não há como escapar e outros contos maravilhosos
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Colección 7 LeguasTRANSCRIPT
A mulher-espírito ..............................7
A herança .........................................15
O papagaio hiraman ........................19
Não há como escapar .......................27
Pele de foca ......................................29
A morte do corcunda .......................35
A czarina ..........................................45
Conn-Eda .........................................53
O lindworm .......................................63
O rei pastor ......................................73
Índice
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Era uma vez um jovem que, quando morreu a sua bela espo-
sa, se sentou a chorar junto à sua sepultura. Ele achava que
não podia viver sem ela e decidiu segui-la até ao reino dos
espíritos, a Terra dos Mortos. Fez muitos amuletos e polvi-
lhou a terra com pólen de milho sagrado. Pegou numa avelu-
dada pluma de águia, coloriu-a com terra vermelha, e depois
sentou-se à espera, ao lado da sepultura. Quando a noite caiu,
o espírito da esposa morta saiu da sepultura e foi sentar-se a
seu lado. Ela não parecia nada triste e disse-lhe que não cho-
rasse, pois ela estava apenas a deixar uma vida para partir
para outra.
– Não posso deixar-te ir – disse o jovem. – Gosto tanto de
ti que resolvi seguir-te até à Terra dos Mortos.
A sua mulher-espírito ficou aterrorizada e tentou demovê-
-lo mas, quando viu que ele estava decidido, acabou por con-
cordar.
A mulher-espírito
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– Se queres mesmo seguir-me, ficas a saber que serei invisí-
vel aos teus olhos enquanto o sol brilhar, por isso ata esta
pluma vermelha de águia aos meus cabelos e depois poderás
seguir a pena quando não conseguires ver-me.
Ele atou a pluma aos cabelos dela e partiram em viagem.
Com efeito, quando a luz do dia despontou no céu, a mulher
começou a desvanecer-se e o único rasto dela era a pluma ver-
melha que flutuava no ar à sua frente, dirigindo-se sempre
para oeste. Quanto mais ela avançava, mais dificuldade ele
sentia em acompanhá-la, pois enquanto ela parecia flutuar
serenamente, sem esforço, através dos territórios mais inós-
pitos, ele extenuava-se no seu encalço. Em breve ficou exaus-
to e gritou:
– Espera, querida esposa! Já não consigo acompanhar-te.
Deixa-me descansar um pouco.
A pluma vermelha parou e esperou por ele mas, assim que
ele a alcançou, ela começou de novo a flutuar e, exausto ou
não, ele teve que a seguir. A viagem prosseguiu durante mui-
tos dias. O jovem seguia a pluma durante o dia e descansava
durante a noite. Por vezes, a sua mulher-espírito aparecia-lhe
para o animar, outras vezes ele sentia a sua presença de forma
indefinível. A cada dia que passava o caminho tornava-se
mais duro. Os dias de viagem tornavam-se mais longos e as
noites de repouso mais curtas, e o jovem estava cada vez mais
cansado.
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Um dia o caminho conduziu-os a um abismo que parecia não
ter fundo. A pluma da mulher-espírito passou flutuando sobre
o vazio e desapareceu do outro lado, deixando o jovem aban-
donado à beira do precipício. Desesperado, ele começou a des-
cer pela parede vertical de rocha, esperando chegar ao fundo
para depois escalar o outro lado. Não tardou a ficar imobiliza-
do, e agarrando-se com as unhas a uma pequena saliência,
sentiu-se incapaz de subir ou descer. Já estava disposto a dar
o mergulho para a morte quando, de repente, apareceu um
esquilo:
– Homem imprudente! – guinchou ele. – Tu nunca conse-
guirás atravessar o abismo sozinho. Espera um pouco, vou
ajudar-te.
O esquilo tirou da bochecha uma semente, humedeceu-a
com saliva e colocou-a numa fissura da rocha. Depois o
esquilo começou a cantar quando, de repente, uma planta
começou a nascer da semente e um ramo forte cresceu até ao
outro lado do abismo. O jovem trepou para cima do ramo e
atravessou o fosso sem fundo.
Quando chegou ao outro lado, encontrou a pluma à sua
espera, a flutuar para cima e para baixo. Porém, assim que a
alcançou, ela afastou-se a uma velocidade tão vertiginosa
que ele pensou que os pulmões lhe rebentavam ao tentar
acompanhá-la. Por fim, chegaram à margem de um lago, a
pluma saltou para a água e desapareceu. Então ele percebeu
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que o reino dos espíritos ficava no fundo do lago, mas como
poderia ele segui-la? Ficou na margem à espera, dia após dia,
mas a sua esposa não aparecia até que, desesperado,
começou a chorar.
Então ouviu uma voz que dizia suavemente “uh, uh, uh” e
sentiu um suave bater de asas nas suas costas. Ergueu os
olhos e viu um mocho enorme pairando sobre ele.
– Jovem, porque choras? – perguntou o mocho.
– Porque a minha amada esposa está no fundo do lago, na
Terra dos Mortos, e eu não posso segui-la até lá – respondeu
ele.
– Ah, pobre rapaz – disse o mocho –, já sei. Vem a minha
casa, na montanha, e lá te direi o que fazer. Se seguires o meu
conselho, tudo correrá bem e encontrarás a tua amada.
O mocho conduziu-o até uma caverna na montanha. Nessa
caverna estavam muitos mochos-homens e mochos-mulheres
que o cumprimentaram calorosamente e o convidaram a
comer e a descansar. O velho mocho que o levara até ali des-
piu a sua roupagem de mocho e revelou que era um espírito
humano. Tirou um embrulho da parede e disse:
– Vou dar-te isto, mas primeiro tenho que dizer-te o que
deves e não deves fazer.
O rapaz estendeu ansiosamente as mãos para o embrulho,
mas o mocho-espírito afastou-o rapidamente e disse:
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– Homem imprudente, jovem impetuoso! Se não consegues
aprender a esperar, então nem este medicamento te poderá
servir.
– Desculpe – disse ele –, prometo ser paciente.
– Muito bem – disse o mocho-espírito –, então ouve aten-
tamente. Este é o medicamento do sono. Quando o tomares,
cairás num sono profundo e, quando acordares, estarás nou-
tro lugar. Caminha em direção à Estrela da Manhã e segue
esse caminho até encontrares três formigueiros. Encontrarás
a tua esposa-espírito ao lado do do meio. Quando o sol nas-
cer ela acordará e sorrirá para ti. Depois irá levantar-se, já
não um espírito mas sim de carne e osso, e poderão viver
felizes juntos. Mas lembra-te que tens que ser paciente. Não
podes abraçá-la nem tocar-lhe seja de que forma for antes de
chegarem à tua aldeia natal pois, se o fizeres, perdê-la-ás
para sempre.
Após pronunciar estas palavras, o mocho-espírito soprou
um pouco do medicamento para a cara do jovem e este ador-
meceu imediatamente. Então todos os mochos-espírito vesti-
ram as suas roupagens de mocho, pegaram no jovem e
voaram com ele até ao lugar onde começava o caminho que
conduzia ao formigueiro do meio, deitando-o debaixo de
uma árvore. Depois voaram até ao lago e, com a ajuda do
medicamento do sono do velho mocho-homem e dos amule-
tos, nadaram até ao fundo e entraram na Terra dos Mortos.
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Chegados lá, puseram os guardas desse mundo misterioso a
dormir, com o pó do sono, e colocaram reverentemente os
amuletos no altar do Submundo. Depressa encontraram a
esposa do jovem e trouxeram-na até à superfície do lago.
Uma vez no mundo exterior, colocaram-na sobre as suas asas
e levaram-na até ao lugar onde o marido dormia.
O primeiro a acordar foi o marido. Quando abriu os olhos, a
primeira coisa que viu foi a estrela da manhã, depois viu o
formigueiro, e depois a sua bela mulher deitada ao seu lado.
Quando ela acordou, sorriu-lhe e disse:
– O teu amor por mim é grande, maior do que o amor
jamais foi, ou não estaríamos aqui.
Puseram-se imediatamente a caminho de casa e o jovem não
se esqueceu do aviso do mocho-homem, de que teria que
conter qualquer desejo até que estivessem a salvo, na aldeia.
Viajaram durante quatro dias, cada vez mais próximos do seu
mundo, cada vez mais próximos da segurança.
Quando a aldeia estava quase ao alcance da vista, a mulher
parou e disse:
– Meu marido, estou tão cansada que não consigo caminhar
mais. Vamo-nos deitar e descansar um pouco, e chegaremos
à aldeia revigorados.
O marido concordou e então ela deitou-se e adormeceu.
Estava tão bonita ali deitada que ele deixou-se vencer pelo
desejo e, sem pensar, estendeu a mão para a acariciar.
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No momento em que a mão lhe tocou ela acordou sobressal-
tada e gritou:
– O que foste tu fazer? Tu amavas-me muito, mas não o
suficiente pois, caso contrário, terias esperado. Agora vou ter
que morrer de novo.
Ela desapareceu diante dos seus olhos e ele atirou-se para o
chão, desesperado, enquanto o mocho piava:
– Que pena! Que pena! Que pena!
Desde esse dia o jovem vagueou pela terra como um fantas-
ma, de olhos fixos, pensamentos errantes, inconsolável.
Se ao menos ele tivesse conseguido controlar o seu desejo
um pouco mais, se não lhe tivesse tocado, se tivesse tido
paciência apenas algumas horas mais, então a morte teria
sido vencida, não apenas para a sua esposa mas para toda a
humanidade, e não haveria o luto pelo falecimento dos entes
queridos.
Mas, por outro lado, se não houvesse morte, o mundo fica-
ria tão cheio de pessoas que não haveria espaço para nos
mexermos, e havia discussões por cada centímetro de espaço,
por cada migalha de comida.
Por isso, talvez tenha sido melhor assim.
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Era uma vez um lavrador que, em jovem, fizera uma viagem
ninguém sabia aonde. Quando regressou havia qualquer
coisa nele que levou toda a gente a pensar que, embora levas-
se uma vida simples, tinha trazido com ele um grande tesou-
ro. O lavrador teve um filho que não mostrava nenhum inte-
resse pela quinta nem por nenhum outro tipo de trabalho.
Acreditava nos rumores sobre o ouro enterrado e tinha a cer-
teza de que o seu avarento pai havia de lhe dizer onde é que
ele estava antes de morrer, por isso vivia numa cidade vizi-
nha à espera do dia em que receberia a sua herança.
Por fim chegou-lhe a notícia de que o velho estava no seu
leito de morte e pedia para o ver. Cheio de esperança, o jovem
correu à quinta em ruínas, subiu de um pulo as escadas que
levavam ao quarto do pai e pegou-lhe na mão com a melhor
expressão de afeto de que foi capaz. O velho abriu os olhos
com dificuldade e conseguiu apertar debilmente a mão do
filho. Com um último e tremendo esforço, disse-lhe:
A herança
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– Filho, o ouro está enterrado… – e morreu assim, sem
dizer mais uma palavra.
Assim que o funeral terminou, o jovem começou a procurar
o ouro. O mais provável era que estivesse dentro de casa, por
isso foi por aí que começou. Arrancou as tábuas do soalho, o
gesso das paredes, procurou no sótão e na cave, mas não
encontrou nada. Quando acabou, a casa estava reduzida a
escombros e os vizinhos, curiosos, falavam nas suas costas
ou perguntavam-lhe de caras o que andava a fazer. Ele recea-
va que, se lhes dissesse que andava à procura do ouro, eles
tentassem roubá-lo, por isso, disse-lhes que estava a arranjar
a casa, que queria um sítio decente para viver e que, por esse
motivo, se via obrigado a gastar o pouco dinheiro que tinha
nas obras. Curiosamente, descobriu que gostava bastante
daquele trabalho e que tinha um talento escondido, de tal
forma que em breve estava a viver numa casa que, não sendo
propriamente luxuosa, estava muito melhorada e confortável.
Agora que tinha a certeza que o ouro não estava na casa,
começou pelo jardim. Cavou dia após dia, sempre à espera de
ouvir um «plim» quando a pá batesse no cofre que, de certe-
za, estava ali enterrado. Cavou cada centímetro de terra à
volta da casa, mas não encontrou nada.
– Preciso de plantar uns legumes – disse aos vizinhos. – Não
sei como o velho deixou chegar a quinta a este ponto.
Depois de ter plantado uma horta, foi buscar o arado ao
celeiro e atrelou-o ao velho cavalo.
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– Está na hora de semear o trigo – disse aos vizinhos, que
assentiram sabiamente e continuaram a lavrar os seus campos.
No primeiro campo não encontrou nada. No segundo campo,
nada, e nem no terceiro, nem no quarto campo que lavrou,
cavou e semeou, encontrou aquilo que procurava. Chegou o
dia em que tinha lavrado o último canto da última terra e não
restava nenhum sítio mais onde procurar. Arrastou-se penosa-
mente até casa, interrogando-se vezes sem conta sobre em que
outro lugar o pai poderia ter enterrado o tesouro. Chegado a
casa, lavou-se do suor do dia e vestiu roupa lavada, serviu-se de
uma bebida fresca feita com umas bagas que tinha colhido
nesse mesmo dia e foi para o terraço que construíra quando
tinha andado a arranjar a casa e o jardim. Dava para o oeste e
era um sítio excelente para se estar sentado ao final do dia.
Deixou-se cair no banco com um suspiro de satisfação. Era
estranho mas, agora que já tinha procurado em todo o lado,
não sentia desespero, mas sim uma sensação de bem-estar por
todo o trabalho realizado. Viu na horta todos os frutos e legu-
mes prontos a colher. Olhou mais ao longe e viu os seus cam-
pos bem tratados estendendo-se em seu redor. Quando o sol
começou a desaparecer no horizonte, os seus raios desceram
sobre o trigo maduro que ele plantara e, de repente, todo o
campo brilhou com o esplendor do ouro. Então ele compreen-
deu. Sorriu com ironia, riu-se entre dentes e ergueu o copo à
saúde do seu falecido pai que o enganara e que, ao mesmo
tempo, o salvara.
Título original: The Master, the Servant and the Death and other tales
Coleção SETELÉGUAS
© do texto: Tim Bowley, 2009
© das ilustrações: Óscar Villán, 2012
© da tradução: Gabriela Rocha Alves, 2012
© desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2012
Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Salas 34 e 564450-023 Matosinhos. PortugalTelefone: (00351) 22 [email protected]
Desenho dos logotipos da coleção: Óscar Villán
Impresso em Gráficas AnduriñaPrimeira edição: junho, 2012ISBN: 978-989-8205-80-3DL: 343185/12Reservados todos os direitos(Esta tradução foi feita ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.)
Tim Bowley é um dos grandes contadores de histórias
que há anos percorre as cidades e as aldeias de Espanha e Portugal,
tendo criado um repertório que ficou gravado na memória
de muita gente, miúda e graúda.
Neste livro apresenta-nos uma seleção dos seus melhores contos,
que não nos deixarão indiferentes.
O humor, a ternura, o medo e o terror, mas também a alegria,
estão presentes em cada uma destas histórias que nos permitem viajar
por todo o mundo: bosques emaranhados, vales profundos,
montanhas altíssimas, aventuras trepidantes, personagens inauditas…
Contos maravilhosos, contos do mundo que nos oferecem sabedoria.