CONSTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES JOVENS NO DISCURSO
MIDIÁTICO SOBRE A REFORMA DO ENSINO MÉDIO DOS ANOS 1990
Wesley Fernando de Andrade Hilário1
Rosemeire de Lourdes Monteiro Ziliani2
Introdução
Desde a segunda metade do século passado a educação de crianças e jovens tem
sido privilegiada como condição ao desenvolvimento e ao “progresso da nação”.
Tomemos como exemplo os anos de 1970, no contexto da ditadura militar, momento em
que o ensino profissionalizante foi tornado obrigatório em todas as escolas de ensino 1º e
2º graus, objetivando uma educação dirigida à “qualificação para o trabalho”, conforme
aponta o texto da reforma inscrita na Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL,
1971). Mas por efeito do fracasso desse modelo3, no início dos anos de 1980 tal
obrigatoriedade foi retirada, tornando, a partir de mais uma reforma, desta vez instituída
pela Lei nº 7.044, de 18 de outubro de 1982, a “preparação para o trabalho” (BRASIL,
1982), como finalidade do processo de escolarização.
Na segunda metade dos anos de 1990 outra reforma veio à tona, mas esta abrangeu
todos os níveis. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, inscrita na Lei nº
9.394, de 20 dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), o nível médio ganhou espaço próprio
no texto legal e foi tornada a última etapa da educação básica, ainda que sua
obrigatoriedade não tenha sido assegurada a todos os jovens naquele momento4. Outros
aspectos como, por exemplo, sua organização curricular e sua função foram modificadas
1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Grande Dourados.
Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
da Grande Dourados. E-mail: [email protected] 3Apesar do pretendido desenvolvimento do País, a profissionalização técnica não foi uma necessidade do
sistema produtivo nem correspondeu à lógica interna do sistema educacional. Ora, se encarada sob a
dimensão industrial da profissionalização, a formação de técnicos e auxiliares técnicos não correspondia às
artes industriais do 1º grau, pautadas mais pelo artesanato do que pela cultura fabril. Além disso, a
especialização de técnicos e auxiliares técnicos era incongruente com a concepção dos cursos de graduação,
em nível superior, os quais, conforme a Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968 (BRASIL, 1968),
deveriam começar com um ciclo básico, de caráter geral, de modo a evitar a precoce opção pela carreira.
Sobre as motivações do insucesso da Lei n. 5.692, consultar Cunha (2014). 4 A obrigatoriedade da escolarização aos jovens foi instituída pela Emenda Constitucional nº 59 de 2009.
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sob o signo da letra, função que passou da dualidade constituída entre ensino propedêutico
e ensino profissional para uma educação de caráter geral. Em razão deste acontecimento,
grande agitação tomou conta das instituições de ensino e da população civil, conforme
veiculado, por exemplo, em inúmeras reportagens do jornal O Progresso5 (DOURADOS,
1996; 1997a, 1997b, 1997c, 1997d), a partir da segunda metade daquela década.
Este texto problematizou a constituição de sujeitos/subjetividades jovens no
discurso midiático que tratou sobre a reforma do ensino médio dos anos 1990. O
argumento geral foi que, ao pautar a referida reforma, o discurso midiático o fez
articulando um enunciado que remete à racionalidade neoliberal, instituindo uma posição
de sujeito aos jovens, alinhada as perspectivas econômica, política e social hegemônica,
que adentraram nas políticas públicas, no início da referida década.
Como fontes foram privilegiados os seguintes documentos: uma revista produzida
na época pelo Governo Federal, intitulada “O novo ensino médio” (BRASIL, 2000) e
uma reportagem contida em uma edição da Revista Veja (1998). Para analisá-los,
utilizamos como metodologia a análise do discurso de inspiração foucaultiana, a qual
implicou trabalhar de forma árdua o próprio discurso, deixando-o aparecer na
complexidade que lhe é peculiar. Tratou-se de analisar enunciados e relações que o
discurso põe em funcionamento a cada momento histórico e tipos de sujeitos objetivados.
A noção de discurso, segundo essa perspectiva, é entendida como um “conjunto
de enunciados” (FOUCAULT, 2016), pois o enunciado funciona como unidade básica do
discurso e possui função de existência própria. O enunciado refere-se àquilo que é dito e
por estar imerso e ser produzido por relações de poder e saber institui práticas e constrói
as “coisas” sobre as quais tratam, os sujeitos e a realidade.
Na medida em que analisamos um enunciado, estamos, também, analisando o
processo de constituição de sujeitos ou subjetividades. Isto porque os enunciados apontam
para posições de sujeito, paras as formas de ser e estar no mundo. Desta perspectiva
5Jornal de ampla circulação na cidade de Dourados, sul do Estado de Mato Grosso do Sul. Ao ressaltar este
impresso, queremos afirmar que ditos sobre a reforma ecoaram em diversas localidades do País, das
menores cidades aos grandes centros urbanos. Nesse sentido, por sua dimensão, alcance e importância na
referida região, esse jornal contribuiu para fazer circular determinados enunciados sobre o ensino médio, e,
por efeito, produzindo modos de pensar sobre esse nível da educação e sobre os jovens.
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decorre que a subjetividade não é algo fixo, como o verdadeiro “eu” dos indivíduos, mas
sim construção da maneira como cada indivíduo se relaciona com sua exterioridade, com
os discursos que o atingem e o posicionam como sujeitos de determinados tipos. Ora, essa
relação dos indivíduos com os discursos não é sempre a mesma, pois é condicionada pelo
momento histórico em que ocorre. Poder e saber se articulam nos discursos de maneira
diferente em cada época; e por isto, ainda que os enunciados que o atingem o sejam, não
se trata, nunca, das mesmas práticas de subjetivação.
Feitas essas ponderações, para uma melhor aproximação ao objetivo proposto
dividimos o texto em duas partes. Na primeira tratamos da mídia como um dispositivo da
governamentalidade neoliberal, ou seja, a mídia como tecnologia levada a efeito por essa
racionalidade. Na segunda parte problematizamos um enunciado em circulação no
discurso midiático sobre reforma do ensino médio dos anos 1990, que se refere à
formação dos jovens “para a vida e para o trabalho” e que ajuda, ainda em nossa
atualidade, a sustentar o modo neoliberal de governo da população jovem e produz
subjetividades alinhadas a tal racionalidade.
1 A mídia como dispositivo da governamentalidade neoliberal
Quando argumentamos que no discurso midiático sobre a reforma do ensino
médio dos anos 1990 circulou enunciados alinhados ao neoliberalismo, somos levados a
enfatizar que a mídia funciona como um dispositivo da governamentalidade neoliberal.
E o que é um dispositivo? Seguindo as teorizações de Michel Foucault (2016), o
dispositivo é entendido como a relação entre diferentes elementos: práticas discursivas e
não discursivas, instituições, leis e regulamentações, por exemplo. Trata-se de uma
relação complexa e produtiva: complexa porque sua formação não é explicita, envolve
elementos de naturezas diversas, visíveis e invisíveis, enfim, o dito e o não dito, e
produtiva porque seus efeitos concretizam-se nas práticas dos indivíduos que atinge,
sendo estes transformados em sujeitos anteriormente “imaginados” pelo aparato
tecnológico do dispositivo. Constituído sob determinadas condições históricas e
sustentado por tipos específicos de saber, o dispositivo possui uma função estratégica:
responder a uma urgência que se coloca no campo de sua formação (FOUCAULT, 2016).
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Há, em nossa sociedade, diversos dispositivos que obstinam conformar pessoas
desde a mais tenra idade, dispositivos que se prolongam e atingem outras etapas da vida
para responder a determinadas urgências colocadas pelos contextos em que emergem.
Quando, por exemplo, afirma-se a existência de um dispositivo de escolarização, o que
está em jogo é a afinação entre inúmeros elementos que, segundo um conjunto de regras,
de poder-saber, obstinam constituir crianças, jovens e adultos segundo uma grade de
inteligibilidade, a qual, por sua vez, é regida pelo regime de verdade de sua época. Nesse
caso, trata-se de pensar que elementos como leis, enunciados, reformas e as práticas que
se desenrolam dentro das instituições escolares (e isso apenas para citar alguns exemplos),
estão envolvidos na composição de sujeitos escolarizados para um determinado tipo de
sociedade e para determinado contexto histórico, social, econômico etc.
Já governamentalidade é uma noção utilizada para pensar o processo de
governamentalização do Estado, o processo pelo qual o Estado Moderno ocidental chegou
a ser o que é hoje, com as práticas de governo da população que lhe são próprias. Para
evidenciar como a população tornou-se um “problema” a ser resolvido mediante práticas
racionalizadas, Foucault (2008a) ressalta os modos como a população tem sido conduzida
desde o século XVI até a contemporaneidade: de um governo que teve como base a
pastoral cristã, cujo sistema de verdade repousou nas leis divinas, às formas
contemporâneas de governo, que são o liberalismo (surgido no século XVIII) e o
neoliberalismo (que emergiu em meados do século XX), que possuem no mercado
econômico seu sistema de verdade. Em síntese, o filósofo conceitua governamentalidade
da seguinte maneira:
Por esta palavra ‘governamentalidade’, entendo o conjunto constituído
pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e
as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora
muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por
principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico
essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por
“governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em
todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a
preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de “governo”
sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um
lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de
governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de
saberes. Enfim, por ‘governamentalidade’, creio que se deveria
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entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o
Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou
o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco ‘governamentalizado’.
(FOUCAULT, 2008a, p. 143-144).
Em Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008b) afirma que a partir da segunda
metade do século passado as sociedades capitalistas ocidentais passaram a ser governadas
pelo neoliberalismo, o que significa dizer da vigência de uma governamentalidade
neoliberal em nossa atualidade. E o que isso tem a ver quanto ao que aqui nos interessa?
Ora, se hoje as práticas de governo são produzidas mediante tal racionalidade, tudo o que
há na sociedade é pensado, produzido, conduzido de acordo com os pressupostos que
sustentam o neoliberalismo. Significa, nesse sentido, que os sujeitos têm sido orientados,
que as vidas têm sido governadas segundo essa racionalidade, forjadas no interior de uma
sociedade que tem o mercado como verdade e finalidade das práticas que nela se
desenvolvem, das instituições que nela funcionam, dos discursos que nela circulam.
O neoliberalismo, segundo o filósofo, é uma atualização das práticas de governo
liberal, mas que tem no funcionamento da liberdade econômica sua principal diferença.
Se o segundo, o liberalismo, a situava na ordem da natureza, o primeiro, o neoliberalismo,
defende que ela deve ser incitada, produzida e estendida para outros campos que não
sejam necessariamente o econômico. Nesse sentido, a liberdade econômica tem contornos
diferentes no tempo presente, é maximizada, colocada na ordem de discursos diversos
como uma verdade inquestionável de todos os âmbitos.
Assim, segundo o neoliberalismo, os indivíduos são objetivados como um homo
economicus: trata-se da compreensão de pessoa, de ser humano, de sujeito em que essa
racionalidade se apoia. Por ser capilar, estar disseminado em todas as instâncias sociais,
o neoliberalismo coloca em circulação a ideia de que o indivíduo
[...] é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão
verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem
os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus
parceiro da troca por um homo economicus empresário de si mesmo,
sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo
para si mesmo a fonte de [sua] renda (FOUCAULT, 2008b, p. 311).
O neoliberalismo funciona como uma grade de inteligibilidade pois, a partir dela,
diversas áreas que tem a vida humana como meio ou fim, como a educação e o trabalho,
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por exemplo, são pensadas, calculadas, racionalizadas. Nessa perspectiva, educar para o
trabalho implica em educar para as situações que são próprias dessa dinâmica social:
educar para as imprevisibilidades e inconstâncias que o trabalho coloca, daí a razão de se
ensinar a ser flexível, polivalente; educar para melhor usar as linguagens, as tecnologias,
pois em um mundo globalizado é preciso estar sempre à frente no uso dessas ferramentas.
Ora, sendo a mídia um dispositivo de subjetivação, a análise de um enunciado que
ela fez circular em momento histórico datado permite compreender seus efeitos na
constituição de subjetividades. Mas esta análise não é suficiente para pensar seu real
efeito sobre os indivíduos, já que a tarefa implica problematizar, também, se eles são
subjetivados pelos discursos que os atingem, ou, ainda, se realmente o são. De todo modo,
este exercício analítico é importante na medida em que “saber como nos governam e
como nos governamos é condição necessária para qualquer ação política que pretenda
colocar minimamente sob suspeita aquilo que estão fazendo de nós e aquilo que nós
estamos fazendo de nós mesmos" (VEIGA-NETO, 2011, p. 37).
2 A mídia subjetivando os jovens...
Nos anos seguintes à promulgação da Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996), inúmeras
notícias foram veiculadas na mídia para divulgá-la ou tão somente para comentá-la quanto
aos seus “erros” e “acertos”. Em artigo publicado na revista Veja (1998), na Edição 1.545,
de 06 de maio de 1998, intitulado A segunda onda, o “novo ensino médio”, termo cunhado
para se referir ao novo rosto desse nível da educação, é apresentado por Alice Granato. O
título do artigo faz referência à expressão “onda jovem”, utilizada para caracterizar o
expressivo aumento da taxa de natalidade que ocorreu nos anos 1980 e que resultou na
ampliação da população jovem a partir de meados da década seguinte, portanto, período
concomitante à produção da reforma. Em razão disto, essa franja populacional foi tomada
como um problema a ser resolvido no século que se aproximava, sendo a educação
escolarizada “o” meio para que isso fosse possível.
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A autora destaca a ineficácia do ainda ensino de 2º grau, tratando-o como “um
modelo de ensino ultrapassado, que já não cumpre suas funções”, pois “não fornece
conhecimento técnico para quem pretende ingressar imediatamente no mercado de
trabalho nem prepara de forma adequada os alunos que desejam seguir adiante e fazer um
curso superior” (REVISTA VEJA, 1998, p. 93). Afirma que, objetivando acabar com a
histórica dicotomia que constitui o nível médio da educação, a reforma iria “devolver o
caráter de curso de formação geral”. Logo em seguida apresenta dados de pesquisa
realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), segundo
a qual apenas uma pequena parcela de jovens (31,5%), entre os que concluíram o nível
médio no ano anterior (429.775), desejava ingressar no ensino superior, e que número
bem inferior era o dos jovens matriculados nesse nível de ensino (11%). Esses dados
foram tomados como justificativa para a reforma, de alguma forma a sustenta, como
declarado pelo então Ministro da Educação Paulo Renato Souza, citado na matéria6.
No sentido anunciado, a educação para a vida encontra sua concretude nos
pressupostos da formação propedêutica e a educação para o trabalho, materializa-se no
programa da educação profissional.
Eis, portanto, um enunciado que perpassa os discursos sobre a reforma do ensino
médio dos anos 1990, e segundo o qual a educação é “para a vida e para o trabalho”.
Pensado a partir das teorizações foucaultianas, o enunciado sinaliza que a
educação idealizada a partir daquele momento buscou promover a junção entre ambos os
aspectos, ou ainda, os objetivos de uma educação para a vida foram tornados objetivos de
uma educação para o trabalho. Esta dinâmica reflete o funcionamento da sociedade
neoliberal, que toma as “competências” da vida humana como força de trabalho, ou que
toma o trabalho como princípio da vida, ou mais ainda, que subsome a vida ao trabalho.
O uso da linguagem, a autonomia, a flexibilidade, a criticidade e o domínio das
tecnologias, por exemplo, que, a priori, são aspectos capazes de garantir aos indivíduos
6 O saber estatístico é uma das tecnologias de governo levadas a efeito pela racionalidade neoliberal. Para
que a população possa ser melhor governada é preciso fazer emergir números e dados concretos que, sob o
signo da verdade, a revela em sua exatidão, constituem sua realidade. Assim, várias técnicas são agenciadas
para resolver os problemas aos quais a população está exposta ou, no limite, suscetível, conforme quando
antes anunciados pela estatística (POPKEWITZ; LINBLAD, 2001).
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o exercício de sua “cidadania”, passam a ser também instrumentos para o tipo de trabalho
que caracteriza as sociedades neoliberais, o trabalho abstrato, imaterial.
A centralidade desse enunciado pode ser conferida por sua aparição em diferentes
discursos e, sobretudo, por sua constância no discurso oficial. Não que este seja mais
importante do que aquele (afinal, todo e qualquer discurso opera na condição de produtor
da realidade e dos indivíduos), mas porque em nossa sociedade o discurso oficial faz parte
da política geral da verdade e produz efeitos de verdade. Por isso mesmo a Lei é lugar
privilegiado para sustentar e validar determinados enunciados7. A LDB/1996 afirma no
inciso III do Artigo 35 que uma das finalidades do ensino médio é “a preparação básica
para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser
capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores” (BRASIL, 1996 apud SAVIANI, 2003, p. 173-174). Preparar para o
exercício da cidadania, sendo cidadania entendida como “as práticas sociais e políticas e
as práticas culturais e de comunicação [...e também] a vida pessoal, o cotidiano e a
convivência e as questões ligadas ao meio ambiente, corpo e saúde” (BRASIL/DCNEM,
1998), e, portanto, aspectos que constituem a vida mesma dos indivíduos, remete ao
preparo para as demandas que o trabalho na contemporaneidade coloca.
O enunciado “educação para a vida e para o trabalho” também reverbera no escrito
de Guiomar Namo de Mello, que foi Relatora das DCNEM (BRASIL, 1998), quando a
autora afirma que a finalidade do ensino médio é preparar para a vida, e que este preparo
implica “a aquisição de competências gerais ligadas à polivalência, flexibilidade,
capacidade de raciocínio e convivência solidária”, aspectos que “coincidem e se
aproximam cada vez mais das demandas do mercado de trabalho” (MELLO, 2000, p.
138-139). Este argumento foi colocado também nas PCNEM (BRASIL, 2000, p. 11) ao
apontar que “o desenvolvimento das competências cognitivas e culturais exigidas para o
7Em A ordem do discurso Foucault afirma que os discursos não são valorizados de maneira homogênea, há
como que um desnivelamento entre eles: “os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e das trocas, e que
passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos
novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente,
para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos em
nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se
considera o seu estatuto, e que chamamos de ‘literários’; em certa medida textos científicos” (FOUCAULT,
2011, p. 22, grifo do autor).
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pleno desenvolvimento humano passa a coincidir com o que se espera na esfera da
produção”.
Verifica-se desde esses escritos a tentativa de articular vida e trabalho na medida
em que as competências requeridas para a vida social passam a ser demandadas também
pelo trabalho. Isto fica mais evidente quando nos documentos oficiais afirma-se que os
alunos do ensino médio precisam ser dotados de uma série de competências que os
tornarão aptos ao mercado de trabalho, enunciado que atravessa e é enfatizado no discurso
midiático. Há, conforme a tônica deste discurso, uma pretensão de ofertar uma educação
que torne “o estudo mais próximo da vida real e preparar melhor nossos alunos para
enfrentar as dificuldades da vida prática e ajudá-los a se tornarem cidadãos conscientes e
participativos”, conforme assinado pelo Ministro da Educação Paulo Renato Souza no
Boletim Técnico do Ensino Médio (BRASIL/BOLETIM, 2000, p. 1).
Produzido pela Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC), órgão
do Ministério da Educação (MEC), o Boletim foi distribuído bimestralmente às escolas
para divulgar as mudanças no ensino médio por ocasião da reforma e “ajudar as equipes
de professores e diretores a construírem os projetos escolares e a aperfeiçoarem sua
prática pedagógica” (BRASIL/BOLETIM, 2000, p. 2), segundo o Editorial assinado por
Ruy Leite Berger Filho, Secretário de Educação Média e Tecnológica. Possui linguagem
didática e imagens amplas e coloridas ao longo de suas oito páginas. Sua distribuição foi
anterior à chegada dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) às
escolas, e por isso mesmo, foi a tônica do número aqui em pauta.
Tratando sobre o tema, Avelino Romero Simões Pereira, Coordenador Geral de
Ensino Médio, argumentava que as “competências” são o mote da reforma do ensino
médio, pois elas organizam as áreas que compõem o novo currículo do ensino médio, a
saber: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. “As competências são estruturas
mentais que as pessoas desenvolvem e que são comuns a vários campos do saber. Como
o conhecimento não é algo estático, à medida que o sujeito vive situações novas, amplia
suas referências, desenvolvendo novas competências, que são desdobramentos das
anteriores” (BRASIL/BOLETIM, 2000, p. 3). Sendo as competências tomadas como o
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princípio epistemológico da reforma, constituem-se como bases pedagógicas da mesma
a interdisciplinaridade e a contextualização.
De acordo com o discurso oficial, reforçado pelo discurso midiático, as
competências demandadas em todas as áreas são as seguintes: capacidade vincular a
educação ao mundo do trabalho e à prática social; compreender os significados; ser capaz
de continuar aprendendo; preparar-se para o trabalho e o exercício da cidadania; ter
autonomia intelectual e pensamento crítico; ter flexibilidade para adaptar-se a novas
condições de ocupação; compreender os fundamentos e científico e tecnológicos dos
processos produtivos; e relacionar a teoria com a prática. Objetiva-se, a partir da aquisição
delas, que os jovens sejam preparados para as atividades práticas de seu cotidiano, que
utilizem os conhecimentos teóricos de maneira articulada às situações que a forma de
trabalho em ascensão demanda. Ao mesmo tempo em que essas competências são
imprescindíveis à vida do sujeito, pois em um mundo marcado pela rápida “evolução” é
preciso ser criativo, autônomo e capaz de solucionar problemas, elas são igualmente
necessárias ao trabalho imaterial, intelectual, que caracteriza as sociedades neoliberais.
O enunciado em questão também está presente na revista “O Novo Ensino Médio”
(BRASIL, 2000). Trata-se de um material produzido pelo MEC para divulgar a reforma
entre os alunos, professores e comunidade, daí a forte utilização de linguagem publicitária
e imagens que remetem ao universo jovem, assim como no Boletim. Ruy Leite Berger
Filho, secretário de Educação Média e Tecnológica do MEC, ao comentar na revista sobre
a finalidade desse nível da educação, qual seja o de
[...] desenvolver o pensamento abstrato, crítico [...] para chegar a
resultados comuns que são um conjunto de habilidades e
conhecimentos [...] que tem por objetivo a melhor inserção no mundo
como cidadão e a preparação básica para o trabalho, [...afirma que] o
cidadão de hoje deve estar instrumentalizado para compreender as
novas tecnologias, e por isso é fundamental que os conteúdos do ensino
médio sejam contextualizados (BRASIL/REVISTA, 2000, s/p).
O que está em jogo é a objetivação de sujeitos que privilegiem suas competências
intelectuais como instrumento de trabalho na mesma medida em que fazem de tais
qualidades atributos para viver e exercer sua cidadania.
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No âmbito da racionalidade neoliberal, essas competências podem ser pensadas
como o capital dos sujeitos. Trata-se de uma aproximação mais estreita da educação de
nível médio à teoria do Capital Humano. Esta foi formulada por Theodore Schultz entre
o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, preconizando a ideia de que habilidades e
competências servem como força de trabalho que o indivíduo pode usar a seu favor no
concorrido jogo que o capitalismo comanda. Assim, o indivíduo é pensado como uma
empresa e ele próprio é seu gestor, tendo que, por essa razão, de potencializar suas
qualidades e aptidões e adquirir as que não possui para entrar ou permanecer nesse jogo.
Mas é preciso considerar que a concepção de Capital Humano que ronda o discurso sobre
o ensino médio, a partir dos anos 1990, é diferente de sua proposta inicial ou mesmo da
que se fez presente nos anos 1970, quando se instituiu a obrigatoriedade do ensino técnico
profissional visando qualificar mão de obra para o exercício de funções específicas.
Segundo Foucault (2008b), o capital humano é composto por elementos que se
dividem em capital inato e capital adquirido. São os elementos biológicos que constituem
o capital inato, os elementos que cada um possui desde seu nascimento, ainda que eles
possam ser melhorados por meio de estratégias específicas. Entretanto, “é muito mais do
lado do adquirido, ou seja, da constituição mais ou menos voluntária de um capital
humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os problemas e que novos
tipos de análise são apresentados pelos neoliberais” (FOUCAULT, 2008b, p. 315). Isto
significa que os elementos do grupo do capital adquirido são mais focalizados pela
racionalidade neoliberal do que aqueles do capital inato. É nesse conjunto que se insere a
educação escolarizada de nível médio a partir dos anos 1990, pois tomada como
instrumento serve à constituição de sujeitos/subjetividades úteis à racionalidade
neoliberal.
Os discursos apregoam tornar os indivíduos mais competentes para uma sociedade
em que bons resultados e a excelência são supervalorizados. Demanda-se dos jovens
flexibilidade e melhor adaptação às condições e incertezas colocadas pelo mercado de
trabalho; melhor produtividade e maximização de resultados em todos os âmbitos da vida;
uso e domínio de tecnologias; autonomia e criticidade em relação aos acontecimentos e
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relações sociais; constante aprendizagem como forma de atualização frente às rápidas
mudanças do mundo produtivo, tecnológico e social; entre outras capacidades.
Objetiva-se formar um indivíduo ativo, que possui em seu trabalho seu próprio
capital, entendendo esse capital como “o conjunto de todos os fatores físicos e
psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário”
(FOUCAULT, 2008b, p. 308). Disto decorre que aquilo que se ganha, seu salário,
constitui-se como produto de si, de seu capital. Por isto é que, no neoliberalismo, é preciso
que o indivíduo tenha atributos e competências que façam com que seu capital seja
valorizado. Trata-se, pois, como já afirmamos anteriormente, de tornar o indivíduo uma
“competência-máquina” (FOUCAULT, 2008b). A propósito desse aspecto Gadelha
(2009, p. 149) afirma que:
[...] as competências, as habilidades e as aptidões de um indivíduo
qualquer constituem, elas mesmas, pelo menos virtualmente e
relativamente independente da classe social a que ele pertence, seu
capital; mais do que isso, é esse mesmo indivíduo que se vê induzido,
sob essa lógica, a tomar a si mesmo como um capital, a entreter consigo
(e com os outros) uma relação da qual ele se reconhece (e aos outros)
como uma microempresa; e, portanto, nessa condição, a ver-se como
entidade que funciona sob o imperativo permanente de fazer
investimentos em si mesmo – ou que retomem, a médio e/ou longo
prazo, em seu benefício – e a produzir fluxos de renda, avaliando
racionalmente as relações custo/benefício que suas decisões implicam.
(GADELHA, 2009, p. 149).
Considerações Finais
O enunciado “educação para a vida e para o trabalho” tem funcionado como uma
tecnologia de governo da população, especificamente da população jovem, buscando
conduzir as condutas desses sujeitos de modo a que contribuam com um determinado
projeto de sociedade. O nível médio da educação desde os anos 1990, por ocasião da
reforma, visa produzir sujeitos capazes de atuar na sociedade contemporânea, atendendo
a uma série de requisitos úteis à governamentalidade neoliberal. Os sujeitos pretendidos
pelo ensino médio são empreendedores, precisam ser flexíveis, capazes de se autogerir,
de continuar aprendendo continuamente. A educação pensada para essa franja da
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população pressupõe que o homem, e nesse caso os jovens, tem sido tomado como força
produtiva para o modelo de sociedade em voga, e que a escola tem sido lugar privilegiado
para formar sujeitos capazes de fazer da sua vida sua força de trabalho.
A colocação do enunciado “educação para a vida e para o trabalho” em discurso
foi resultado dos efeitos da racionalidade neoliberal que a partir dos anos 1990, no caso
do Brasil, tornou a vida e o trabalho elementos estritamente articulados, como que
inseparáveis e dependentes um do outro, por meio da educação. A educação destinada
para a vida, cujo objetivo residia na aquisição de competências como o uso da linguagem,
o desenvolvimento da autonomia, da flexibilidade, da criticidade e do domínio das
tecnologias, por exemplo, a partir da década de 1990, tornaram-se elementos para o
mundo do trabalho, ou mais ainda, como competências demandadas como força de
trabalho e, por isso, tornadas competências a serem adquiridas por meio da educação. A
educação confirma-se, nesse sentido, como instrumento privilegiado de formação de
pessoas, como meio de exercício biopolítico, do governo da população,
Pode-se dizer que a formação para a vida e para o trabalho tem concorrido para a
constituição de subjetividades jovens neoliberais. Isto permite afirmar que a educação, e
em especial o ensino médio, tem funcionado desde aquela década, como uma tecnologia
da governamentalidade neoliberal. Isto é, esse nível da educação tem operado, por meio
das práticas que se desenrolam nas instituições e dos discursos que estas fazem circular,
sobre a vida dos jovens, ensinando-os a serem, pensarem e agirem em conformidade ou
articulados aos pressupostos neoliberais. Demanda cada vez mais competitividade,
enfatizando a necessidade da constante atualização das competências e habilidades,
fazendo-as funcionar como “armas” dos sujeitos para o mundo do trabalho, mas também
para suas vidas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Boletim Técnico O Novo Ensino Médio. Ministério da Educação, 2000.
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