história seria mais divertida se num fosse um pouco
trágica. Foi há uns vinte e pouco anos atrás, antes dele vir aqui
prá cidade grande, essa caatinga de maluco onde ninguém
respeita ninguém. Mas deixa prá lá vamos ao que interessa.
Nós morávamos lá no sítio da pedra mole, um sertão seco
que não tinha mais fim, quem se importava com isso, éramos
todos jovens cheios de sonhos, apesar da vida pelas aquelas
bandas estar mais para pesadelo.
- É bom o Padim num esquecer que também num está tão
inocente nessa história, que eu sei que o sinhô também pelou
muito sabiá por lá mesmo, quando trabalhava para o coronel
Jasflores mata Onça.
- Eita peste, mas que pretinho mais atrevido, num é que o
bicho tá querendo desmoralizar minha imagem? Espere aí seu
preto de uma figa, que mais tarde tu vai vê uma coisa. Mas
vamos deixar as nossas pendengas pra depois.
Ele morava com o coronel Jasflores pega Onça, agora pense
num homem bruto da molesta, vichi! Que só o nome metia
medo até em onça braba. Ele morava lá na fazenda Ribeira de
dentro, o coronel era casado com Dona Linda Boa Ventura. Cá
entre nós, e Deus que nos escuta, o nome fazia justiça, porque
eu já tô com mais de dez punhados de ano nas costas e já rodei
todo esse mundo de meu deus, mas nunca vi mulher com
formosura igual. Ela era alta, branquinha, cabelo preto como
onça da noite, tinha um sorriso largo, bem que não era só o
sorriso que era largo não... Tudo bem, Cicinho, eu num vou
passar daí não, porque tem criança ouvindo o causo.
A casa do coronel ficava perto do riacho da Ribeira, lugar
onde toda tarde dona Linda ia se refrescar e mostrar sua
formosura pros deuses.
- É, mas pelo que eu sei, não era só os deuses que
desfrutava de sua beleza não, não é mesmo Padim?
Calabouço contos e outros
36
- Tô vendo que é hoje que desmonto esse neguinho
desgraçado em porrada.
- Vichi! Que o Padim ficou foi nervoso, a gente num pode
nem mais fazer uma brincadeirinha besta.
- Oia só, vou relevar dessa vez pra evitar a possível
necessidade de jogar este café na tua cara, neguinho sem
compostura. E afinal ele tá uma beleza, por acaso vocês já
tomaram desse tipo de café aqui, ah, claro que não porque hoje
em dia é tudo cheio de frescura, é café descafeinado, solúvel,
café forte, extra forte e tem até café light. Pra mim isso é coisa
de fresco, que me desculpe os frescos, porque eu num tenho
nada contra eles, afinal, cada um dá o que pode, e o que tem,
não é mesmo?
Tudo bem Cicinho, eu já sei que eu tenho essa mania de
misturar assunto, ôchi! O que tem homem, nós só tá tendo um
dedinho de prosa a mais, e isso num mata ninguém, não é
mesmo? Como eu tava falando antes do fresco entrar no meio.
- Ôchi! Que peste é essa Padim?
- Que isso Cicinho eu num tô falando que você é fresco
não, eu quis dizer antes da história do fresco entrar no meio,
eita! Que neguinho desconfiado. Mas vê se você me deixa
continuar com a história, que esse pessoal num veio aqui pra
ouvir tua ignorância não, ah, já entendi, você tá é querendo
tumultuar o causo, nem adianta porque você, querendo ou não,
eu vou contar. Tudo bem, eu sei que vocês estão aí sem
entender nada, já tem até mulher ficando nervosa se mexendo
na cadeira como se tivesse sentado num pé de cansanção.
- Padim, falando em mulher, posso falar uma coisa?
- Claro, Cicinho, diga.
- O Padim já viu o tamanho daquela mulher ali na
primeira, fila, viu?
- Ôchi! Tu ta ficando doido, é?
- Pronto, por quê?
- Me admiro muito, pra quem tava querendo me botar na
cadeia por lhe chamar de neguinho, desse jeito você vai me
fazer companhia por lá, não é mesmo?
Antonio de Araujo Silva
37
- Ôchi! Padim, mais basta olhar pra vê que ela tá maior
do que uma baleia, num cabe nem na cadeira direito, e olha que
as cadeiras daqui são bem servidas.
- Mas veja só, e por acaso num basta olhar prá tu prá ver
que tu és preto não, me diga qual é a diferença?
- Eita peste, Padim, será? Virche! Ainda bem que ela num
ouviu, não é mesmo?
- Agora vê se fica com essa matraca fechada antes que eu
seja expulso daqui, tô certo.
Mas como eu ia dizer, tudo bem, eu não vou explicar
agora o que é cansanção, mas eu ia dizer mesmo é que esse meu
café aqui é torrado com rapadura, quando você põe na xícara,o
bicho parece engrossante. Quando você toma a pressão vai lá
em cima, bem e lá embaixo também, mas pra encurtar o nosso
assunto, falando do riacho da ribeira. Lá na vazante tinha um
plantio de bananeira que era uma beleza, e por coincidência era
ali na vazante que dona Linda se refrescava como veio ao
mundo, vichi! Nossa Senhora que eu nem gosto de lembrar que
a pressão sobe na hora.
Tá bem, Cicinho, pressão é modo de dizer, isso todo
mundo já sabe. Numa daquelas tardes, como todas do sertão,
com aquele mormaço da molesta, o coronel Jasflores mandou o
então Ciço, rapaz novo taludo e que andava mais seco que a
lagoa no mês de setembro, buscar um cacho de banana lá na
vazante.
Bem, assim, na hora do vexame de atender o coronel, e
também na pressa de mandar, nenhum dos dois se lembrou de
que era bem na hora que dona Linda tava se refrescando, e o
Ciço desceu pra vazante ligeirinho, direto pros pé de banana
mais perto da vazante, que era onde o cacho crescia mais
ligeiro. Sei bem que com o que ele viu, não era só o cacho que
crescia ligeiro não. Bem, pra sua alegria ou desespero, sei lá eu,
quando chegou à ponta da vazante que era onde ficava os
primeiro pé, ou os último de bananeira, depende da ordem de
chegada do indivíduo.
Pra sua felicidade ou desgraça, lá estava aquela belezura
indescritível, como veio ao mundo, em carne e osso, sei bem,
que mais carne do que osso, não é mesmo Cicinho?
Calabouço contos e outros
38
- Eita! Depois eu é que sou safado, não é mesmo? Não que
dona Linda seja gorda, não, dona Linda tinha tudo na medida
certa e que certeza de medida. Acho que o criador estava num
estado de graça quando criou aquela mulher.
- Quando o Ciço viu aquilo ele ficou abestado, num sabia
se corria ou se ficava se pegava o cacho ou a banana, nesse
intervalo da meia alucinação ou lucidez a mais da conta. O
coronel se lembrou de que a dona Linda tava lá no Riacho da
Ribeira, Vichi que o home endoidou, olha, porque cá entre nós,
e Deus que nos ouve... Porque se alguém fizesse a besteira de
olhar prá dona Linda com os olhos de segunda intenção, o
coronel mandava cortar os documento do cabra assim, na hora,
e isso ela com roupa, imagine o cabra vendo ela peladinha como
veio ao mundo, ave Maria num queira nem imaginar.
Bem, pra encurtar o causo, o coronel passou a mão ligeiro
como uma onça na sua pistola Mauser e no seu punhal de
estimação, e desceu pra ribeira fervendo, o home ora branco
como um capucho de algodão, ora como um tição, ora fungando
mais que respirando. E chegando lá na ribeira, o homem ia
cego, o coitado do Ciço abestalhado com o que via, sei bem que
o danado não estava tão abestalhado assim não, e com isso nem
viu o coronel chegar. Quando ele se deu conta o coronel tava na
sua frente. Dona Linda tava alheia a isso tudo porque se
refrescava de costa pras bananeira, e que costa, Vichi! Quando
me lembro, chega a arrepiar até os olhos. Bem, mas voltando
prá cena anterior, quando o coronel viu o Ciço ali no pé de
bananeira, com os olhos arregalados, olhando dona Linda, o
coronel gritou:
- Que diacho você ta fazendo aí moleque safado? - Bem,
na pressa ou na agonia, num sei, de responder o coronel,o Ciço
disse:
- Ôchi! Tirano o cacho que o sinhô mandou, ora.
- Ah, é, e você poderia dizer onde diacho você comprou
essa ferramenta de corta cacho de banana, pode?
E quando Ciço olhou para as mãos é que ele se deu conta
do embaraço que tinha se metido, claro que nessa altura a
ferramenta num assustava mais ninguém...
Antonio de Araujo Silva
39
Calabouço contos e outros
40
A morte do planeta azul
Em um tempo não muito distante, quando o planeta Terra
já não era mais habitável, em uma das dezenas de estações para
onde o que restou da população mundial foi transferido. O
comandante anuncia para que todos saiam das suas cápsulas e
que se dirijam ao grande salão, a fim de que todos assistam
juntos, ao marco da nova era humana. Pois o planeta no qual se
originou a raça humana chegava ao seu ciclo final de existência.
Certamente, todos os tripulantes desta, e de todas as outras
estações que formavam a frota de habitações espaciais, mal
conseguiam controlar a ansiedade, pois a expectativa era
grande, afinal, se aproximava o fim do grande planeta azul.
Até há dois séculos, ninguém poderia acreditar nesta
possibilidade tão absurda e irreal, mas, diante dos
acontecimentos dos últimos séculos, já se tornara um consenso.
E o fato era inevitável.
Vamos agora retornar, então, há alguns séculos atrás,
quando tudo começou, mais precisamente em meados do século
vinte e um. Quando um velho cientista, até então desconhecido
para a comunidade cientifica mundial, chamado Antoniese
Larise, surpreendeu o mundo com suas teses sobre a extinção
do planeta azul. No ano de 2005, em uma conferência
universitária, Larise tornou público um artigo em que traçou
seus primeiros parâmetros entre a evolução do homem e a
inevitável trajetória para a destruição do planeta. Em seus
artigos, ele aliava a alienação do ser humano com a inevitável
desagregação da espécie; a qual, primeiramente, levava o
isolamento do homem até a inevitável destruição do planeta.
No ano de 2005, o então desconhecido pesquisador
Larise, começava a destilar suas teses, segundo as quais, em um
pequeno intervalo de tempo, já provocavam alvoroço e
incômodo aos seus colegas.
O sr. Antoniese era um homem reservado, pouco se sabia
da sua vida pessoal, apenas que ele era um dos maiores
estudiosos do comportamento humano e da sobrevivência
humana da época.
Antonio de Araujo Silva
41
Naquele dia, o pequeno auditório encontrava-se
completamente ocupado, com pessoas em pé que se espalhavam
por todos os lados.
O Dr. Larise aparece trajando uma roupa bem casual para
o momento. Quem o conhecia, sabia que ele não era muito
adepto de formalidades.
Ele começa a sua apresentação agradecendo a presença
daquela pequena multidão que ali se aglomerava, agradece
também pelo convite daquela entidade e a oportunidade para
que ele pudesse divulgar as conclusões dos seus longos anos de
pesquisa. Explicou, em primeiro lugar, que não tinha a menor
intenção de transgredir qualquer conceito atual com as suas
conclusões sobre os longos anos de pesquisa da espécie humana
e o seu habitat, apenas elucidar o que ele achava inevitável
acontecer, diante os resultados obtidos.
Ficou em silêncio por alguns segundos, pediu a atenção
de todos ali presentes. A tensão era tão presente, que se podia
ouvir o som daquela respiração coletiva do ambiente.
Iniciou dizendo que era factual e notório que, apesar dos
milhões de anos da existência humana, o homem continuava
fingindo entender o universo para não ter tempo para entender o
seu próprio planeta. Pois um dos grandes desafios da
humanidade era entender que a miscigenação não eliminou
nenhum elemento genético das primeiras criaturas humanas que
habitaram o mundo. O que houve foram apenas algumas
adaptações naturais às necessidades de todos os habitantes,
conforme a seleção natural entre o cruzamento de espécies, de
acordo com o que já fora especificado em pesquisas de alguns
séculos atrás...
Além de causar muita apreensão entre os presentes, os mesmos
esperavam pelas revelações que já circulavam nos meios de
comunicação sobre o seu intrigante artigo.
As comunidades científicas diziam que seus resultados
eram incoerentes para o momento em que vivia o nosso planeta
e, segundo os doutores do tempo, os fatos relatados não tinham
qualquer consistência. Mesmo assim, ele já tinha uma pequena
legião de seguidores.
Calabouço contos e outros
42
Ignorando os olhares de descrença de alguns colegas ali
presentes, primeiro ele começa a relatar sobre os resultados
obtidos, os quais demonstravam a desordenada adaptação da
espécie humana no nosso planeta.
Com a adaptação da espécie para convivência em
sociedade de regras preestabelecidas, o homem e suas
inquietações, e a complexidade de sua mente, levaram-no a
criar situações de mistérios absolutos sobre suas próprias
capacidades. Com suas necessidades antepassadas escondidas
nos seus subconscientes, o homem muitas fezes se depara com
suas inevitáveis verdades inconvenientes. Trazendo assim, com
o desenvolvimento tecnológico, o começo da perda do contato
direto com sua própria espécie, ele então começa a resgatar
valores, desejos e necessidades que já não povoavam sua mente
consciente.
Tudo isso, trazido a um contexto de competividade
apregoada nos modelos sociais atuais, resultou em uma situação
de descontrole emocional ireversivel, e que se torna
incompreensivél para a mente, pois ela não consegue identificar
os horizontes de direcionamentos desejáveis. Sendo assim, a
mente se autoprograma de acordo com os sentimentos mais
eminentes, de acordo com o meio onde vive. Como nada no
subconsciente do ser humano é descartado, somos
surpreendidos por ações desumanas, vindas de pessoas ditas
normais.
Com a evolução muito rápida do seu meio, o homem
chega muito rápido à fase adulta de sua mente, sem que o
sentimento como pessoa o acompanhe, gerando, assim, muitos
conflitos, pois ele não se vê como a sociedade que o rodeia.
Vivendo com essa mente conflitante, ele se transforma em
passageiro de si mesmo. Sem a capacidade de controlar suas
próprias ações, o homem começa a depositar sua esperança na
capacidade dos seus semelhantes, gerando, assim, uma falsa
expectativa de paz interior.
Sempre esperamos que o homem finalmente encontrasse
um ponto de equilíbrio, entre o desenvolvimento do seu meio e
Antonio de Araujo Silva
43
a capacidade de sua adaptação. Pois corríamos o sério risco de
termos, cada vez mais, um crescimento desordenado de
verdadeiras legiões de alienados, incorporados ao nosso meio
social que julgamos sano, mas que, infelizmente, em um futuro
bem próximo, virá a causar um desequilíbrio capaz de
comprometer o convívio social aceitável entre os homens...
Conforme o professor Antoniese ia se aprofundando nos
relatos das suas conclusões, mais gerava grande expectativa,
sobre o que poderia vir a seguir. Porque, apesar de praticamente
viver em uma eterna clausura, onde dedicava praticamente todo
tempo de sua vida ao desenvolvimento do conhecimento
humano, pouco se sabia sobre as suas teses.
E depois de uma pequena pausa, ele retoma o seu discurso,
explicando que, ao longo das últimas décadas, temos utilizado
de forma indiscriminada produtos químicos para garantir uma
produção satisfatória de alimentos. Desta forma, temos
acelerado também processos de mudanças genéticas
significativas, e causando, assim, danos irreparáveis à saúde do
homem a logo prazo.
Já é notória a situação de risco da existência humana
diante a incapacidade do homem de preservar a si mesmo e ao
seu meio...
E dessa forma, o professor seguia conduzindo sua apresentação;
até então, nada de assustador tinha sido revelado diante dos
comentários que tanto falavam sobre ele, então ele seguia
pontuando cada etapa da sua pesquisa.
Explicava que estamos todos vivendo teleguiados por
uma junção de ações internas e externas que dificultam a
capacidade de compreensão das nossas próprias necessidades
imediatas.
Com a necessidade de se competir com a mesma espécie,
o homem passa a ter uma evolução desajustada, transformando
qualquer um em presa.
Este fato desagrega a organização da família, quebrando assim
o eixo principal do conceito de sociedade que vivemos
etrazendo, assim, enormes perdas para o vínculo de família.
O homem traz de volta a si, seus extintos mais
conhecidos de sobrevivência, criando uma desordem na
Calabouço contos e outros
44
estrutura social capaz de tornar inviável a qualquer ação de
estabilidade e sustentabilidade organizacional que se torne
eficaz no controle da violência...
De certa forma, as pessoas ali presentes começavam a
ficar impacientes, pois eles não viam ali, nada
significativamente novo, que justificasse tanta importância dada
aos resultados de suas pesquisas. Mas, apesar de notar esta
impaciência e indiferença em sua plateia, ele continua
explicando.. Sempre sereno e tranquilo, ele prossegue as suas
explicações.
Destaca que a individualização do ser e o acesso rápido à
cultura e aos costumes, hábitos sociais e alimentares do mundo
inteiro, orna-nos mutantes diários de hábitos sociais, culturais e
alimentares. Com esta interferência complexa e diária, o homem
se transformou em um ser fragmentado psicossomaticamente
falando, trazendo um resultado físico e mental desastroso.
Sublinho que, sobre o meio ambiente, é inevitável ressaltar que,
ao longo da nossa existência, exaurimos do nosso planeta,
indiscriminadamente, todos os recursos naturais, com o intuito
do desenvolvimento, e sem o menor respeito ao planeta. Pois
muitas vezes nos pegamos a pensar se e o homem, em algum
momento, teve a consciência de que todos os minérios retirados
do nosso solo tinham uma função para o equilíbrio da vida do
planeta. Derrubamos as nossas florestas, aniquilamos todo o
sistema pluvial e aquífero do nosso planeta. Estamos
conseguindo o que parecia impossível: contaminamos todos os
nossos oceanos, retiramos bilhões de toneladas de ferro,
manganês, ouro, prata, bauxita etc. E não nos contentando em
retirar todas as reservas de petróleo dos leitos mais superficiais,
agora também pretendemos exaurir de uma forma irracional
todas as reservas do pré-sal.
Será que em nenhum momento paramos para imaginar
que tudo isso faz parte de um sistema que dá a sustentabilidade
de existência do planeta, pois o que estamos fazendo é mata-lo
lentamente.
E que, a partir de agora, só nos resta arcar com as
consequências. É irreputavel dizer que a situação, hoje, já é
simplesmente irreversível.
Antonio de Araujo Silva
45
E assim sendo, com este desenvolvimento desagregador
da espécie e do seu meio, certamente será inevitável o
retrocesso ao processo de convivência em tribos
individualizadas, causando um enorme prejuízo, ou talvez ao
fim do conceito da coletividade. Inevitavelmente, haverá a
ruptura do nosso atual conceito da ordem social.
Dessa forma, o que nos resta é sentarmos todos, em
nossos imensos sofás da hipocrisia e aguardarmos ansiosos ao
novo milagre da divina criação...
A partir deste momento, ele começa a causar um
verdadeiro alvoroço entre a plateia de cientistas e intelectuais
ali presentes. Novamente, ele faz uma pequena pausa, antes de
reiniciar com o que ele tinha de mais assustador como resultado
dos seus experimentos científicos, ao longo dos anos de
pesquisa. Considerado pelos seus colegas pesquisadores como
alguém sem muito embasamento ou consistência científica, ele
traz revelações assustadoras para o meio daquela época.
Segundo a sua tese, logo na segunda metade deste século, o
homem perderia 50% de toda água doce do planeta. Com as
mudanças bruscas de temperatura e o degelo dos pólos, haveria
a inversão dos leitos dos rios, então o ciclo se inverteria e o mar
passaria a invadir os leitos dos rios, contaminando, assim, 50%
de toda água doce do planeta.
Claro que, na época, não se deu nenhum credito, pois
qual ser humano de bom senso acreditaria em uma coisa
absurda desta. Nem mesmo os mais pessimistas dos
pesquisadores jamais compartilhariam da ideia de que houvesse
a destruição do planeta em um espaço de tempo tão curto como
em apenas quatro séculosCom a sua morte, dois anos depois
desta apresentação, suas pesquisas simplesmente foram
esquecidas.
E só no ano 2075, seu nome e suas pesquisas voltaram à
cena mundial, pois foi mobilizada toda acomunidade científica,
em virtude de ter iniciado um processo, que até então se
julgava quase impossível.
O nível dos oceanos começou a se elevar rapidamente
com as altas temperaturas no planeta, e os polos começam a
derreter muito rápido.
Calabouço contos e outros
46
A situação fica fora de controle, toda a população das
cidades litorâneas começam a serem evacuadas, são erguidas
grandes barreiras nas ligações do mar com os rios mais
importantes, na tentativa de evitar a contaminação dos rios. É
retirada, em regime de emergência, toda a população ribeirinha.
Logo, todas as regiões pantaneiras também necessitam ser
evacuadas; em todos os países acumulam-se bilhões em
prejuízos na agricultura, a pecuária de corte é quase que banida.
E o mundo inteiro começa a enfrentar a escassez de alimento.
Em menos de trinta anos, mais de vinte por cento da
população mundial morre por fome ou desastres naturais, tufões
maremotos terremotos, tsunamis de ondas gigantes nos cincos
continentes, simultaneamente. Assim, todas as ilhas e as áreas
costeiras do planeta são devastadas, matando 80% da população
daquelas áreas.
Em todo o mundo, as regiões de florestas tropicais
enfrentam, em média, seis meses de chuvas torrenciais e
ininterruptas.
Nas regiões dos trópicos passam até cinco anos sem chuvas, e
quando chove, o que era a média de milímetros de um mês
passa a chover em ritmo diário. Então, já no inicio do século
vinte e dois inicia-se, apesar de grandes protestos no mundo
inteiro,, a execução de construção de estações permanentes em
Marte e na lua. As três maiores potências econômicas do mundo
na época, se juntam para a construção de uma estação na lua e
outra em Marte, com capacidade para seis milhões de habitantes
cada uma. Pois todos eles já contavam com seis pequenas
instalações itinerantes, com capacidade de trezentos mil
habitantes cada uma. A revolta da população era eminente, pois
isto não representava nem dez por cento do percentual da
população atual, com uma expectativa de vida, em média, de
250 anos. Apesar de toda a tecnologia existente, o mundo já
não conseguia produzir alimento suficiente para todos. Foram
tempos difíceis, por mais que se tentasse não se conseguia
controlar a ação de pirataria que desviava grandes partes dos
alimentos distribuídos para as áreas mais isoladas...
Antonio de Araujo Silva
47
Calabouço contos e outros
48
A dívida
Prezado leitor, lá para as bandas do meu sertão, é muito
comum se recorrer aos amigos compadres ou parentes para
tentar se livrar daquelas dívidas inevitáveis do mundo moderno
e consumista de hoje em dia, mesmo nos lugares mais ermos do
nosso velho mundo.
Agoniado por demais, o seu Manoel da besta... Agora me
diga se tem cabimento se chamar um cristão por um nome deste
quilate. Todos sabem bem, que é de costume lá no meu nordeste
fazer esse tipo de coisa. Esses nomes associativos, como:
Manoel do bode, Zé de zefa... e por aí vai...
Mas vamos ao que interessa... Bem, pelo menos eu acho
que interessa, senão você não estaria aí lendo, não é mesmo,
caro leitor?
Como eu comecei anteriormente, o seu Manoel da besta
estava desesperado, pois tinha contraído um dívida, vamos dizer
que, para alguns, seria até insignificante, mas que para um
caboclo, para quem o dinheiro é quase uma “visagem”, fica
difícil honrar seus compromissos.
Não encontrando outra saída, o seu Manoel da besta
resolveu pedir ajuda, como é de costume a todos por lá, ao seu
compadre Chico ventania.
Bem, eu avisei que os nomes eram todos assim, vamos
dizer, meio esquisitos... mas vamos voltar para a história. O seu
Manoel acordou com as galinhas - bem, e agora eu acho que
você vai entender o porquê do nome; eita, eu e essa minha
mania de querer explicar tudo. Lá no sertão, pra comprar um
cavalo é preciso se ter um bom recurso, mas “besta” é mais
barato porque ela não serve para mão de obra pesada.
Então, como se diz por lá, quem não tem cão, caça com
gato, como se tivesse a ver uma coisa com outra. Bem, mas o
seu Manoel da besta estava um pouco preocupado com este tipo
de coisa, pois ele tinha contraído uma dívida com o seu Zé corta
saco. Pelo nome, nem precisa explicar o motivo do medo do seu
Manoel, não é? Pois o cabra poderia causar um estrago se ele
não honrasse o pagamento da dívida.
Antonio de Araujo Silva
49
Só a título de esclarecimento, naquele tempo, naquela
região, não se usa cheque, recibo ou promissória. Porque lá o
cabra faz acerto verbal mesmo. Agora, meu amigo, se o cabra
faltasse com a palavra... Aí para não ser muito dramático,
vamos dizer que o cabra estava meio enrolado.
Seu Manoel da besta tomou seu café mais ligeiro do que
teiú na caatinga seca. Arriou a besta e sumiu ribeirão adentro
para a casa do seu compadre Chico ventania, que era um sujeito
calmo, pacificador, mas que, quando perdia a paciência, não
tinha pra ninguém.
Quando ele chegou ao ribeirão, na casa do seu Chico
ventania, o homem nem tinha saído pra lida ainda. Seu Chico
tava no terreiro arrumando as coisas nas mulas pra levar pra
roça, quando avistou, surgindo lá na curva da velha estrada
empoeirada, o seu Manoel.
E logo resmungou uma pequena frase:
- Eita peste, virche! Que deve ter acontecido alguma
desgraça muito grande pro compadre Manoel vir esta hora pra
essas bandas.
- Olá compadre Chico, bom dia.
Quase que simultaneamente vai falando e descendo da
besta ao mesmo tempo, o que deu para o seu Chico já ir notando
o tamanho do aperreio do cabra.
- Ôchi! Tô muito bem graças ao meu bom Deus, e o
compadre Manoel, como tá?
- Ôchi! Com a graça de Deus, tô muito bem, por que,
num devia tá não, é?
- Eita homem ignorante da porra, tô só querendo saber
como o homem tá, e ele já me vêm com uma patada da molesta
dessa. Olha que pelo tamanho do cavalo eu até pensei que o
coice fosse bem menor, num sabe.
- Olha aqui compadre Chico, em primeiro lugar cavalo é
a mãe, e num me aperreie que hoje, compadre, eu tô azedo, num
sabe...
Calabouço contos e outros
50
- Bem que eu desconfiei que boa coisa num poderia ser,
pro compadre tá por essas horas por essas bandas, num é
mesmo, compadre?
Mas vamos, me diga que diacho aconteceu pro compadre
ficar tão azedo assim, vamos, me diga.
- Virche! Compadre, nem te conto, não é que antes de
ontem eu fui resolver umas pendengas lá pras banda da ribeira
de baixo, e na pressa de me livrar do problema, compadre, não é
que eu fiz foi me enrrolar mais ainda?
- Ôchi, compadre Manoel se enrolou com que, me diga,
vamos.
- Fazia um bom tempo que eu tinha umas pendências
financeiras por lá, e a semana passada eu tinha algumas coisas
pra fazer por lá, então resolvi matar dois coelhos de uma
cajadada só.
Então lá fui eu dar uma satisfação pros meus credores,
num sabe, afinal se não podemos honrar os nossos
compromissos no prazo, pelo menos devemos dar uma
satisfação, não é mesmo, compadre?
- Espere compadre, que num tô entendendo coisa com
coisa, porque quanto mais o compadre explica, menos eu
entendo, por que o compadre num desembucha de uma vez,
afinal que miséria de enrrolação é essa, me diga, vá.
- Eita que homem avexado da molesta, num dá pra
esperar não, é, tô só querendo explicar as coisas direitinho, num
sabe. Mas, em todo o caso, vamos lá... pra acabar com esse
aperreio de uma vez. Chegando lá na bodega do seu Zé corta
saco, que é um dos credores, num sabe?
Houve uma pequena pausa, e seu Chico logo perguntou:
- Agora, também, compadre, com tanta gente no mundo
pro compadre arrumar dinheiro emprestado, foi logo pegar com
o seu Zé corta saco, o compadre perdeu o juízo de vez, foi?
Porque o compadre sabe muito bem que aquele homem é o cão
em pessoa, num é mesmo. Porque até a mãe dele pensa duas
vezes em se meter com ele, não é mesmo compadre?
- Ôchi! Compadre Chico, na hora do aperreio o sujeito
pega com o primeiro que aparece, vê se na hora da desgraça o
Antonio de Araujo Silva
51
sujeito tem tempo de pensar nas consequências que vêm depois,
não é mesmo. Mas voltando ao que eu tava contando antes...
Não é que na pressa de dar uma satisfação pro homem,
não é que eu disse que até tinha arrumado o dinheiro pra acertar
com ele, mas o coitado do Ciço do peixe tava num aperreio da
molesta. E eu tinha arrumado o dinheiro pra ele, e assim que o
Ciço me devolvesse eu ia lá acertar com ele.
- Eita compadre, que agora o sinhô se lascou pra valer.
- Nem me fala compadre, que se eu escapar dessa, nunca
mais eu quero conversar com agiota, num sabe.
- Oia compadre, me desculpe o trocadilho, mas enquanto
ele é agiota, o compadre agiu como um idiota, não é mesmo?
- Ôchi! Compadre, também num precisa ofender desse
jeito, porque eu já tô lascado e o compadre ainda vem e me
chama de idiota, isso é demais pra mim, num sabe.
- Que isso compadre, num tô querendo ofender o
compadre não, tô só querendo abrir os olhos do compadre pra
ver se nunca mais cai em uma esparrela dessas. Mas vamos
deixar isso pra lá, me diga, como é que o compadre saiu dessa
enrascada, hein?
- Mas aí é que tá compadre, quem disse que eu saí?
Quanto mais eu tentava sair, mais eu me enrolava, num sabe.
- Ôchi! Por que, me diga, vamos...
- Sabe, compadre, na hora eu num entendi muito bem,
mas compadre, quando seu Zé soube que eu tinha emprestado o
dinheiro pro Ciço do peixe, o homem virou o cão chupando
manga, num sabe. E me deu 24 horas pra eu quitar a minha
dívida, porque senão... Virche! Que meu São Leopoldo da perna
torta me ajude, que chega até a me da arrepio só de pensar no
que pode me acontecer, não é mesmo, compadre? E ainda ficou
se gabando de ser um sujeito compreensivo, bondoso, e não um
cabra intransigente como se fala dele por aí.
- Eita peste, que primeiro pra mim esse santo é novo, de
onde o compadre desenterrou esse, e olha que eu conheço santo
pra mais de ano.
- Agora veja só se isso é hora pra brincadeira besta,
compadre. Então o compadre acha, que no aperreio da molesta
Calabouço contos e outros
52
que eu tava, eu ia ter tempo pra escolher quem era o santo que
ia me ajudar, era?
- Que isso, compadre, eu num tenho nada contra o seu
santo não, só acho que com tanto santo conhecido, e o
compadre, vai buscar um que a gente nem sabe de onde é, e se
pelo menos existe, não é mesmo?
- Tudo bem, se trocar de santo vai deixar o compadre
mais tranquilo... Mas pensando bem, se fosse Nossa Senhora,
talvez a coisa ficasse mais fácil, porque afinal de contas,
problema que ela num resolver, pode esquecer ajuda divina.
Porque num tem mais santo que dê jeito, não é mesmo,
compadre? Mas vamos esquecer os santos e vamos pra coisa
prática, não é mesmo?
- Ôchi! Pode parar, que pelo tom da conversa tô vendo
que já me meteram nesse rolo.
- Ôchi! E o compadre agora deu pra adivinhar, foi?
- Eita, por acaso é preciso adivinhar, é, pelo que eu vi do
desenrolar da conversa, já tô vendo que me meteram nesse rolo
até o pescoço, não é mesmo?
- Pois é compadre, num tendo mais a quem recorrer, só
me sobrou o compadre pra me socorrer.
- Ôchi! Mas compadre, ultimamente eu ando numa
dureza de dá dó, esse ano a colheita foi pouca, a seca acabou
com os pastos, e os meus cabritos, nem valem a pena vender.
Porque os bichinhos estão magros que dá pena, tão no couro e
no osso, compadre.
- Mas ôchi! Que isso, compadre, eu não quero dinheiro
não. Ora, se num tem nem pra pagar o seu Zé, como é que eu
vou querer mais dinheiro emprestado? Ôchi, tá doido, homem.
- Eita peste, que agora quem num entendeu nada, fui eu,
num sabe, se não é dinheiro que o compadre quer, é o quê,
então, me diga.
- Ora essa, compadre, o sinhô ta cansado de saber que por
aqui nessas redondezas o compadre é a única pessoa que o seu
Zé corta saco respeita, não é mesmo. Ai eu pensei se o
compadre num podia me ajudar pelo menos a ganhar mais uns
dias pra eu pagar essa divida, não é mesmo. Porque, senão, a
desgraça tá feita. O desgraçado vai tirar meu couro, e o
Antonio de Araujo Silva
53
compadre sabe muito bem que se eu num honrar o meu
compromisso, eu tô é lascado nas mãos do Zé... Prá num dizer
outra coisa que é coisa feia, não é mesmo.
- Arre, que o compadre Manoel, agora me apertou, sem
me abraçar, num sabe.
- Ôchi! Que conversa mais besta é essa compadre, veja só
se eu sou lá cabra de sair por aí abraçando macho, eu hein! Tá
me estranhando, compadre?
- Eita que também num se pode nem fazer uma
brincadeirinha. Não é que o compadre tinha razão quando falou
que estava azedo. Ôchi, o abraçar, foi só jeito de falar.
- Vôte! Pois pode parar com esse seu jeito de falar pro
meu lado, que eu já tenho é problema demais pra resolver, não
estou certo?
- Eita! Num se aperreie não, homem de Deus, que eu vou
dar um jeito nisso. Pode pegar seu rumo, que assim que eu
deixar esses badulaques na roça com os trabalhadores, de lá
mesmo eu vou falar com seu Zé. Se preocupe não, que num vai
ser ainda dessa vez que o compadre vai perder as ferramentas aí
não.
- Virgem Maria, mãe de Deus! O compadre nem me fala
numa desgraceira dessas, mas eu sabia que o compadre num ia
me faltar numa hora dessas, não é.
- Olha aqui, compadre, num vai cantando vitória antes do
tempo, não, porque eu num sei como vai tá o humor do homem
por lá não, acho melhor o compadre ir pra casa esfriar a cabeça.
E à noitinha eu apareço por lá com o resultado, tá bom,
compadre Manoel?
- Que isso, só do compadre ir lá falar com o homem, já tô
até mais aliviado, mas pode deixar que eu vou voltar já pra casa,
e cuidar das minhas coisas. Até mais ver, compadre Chico.
- Inté, compadre.
Depois de passar na roça, o seu Chico foi direto pra casa
do seu Zé, que não ficava muito distante da sua propriedade. Já
na entrada da propriedade do seu Zé, fica a sua casa, por sinal
uma casa grande, toda avarandada, com um terreiro enorme. Do
lado da casa de morada, ficava a sua bodega, onde ele
Calabouço contos e outros
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costumava passar a maior parte do seu tempo, à disposição dos
que dele precisavam, geralmente pra arrumar dinheiro a juro.
Já no terreiro, como é de costume, seu Chico se
anunciou:
- Ô de casa.
E lá de dentro ecoou como resposta aquela voz seca e
carrancuda do seu Zé.
- Ô de dentro, quem chama?
- Sou eu, seu Zé.
- Eu quem?
- Eita hominho difícil da molesta, sou eu, Chico de dona
Laurinha. Preciso ter um dedo de prosa com sinhô, seu Zé.
Bem, sempre que a coisa era séria, ele se apresentava
como Chico de dona Laurinha, que era a senhora sua mãe,
mulher respeitada por todo mundo naquela região.
- Minha Virgem Maria, que vai chover canivete por aqui
hoje, porque pra esse homem estar a essa hora por essas bandas,
deve ter acontecido uma desgraça muito grande. Mas me diga,
meu bom homem, quem morreu dessa vez?
- Ainda não morreu não. Mas é justamente por isso que
eu tô aqui, pra evitar o pior, num sabe.
- Eita peste, que nem eu mesmo sabia desse meu dom da
medicina, não é mesmo. Mas deixa pra lá, e me diga, seu Chico,
em que posso ajudar o sinhô? Mas primeiro me desculpe pela
indelicadeza da minha parte, se chegue, tome assento, acha que
podemos conversar aqui mesmo? Pelo menos o ar aqui é mais
fresco... Não que eu tenha algum gosto pela frescura, claro, mas
também quanto à frescura, cada um com as suas, não é mesmo.
- Bem, frescuras à parte, o sinhô seu Zé sabe que eu não
sou homem de rodeios. Por isso vou direto ao assunto, que me
trouxe aqui, num sabe.
- Ôchi! Então desembucha, homem, que já tá me dando
agonia de tanta curiosidade.
- Num se avexe não, que já tá é saindo. Bem, seu Zé, é
que o compadre Manoel me procurou todo aperreado, pois num
sabe mais o que fazer pra cumprir com o prazo que o sinhô deu
pra ele acertar a divida que ele tem com o sinhô, não é mesmo.
Antonio de Araujo Silva
55
- Mas eu num tô dizendo?. Vê se isso é qualidade de
homem, pois o desgraçado fez besteira e depois foi correr pra
debaixo da saia do compadre.
Desculpe-me pela saia, mas é só modo de dizer, num
sabe. Óh! Agora pense numa qualidade de homem sem futuro,
pense. Porque, seu Chico, vê se tem cabimento uma coisa
dessas. O cabra vem na minha casa pra falar que num pode me
pagar, afinal eu não lhe autorizei emprestar o dinheiro que tinha
pra me pagar, justamente pro caloteiro filho de uma égua. Que
sumiu no mundo sem me pagar o que me devia. Vê se pode uma
coisa dessas, ou seja, fui enganado duas vezes.
Então o sinhô acha que tinha outra coisa a fazer? Ele que
se dê por satisfeito porque a coisa poderia ter sido bem pior,
num sabe. E olha que eu não engrossei com ele foi justamente
por ter muita consideração ao sinhô que é um homem de bons
princípios e num tem culpa das trapalhadas do seu compadre,
num é mesmo seu Chico?
- Bem, seu Zé, até fico agradecido pela consideração, mas
num vamos deixar uma coisa besta dessas chegar numa
desgraça. Afinal, o que aconteceu é que o compadre Manoel,
com medo das consequências de num ter o dinheiro pra lhe
pagar, acabou se enrolando todo.
- Mas como assim? Foi ele mesmo que me contou essa
história, com todas as letras, e eu ouvi muito bem, com esses
dois ouvidos que a terra há de comer.
- Mas também, cá entre nós, seu Zé, não querendo
desvirtuar a história... com a fama que o sinhô tem nessas
bandas, o coitado do compadre Manoel só pensou em ganhar
tempo. Pois corria o risco de perder o único bem precioso dele,
não é mesmo?
- Agora pense em um cabra frouxo da molesta, pois se ele
tentou ganhar tempo, ele fez foi se lascar todo, porque o único
tempo que ele vai ter é de arrumar alguém pra fazer os curativos
nos bago. Porque eu duvido que aquele frouxo arrume trinta
contos de réis em 24 horas, num é mesmo? Afinal, eu fiz
negócio foi com homem, e palavra de homem num se volta
atrás...
Calabouço contos e outros
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Antonio de Araujo Silva
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Diferenças
Pelo menos ao longo de quatro décadas imprimido uma
busca incessante para tentar resgatar um exemplar desta espécie
tão cultuada que chamamos de racional e inteligente. Se não,
uma das mais importantes criações da natureza, a raça humana.
Que seja isento de racismo ou preconceito. Mas,
infelizmente, quanto mais o tempo passa é raro a possibilidade
de você correr o risco de se deparar com um exemplar desta
espécie, que há muito vem neste processo de extinção. Estamos
vivendo um momento único na história da humanidade, pois
estamos presenciando um fato extremamente delicado, vivemos
um ostracismo político, religioso e social, em que cada tribo se
fecha em sua própria linha de pensamento filosófico, formando
assim uma espécie, no mínimo, curiosa:
Onde o político não faz política, o religioso não prega a religião
e, sim, a religiosidade de comprometimento, e a sociedade não
consegue aceitar as diferenças. Contudo, todos parecem unidos
em um só ideal: o consumo em massa.
Com todos correndo atrás do ouro dos tolos, sem medir
consequências, se entregam a modelos sociais pré-fabricados e
inviáveis, mas muito graciosos para o exercício pleno do
consumo.
E com o nosso otimismo quase que idiota, prossigamos nesta
caminhada em busca deste raro ser, pois graças ao criador
existem fortes indícios de que, em um tempo não muito
distante, viverão vários exemplares desta espécie que se
enquadram neste precioso perfil. E como está longe a
possibilidade do nosso desistir, sempre haverá uma boa alma
para acalentar nossas dores e desencantos. E para regrar o nosso
doce ego.
Vou terminar este texto, sendo o menos injusto
possível, citando alguns exemplares que, ao logo da existência
humana, trilharam o caminho da justiça e o respeito para com o
próximo:
Jesus de Nazaré, Buda, São Francisco de Assis, Mahatma
Ghandi, Madre Tereza de Calcutá, Irmã. Dulce, Mãe
Menininha, Chico Xavier...
Calabouço contos e outros
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Poderíamos preencher centenas de páginas com nomes
que honraram a criação, pois é isto que nos conforta diante uma
realidade tão desumana.
Sempre teimo em usar a palavra indícios, por falar
sobre nobres almas que não conheci, mas que tenho forte apreço
por elas, apesar de só me utilizar das informações de terceiros
dos seus nobres feitos.
E fecham-se as cortinas de um velho tempo findo.
Para o recomeço em algum lugar deste extenso Universo,
Quem sabe...
Fim
Obs. Os intervalos de páginas, conforme indica o sumário,
referente ao primeiro e segundo capítulo, que se encontra oculta, é
por se tratar de uma obra protegida por direito autoral.
Para adquirir a obra completa nos formatos digital ou impresso:
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Antonio de Araujo Silva
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Login de Acesso Pessoal e Intransferível
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