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Gustavo Dahl e O Bravo Guerreiro: Trajetórias e paralelos
Cayo Candido Rosa1*
Parte de uma pesquisa mais abrangente que busca estudar o discurso e a prática de
Gustavo Dahl nos anos 1960 e 1970, este trabalho propõe uma breve análise do filme “O Bravo
Guerreiro” (1968), cotejando-o com a trajetória profissional de seu diretor que transitou entre as
esferas da crítica, realização e gestão cinematográfica. Fazendo uso de fontes de época,
posteriores análises de conjuntura e apontando principalmente características correspondentes ao
contexto de produção da obra, o texto busca delinear paralelos entre a trajetória do protagonista
do filme e de seu realizador, contextualizando-os em seus devidos recortes narrativos e históricos.
Ambas figuras optam pela aliança com o poder então vigente a fim de implantar seus projetos e,
ainda que no filme a mensagem final seja pessimista, na vida real, Dahl embarca numa bem-
sucedida aliança com o Estado atuando como gestor da Embrafilme nos anos 1970.
Ao longo do texto apresentaremos uma análise do filme e um breve contexto dado
lançamento do filme com análise de fontes primárias como críticas de variados autores. A seguir
faremos um paralelo da narrativa da obra com a vida de Gustavo Dahl, traçaremos brevemente
alguns aspectos da biografia do diretor apontando para seu discurso durante o período recortado
assim como os rumos profissionais tomados por ele, apontando então para algumas hipóteses
sobre seu discurso e sua prática durante os anos 1960 e 1970.
Pensado em 1966 e produzido no ano de 1968 em apenas um mês, “O bravo guerreiro”
era um dos filmes cotados para levar o prêmio principal do IV Festival de Brasília de Cinema
Brasileiro em 1968. “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla) sairia como o grande
vencedor, entretanto, “O bravo...” levaria um prêmio especial do júri pela “pela contribuição à
evolução do moderno cinema brasileiro”. Se “O bandido...” viria a ser um marco do cinema
nacional longa e devida e longamente estudado e analisado, “O bravo...” não teria o mesmo
destino, tornando-se apenas mais um título, talvez um dos menos lembrados, no conjunto de
obras do Cinema Novo como “O desafio” (1965) de Paulo César Saraceni, “Terra em transe”
(1967) de Glauber Rocha, entre outras, diretamente relacionadas ao golpe de 1964 e à crise de
consciência do movimento cinematográfico. Fracasso de público e sucesso de crítica, “O
* Mestrando pelo Programa de História Social do Departamento de História da Universidade de São Paulo (DH-
USP) com pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
2 bravo...” pode não carregar a potência fílmica e alegórica de “Terra em transe” ou “O bandido...”,
porém através de diálogos bem trabalhados nas interpretação de Paulo Cesar Pereio, Mario Lago,
entre outros, e uma elogiada fotografia de Affonso Beato em preto e branco valorizando planos
fixos, canaliza o clima que acometeu aqueles que desejavam pensar o país em que viviam e,
subitamente, foram tomados por uma realidade adversa, além de apontar um destino pessimista
àqueles que decidissem ceder ao governo em nome de um “bem comum”.
A narrativa do filme gira em torno da figura do jovem deputado Miguel Horta que, logo
no início do filme, resolve deixar seu partido de origem, de caráter radical, para se unir ao partido
no poder e que, pela boca de seus membros, se autodenomina de centro. A mudança se dá com o
intuito de alterar as estruturas do poder por dentro e não à margem dele. Após diversos debates e
conchavos que se dão em saunas, no plenário ou em visitas a obras, Miguel se vê traído pelo
partido ao tentar aprovar um pacote de benefícios aos trabalhadores e busca apoio do outro
partido de esquerda, menos radical. Encontra-se, portanto, num beco sem saída e, aproveitando
último suspiro de radicalidade, o protagonista profere um longo discurso durante uma assembleia
de um sindicato chamando-os à greve geral. Ao final, a tela escurece logo após vermos um
Miguel abatido fitando o espelho de seu quarto com o cano de uma arma na boca.
Podemos dividir o filme de uma hora e vinte minutos em três curtos blocos narrativos
que indicam uma linha que sai da esquerda radical, passa pela centro-direita, flerta com a
esquerda moderada e retorna à radicalidade. Os blocos seriam a adesão ao partido no poder,
acompanhando as negociações travadas em diferentes ambientes, a ruptura com tal partido
demonstrada na busca por uma nova aliança com o partido de esquerda moderada e a tentativa de
retorno às origens, retratada em seu discurso final.
No primeiro bloco somos apresentados à uma frase de Nietzsche de “Assim Falou
Zaratustra” (Eu amo o que quer criar algo melhor que si mesmo e dessa arte sucumbe) e vemos
Miguel Horta, o jovem deputado, acompanhado do velho deputado Augusto (Mário Lago) indo à
casa do governador, membro do Partido Nacional para indicar sua vontade de se unir a eles. A
reunião se dá um uma sauna e após discussão com o próprio governador Miguel explicita que
ambos “trabalham pelo bem da causa pública”. A seguir somos apresentados ao cotidiano do
protagonista, pai e marido ausente, sempre ocupado com reuniões. Dentre elas aquela quando
anuncia a seus colegas que está deixando o Partido Radical. Miguel quer implantar uma lei que
3 defende os interesses dos trabalhadores e acredita só ser possível tal ato dentro do partido
majoritário, onde encontra resistência devido às “dívidas” que os políticos têm com as indústrias,
contrárias à lei. Em determinado momento, um escândalo está prestes a estourar e um político do
Partido do Povo, de esquerda moderada, Conrado (Ítalo Rossi) diz ter em mãos documentos que
comprovam o escândalo. Em meio às negociações para aprovar a lei de Miguel, Augusto pede
que ele vá falar com Conrado para convencê-lo de não soltar tais documentos em troca de favores
políticos. A reunião se dá durante a visita de um senador americano a uma indústria e, após
intervenções de grupos radicais apontando ao senador os atos do governo como prisões e uma
“democracia de fachada”, numa clara alusão ao contexto histórico da produção do filme, a cena é
intercalada entre a conversa de Miguel e Conrado com o diálogo de Augusto com o governador.
Um dos poucos momentos em que a câmera está em movimento, podemos perceber a cadência
dos diálogos sempre pendendo entre um discurso conservador, na boca do governador, e um
discurso de oposição, com Conrado. Este último avisa a Miguel que não mudará de ideia e que o
jovem deputado não deve se iludir ao achar que sua lei será aprovada, algo que já percebemos
pela conversa de Augusto com o governador.
Vemos então a cena em que Augusto tenta explicar ao protagonista os motivos das
mudanças na lei, que perdeu toda a sua ideia original, por conta dos compromissos do
governador. “Não se vai pra frente com tantas concessões” diz Miguel a Augusto, que responde
“E no entanto é só assim que se vai para frente. Concedendo toda vez que for necessário. E
quando não for mais possível conceder, concedendo ainda.” Miguel se irrita e diz que vai atrás de
Conrado, sendo chamado de “profissional da traição” pelo velho e conformado deputado. O plano
final dessa cena é fixo. Miguel está de costas para a câmera e Augusto cabisbaixo. Arcos
acompanham o caminho por onde os dois políticos caminhavam dando-nos a sensação de
perspectiva. Inicia-se um melancólico piano em off com a obra “Gymnopédie nº 1” de Erik Satie
enquanto Miguel caminha para o final do caminho à esquerda.
No segundo bloco, o deputado vai em busca de Conrado. Entra em sua casa, onde vemos
um quadro que parece representar Maquiavel, numa possível mensagem que permeia o filme de
que os fins, talvez, justifiquem os meios. Miguel o encontra num bar, e lá Conrado indica a
impossibilidade de o primeiro se juntar a ele, uma vez que ele estaria rompendo mais uma vez
com algum partido. A cena se dá num bar e, se no bloco anterior sentimos certo apreço por
4 Conrado, que dá dicas a Miguel e parece não ceder ao Partido Nacional, nesse segundo bloco
vemos um Conrado que parece tão negociador quanto seus inimigos políticos, além de termos
aqui um elemento conjugal. O deputado do Partido do Povo está acompanhado por sua mulher
(Isabella), citada anteriormente por outros políticos como uma mulher afeita ao adultério.
Conrado também não parece se importar em dirigir olhares interessados às mulheres que se
sentam à mesa. O próprio Miguel se vê seduzido pela mulher de Conrado, que o leva para o
quarto. A traição é posta aqui nos planos da política, mas também no âmbito conjugal.
No terceiro bloco, Miguel volta para casa e é recebido por uma esposa indignada (Maria
Lucia Dahl) que diz que ele esqueceu daquilo que construíram juntos em nome dos conchavos
políticos. Uma briga entre marido e mulher que parece banal, mas que cabe na narrativa do filme
uma vez que esposa retoma o passado do marido quando ele ainda era idealista e quis entrar na
política e ela não se opôs, no entanto, aquele com quem ela conversava não era mais o mesmo
homem. Miguel se irrita criticando os desejos pequeno-burgueses da mulher, mas mesmo assim
parece dividido entre o homem do passado e o homem de agora. Em seguida, o protagonista é
avisado que há uma manobra no sindicato orquestrada pelo governo a fim de desqualificá-lo e vai
até a assembleia geral onde temos umas das últimas cenas do filme. Após discurso de um
operário (Hugo Carvana) criticando a diretoria do sindicato, a mesa tenta fechar a assembleia,
porém Miguel decide dar uma última palavra. Caminhando entre os operários tendo faixas ao
fundo com os dizeres “Democracia e Liberdade” e “Trabalho e Pão”. Ele discursa fazendo um
mea culpa e chama os operários para a greve geral, causando tumulto entre eles. Da perspectiva
de um automóvel, vemos a paisagem de uma estrada acompanhada pelo gritos em off do tumulto
deixado para trás. No plano seguinte, Miguel está sozinho no quarto, de costas para a câmera e
fitando a cama vazia, num outro plano sua silhueta observa o mar de uma varanda e então vemos
o protagonista encarando o espelho com uma arma empunhada na boca. O espelho aqui pode ser
entendido como representante da ambiguidade da personagem principal que, ao transitar pelos
dois mundos, encontrou seu fim com uma arma na boca, silenciando-se e prenunciando sua
possível morte, uma morte política. Ainda com a arma, temos um plano em close em que Miguel
nos observa por alguns segundo e a tela escurece finalizando o filme.
Formalmente, o filme se assemelha mais a “O desafio” do que “Terra em transe” apesar
de seguirem a mesma tríade temática, como aponta Fernão Ramos ao analisar diferentes fases do
5 Cinema Novo (RAMOS, 1987:363), ainda que “O bravo...” não cite clara ou alegoricamente o
golpe, vai mais fundo na questão da adesão à política tradicional. Temos talvez um meio termo.
Enquanto o filme de Saraceni se passa claramente num Brasil do pós-golpe, tendo até notícias de
rádio citando-o e inserções documentais do show “Opinião”, o filme de Glauber assume o teor
completamente alegórico aludindo ao golpe através de Eldorado, alegoria em maior parte de
Brasil, mas também de América Latina. O filme de Dahl, porém, não alude aos fatos nem direta
nem alegoricamente. Ele fala do Brasil sem citar o Brasil, remete à repressão sem falar em
ditadura. Mesmo formalmente, possui um caráter conciliador, característica do seu diretor que
iremos trabalhar mais a frente. Prioriza planos fixos, sem esquecer dos planos em movimento e
propõe uma narrativa clássica, com começo, meio e fim, sem abrir mão das ambiguidades do
cinema moderno, como o final em aberto.
Apesar do fracasso de público, podemos notar que na ocasião do lançamento do filme,
tanto a crítica, pelo menos dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, quanto o
campo cinematográfico, à época encarnado na figura de Glauber Rocha, elogiaram o filme por
variados aspectos, sempre destacando sua temática, retomando os assuntos de “O Desafio” e
“Terra em Transe” referentes ao golpe de 1964, sua fotografia em preto e branco e seu elenco. A
Ilustrada da Folha de São Paulo o recebe muito bem e o aponta como “um filme para ser
ouvido” (02/05/1969) destacando comentários de Glauber Rocha e do próprio Gustavo Dahl
explicando os motivos de o filme priorizar diálogos tomando cuidado para não ser um “teatro
filmado”. Glauber elogia a obra em diversas ocasiões, sendo a mais completa uma crítica de 1968
em que resume “O bravo...” como “um filme sólido” ou seja “sua construção é montada peça por
peça e o filme mantém um ritmo permanente da ação que prende o espectador sem fazer
concessões à vulgaridade” (ROCHA, 2004:259). Além de também elogiar o trabalho de Affonso
Beato, jovem fotógrafo ganhador do prêmio de melhor fotografia por “Cara a Cara” (Julio
Bressane, 1967), Glauber cita numa entrevista a Federico de Cárdenas e René Capriles de 1969,
seu apreço pelo filme justamente por seguir uma estética mais clássica e não barroca, como lhe
convinha em seus filmes dizendo que “por isso me agrada o filme de Gustavo Dahl O bravo
guerreiro, perfeita expressão do pensamento: racional, seco. Não me agrada o cinema barroco,
como eu o faço, mas gosto de filmes diferentes do meu.” (ROCHA, 2004:181).
6 Ainda no contexto de lançamento Ida Laura aponta em sua crítica para O Estado de São
Paulo que o filme por ser “antibarroco (e portanto antiglauberiano) na concepção formal,
condiciona sua força a uma extrema simplicidade de linguagem.” (18/05/1969). A autora toma a
narrativa do filme como tentativa de reprodução da realidade e equivoca-se ao considerar a
temática da produção “ultrapassada” por remeter a um tempo anterior à “Revolução de 1964”
quando “elementos conservadores, misturados a corruptos, viviam a sombra do Senado e da
Câmara contrapondo-se às figuras talhadas dentro de uma ideologia marxista, todos fixamente
obstinados em conseguir seus objetivos.” O filme não está necessariamente preocupado em
retratar a realidade, seja ela anterior ou posterior ao golpe, mas justamente refletir sobre a
possibilidade de adesão ao poder vigente na intenção de mudá-lo por dentro, e o possível fracasso
nessa estratégia. Ainda assim, o título da crítica parece bastante elogioso, “Um avanço do cinema
novo”, demonstrando o caráter ambíguo, para não dizer contraditório, do texto.
Carlos M. Motta, em o Estado, ainda comenta seu lançamento dentre tantas outras
produções, estampando a coluna com uma cena do filme em 11 de maio de 1969. No dia
seguinte, também estampando a matéria com um foto do filme, a Folha aponta-o como “destaque
numa semana de muitos policiais”. Outros trechos dos jornais expõem o filme em menor medida.
No dia 26 de maio, a Folha indica a volta do filme “elogiado pela crítica” ao Bretagne. Nos dias
14 e 19, vemos dois pequenos anúncios patrocinados no mesmo jornal, sendo o primeiro com os
dizeres “A política, o poder, o dever, a luta, o amor, o sexo num filme brasileiro que vai dar
muito o que falar”. Vale um destaque para Orlando Lopes Fassoni ao fazer um balanço dos novos
filmes brasileiros, num comentário posterior à exibição no Festival de Brasília, porém anterior ao
lançamento em circuito:
“Já exibido em Brasília, inédito em São Paulo. Dirigido por Gustavo Dahl, enfoca uma
problemática política através de um jovem deputado que decide mudar de partido porque
a solução para ele, era estar o lado do poder. Assumindo compromissos, ele logo se verá
dominado pela máquina do sistema vigente. Não pode recuar, não consegue mais
comunicar-se com suas bases eleitorais e acaba suicidando-se.” (FASSONI, 1968)
Encontramos aqui a única menção ao final do filme em que o protagonista empunha um
cano de revolver em sua boca. Apesar de remeter ao suicídio, não fica explícito o ato como
7 Fassoni imagina. O caráter ambíguo e metafórico é justamente o que dá a riqueza ao plano final
diante da falta de opções da personagem principal. Miguel percebe que foi calado pelo próprio
sistema onde tentou se infiltrar e a arma, acompanhada pelo espelho, sinônimo imagético de
ambiguidade, demonstram suas saídas, que, para o protagonista, são quase inexistentes.
Fica quase impossível não associar a trajetória de Miguel à de Gustavo Dahl. Em uma
nota em sua tese de doutorado, posteriormente editada em livro, Arthur Autran aponta como
curioso o fato de o filme narrar “a história de um político de esquerda que entra num partido
conservador para dali poder alavancar sua carreira e realizar seus ideais, entretanto, termina por
fazer muitas concessões e fracassa nos seus objetivos originais” (AUTRAN, 2004:109). Em outra
tese de doutorado, André Gatti dedica nota generosa à Dahl resumindo seu caráter conciliador:
A figura de Gustavo Dahl dispensa apresentações, afinal ninguém desconhece a sua
defesa em relação ao Cinema Novo, a sua participação na formação da política
cinematográfica brasileira onde passou pela Embrafilme, Abraci, Concine entre outros,
e a sua posição conciliadora entre Estado e mercado. Na condição de Superintendente
de Comercialização da Embrafilme, talvez a sua maior participação política e
mercadológica, consagrou a estatal como a segunda maior empresa atuando no
mercado cinematográfico brasileiro Gustavo aqui encarna todo este processo que a
exemplo dos filmes, buscam inspiração no ideário cinemanovista. Além disso, trata-se
de uma figura com trânsito na área política e cinematográfica […] (GATTI, 2005:37)
Nascido em Buenos Aires em 1938, veio para o Brasil logo cedo, em 1947, trazido pela
mãe brasileira. Dividido entre São Paulo e Rio ao longo da vida, encontrou seu fim na Bahia,
dentro de uma sala de cinema, local sagrado para a cinefilia. Em depoimento à edição 55 da
revista Filme Cultura de 2011, Jean-Claude Bernardet afirma que escrevendo sobre cinema no
jornal do colégio Paes Leme, Dahl se aproximou de Rubem Biáfora, o famoso e polêmico crítico
de cinema da época, responsável pela ponte entre ele e Rudá de Andrade. Em fins dos anos 1950,
Rudá convidou Gustavo para presidir o cineclube do Centro Dom Vital e na breve biografia do
crítico na mesma edição da revista, Sheila Schvarzman conta que “ele é o programador e também
animador do cineclube, chamando a atenção de Paulo Emílio Salles Gomes para os seus dotes
críticos” convidando-o assim a escrever para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo,
8 afirmando que Dahl “entre os jovens é o que melhor escreve” e seu “método de trabalho consiste
essencialmente na identificação pela simpatia” (GOMES, 1982:133). Com o apoio do crítico
veterano, o jovem crítico trabalha por dois anos como arquivista da Cinemateca Brasileira e logo
em seguida ganha uma bolsa para estudar cinema na Itália na primeira metade dos anos 1960.
Após quatro anos na Europa, Dahl retorna e dedica-se tanto à crítica quanto à produção
cinematográfica, produzindo “O bravo...” seu primeiro longa. Gustavo Dahl enquadrou-se na fase
do Cinema Novo do pós-golpe que atingiu o cinema brasileiro “no momento de sua plena
ascensão, de sua explosão criativa" (XAVIER, 2007:47) e a partir desse momento o Cinema
Novo começa a entrar em uma crise de consciência. Marcelo Ridenti, analisa o impasse no qual o
movimento se encontrou:
Depois do impacto da derrota de 1964, permaneceu na maioria dos cineastas do
Cinema Novo a busca da identidade nacional do brasileiro. Mas foram mudando as
características desse romantismo, que ia deixando de ser revolucionário para encontrar
seu lugar dentro da nova ordem estabelecida. (RIDENTI, 2000:94)
Dahl representa bem essa mudança. Em 1966 ele coloca como responsabilidade do
artista “resolver o conflito entre o homem e a natureza” e aponta que “quando a divisão do
trabalho e a propriedade particular vem dissociar a sociedade em classes em luta, mais uma vez
tenta o artista restaurar a unidade perdida”, ou seja, “em ambos os casos sua função é
eminentemente social” (DAHL, 1966:33). No mesmo ano, ele publica na Revista Civilização
Brasileira (RCB) o texto “Cinema Novo e Estruturas Econômicas tradicionais” em que começa a
rever as ideias anti-industriais defendidas em “A Solução Única” (1961), por exemplo.
Em 1970, entrevistado por José Carlos Monteiro para a Revista de Cultura Vozes, ele já
defende ser melhor "dizer pouco a muita gente do que muito a pouca gente" ressonância, talvez,
das ideias perfiladas na RCB em 1966/67 com o texto “Cinema Novo e Seu Público” onde
decreta o “divórcio das massas”, ou seja, o hermetismo do Cinema Novo. Na revista Filme
Cultura de 1971 ele critica a posição tomada pelos realizadores do chamado Cinema do Lixo ou
Cinema Marginal, que substituíram as preocupações sociais por um "pan-anarquismo ora radical
ora difuso". Dahl, no entanto, saúda no mesmo artigo a conservação da atitude autoral desses
cineastas e propõe a projeção de suas obras pública e gratuitamente, configurando um ato "mais
9 libertário, porque concreto, que a representação estetizante de assassinatos, violações, castrações,
desvios sexuais e demais fantasias de agressividade." (DAHL, 1971:34). Vemos aqui ainda um
certo apreço pelo cinema independente, configurando o caráter conciliador do autor.
Referindo-se ao texto “Cinema Novo e Estruturas...”, Ismail diz que Dahl já quando
lança “O bravo...” é um "teórico da conquista do mercado" (XAVIER, 2007:62) e diante dessa
crise intensificada em meados dos anos 1970, Roberto Farias, diretor da Embrafilme desde 1974
e já considerado por Paulo Emílio um exemplo de cineasta que consegue intermediar "filmes
artisticamente mais ambiciosos e aqueles endereçados ao público das antigas chanchadas"
(GOMES, 1986:78), convida Gustavo Dahl para a superintendência de comercialização da
Embrafilme. É possível sugerir que as atitudes tomadas por ele dali em diante em relação à
distribuição dos filmes brasileiros condizem com o novo âmbito político e social onde se
encontra. Arthur Autran alega que Dahl demonstra uma “coerência interna na teoria e na prática”
(AUTRAN, 2013:325) ao publicar o famoso ensaio “Mercado é Cultura” em 1977 dizendo que
“o espectador quer ver-se na tela de seus cinemas, reencontrar-se, decifrar-se” e “para que o país
tenha um cinema que fale sua língua é indispensável que ele conheça o terreno onde essa
linguagem vai-se exercitar. Esse terreno é realmente o seu mercado.” (DAHL, 1977:125).
Durante a segunda metade dos anos 1970, fase quando Dahl trabalhou na
Embrafilme, o cinema brasileiro vivenciou um apogeu, sendo um terço do mercado
cinematográfico do país dominado por filmes nacionais. Era o auge de uma fase em que o cinema
brasileiro conseguiu unir um certo cinema autoral a um estrondoso sucesso comercial. Já em
finais dos anos 1960, alguns diretores se esforçavam, com variados graus de sucesso, em
combinar “o cultural e o comercial, fazendo filmes que falassem ao povo brasileiro em termos
culturalmente relevantes e que também fossem bem-sucedidos na bilheteria” (JOHNSON,
1993:40). Grande parte desse apogeu se dá não só pelo forte financiamento estatal, materializado
pela Embrafilme, mas também por este mesmo órgão ficar responsável pela distribuição e
comercialização dos filmes.2
2 A empresa foi fundada em 1969 como um braço do Instituto Nacional de Cinema (INC), mas ganhou força nos
contextos dos governos Geisel e Figueiredo. Em 1972, no entanto, durante o governo Médici, acontece o I
Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira (ICICB) onde a classe apresentou ao INC o Projeto Brasileiro
do Cinema (PBC), que dava os rumos para o que a Embrafilme viria a se tornar. Vemos que a aproximação com o
Estado já se dá antes dos períodos convencionados pela historiografia como “distensão” e “abertura”.
10 Assim como o protagonista do filme que analisamos, Dahl busca no poder a
possibilidade de colocar seus projetos em prática. Sai de uma posição radical no início dos anos
1960 e adere à estatal a fim de proteger o cinema brasileiro. Falando de um contexto ditatorial
podemos tomar emprestada a ideia recentemente elaborada do “jogo de acomodações” do
historiador Rodrigo Patto Sá Motta em que, ao estudar as universidade no regime militar explica
a tomada de posição e define aqueles que optam pela acomodação:
“Pessoas que não desejavam aderir, por não partilhar os valores dominantes, mas que
também não tinham intenção de resistir frontalmente ao Estado autoritário – por medo
de punição ou por achar inútil – buscaram estratégias de conviver com ele, inclusive
como forma de reduzir os efeitos da repressão.” (MOTTA, 2014:310)
Como o próprio autor sugere em seu livro, tal equação pode ser empregada em outras
áreas durante a ditadura e procuramos entender Gustavo Dahl como um exemplo desse jogo,
atuando em dois campos a fim de defender o cinema nacional ou o “bem comum”.
Se por um lado, a personagem principal se vê sem saída ao longo da narrativa, Dahl
cumpre seu papel com relativo sucesso, fruto de sua capacidade de se “acomodar” e transitar
entre posições opostas num mesmo campo, fosse com críticos cineastas ou militares. É bom
lembrar também que o sucesso o acompanhará somente até 1978, quando sai da Embrafilme
justamente por divergências com Roberto Farias e não consegue assumir a diretoria da empresa.
Ele só voltaria com força ao quadros de gestão de politica cinematográfica num contexto
democrático da criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) no início dos anos 2000, onde
ocuparia o cargo de diretor até 2006.
Faz-se necessária análises mais longas e detalhadas sobre a figura de Dahl, como se
propõe a pesquisa da qual esta apresentação faz parte tendo como foco os anos 1960 e 1970 e sua
produção escrita. Entretanto, com o recente recolhimento e atual processamento dos Arquivos da
Embrafilme e de Gustavo Dahl junto à Cinemateca Brasileira, uma série de pesquisas podem ser
iniciadas ou enriquecidas através da análise objetiva de fontes acerca da pessoa de Gustavo Dahl,
ainda pouco estudado, e do período da Embrafilme que, por se enquadrar numa das conjunturas
do Brasil contemporâneo mais estudadas, merece total atenção.
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