não há como escapar e outros contos maravilhosos

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Não há como escapar e outros contos maravilhosos TIM BOWLEY ÓSCAR VILLÁN

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Colección 7 Leguas

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Não há como escapare outros contos maravilhosos

TIM BOWLEY ÓSCAR VILLÁN

Não há como escapare outros contos maravilhosos

TIM BOWLEY ÓSCAR VILLÁN

Não há como escapare outros contos maravilhosos

A mulher-espírito ..............................7

A herança .........................................15

O papagaio hiraman ........................19

Não há como escapar .......................27

Pele de foca ......................................29

A morte do corcunda .......................35

A czarina ..........................................45

Conn-Eda .........................................53

O lindworm .......................................63

O rei pastor ......................................73

Índice

7

Era uma vez um jovem que, quando morreu a sua bela espo-

sa, se sentou a chorar junto à sua sepultura. Ele achava que

não podia viver sem ela e decidiu segui-la até ao reino dos

espíritos, a Terra dos Mortos. Fez muitos amuletos e polvi-

lhou a terra com pólen de milho sagrado. Pegou numa avelu-

dada pluma de águia, coloriu-a com terra vermelha, e depois

sentou-se à espera, ao lado da sepultura. Quando a noite caiu,

o espírito da esposa morta saiu da sepultura e foi sentar-se a

seu lado. Ela não parecia nada triste e disse-lhe que não cho-

rasse, pois ela estava apenas a deixar uma vida para partir

para outra.

– Não posso deixar-te ir – disse o jovem. – Gosto tanto de

ti que resolvi seguir-te até à Terra dos Mortos.

A sua mulher-espírito ficou aterrorizada e tentou demovê-

-lo mas, quando viu que ele estava decidido, acabou por con-

cordar.

A mulher-espírito

8

– Se queres mesmo seguir-me, ficas a saber que serei invisí-

vel aos teus olhos enquanto o sol brilhar, por isso ata esta

pluma vermelha de águia aos meus cabelos e depois poderás

seguir a pena quando não conseguires ver-me.

Ele atou a pluma aos cabelos dela e partiram em viagem.

Com efeito, quando a luz do dia despontou no céu, a mulher

começou a desvanecer-se e o único rasto dela era a pluma ver-

melha que flutuava no ar à sua frente, dirigindo-se sempre

para oeste. Quanto mais ela avançava, mais dificuldade ele

sentia em acompanhá-la, pois enquanto ela parecia flutuar

serenamente, sem esforço, através dos territórios mais inós-

pitos, ele extenuava-se no seu encalço. Em breve ficou exaus-

to e gritou:

– Espera, querida esposa! Já não consigo acompanhar-te.

Deixa-me descansar um pouco.

A pluma vermelha parou e esperou por ele mas, assim que

ele a alcançou, ela começou de novo a flutuar e, exausto ou

não, ele teve que a seguir. A viagem prosseguiu durante mui-

tos dias. O jovem seguia a pluma durante o dia e descansava

durante a noite. Por vezes, a sua mulher-espírito aparecia-lhe

para o animar, outras vezes ele sentia a sua presença de forma

indefinível. A cada dia que passava o caminho tornava-se

mais duro. Os dias de viagem tornavam-se mais longos e as

noites de repouso mais curtas, e o jovem estava cada vez mais

cansado.

9

Um dia o caminho conduziu-os a um abismo que parecia não

ter fundo. A pluma da mulher-espírito passou flutuando sobre

o vazio e desapareceu do outro lado, deixando o jovem aban-

donado à beira do precipício. Desesperado, ele começou a des-

cer pela parede vertical de rocha, esperando chegar ao fundo

para depois escalar o outro lado. Não tardou a ficar imobiliza-

do, e agarrando-se com as unhas a uma pequena saliência,

sentiu-se incapaz de subir ou descer. Já estava disposto a dar

o mergulho para a morte quando, de repente, apareceu um

esquilo:

– Homem imprudente! – guinchou ele. – Tu nunca conse-

guirás atravessar o abismo sozinho. Espera um pouco, vou

ajudar-te.

O esquilo tirou da bochecha uma semente, humedeceu-a

com saliva e colocou-a numa fissura da rocha. Depois o

esquilo começou a cantar quando, de repente, uma planta

começou a nascer da semente e um ramo forte cresceu até ao

outro lado do abismo. O jovem trepou para cima do ramo e

atravessou o fosso sem fundo.

Quando chegou ao outro lado, encontrou a pluma à sua

espera, a flutuar para cima e para baixo. Porém, assim que a

alcançou, ela afastou-se a uma velocidade tão vertiginosa

que ele pensou que os pulmões lhe rebentavam ao tentar

acompanhá-la. Por fim, chegaram à margem de um lago, a

pluma saltou para a água e desapareceu. Então ele percebeu

10

que o reino dos espíritos ficava no fundo do lago, mas como

poderia ele segui-la? Ficou na margem à espera, dia após dia,

mas a sua esposa não aparecia até que, desesperado,

começou a chorar.

Então ouviu uma voz que dizia suavemente “uh, uh, uh” e

sentiu um suave bater de asas nas suas costas. Ergueu os

olhos e viu um mocho enorme pairando sobre ele.

– Jovem, porque choras? – perguntou o mocho.

– Porque a minha amada esposa está no fundo do lago, na

Terra dos Mortos, e eu não posso segui-la até lá – respondeu

ele.

– Ah, pobre rapaz – disse o mocho –, já sei. Vem a minha

casa, na montanha, e lá te direi o que fazer. Se seguires o meu

conselho, tudo correrá bem e encontrarás a tua amada.

O mocho conduziu-o até uma caverna na montanha. Nessa

caverna estavam muitos mochos-homens e mochos-mulheres

que o cumprimentaram calorosamente e o convidaram a

comer e a descansar. O velho mocho que o levara até ali des-

piu a sua roupagem de mocho e revelou que era um espírito

humano. Tirou um embrulho da parede e disse:

– Vou dar-te isto, mas primeiro tenho que dizer-te o que

deves e não deves fazer.

O rapaz estendeu ansiosamente as mãos para o embrulho,

mas o mocho-espírito afastou-o rapidamente e disse:

11

– Homem imprudente, jovem impetuoso! Se não consegues

aprender a esperar, então nem este medicamento te poderá

servir.

– Desculpe – disse ele –, prometo ser paciente.

– Muito bem – disse o mocho-espírito –, então ouve aten-

tamente. Este é o medicamento do sono. Quando o tomares,

cairás num sono profundo e, quando acordares, estarás nou-

tro lugar. Caminha em direção à Estrela da Manhã e segue

esse caminho até encontrares três formigueiros. Encontrarás

a tua esposa-espírito ao lado do do meio. Quando o sol nas-

cer ela acordará e sorrirá para ti. Depois irá levantar-se, já

não um espírito mas sim de carne e osso, e poderão viver

felizes juntos. Mas lembra-te que tens que ser paciente. Não

podes abraçá-la nem tocar-lhe seja de que forma for antes de

chegarem à tua aldeia natal pois, se o fizeres, perdê-la-ás

para sempre.

Após pronunciar estas palavras, o mocho-espírito soprou

um pouco do medicamento para a cara do jovem e este ador-

meceu imediatamente. Então todos os mochos-espírito vesti-

ram as suas roupagens de mocho, pegaram no jovem e

voaram com ele até ao lugar onde começava o caminho que

conduzia ao formigueiro do meio, deitando-o debaixo de

uma árvore. Depois voaram até ao lago e, com a ajuda do

medicamento do sono do velho mocho-homem e dos amule-

tos, nadaram até ao fundo e entraram na Terra dos Mortos.

12

Chegados lá, puseram os guardas desse mundo misterioso a

dormir, com o pó do sono, e colocaram reverentemente os

amuletos no altar do Submundo. Depressa encontraram a

esposa do jovem e trouxeram-na até à superfície do lago.

Uma vez no mundo exterior, colocaram-na sobre as suas asas

e levaram-na até ao lugar onde o marido dormia.

O primeiro a acordar foi o marido. Quando abriu os olhos, a

primeira coisa que viu foi a estrela da manhã, depois viu o

formigueiro, e depois a sua bela mulher deitada ao seu lado.

Quando ela acordou, sorriu-lhe e disse:

– O teu amor por mim é grande, maior do que o amor

jamais foi, ou não estaríamos aqui.

Puseram-se imediatamente a caminho de casa e o jovem não

se esqueceu do aviso do mocho-homem, de que teria que

conter qualquer desejo até que estivessem a salvo, na aldeia.

Viajaram durante quatro dias, cada vez mais próximos do seu

mundo, cada vez mais próximos da segurança.

Quando a aldeia estava quase ao alcance da vista, a mulher

parou e disse:

– Meu marido, estou tão cansada que não consigo caminhar

mais. Vamo-nos deitar e descansar um pouco, e chegaremos

à aldeia revigorados.

O marido concordou e então ela deitou-se e adormeceu.

Estava tão bonita ali deitada que ele deixou-se vencer pelo

desejo e, sem pensar, estendeu a mão para a acariciar.

13

No momento em que a mão lhe tocou ela acordou sobressal-

tada e gritou:

– O que foste tu fazer? Tu amavas-me muito, mas não o

suficiente pois, caso contrário, terias esperado. Agora vou ter

que morrer de novo.

Ela desapareceu diante dos seus olhos e ele atirou-se para o

chão, desesperado, enquanto o mocho piava:

– Que pena! Que pena! Que pena!

Desde esse dia o jovem vagueou pela terra como um fantas-

ma, de olhos fixos, pensamentos errantes, inconsolável.

Se ao menos ele tivesse conseguido controlar o seu desejo

um pouco mais, se não lhe tivesse tocado, se tivesse tido

paciência apenas algumas horas mais, então a morte teria

sido vencida, não apenas para a sua esposa mas para toda a

humanidade, e não haveria o luto pelo falecimento dos entes

queridos.

Mas, por outro lado, se não houvesse morte, o mundo fica-

ria tão cheio de pessoas que não haveria espaço para nos

mexermos, e havia discussões por cada centímetro de espaço,

por cada migalha de comida.

Por isso, talvez tenha sido melhor assim.

15

Era uma vez um lavrador que, em jovem, fizera uma viagem

ninguém sabia aonde. Quando regressou havia qualquer

coisa nele que levou toda a gente a pensar que, embora levas-

se uma vida simples, tinha trazido com ele um grande tesou-

ro. O lavrador teve um filho que não mostrava nenhum inte-

resse pela quinta nem por nenhum outro tipo de trabalho.

Acreditava nos rumores sobre o ouro enterrado e tinha a cer-

teza de que o seu avarento pai havia de lhe dizer onde é que

ele estava antes de morrer, por isso vivia numa cidade vizi-

nha à espera do dia em que receberia a sua herança.

Por fim chegou-lhe a notícia de que o velho estava no seu

leito de morte e pedia para o ver. Cheio de esperança, o jovem

correu à quinta em ruínas, subiu de um pulo as escadas que

levavam ao quarto do pai e pegou-lhe na mão com a melhor

expressão de afeto de que foi capaz. O velho abriu os olhos

com dificuldade e conseguiu apertar debilmente a mão do

filho. Com um último e tremendo esforço, disse-lhe:

A herança

16

– Filho, o ouro está enterrado… – e morreu assim, sem

dizer mais uma palavra.

Assim que o funeral terminou, o jovem começou a procurar

o ouro. O mais provável era que estivesse dentro de casa, por

isso foi por aí que começou. Arrancou as tábuas do soalho, o

gesso das paredes, procurou no sótão e na cave, mas não

encontrou nada. Quando acabou, a casa estava reduzida a

escombros e os vizinhos, curiosos, falavam nas suas costas

ou perguntavam-lhe de caras o que andava a fazer. Ele recea-

va que, se lhes dissesse que andava à procura do ouro, eles

tentassem roubá-lo, por isso, disse-lhes que estava a arranjar

a casa, que queria um sítio decente para viver e que, por esse

motivo, se via obrigado a gastar o pouco dinheiro que tinha

nas obras. Curiosamente, descobriu que gostava bastante

daquele trabalho e que tinha um talento escondido, de tal

forma que em breve estava a viver numa casa que, não sendo

propriamente luxuosa, estava muito melhorada e confortável.

Agora que tinha a certeza que o ouro não estava na casa,

começou pelo jardim. Cavou dia após dia, sempre à espera de

ouvir um «plim» quando a pá batesse no cofre que, de certe-

za, estava ali enterrado. Cavou cada centímetro de terra à

volta da casa, mas não encontrou nada.

– Preciso de plantar uns legumes – disse aos vizinhos. – Não

sei como o velho deixou chegar a quinta a este ponto.

Depois de ter plantado uma horta, foi buscar o arado ao

celeiro e atrelou-o ao velho cavalo.

17

– Está na hora de semear o trigo – disse aos vizinhos, que

assentiram sabiamente e continuaram a lavrar os seus campos.

No primeiro campo não encontrou nada. No segundo campo,

nada, e nem no terceiro, nem no quarto campo que lavrou,

cavou e semeou, encontrou aquilo que procurava. Chegou o

dia em que tinha lavrado o último canto da última terra e não

restava nenhum sítio mais onde procurar. Arrastou-se penosa-

mente até casa, interrogando-se vezes sem conta sobre em que

outro lugar o pai poderia ter enterrado o tesouro. Chegado a

casa, lavou-se do suor do dia e vestiu roupa lavada, serviu-se de

uma bebida fresca feita com umas bagas que tinha colhido

nesse mesmo dia e foi para o terraço que construíra quando

tinha andado a arranjar a casa e o jardim. Dava para o oeste e

era um sítio excelente para se estar sentado ao final do dia.

Deixou-se cair no banco com um suspiro de satisfação. Era

estranho mas, agora que já tinha procurado em todo o lado,

não sentia desespero, mas sim uma sensação de bem-estar por

todo o trabalho realizado. Viu na horta todos os frutos e legu-

mes prontos a colher. Olhou mais ao longe e viu os seus cam-

pos bem tratados estendendo-se em seu redor. Quando o sol

começou a desaparecer no horizonte, os seus raios desceram

sobre o trigo maduro que ele plantara e, de repente, todo o

campo brilhou com o esplendor do ouro. Então ele compreen-

deu. Sorriu com ironia, riu-se entre dentes e ergueu o copo à

saúde do seu falecido pai que o enganara e que, ao mesmo

tempo, o salvara.

Título original: The Master, the Servant and the Death and other tales

Coleção SETELÉGUAS

© do texto: Tim Bowley, 2009

© das ilustrações: Óscar Villán, 2012

© da tradução: Gabriela Rocha Alves, 2012

© desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2012

Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Salas 34 e 564450-023 Matosinhos. PortugalTelefone: (00351) 22 [email protected]

Desenho dos logotipos da coleção: Óscar Villán

Impresso em Gráficas AnduriñaPrimeira edição: junho, 2012ISBN: 978-989-8205-80-3DL: 343185/12Reservados todos os direitos(Esta tradução foi feita ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.)

Tim Bowley é um dos grandes contadores de histórias

que há anos percorre as cidades e as aldeias de Espanha e Portugal,

tendo criado um repertório que ficou gravado na memória

de muita gente, miúda e graúda.

Neste livro apresenta-nos uma seleção dos seus melhores contos,

que não nos deixarão indiferentes.

O humor, a ternura, o medo e o terror, mas também a alegria,

estão presentes em cada uma destas histórias que nos permitem viajar

por todo o mundo: bosques emaranhados, vales profundos,

montanhas altíssimas, aventuras trepidantes, personagens inauditas…

Contos maravilhosos, contos do mundo que nos oferecem sabedoria.