Daniel Oliveira Kozlowski de Farias
Imago Dei Uma leitura teológica da humanidade
a partir da Encarnação do Verbo
MONOGRAFIA
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA SISTEMÁTICA
Rio de Janeiro Outubro de 2008
Daniel Oliveira Kozlowski de Farias
Imago Dei Uma leitura teológica da humanidade
a partir da Encarnação do Verbo
Monografia
Monografia apresentada ao Seminário Teológico Presbiteriano Rev. Ashbel Green Simonton co-mo requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Teologia.
Orientador: Rev. Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha
Rio de Janeiro Outubro de 2008
(Termo de Aprovação)
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do seminário, do au-tor e do orientador.
Daniel Oliveira Kozlowski de Farias Cursou Tecnologia em Automação Industrial na Universida-de Gama Filho (UGF). Membro da Igreja Presbiteriana da Posse desde o ano de 2001. Presbítero desta igreja desde setembro de 2007. É candidato ao Sagrado Ministério da Palavra e dos Sacramentos pelo Presbitério de Nova Iguaçu (PNIG).
Ficha Catalográfica Farias, Daniel Oliveira Kozlowski de Imago Dei – Uma leitura teológica da humanidade a par-tir da Encarnação do Verbo / Daniel Oliveira Kozlowski de Farias; orientador: Rev. Dr. Nelson Célio de Mesquita Ro-cha. Rio de Janeiro: Seminário Simonton, 2008. 74 p. 1. Monografia – Seminário Teológico Presbiteriano Reve-rendo Ashbel Green Simonton. Inclui referências bibliográficas. 1. Teologia – Monografias. 2. Teologia Sistemática. 3. An-tropologia Teológica. 4. Imago Dei. 5. Cristologia. 6. Encar-nação. I. Rocha, Nelson Célio de Mesquita. II. Seminário Teológico Presbiteriano Reverendo Ashbel Green Simonton. III. Título.
Para os meus avós paternos, Rev. Geraldo Fernandes de Farias e Luiza Maria Kozlowski de Farias;
Para os meus avós maternos Presb. Manuel Walder da Cunha e
Carly de Oliveira Cunha. Nestes encontrei a sabedoria para uma vida feliz e próspera.
Sirva a Deus, cuide da sua família e viva em paz.
Agradecimentos - A Deus por sua graça salvadora e sustentadora. Por estar continuamente a me capacitar para o exercício da minha vocação ministerial. - À minha esposa Andressa Marinho Ramos Kozlowski, que esteve sempre a me apoiar, incentivar e a suportar todos os meus momentos de ausência. Obrigado pelo seu amor e compreensão. - À minha mãe Elenir e meu pai Edson, que desde a minha mais tenra idade me ensinaram o caminho pelo qual deveria andar e caminharam comigo. Obrigado por todo apoio e investimento que fizeram e ainda fazem na minha vida. - Aos meus irmãos Eliene e Edson Júnior por todo carinho e companheirismo. Obrigado por todo o incentivo e confiança depositados em mim. - A todos os meus familiares e de forma especial aos meus avós, que sempre re-clamaram da minha ausência, mas sempre entenderam e me encorajaram. - À minha tia Catia Meireles que bondosamente me auxiliou com a revisão do texto desse trabalho. - Ao egrégio Presbitério de Nova Iguaçu (PNIG), que acreditou na minha vocação e apoiou durante toda esta caminhada. - Aos meus tutores eclesiásticos durante estes cinco anos de candidatura, Rev. Josinei Robemar Pires e Rev. André Luiz Ramos, que sempre confiaram em mim instruindo-me e corrigindo-me sempre que necessário, visando o meu aperfeiçoa-mento para o ministério pastoral. - À Igreja Presbiteriana da Posse, minha igreja de origem, e a 1ª Igreja Presbiteri-ana de Nova Iguaçu, igreja na qual me criei e dei os meus primeiros passos da vida eclesiástica. Agradeço a essas igrejas e aos seus Conselhos, que me acolhe-ram durante este período com todo o carinho. - Ao meu Orientador: Rev. Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha, que foi paciente na elaboração deste trabalho e um entusiasta no seu desenvolvimento. - A todos os professores deste curso. Nunca se esquivaram da tarefa de nos prepa-rar com excelência para o exercício ministerial e para isso dividiram conosco todo conhecimento e experiência. - Aos meus companheiros de classe: Denis, Flavinho, Marcinho, Marquinho e Zé, integrantes do famoso G-6. Valeu cada minuto de todos esses anos, cada lágrima e cada sorriso. Tenho cada um de vocês como meus irmãos.
Resumo
Farias, Daniel Oliveira Kozlowski de; Rocha, Nelson Célio de Mesquita. Imago Dei – Uma leitura teológica da humanidade a partir da Encarna-ção do Verbo. Rio de Janeiro, 2008. 74p. Monografia de Bacharelado – Curso de Teologia, Seminário Teológico Presbiteriano Rev. Ashbel Green Simonton.
A Imago Dei tem sido interpretada desde os tempos remotos do Cristianismo,
uma vez que as Sagradas Escrituras revelam que o ser humano foi criado à i-
magem e semelhança de Deus. Sob esta ótica, cabe à teologia refletir quanto ao
papel do ser humano enquanto imagem de Deus, formulando uma antropologia
teológica relevante que apresente a natureza humana como limitada sim, mas
não como maligna ou pecaminosa. Levando-se em consideração a Encarnação
do Verbo, é possível compreender esta verdade, pois o próprio Deus toma a na-
tureza humana para si e Ele nunca poderia vir a assumir com nada que fosse
pecaminoso. A partir de Jesus, o Verbo de Deus encarnado, é possível compre-
ender o que significa ser imagem e semelhança de Deus. Em Jesus, todas as
limitações humanas são percebidas e, também, os meios de se conviver com
elas. Através do Verbo encarnado, notam-se as dimensões relacionais do ser
humano, tanto para com o seu semelhante como para com Deus. Estas podem
ser percebidas pela sua abertura para o transcendente, que expressa a necessi-
dade humana de experiências religiosas. Desta forma, ao se olhar para Jesus
Cristo, o Deus-homem, é clara a necessidade de uma correta valorização da
humanidade.
Palavras-chave
Teologia; Teologia Sistemática; Antropologia Teológica; Imago Dei; Natu-
reza Humana; Encarnação.
Sumário
1. Introdução 10
1.1 Imago Dei na Confissão de Fé de Westminster 12
2. Imago Dei – A imagem de Deus na humanidade 15
2.1. Uma interpretação bíblico-filosófica da Imago Dei 15
2.2. Imago Dei na teologia patrística 18
2.3. Imago Dei na teologia escolástica 24
2.4. Imago Dei na Reforma protestante 28
2.5. Imago Dei na teologia contemporânea 29
3. Jesus Cristo – Verdadeiro Deus e verdadeiro homem 37
3.1. Gnosticismo 37
3.2. Docetismo 38
3.3. Arianismo 39
3.4. Apolinarianismo 40
3.5. Nestorianismo 41
3.6. Monofisismo 42
3.7. A Encarnação do Verbo na visão de Atanásio 44
3.8. O desenvolvimento da humanidade de Jesus Cristo 45
3.9. A maturidade da humanidade de Jesus Cristo 47
3.10. Jesus, o homem sob a ação do Espírito Santo 51
4. Imago Dei – a verdadeira humanidade a partir de Jesus Cristo 54
4.1. Imago Dei realizada em Jesus Cristo 55
4.2. O ser humano e sua dimensão espiritual 57
4.3. Uma antropologia viva 67
5. Conclusão 68
6. Referências Bibliográficas 72
Tabela de Siglas e Abreviaturas CB Confissão Belga CFW Confissão de Fé de Westminster Ed. Editor Org. Organizador PNIG Presbitério de Nova Iguaçu Preb. Presbítero Rev. Reverendo * Todas as abreviações de livros bíblicos seguem o padrão da versão de Almeida Revista e Atualizada, 2ª Edição, da Sociedade Bíblica do Brasil.
Não sei por quais caminhos Deus me conduz, mas conheço bem meu guia.
Martinho Lutero
Temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada um dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a
única coisa que os legitima. João Calvino
1 Introdução
Cremos que Deus criou o homem do pó da terra, e o fez e formou conforme sua imagem e semelhança: bom, justo e santo, capaz de concordar, em tudo, com a vontade de Deus.
Confissão Belga
Desde os tempos primordiais do Cristianismo existe o questionamento quan-
to ao significado do ser humano ter sido criado a imagem e semelhança de Deus,
conforme é revelado no locus classicus da idéia da humanidade como Imago Dei1,
ou seja, Imagem de Deus, Gênesis 1. 26s:
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme-lhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; ho-mem e mulher os criou. (grifos meus)
A doutrina da Imago Dei é justamente a sistematização da interpretação so-
bre esta imagem e semelhança de Deus, segundo a qual o ser humano foi criado.
Assim, a teologia tem a necessidade de refletir quanto ao papel do ser humano,
sendo este portador da Imago Dei. Quando se trata da compreensão teológica da
imagem de Deus, são relativamente poucas as passagens que se referem a esse
tema. E, por isso, tem havido numerosas tentativas de exegetas e teólogos para
explicar e compreender as Escrituras quanto a esse assunto.
Em primeira instância, o tema teológico em questão, considerado aparente-
mente periférico é, na realidade, um dos mais importantes temas doutrinários, pois
aponta para o relacionamento do ser humano com Deus e o relacionamento de
Deus com o ser humano.
Não há como exacerbar a importância da correta compreensão da Imago Dei
e investigá-la torna-se determinante para toda e qualquer afirmação doutrinal. As
ramificações desse tema não são apenas teológicas, mas ecoam por todas as etapas
da problemática da revelação e da razão, incluindo, de forma integral, as relações
com a natureza, as formulações legais das civilizações e a cultura. Assim, qual-
1 Cf. WEBSTER, J. L. (Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 168.
11
quer interpretação imprópria traz conseqüências drásticas; pois suas implicações
são utilizadas na tentativa de regenerar ou degenerar o ser humano.
Refletir quanto ao papel do ser humano, enquanto portador da imagem de
Deus, é responsabilidade da teologia, que busca formular uma antropologia teoló-
gica relevante apresentando o homem como ser criado por Deus e possuidor, des-
de a criação, de uma natureza limitada2. As limitações são indicadas pelas neces-
sidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais. Essas limitações ou necessida-
des não constituem em nada características pecaminosas ou maléficas, antes real-
çam o sentido de dependência do ser humano e a sua abertura para um relaciona-
mento com Deus3. Este equipou o homem, mesmo depois da queda, para que de-
senvolvesse um relacionamento de intimidade com o seu criador e para que ex-
pressasse verdadeira humanidade4.
Para uma correta elaboração da interpretação da Imago Dei, deve-se levar
em consideração a Encarnação do Verbo de Deus, que tomando a natureza huma-
na, limitando-se e aceitando a limitação desta natureza, colocando-se no mesmo
nível da sua criatura, vivenciando de igual forma todas as suas necessidades, reve-
lou a verdadeira identidade humana. Conforme está registrado na Confissão Bel-
ga5 (1561) em seu 18º artigo:
[...] Este assumiu a forma de servo e tornou-se semelhante aos homens (Filipenses 2:7), tomando realmente a verdadeira natureza humana com todas as suas fraque-zas, mas sem o pecado. [...]6
Da mesma forma a Confissão de Fé de Westminster7 (1634-1664) [CFW],
em seu capítulo 8, artigo 2º, afirma que Cristo assumiu toda a natureza humana,
2 Cf. WEBSTER, J. L. (Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 172. 3 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, páginas 39 - 40. 4 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 53. 5 CONFISSÃO BELGA (1561) – O primeiro dos padrões doutrinários da Igreja Reformada da Holanda foi a Confissão de Fé. Normalmente conhecida como Confissão Belga porque se originou na área agora conhecida como Bélgica. Seu principal autor foi Guilherme de Brés, um pregador reformado martirizado em 1567. Cf. Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg, página 3. 6 Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg, páginas 17 – 18. 7 CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER (1634-1664) – Uma das mais importantes confissões da tradição calvinista e a mais aceita na América Latina. A CFW consiste em 33 capítulos onde são abordadas as principais doutrinas teológicas assim como também temas de ordem administra-tiva e da relação entre a Igreja e o Estado. Esta confissão se enquadra no contexto do escolasticis-mo protestante, ou seja, num ambiente onde o fechamento ao diálogo com outras igrejas, gosto pelas sutilezas teológicas, o dogmatismo epistemológico e o individualismo até a morte, consolida-ram-se como princípios essenciais.
12
suas limitações e necessidades, sem contaminar-se com o pecado. A CFW afirma
que:
O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, sendo verdadeiro e eterno Deus, da mesma substância do Pai e igual a ele, quando chegou o cumprimento do tempo, tomou sobre si a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e en-fermidades comuns, contudo sem pecado, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria e da substância dela. As duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas - a Divindade e a humanidade - foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é verda-deiro Deus e verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem.8
Através do mistério da Encarnação, o próprio Deus demonstra ao ser hu-
mano o real sentido da humanidade e como deve ser a sua relação com a criação,
com o próximo e com o próprio Deus. Sendo este o propósito de Deus ao criar o
ser humano: tê-lo como parceiro9, iniciando com ele um diálogo e não um monó-
logo10. Alvos que constatamos através do desdobrar da história da humanidade.
1.1 Imago Dei na Confissão de Fé de Westminster
Antes de nos aprofundarmos no estudo da doutrina da Imago Dei é necessá-
rio que verifiquemos como a CFW, um dos símbolos da fé reformada, aborda essa
questão. No seu capítulo 4, artigo 2º, a CFW apresenta a formulação quanto à cri-
ação do ser humano, conforme a imagem e semelhança de Deus.
A CFW dá continuidade aos cânones de Dort (1618-1619): a depravação total do ser humano, a eleição incondicional, a expiação limitada, a graça irresistível e a perseverança dos santos. Ambos os credos do séc. XVII fixaram a doutrina reformada. Por outro lado, percebe-se na CFW uma descontinuidade com a teologia de Calvino. Enquanto o reformador inicia suas Institutas com a reflexão da situação do ser humano à luz da Bíblia; a CFW o faz com as Escrituras, concebidas como oráculo e em tom legalista. Calvino lutou pela doutrina da predestinação como uma doutrina consoladora em meio à perseguição de sua gente; a CFW ofuscou as demais doutrinas com o valor que concedeu ao “horrível decreto” divino. Desde 1647 a CFW foi reconhecida como a “mais ortodoxa e baseada na Palavra de Deus”. Em, 1649 a Igreja Escocesa a adotou como a mais importante “norma subordinada” da Escritura. A partir de 1690 os professores universitários tinham que subscrevê-la. De 1711 em diante foi neces-sário afirmá-la para receber as ordens ministeriais. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilus-trado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 665 - 667. 8 Confissão de Fé e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana, página 17. 9 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 45. 10 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 40.
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Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e perfeita santi-dade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus co-rações, receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.11
Fica evidente, na CFW, que a imagem de Deus, segundo a qual o ser huma-
no foi criado, refere-se à questão da racionalidade, retidão e santidade. O ser hu-
mano também é dotado de um senso de justiça inato, já que este possui “a lei de
Deus escrita em seus corações”. Fica claro, também, que o ser humano foi criado
livre e com toda a liberdade para agir e decidir. A própria CFW diz que o ser hu-
mano foi deixado “à liberdade da sua própria vontade, que era mutável”; ou seja,
ao ser humano foi dada a possibilidade de escolha, podendo decidir quebrar ou
não quebrar a ordem do seu Criador; sendo-lhe também imputada toda a respon-
sabilidade por seus atos e decisões. Essas características são mais uma evidência
da imagem de Deus, pois o ser humano é um ser livre e responsável.
A CFW também discorre sobre a questão relacional do ser humano com to-
da a criação e com o próprio Criador. “[...] enquanto obedeceram a este preceito,
foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.”.
Inicialmente, a CFW demonstra o relacionamento do ser humano com a criação
ligado à dominação da mesma. Porém, hoje existe a consciência de que o mandato
cultural e a idéia de dominação vão muito mais além do que, única e exclusiva-
mente, a subjugação da natureza. Antes, o domínio exercido pelo ser humano está
ligado diretamente a sua responsabilidade de zelar pela integridade da criação
como um todo.
Quanto ao relacionamento com Deus, a CFW deixa evidente que, ao decidir
transgredir a lei, o ser humano perdeu a sua comunhão com Deus. Essa questão é
facilmente verificada ao olhar-se para o comportamento humano e para a história
mundial, visto que em todos os registros da presença humana são encontradas
formas de se buscar o transcendente. Essa busca pelo infinito é uma tentativa do
ser humano de tornar a preencher-se na sua totalidade, pois todos carregam no
11 Confissão de Fé e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana, página 11.
14
íntimo essa sensação de vazio e uma necessidade de encontrar no transcendental
algo que o preencha.
Nesta busca pelo transcendente, o ser humano se abre para o mundo e para
o próprio Deus. É através da experiência da fé, do conhecimento da vida e minis-
tério de Jesus Cristo que se torna possível ao ser humano alcançar e desenvolver
um relacionamento profundo e verdadeiro com o próprio Deus. Ao olhar para o
Verbo Encarnado, podemos contemplar que Deus não renega a humanidade, pelo
contrário, a sua divindade irá incluir a humanidade12 como expressão da sua ação
criadora, santa, justa e livre.
É diante da transcendência do ser humano sobre si mesmo, que ele toma
consciência de sua subjetividade e do seu destino de excentricidade e apropriação
do mundo, bem como de sua abertura para Deus13. Quando se afirma que no ser
humano a capacidade de orientação está fora de si, verifica-se que ele transcende à
sua subjetividade e vai até outros objetos que compõem o seu mundo, ou seja,
para fora de si. Assim, ao transcender, ele percebe o mundo a sua volta e os obje-
tos como realidades determinadas. Quando o ser humano supera um determinado
objeto ele está indo além do finito. Esta abertura que ele tem para o mundo e sua
capacidade de objetividade em relação aos objetos deste traz um sentido implícito
profundamente espiritual, visto que ele pode transcender a sua realidade. O expe-
rimento que o ser humano faz do mundo é o caminho para o experimento que ele
faz de si mesmo14. A busca que o ser humano faz de si nos objetos do mundo con-
firma não apenas a busca do objeto em si mesmo, mas revela algo mais que é a
construção de sentido para sua vida, e esse sentido está no caminho para o qual ele
se destina.
Por isso se faz necessário um estudo acurado desta doutrina, pois somente
com a compreensão do significado real da Imago Dei, será possível o desenvolvi-
mento de uma antropologia teológica relevante e viva. Uma antropologia teológi-
ca que indique para o desenvolvimento da plena humanidade espelhada naquele
que a idealizou e a cumpriu ao se encarnar.
12 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 54. 13 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 82. 14 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 89.
2 Imago Dei – A imagem de Deus na humanidade
[...] é certo que Adão, [...] foi criado a imagem e semelhança de Deus; pelo que se vê ele foi feito participante da sabedoria, da justiça, da virtude, da santidade e da verdade de Deus.
João Calvino
Durante toda a história do cristianismo, a doutrina da Imago Dei foi sempre
alvo da atenção de vários teólogos. E desde a teologia patrística até a teologia
contemporânea existe uma procura por definir de forma clara o que significa a
imagem e semelhança de Deus a qual o ser humano foi criado.
Devido a essa grande variedade de interpretações, se faz necessária uma
retrospectiva histórica, destacando-se os pensadores mais relevantes para este
estudo. A análise dessas explanações nos fará compreender a real situação dessa
doutrina nos dias atuais, e assim promover uma atualização da sua aplicação e do
seu ensino aos cristãos.
2.1 Uma interpretação bíblico-filosófica da Imago Dei
Durante o desenvolvimento do pensamento sistemático a respeito do que
significa ser a imagem e semelhança de Deus, diversas interpretações foram
elaboradas. Destacaremos a interpretação de Fílon de Alexandria 1 (ca. 20 a.C - 42
d.C), devido a sua importância histórica como um dos criadores do método
alegórico.
1 FÍLON DE ALEXANDRIA (ca. 20 a.C – 42 d.C) – Filósofo judeu helenista. Figura como o mais importante intérprete da filosofia judaico-alexandrina e como mais influente intérprete e do método alegórico para a literatura patrística. Teve influência na patrística grega de Justino Mártir (? - ca. 165), Teófilo de Antioquia ( Séc. II), Eusébio de Cesaréia (ca. 263 - ca. 240), Orígenes ( ca.185 - ca. 254) entre outros e na patrística latina de Jerônimo (347 - 419), Ambrósio (ca.333 - 397), e Agostinho de Hipona (354 - 430). Seus escritos exegéticos podem ser subdivididos em três temas: cosmogônicos, históricos e legislativos. Em seus escritos cosmogônicos, Fílon usa a alegoria para explicar a obra criadora Deus tal como descreve o livro do Gênesis. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 269 - 270.
16
Pode-se afirmar de forma muito segura que Fílon de Alexandria foi
profundamente influenciado pela filosofia grega, particularmente pela filosofia
platônica. entretanto é inegável que Fílon também se inspirou nas Escrituras
Sagradas, em sua época o Antigo Testamento, na formulação da sua interpretação
da Imago Dei. Fílon propõe uma concepção muito interessante do ser humano
como Imago. Ele deduz a teoria do ser humano ideal, que serve de modelo para
todos os humanos que já viveram, vivem e ainda virão a viver neste mundo.
A passagem em Gn. 2:7 “Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó
da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma
vivente”, é considerada pelos exegetas como sendo o segundo relato da criação do
mundo. Fílon interpreta esse relato da seguinte forma:
[...] este texto prova claramente que existe uma profunda diferença entre o homem formado deste modo e o homem produzido anteriormente à imagem de Deus [...]. O homem produzido à imagem de Deus era uma idéia, um tipo, um selo, um objeto inteligível, nem homem, nem mulher, de natureza incorruptível.2
Por essa interpretação percebe-se de forma clara a influência da filosofia
platônica no pensamento de Fílon. Baseado nessa corrente filosófica é que ele
formula a doutrina do homem como “eivkw,n” (imagem).
Partindo do princípio da exemplaridade, que prescreve toda realidade
sensível como reprodução de uma idéia, Fílon interpreta que o ser humano foi
criado a partir de um modelo: o ser humano ideal. Desse princípio e do princípio
da hierarquia dos seres, que diz que os graus inferiores são imitações dos
superiores, e também através do processo dedutivo, Fílon formula a doutrina do
ser humano como imagem do Logos. Ele baseia-se em Gn 1.27: “Criou Deus,
pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou.” Este versículo oferece duas interpretações: na primeira o “katV eivko,na”é
entendido como imagem direta de Deus. Na segunda é percebido como a imagem
do Logos e, ainda que indiretamente, a imagem de Deus.
Em sua obra “Dei Opficio Mundi” é possível perceber de forma mais clara o
pensamento de Fílon sobre a natureza da semelhança divina impressa no ser
humano pelo Criador. Fílon afirma que:
2 FÍLON DE ALEXANDRIA, Opificio mundi, c. 46 nn 134-135. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 100.
17
Moisés diz que o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus (Conf. Gn 1:26 e 27). Esta afirmação é exata, porque das coisas deste mundo sensível nada é mais semelhante a Deus que o homem. Mas ninguém imagine que essa semelhança se baseie em alguma propriedade do corpo, pois nem Deus tem forma corpórea, nem o corpo humano se assemelha a Deus. A palavra “imagem” não é usada em relação ao corpo, mas à mente, princípio hegemônico da alma; de fato, a mente de todos os que vêm a este mundo foi modelada sobre um exemplar único, o Logos, princípio-arquétipo do universo. A mente é de certo modo um deus para aquele que a possui e a encerra em si como o objeto sagrado: ocupa no homem posição correspondente à ocupada pelo princípio soberano no universo. A mente (do homem) é invisível e, no entanto, é capaz de ver todas as coisas: Compreende as substâncias das outras coisas, mas sua substância é incompreensível. Mediante as artes e as ciências, abre o caminho em muitas direções, e atravessa a terra e o mar investigando o que cada elemento contém. Tendo contemplado a atmosfera e todas as suas fases, lança-se sobre as asas poderosas até o éter e as órbitas celestes, participando das danças dos planetas e das estrelas fixas, observando perfeitamente as regras da música, seguindo com amor a sabedoria que lhe guia os passos. E assim, lançando o olhar para além dos confins das substâncias corpóreas, discerne o mundo inteligível [...].3
Fílon entende que a semelhança está restrita à alma somente. Assim, o corpo
não pode ser considerado imagem de Deus, quando muito, do cosmo. Essa
semelhança está baseada na invisibilidade, na incompreensibilidade, na posição e
na familiaridade com o mundo inteligível.
Esta semelhança contida na alma no momento da criação do ser humano não
foi completamente perdida em decorrência do pecado. Na realidade, apenas
cessou a familiaridade com o mundo inteligível. O principal sinal da preservação
da imagem de Deus no ser humano é o domínio que ele continua a exercer sobre
toda a criação.
Assim, a doutrina da Imago Dei de Fílon, não está alicerçada unicamente em
razões filosóficas, mas antes, encontra suas bases nos textos bíblicos4. Sendo que
Fílon de Alexandria utiliza as bases filosóficas como instrumentos para a sua
interpretação bíblica.
3 FÍLON DE ALEXANDRIA, Opificio mundi, c. 46 nn 69-71. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, páginas 101-102. 4 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 103.
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2.2 Imago Dei na teologia patrística
Encontramos entre os patrísticos diversos teólogos que colaboraram para o
desenvolvimento da doutrina da Imago Dei. Dentre estes, alguns seguem abaixo
relacionados:
Irineu de Lyon (? – ca.202)
O primeiro pai da igreja a discutir sistematicamente a Imago Dei foi Irineu5,
Bispo de Lyon6. Em sua tentativa de formular uma posição bíblica sobre a
imagem de Deus no ser humano foi-lhe primordial a noção da Trindade, do
Logos, ou do Verbo encarnado – Jesus Cristo. Irineu concluiu que os dados das
Escrituras demonstram que a imagem primordial está baseada em Jesus Cristo a
qual o ser humano foi formado.
Esta citação demonstra que a posição de Irineu não é só quanto à imagem de
Deus, mas também quanto à natureza da imagem de Deus no homem. Para ele
existe uma distinção entre a imagem ~l,c, (tselem) e semelhança tWmD> (demuth).
Assim, a imagem é definida por Irineu de Lyon como constituída pela doação de
uma mente racional e de uma vontade livre, enquanto a semelhança é percebida
através de graças como a vida no Espírito, que foi perdida na queda humana, mas
é restaurada pela graça em Cristo7. Desta forma, Irineu lançou as bases para a
interpretação da Imago Dei, principalmente para a era medieval, que acreditava na
existência de uma diferença entre as capacidades naturais da pessoa e um
incremento da retidão no ser humano.
5 IRINEU DE LYON (? – ca.202) – Considerado um dos principais teólogos da igreja antiga. Era natural da Ásia Menor, provavelmente de Esmirna, onde foi discípulo de Policarpo (ca.69 – ca.155?). Por volta de 170 mudou-se para Gália, na cidade de Lyon. A doutrina da criação é de fundamental importância para Irineu. Isto se deve ao fato de que seus opositores defendiam um dualismo radical entre o espiritual e material, de modo que o primeiro parecia bom e o segundo mal. Diante desta postura, Irineu insiste que tudo que existe foi criado por Deus e conseqüentemente é bom. Deus criou o mundo através do que Irineu chama “as mãos de Deus”, que são o Filho e o Espírito Santo. Dando a idéia de que Deus cria diretamente e não por meios intermediários. A teologia de Irineu de Lyon foi redescoberta no século XX, freqüentemente esquecida até então, atualmente produz movimentos de renovação teológica tanto no Catolicismo Romano, como no Protestantismo. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 357 - 360. 6 Cf. LEWIS, Gordon R.; BRUCE, A. Demarest. Integrative Theology. Three Volumes in One. Vol. 2, páginas 123 – 180. 7 Cf. LIÉBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja [Séculos I – IV]. Vol. 1, página 63.
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Clemente de Alexandria (ca.150 – ca.215)
Clemente de Alexandria8 irá prosseguir no pensamento iniciado por Fílon,
porém, não se furta da utilização de novas soluções, principalmente no que diz
respeito à utilização da filosofia nas questões doutrinárias. Esta forma de reflexão
foi chamada pelo próprio Clemente de “filosofia cristã”9 e trouxe para a
antropologia inúmeros avanços.
Recorrendo ao conceito bíblico de Imago Dei para ilustrar a natureza
humana, Clemente reconhece a existência de três tipos de Imago Dei: a do Logos,
a do cristão e a de todos os seres humanos. Para as imagens cujo ser humano é o
sujeito, Clemente adota dois termos diferentes: 1- eivkw,n para imagem natural. 2-
om̀oi,wsin para a imagem sobrenatural dos cristãos. A primeira está presente em
todos, enquanto a segunda é encontrada somente em alguns. Assim sendo, o
homem recebe logo ao nascer a Imago; mais tarde, na medida em que se torna
perfeito, recebe a Similitudo.
Clemente acredita que a semelhança natural entre Deus e o ser humano não
consiste na essência, no ser, na natureza, ou na forma, mas é uma semelhança no
plano de ação do ser humano, no seu atuar. Ele se assemelha a Deus enquanto faz
o que é bom e enquanto exerce o domínio sobre a criação. Por isso Clemente
declara que:
A expressão imagem e semelhança (Gn. 1.27) não se refere ao corpo, porque é inadmissível que o mortal se assemelhe ao imortal, mas ao intelecto e à razão, ou seja, àquelas partes do homem em que o Senhor pode fixar convenientemente, como um sinete, a semelhança em relação ao bem-fazer e ao comandar.10
8 CLEMENTE DE ALEXANDRIA (ca. 150 – ca.215) – Teólogo nascido em Atenas, convertido do paganismo ao cristianismo. Depois de viajar em busca da sabedoria, se encontrou com Panteno (Séc. II) em Alexandria, que se tornou seu mestre desde então e do qual foi seu sucessor por volta do ano 200. Clemente foi um dos seguidores do método alegórico. Para ele como as realidades deste mundo apontam para as verdades eternas (como diria Platão), assim também as Escrituras apontam espiritualmente para essas realidades. Logo, as Escrituras possuem dois sentidos: um literal e outro espiritual. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 179 - 182. 9 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 103. 10 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Strom. II, c. 19, nº 102; 24 e 25. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 105.
20
Assim, a semelhança está no agir e não no ser. Desta forma Clemente julga
poder preservar a diferença infinita qualitativa entre Deus e o ser humano.
Gregório de Nissa (ca. 335 – 394)
Para Gregório de Nissa11, o fato de a humanidade carregar a Imago Dei é
uma verdade revelada. Verdade esta que faz parte do núcleo das verdades
originárias que Deus mostrou aos primogênitos da criação.
Na visão de Gregório, a imagem só é “realmente imagem quando possui
todos os atributos do seu modelo”12. Se a imagem não é exata, é qualquer coisa
menos imagem. Como Deus é o conjunto de todo o bem, o ser humano enquanto
imagem de Deus é pleno de todo o bem. Por isso, encontra-se na humanidade toda
a expressão do que é honesto: a virtude, a sabedoria e tudo aquilo que se pode
conhecer através do intelecto. Essa diferença permanecerá pelo fato de o ser
humano não ser Deus.
Segundo Gregório, a diferença consiste no fato de que Deus é uma realidade
subsistente, não criada; enquanto o ser humano, portador da Imago Dei, recebe a
existência através da criação. Gregório afirma que Deus efetuou duas criações.
Sendo a primeira da Imago Dei ideal e a segunda da Imago Dei real, ou histórica.
A criação da Imago Dei ideal realizou-se quando Deus decidiu criar o ser
humano. Esta abrange a humanidade por inteiro13. Para Gregório, os traços da
semelhança com Deus estão mais marcados na alma do que no corpo. Todas as
propriedades fundamentais da alma (espiritualidade, liberdade, incorruptibilidade)
11 GREGÓRIO DE NISSA (ca. 335 – 394) – É considerado como um dos “grandes capadócios”, irmão de Basílio de Cesaréia (ca. 330-379) e de Macrina (330-379). Apesar de não ter tido uma educação formal tão brilhante como a de Basílio e a de Gregório Nazianzo (ca. 330-ca. 390), foi o mais profundo teólogo dos capadócios. Suas principais obras teológicas foram escritas em ocasião da controvérsia ariana que estava em período de efervescência. Gregório também escreveu várias obras exegéticas. Nelas ele utiliza o método exegético semelhante ao de Orígenes, portanto, abundam as interpretações alegóricas. Porém este não é o caso de suas duas obras a respeito da criação, De Hexaeron ou o seis dias da criação e Da criação do ser humano. Estas duas obras foram escritas para complementar o que seu irmão Basílio escrevera. Visto que Basílio tinha preferência pelo sentido literal e temia as interpretações alegóricas exageradas, Gregório se abstém de alegorismo e segue um método exegético principalmente literal. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 309 - 312. 12 Gregório de Nissa. De hominis opifício. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 107. 13 Cf. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 108.
21
tornam-na fortemente semelhante a Deus14. Outra marca é a liberdade, que não só
deve ser entendida como autodeterminação, mas também como soberania do ser
humano sobre as coisas, sobre o universo. Para Gregório, Deus criou o homem
semelhante a Si, tendo em vista o domínio que deveria exercer sobre os seres
inferiores e esta é a manifestação mais evidente da sua semelhança com Deus.
Enfim, a Imago Dei reflete-se na incorruptibilidade, ou seja, na imortalidade da
alma que, como Deus, jamais poderá extinguir-se.
A criação da Imago Dei histórica, que é a imagem real, realizou-se com a
decisão de Deus em criar o homem sexuado, portanto criando-o semelhante aos
animais. Deste modo, na Imago Dei concreta, a semelhança opera em duas
direções: em direção a Deus, através da alma e de suas faculdades, e em direção
aos animais, através do corpo e de sua sexualidade.
No pensamento de Gregório, à medida que o ser humano se volta para
satisfazer os desejos da carne, ele está ofuscando a imagem de Deus. Porém ele
não é capaz, de apenas com as próprias forças, comportar-se segundo as
exigências da Imago Dei. Por esse motivo, Deus mandou-lhe em socorro o Filho,
Jesus Cristo, que mostrou à humanidade como deve viver para realizar a Imago
Dei, fornecendo-lhe os meios para fazê-lo. Desta forma, o verdadeiro cristão é
aquele que se esforça para realizar plenamente a Imago Dei pela imitação de Jesus
Cristo15.
“É pela liberdade que o homem é igual a Deus”16. Mas Gregório bem sabe
que o homem pode abusar da liberdade e pode usá-la para minimizar e arruinar a
Imago Dei. Por isso, não é qualquer exercício da liberdade que torna o homem
semelhante a Deus, mas somente aquele em que o homem lhe permanece
submisso.
A Imago Dei ideal é, com efeito, a meta que o homem alcançará depois da
vida presente, se tiver vivido de acordo com os preceitos divinos a exemplo de
Jesus Cristo.
14 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 312. 15 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 111. 16 GREGÓRIO DE NISSA, De Professione Christiana. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 110.
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Santo Agostinho (354 – 430)
A Imago Dei é o tema dominante da reflexão antropológica de Santo
Agostinho17 e é abordada em todas as suas obras de maior importância. Para uma
compreensão mais clara deste assunto, podemos subdividi-la da seguinte forma:
1) Noções de "Imago" e "Similitudo" no pensamento de Agostinho.
Pelo termo "Similitudo", Agostinho entende não uma divindade
indeterminada, nem o Deus Uno, dos hebreus, mas o Deus verdadeiro que se
manifestou em Jesus Cristo, ou seja, o Deus Trino.
Quanto aos termos "Imago" e "Similitudo", designam ambos uma relação de
semelhança entre duas coisas, porém, não são sinônimos. Similitudo diz muito
menos que Imago. Toda imagem é semelhante àquilo de que é imagem, mas o
contrário não é verdadeiro, pois nem tudo o que é semelhante a algo é também sua
imagem. Para que uma similitude seja também Imago é preciso que se trate de
uma semelhança entre causa e efeito. Assim, chama-se imagem à representação de
uma pessoa no espelho ou num quadro; do mesmo modo, se um filho é
semelhante ao pai, diz-se que é a sua imagem. Ao contrário, no caso de dois
17 SANTO AGOSTINHO (354 – 430) – Um dos mais prolíficos autores cristãos da Antigüidade, e sem dúvida, o que causou mais impacto na teologia ocidental da Idade Média até os dias atuais. Agostinho nasceu no norte da África, na cidade de Tagaste, filho de pai pagão funcionário da administração romana e mãe cristã, Mônica. Aos 17 anos, transfere-se para Cartago que era a principal cidade da região. Foi nesta cidade que se dedicou ao estudo da retórica, que era a maneira que, neste tempo, avançava na administração pública. Foi também em Cartago que Agostinho se dedicou ao estudo de Cícero, o qual o convenceu de que, ainda que a retórica seja importante para melhor expressar os argumentos, muito mais importante que a retórica era a verdade que esta devia expressar. É à busca dessa verdade que o conduz primeiro ao maniqueísmo. Esta era uma doutrina dualista segundo a qual há dois princípios ou substâncias que se misturam na terra: o princípio do bem e o princípio do mal. Após se frustrar com os ensinos maniqueístas, Agostinho se transfere para Roma por força de sua carreira. Neste tempo se dedica ao de vários autores platônicos, os quais lhe mostram que o problema da origem do mal não era insuperável, e além do mais lhe fizeram ver que a realidade não consistia somente em matéria, mas também tinha realidades espirituais ou intelectuais. De Roma, Agostinho transferiu-se para Milão, onde passou a ser ouvinte dos sermões de Ambrósio, bispo dessa cidade. Seu objetivo não era escutar o que Ambrósio dizia, mas sim, a maneira como dizia. Pois Agostinho tinha interesse nele como professor de retórica. É nessa época que se dará a sua conversão ao cristianismo. Dentre as várias controvérsias em que se envolveu, destaca-se a que se deu com o monge irlandês Pelágio (Sécs. IV-V) e suas doutrinas. Pelágio sustentava que o ser humano, ainda em seu estado de pecado, pode tomar a decisão de fazer e aceitar a graça de Deus. Agostinho argumenta que, mesmo existindo o livre arbítrio, o pecador priva o homem da liberdade de fazer o bem. Em outras palavras, antes do pecado o homem podia fazer o bem ou não, porém agora, depois do pecado, já não lhe resta mais a capacidade de fazer o bem por si mesmo. Apesar da influência de Agostinho na igreja oriental não ter sido comparável com sua influência na igreja ocidental, é justo dizer que, com exceção do apóstolo Paulo, nenhum outro escritor cristão tenha sido mais lido e discutido que Agostinho. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 25 - 32.
23
gêmeos idênticos, pode-se dizer que se parecem, mas não que um seja a imagem
do outro.
2) Divisão da "Imago Dei" no pensamento agostiniano.
Ele distingue duas espécies de Imago. Uma que é da mesma substância do
modelo e outra que é de substância (essência) diversa da do modelo. A Imago
consubstancial realiza-se através da geração, assim, a Imago consubstancial é o
resultado de uma produção generativa como, por exemplo, a criação. Agostinho
distingue nitidamente o homem do Verbo, ambos, imagem de Deus. Mas
enquanto o Verbo, gerado pelo Pai, é imagem perfeita, da mesma natureza do Pai
e idêntica a ele; o homem, criado por Deus, é uma imagem imperfeita,
semelhante, mas não idêntica à realidade divina, de quem possui as perfeições
fundamentais por participação. Para Agostinho, no Gênesis, o termo Similitudo
acompanha o termo Imago para determinar e precisar o sentido do termo Imago e
para esclarecer que não se trata de uma Imago consubstantialis e sim de uma
imagem por participação18.
3) O constitutivo essencial da "Imago Dei" no ser humano.
Agostinho afirma que todas as coisas criadas se assemelham a Deus e todas
são realmente suas criaturas e carregam, portanto, marcas da sua perfeição19. Ele
observa que, embora muitas coisas se assemelham a Deus, nem todas podem ser
chamadas de imagem de Deus. "Só se pode aplicar a denominação de Imago Dei
às coisas que apresentam uma semelhança acentuada com ele (expressa
Similitudo)."20 Quando a semelhança é pequena, pobre, incerta,obscura, não mais
se pode falar de Imago; mas somente de Vestigium. É este o caso de todas as
coisas inferiores ao ser humano, de um modo ou de outro, são vestígios de Deus,
ou seja, da Trindade. Ao passo que o homem é propriamente uma Imago Dei,
como afirma a Sagrada Escritura.
Em que consiste essencialmente a semelhança tão profunda entre o ser
humano e Deus, para ser chamada de Imago Dei? Para Agostinho esta semelhança
não pode consistir no corpo, pois Deus não é corpo, mas sim espírito. E claro que
18 Cf. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 115. 19 Cf. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 117. 20 SANTO AGOSTINHO, De trin, XI, 5, 8. In. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 117.
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também o corpo apresenta traços de semelhança com a Trindade, mas não chegam
a constituir uma imagem de Deus, e sim um vestígio. Com efeito, a Imago Dei
consiste na alma e mais precisamente na mente. Agostinho encontra na mente,
duas razões, uma inferior (voltada para as coisas deste mundo e guia do homem
em suas decisões práticas); e uma superior (voltada para as verdades eternas e,
portanto, para Deus). Dessas duas razões, somente a segunda constitui a Imago
Dei, pois só a razão superior é incorruptível e não decai nem mesmo quando o
corpo se corrompe. Além disso, como conhece a Deus, a razão superior o invoca e
está sempre buscando a comunhão com ele.
Para Agostinho, o pecado não pôde destruir a imagem de Deus, porque esta
faz parte da essência do homem. O pecado, pois, deformou de maneira grave21 a
Imago Dei; mas não a destruiu, senão o homem deixaria de existir.
2.3 Imago Dei na teologia escolástica
Após a análise de algumas das formulações da era patrística, é necessário
que se conheça também a reflexão produzida na era escolástica. Será analisado o
pensamento de dois teólogos que podem ser considerados como expoentes desta
escola e que também influenciaram grandemente a reflexão sobre o tema da
Imago Dei.
Boaventura (1221 – 1274)
Ao analisarmos o pensamento de Boaventura22, iremos verificar que suas
idéias quanto à Imago Dei diferem totalmente dos demais, inclusive do
pensamento de Agostinho.
21 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 29. 22 BOAVENTURA (1221 – 1274) – Principal teólogo da primeira geração franciscana, conhecido também como “Doutor Seráfico”. Nasceu em Bagnoregio, perto de Viterbo, Itália. Estudou na Universidade de Paris com Alexandre de Hales (1180 – 1245), o primeiro professor franciscano desta universidade – visto que Alexandre já era professor quando decidiu entrar para Ordem dos Franciscanos. Visto que as portas dessa Universidade estavam fechadas tanto para os dominicanos como os franciscanos, Boaventura lutou junto com Tomás de Aquino em defesa das ordens mendicantes. Foi neste contexto que ele escreveu suas Questiones Disputae, “questões debatidas”,
25
Para Agostinho, "Similitudo" significava uma semelhança genérica e
imprecisa, ao passo que "Imago" indicava uma semelhança marcada e precisa. Já
para Boaventura, “Similitudo” indica uma semelhança ainda mais perfeita do que
a indicada por “Imago”23.
Quanto à divisão dos termos e significado de Imago, Boaventura seguiu o
pensamento de Agostinho. A divisão principal é entre Imago naturalis e lmago
artificialis: a primeira verifica-se quando a imagem se assemelha ao modelo por
força de sua própria forma natural (essencial); a segunda, pelo contrário, verifica-
se quando uma coisa se assemelha a outra por causa de um aspecto e de uma
forma acidental. Outra divisão importante é entre Imago naturalis, em que a
semelhança depende da própria natureza da coisa, independente do fato de que a
correspondência com o modelo se relacione ou não com a própria natureza (a
essência) deste último; e Imago connaturalis, em que a correspondência concerne
à própria natureza do modelo.
Boaventura recorda, antes de tudo, os vários modos pelos quais a
humanidade pode assemelhar-se a Deus. Para ele, há a semelhança fundada na
comunidade de natureza; há a semelhança baseada na participação de uma
natureza universal24 (como a semelhança entre o ser humano e cavalo enquanto
animais); há a semelhança na proporcionalidade, ou seja, na semelhança das
relações (por exemplo, entre o cocheiro e o marinheiro: um guia os cavalos; o
outro as embarcações); há a semelhança na ordem (por exemplo: entre pai e filho);
entre modelo e cópia.
Boaventura chega à conclusão de que entre o ser humano e Deus não pode
haver a semelhança dos primeiros dois tipos, visto que o homem não é da
substância de Deus. Há, no entanto, a semelhança dos três últimos tipos:
proporcionalidade, causa e efeito, modelo e cópia25.
e Sobre a pobreza de Cristo. Em 1257 obteve por fim, junto com Tomás, o título de “doutor” da universidade, com o direito a dar cursos nela. Como era costume da Universidade de Paris, Boaventura escreveu vários comentários bíblicos, assim como um Comentário às sentenças de Pedro Lombardo (?-1160). Escreveu também uma breve teologia sistemática sob o título De Breviloquium, uma série de conferências sobre os seis dias da criação, um breve tratado com o título De reductione artium ad theologiam, e numerosos Sermões e Opúsculos mais concisos. As suas obras mais lidas são Itinerarium mentis in Deum e Meditationes vitae Christi. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 113 - 115. 23 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 124. 24 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 125. 25 MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 126.
26
No pensamento de Boaventura, a atuação da Imago Dei se alcança quando o
ser humano se torna consciente de sua semelhança com Deus e se comporta de
maneira conveniente, ou seja, dirigindo sua atenção e seu amor a Deus. Quando,
pelo contrário, se dirige às criaturas inferiores, torna-se semelhante à coisa onde
não está presente a Imago Dei, mas apenas um vestigium.
A verdadeira Imago só existe em quem é consciente de ser uma participação
do ser divino.
Santo Tomás de Aquino (ca.1225 – 1274)
Alguns historiadores vêem em Tomás de Aquino26 o iniciador de uma nova
antropologia. Ele não perde de vista o pensamento de seus colegas quanto à
questão da Imago Dei. Uma preocupação grande permeia o seu pensamento: ‘Será
que o ser humano perdeu a imagem de Deus?’ Assim como Agostinho, ele chega
à conclusão de que isto é impossível, senão o ser humano deixaria de existir.
Na dimensão da Imago Dei, Tomás afirma que a exemplaridade não se
refere somente a uma parte, mas ao homem todo, pois abrange a alma e o corpo.
Alguns autores de inspiração platônica e agostiniana restituíram a Imago Dei à
26 SANTO TOMÁS DE AQUINO (ca.1225 – 1274) – Teólogo dominicano de origem italiana. É, sem dúvida, um dos mais importantes e influentes teólogos escolásticos, por sua influência sobre a vida da igreja através dos séculos. Entre outros títulos honoríficos, Tomás foi chamado de Doctor Communis (no séc. XIII) e Doctor Angelicus (no séc. XV). Tomás foi enviado à abadia beneditina de Monte Cassino aos cinco anos de idade. Ali ele foi introduzido na vida espiritual e aprendeu além das destrezas básicas da leitura, a escrita e a matemática. Os conflitos entre o Imperador e o Papa resultaram na ocupação da abadia pelas tropas imperiais, em conseqüência os jovens que ali estudavam foram enviados para Nápoles, à universidade imperial fundada em 1244. Foi ali que Tomás tomou, pela primeira vez, conhecimento da filosofia aristotélica. Aos 19 anos de idade, Tomás ingressou na Ordem dos Pregadores – nome formal dos dominicanos. Tomás era parte do escolasticismo, um movimento teológico e filosófico da Idade Média praticado nas escolas (daí seu nome) que se preocupava com interpretação sistemática dos textos. Todavia é importante assinalar, que Tomás não escreveu a sua Summa Theologiae, “Suma Teológica”, como livro substituto para a Bíblia, mas como uma ajuda aos principiantes que necessitavam de um resumo da “sacra doutrina”. São importantes algumas considerações sobre a sua Summa visto que é sua obra mais conhecida e mais influente. Sobre o seu método filosófico e teológico. Ao mesmo tempo em que dava primazia à revelação de Deus ao povo de Israel e mediante Jesus Cristo, Tomás também reconhecia a importância da razão humana. À diferença de muitos de seus contemporâneos que confundiam razão com a fé, Tomás sublinhava a importância da filosofia aristotélica e das ciências. A teologia tomista é diferente da filosofia pura, e depende do dom divino da fé, que nos chega mediante a revelação, a adoração, a vida espiritual e a especulação humana sobre elas. Logo a razão não se opõe à fé, mas está a seu serviço. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 619 - 626.
27
alma, por sua vez, Tomás de Aquino concebe o homem como unidade substancial
de alma e corpo e afirma que também este participa da semelhança divina.
Todavia, também Tomás de Aquino acompanha a maior parte dos padres e
teólogos medievais e reconhece que a Imago Dei é essencialmente propriedade da
alma. E esta possui, também, as faculdades espirituais próprias da natureza divina,
isto é, o conhecer e o querer. Para Tomás de Aquino, o fundamento último da
Imago Dei está no conhecimento. A imagem reside, sobretudo, na memória e na
inteligência, portanto, a imagem encontra-se inteira na parte intelectiva27, como
em sua raiz; e, por conseguinte, tudo que se atribui ao homem a partir da imagem
refere-se primariamente à faculdade afetiva. Quanto ao mais, é da parte intelectiva
que recebe a característica de constituir-se humano, enquanto que da parte afetiva
lhe advém a qualidade de ser bom ou mau.
Desta forma, para Tomás de Aquino, a Imago Dei existe de três modos
diferentes que podem ser definidos da seguinte maneira: a Imago Creationis, a
Imago Smilitudinis e a Imago Recreationis. A primeira imagem consiste na razão
como representação da sabedoria Divina. A segunda imagem consiste nas
faculdades distintas da alma que representam a Santíssima Trindade, a saber, a
memória, o intelecto e a vontade. Este modo da imagem é comparado por Tomás
às imagens corporais que correspondem aos seus modelos quanto à distinção das
partes. A terceira imagem consiste nos hábitos gratuitos, ou seja, nas chamadas
virtudes sobrenaturais, através das quais Tomás de Aquino compara as imagens
corpóreas no que concerne à correspondência das cores ou outros elementos
decorativos.
Santo Tomás de Aquino conclui, baseando-se nas distinções das imagens,
que somente a terceira – Imago Recreationis – foi perdida após a queda humana,
permanecendo inalteradas as demais imagens, uma vez que se fundamentam nas
propriedades que pertencem à própria natureza do ser humano.
Tomás de Aquino conclui que existe entre o ser humano e Deus uma relação
de semelhança que permanece intacta, apesar da distância infinita que separa
qualquer criatura de Deus, conservando o valor de verdadeira e própria imitação e
27 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica Vol.II, página 625.
28
representação sendo, portanto, é legítimo e bom falar do ser humano como Imago
Dei28.
2.4 Imago Dei na Reforma protestante
Os reformadores, não aceitam a diferença entre imagem e semelhança, e
consideram que a Justiça original estava incluída na imagem de Deus e que
pertencia à verdadeira natureza do homem em sua condição original. Existe
diferença de opinião entre Martinho Lutero29 (1483 – 1546) e João Calvino30
(1509 – 1564).
28 Cf. MONDIN, Batista. Antropologia Teológica. História – problemas – perspectivas, página 139. 29 MARTINHO LUTERO (1483 – 1546) – Reconhecido como fundador da Reforma do Séc. XVI e do protestantismo. Não só iniciou o nascimento de uma terceira ramificação teológica cristã, junto ao catolicismo romano e a ortodoxia oriental, mas também influenciou o pensamento teológico, social, econômico e político de futuras gerações em todos estes ramos da igreja. Lutero nasceu numa família de classe média em Eisleben, na região da Saxônia-Anhalt. Seu pai desejava que fosse advogado, por isso Lutero recebeu o grau de bacharel em artes (1501) e de mestre em artes (1505) na universidade de Erfurt, entrando posteriormente na Faculdade de Leis. Após uma experiência mística decide tornar-se monge. Em 1506 professou seus votos, tornando-se monge agostiniano, e no ano seguinte é ordenado ao sacerdócio. Foi selecionado para estudar teologia em Wittenberg, onde em poucos meses foi declarado bacharel em estudos bíblicos. Lutero desenvolve a sua visão antropológica, conhecida como antropologia realista, onde o ser humano por ser composto de corpo e alma em sua realidade ontológica. Somos seres humanos em nossa totalidade. Assim, Lutero não distingue corpo, alma e espírito, mas enxerga o ser humano completo em sua relação com Deus. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 432 - 438. 30 JOÃO CALVINO (1509 – 1564) – Principal teólogo protestante da segunda geração. Calvino foi de certo modo o sistematizador do pensamente de Lutero, mas em vários pontos se distanciou deste reformador. Destas diferenças surge a tradição “reformada”. Desta forma, ser reformado, se distingue da tradição “luterana”. Calvino nasceu em Noyon, França, na época cidade episcopal, cujo bispo e senhor foi protetor da família de Calvino. O resultado desta relação foi que com apenas 12 anos, o jovem Calvino obteve o primeiro dos “benefícios” eclesiásticos (isto é, posições cujos rendimentos recebia sem estar presente) com os quais pôde estudar e se sustentar economicamente. Calvino recebeu estes benefícios até 1534, quando o impulso reformador o levou a renunciar. Calvino estudou em algumas das melhores escolas de Paris com o objetivo de seguir uma carreira eclesiástica. Mas algum tempo depois decidiu dedicar-se aos estudos do direito, primeiro em Orléans e depois em Bourges. Em outubro de 1534, Calvino se vê obrigado a fugir da França e vai para a Basiléia, onde se dedicou ao projeto de escrever um catecismo para os protestantes de língua francesa. Com esse propósito ele se dedicou ao estudo da teologia e a ler as obras de Agostinho, Lutero e outros. O livro surgido desses esforços, foi publicado na Basiléia em 1536, tinha o título de Christianae religionis Institutio (Institutas da religião cristã). Que consistia em seis capítulos num total de 516 páginas. Depois desta publicação, Calvino viajou pela Itália e França. Dirigindo-se para Estrasburgo, conflitos bélicos o obrigaram a tomar o caminho de Genebra. Ali o reformador Guilherme Farel insistiu para permanecesse e assumisse o trabalho de reformador. Calvino, após resistir à idéia de
29
Lutero não reconhece a imagem de Deus em nenhum dos dons naturais do
ser humano, tais como suas potências racionais e morais, se não exclusivamente
na Justiça original, e, portanto a considera eternamente perdida por causa do
pecado.
Para Calvino, a expressão imagem de Deus denota a integridade com que
Adão foi dotado quando seu intelecto era lúcido31, quando seus afetos estavam
subordinados à razão, quando todos os sentidos estavam devidamente regulados, e
quando verdadeiramente Adão descrevia toda a existência dos admirados dons do
seu Criador.
O mais importante, para Calvino, é que a concepção de imagem e
semelhança encontra-se na mente, no coração, e na alma do ser humano. Em
Calvino, o termo "imagem de Deus" inclui tanto os dons naturais como aquelas
qualidades espirituais designadas como Justiça original e são esses atributos, a
Justiça e a Santidade, que o ser humano perdeu com a queda. Mas que são
recuperáveis em Cristo à medida que o ser humano é alcançado pela sua graça
salvadora, desta forma ele deixa de ser "homem natural" para se converter em
espiritual e fazer brilhar de novo esta imagem que está por ora obscurecida32.
Para Calvino, o homem não perdeu a imagem de Deus no sentido em que
muitos afirmam, pois se assim fosse, o homem deixaria de existir e não seria mais
a imagem de Deus.
2.5 Imago Dei na teologia contemporânea
Após examinarmos o desenvolvimento da doutrina da Imago Dei na visão
dos principais teólogos dos períodos supracitados, analisaremos o pensamento dos
permanecer, se sentiu obrigado por Deus a aceitar o desafio de Farel. Até que alguns anos depois por tensões entre os reformadores e também com as autoridades civis, levaram Calvino a abandonar Genebra e se dirigir a Estrasburgo. Em setembro de 1541, Calvino retorna a Genebra, onde passaria o restante de sua vida. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 145 - 151. 31 Cf. CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. 1, página 84. 32 Cf. CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. 1, página 86.
30
teólogos modernos. Com este intuito, seguem abaixo as interpretações de alguns
dos considerados mais importantes teólogos contemporâneos.
Karl Barth (1886 – 1960)
Karl Barth33, assim como Brunner, ensina que o homem descobre através da
consciência de si mesmo sua relação pessoal-atual com Deus.
Barth procura um caminho para conceber com precisão uma analogia ou
similaridade entre a existência humana e a própria existência de Deus, assim ele
enfatiza que não se trata de uma questão de analogia entis. Por analogia entis, ele
entende uma tentativa da teologia Católica Romana para construir, com bases
humanas, uma criatura afiliada a Deus, que é o próprio ser humano34. Em todo
caso, Barth procura fazer essa analogia no sentido da analogia fidei, que ele
entende como sendo a correspondência entre a existência de Deus e a existência
do ser humano, que somente pode ser percebida pela fé no Deus que afirma que
todos os seres humanos estão no homem Jesus35.
Ele distingue entre a Imago "formal" do Antigo Testamento, que consiste
em indestrutível humanitas; e a Imago "material" do Novo Testamento, que se
perdeu com o pecado e é recuperada pela fé. A imagem formal que constitui o
homem e sua humanidade encontra sua expressão na liberdade e, sobretudo, e a
responsabilidade diante de Deus. Barth vê uma imagem de relação do homem com
Deus como na existência dialogal do varão e da mulher36; e esta relação se refere
ao movimento em que Deus vem e habita no homem. Esta relação dialogal entre
33 KARL BARTH (1886 – 1960) – Pastor e teólogo da Igreja Reformada da Suíça, um dos mais importantes teólogos do séc. XX, reconhecido como fundador da teologia dialética ou neo-ortodoxa. Nasceu em Basiléia na Suíça e se criou dentro de uma família educada e dedicada ao ministério. Seus dois avôs e seu pai eram pastores. Mesmo Barth tendo recebido a sua formação teológica nas universidades de Bern, Tübingen e Manburg, nunca defendeu um doutorado de teologia. Dedicando-se principalmente ao trabalho pastoral, sua teologia surgiu do desafio da demanda do ministério e da pregação. A sua teologia é plenamente desenvolvida em resposta ao liberalismo teológico. Pode-se dizer que a sua obra Die Kirchliche Dogmatik, “Dogmática eclesiástica”, é uma das obras teológicas mais importantes do século, que claramente será levada em consideração por muito tempo. Ao recolocar a teologia dentro da esfera eclesial, Barth recuperou muitas das doutrinas patrísticas e clássicas abandonadas pelo liberalismo. Ao mesmo tempo, oferece uma alternativa ao liberalismo sem negar os avanços críticos da era moderna. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 83 - 88. 34 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 160. 35 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 167. 36 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 168.
31
homem e mulher a designa como universal. Esta tese pretende afirmar que um
contato de Deus com o homem só é possível por meio de um "canal" que Barth
chama de Cristológico. O divino só se comunica por meio da fé e de Sua Palavra
encarnada37.
Emil Brunner (1889 – 1966)
Emil Brunner38 aborda esta questão de um ponto de vista antológico, porém
não histórico. Ele nega que se possa falar de duas Imagos Dei, sendo uma
sobrenatural e outra natural e que somente a primeira Imago teria sido perdida
com o pecado original. Para Brunner a Imago Dei é uma só; e o pecado não a
destruiu39, porém, a perverteu.
"No sentido genuíno da Bíblia, o homem deve ser interpretado por um principio único, pela Palavra e imagem de Deus originais. A humanidade do homem é uma dualidade na unidade, natureza e graça. A destinação divina é a natureza originária própria do homem e aquilo que agora nós reconhecemos no homem como sua ‘natureza’ é ‘natureza desnaturada’, é apenas um mísero resto do original. O homem não perdeu uma sobrenatureza com o pecado, mas precisamente a sua natureza, aquela que lhe foi dada por Deus, e tornou-se inatural, inumano."40
Ao contrário da doutrina católica, Brunner não aceita a dupla semelhança,
uma que não se pode perder, que é a imagem; e a outra que pode ser perdida, que
37 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 47. 38 EMIL BRUNNER (1889 – 1966) – Pastor e teólogo protestante que ensinou teologia dogmática em Zurique, Suíça. Brunner tinha tendências liberais. Enfatizava a dimensão social e ética dos evangelhos e também a capacidade racional humana para discernir as verdades da fé. Depois da Primeira Guerra Mundial, como aconteceu com muitos teólogos de sua época, seu pensamento se tornou crítico com relação à teologia liberal. Rejeitou então o postulado de Schleiermacher (1768-1834), que a doutrina cristã possa derivar da experiência pessoal ou comunitária. Brunner insiste na necessidade da revelação bíblica para definir o caráter distintivo do cristianismo. Brunner defende a teologia natural, pois todos os seres humanos têm um conhecimento, limitado, porém valioso, de Deus. Assim com Lutero, Brunner postula a existência e importância das “ordens da criação”. Estas ordens são instituições ou práticas sociais de origem humana. Ainda que essas instituições e práticas não sejam derivadas da revelação bíblica, a revelação as afirma como parte dos propósitos de Deus. Para Brunner, o dever do teólogo cristão é estabelecer um diálogo construtivo com o mundo secular e com representantes das outras religiões. A vida humana se desenvolve com plenitude num contexto comunal, sempre e quando a individualidade do ser humano não é negada pela comunidade. Assim, unicamente a revelação bíblica nos apresenta a pessoa, o Cristo, que representa a verdadeira liberdade e plenitude do ser humano. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 129 - 131. 39 Cf. FERREIRA, Júlio Andrade (Org.). Antologia Teológica, página 288 40 BRUNNER, Emil. Der Mensch im Widerspruch, página 84. In. MONDIN, Batista. Os Grandes Teólogos do Século XX, página 90.
32
é a Similitudo. A primeira faz parte da natureza e a segunda da atual relação com
Deus. A essência do homem, ao contrário, deve ser entendida unitariamente do
ponto de vista da relação com Deus, sem distinção entre natural e sobrenatural.
Essa teologia unitária é invertida pelo pecado, mas, mesmo na inversão, ela
mostra na estrutura humana os traços da imagem de Deus, de maneira que o
formal humano remete-se precisamente à origem perdida.
Deste pensamento surgem duas idéias principais, a saber:
1) O estado de pecado não exclui a criatura "homem" em relação a Deus,
pois o homem ainda se encontra diante de Deus e em relação com Deus. Mas isto
não quer dizer que o homem é indesculpável.
2) A Imago Dei não é anulada, mas sofre uma reviravolta,pois "o pecado é a
inversão da posição original. Isso muda o ser-para-Deus em ser-longe-de-Deus."41
No pensamento de Emil Brunner, a imagem de Deus no homem consiste na
relação do homem para com o seu Criador.
Reinhold Niebuhr (1892 – 1971)
Reinhold Niebuhr42 fez um estudo acurado a respeito da Imago Dei nas
Escrituras, nos Padres da Igreja, nos Escolásticos e nos reformadores, e de forma
mais acentuada em Santo Agostinho e Lutero.
Niebuhr faz ver que o primeiro a negar a imagem de Deus, depois do
pecado, foi o reformador Martinho Lutero que ,no entanto, só conseguiu fazê-lo a
custo de muitas incongruências.
Com efeito, ainda que Lutero insista em que ‘a imagem está de tal forma deteriorada e ofuscada pelo pecado e tão ‘leprosa e suja’ que nos impede até mesmo de ‘ter um conceito dela’ na mente, ele procede, todavia, à busca de uma
41 BRUNNER, Emil. Der Mensch im Widerspruch, página 26. In. MONDIN, Batista. Os Grandes Teólogos do Século XX, página 92. 42 REINHOLD NIEBUHR (1892 – 1971) – Foi um dos teólogos mais influentes na vida política dos Estados Unidos da América. Foi pastor da Igreja Unida de Cristo; também pastoreou a Bethel Evangelical Church em Deitroit (1915-1928) e lecionou ética no Union Theological Seminary de Nova York. Sua principal contribuição ao pensamento teológico, e que fundamenta o seu realismo histórico e político, é a sua doutrinada natureza humana e do pecado. Seguindo Agostinho, Kierkegaard (1813-1855), Calvino e Lutero, e baseando-se na Bíblia, Niebuhr também insiste que a vida coletiva é mais propensa ao pecado que a vida pessoal. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 495-496.
33
compreensão e uma definição da imagem de Deus, em amplo contraste com a condição atual de pecado.43
Para Niebuhr, a natureza humana é transcendente e livre, ao mesmo tempo
em que é finita e presa aos limites desta natureza. Assim, existe a natureza
intocável que consiste de dois elementos: o seu caráter e a sua liberdade.
Pertencem à natureza essencial do homem, todos os seus dotes e determinações
naturais, os impulsos físicos e sociais, as diferenciações sexuais e racionais; ou
seja, o seu caráter. Enquanto criatura inserida na ordem natural e como ser finito e
natural, o ser humano tem consciência da ameaça da morte e esta lhe traz um
sentimento de que a sua vida é sem significado.
Por outro lado, sua natureza essencial abarca também a liberdade de
espírito, a sua transcendência em relação aos processos naturais e, por fim, a sua
autotranscendência. Como seres transcendentes, o ser humano reconhece a Deus
como aquele que fornece os padrões para a sua realização como ser44.
Niebuhr chama a liberdade, da qual o ser humano é dotado, de liberdade
radical, na medida em que é capaz de escolher não só entre várias coisas, mas
também a si mesmo.
Dietrich Bonhoeffer (1906 – 1945)
Para Dietrich Bonhoeffer45, Deus criou Adão segundo a Sua própria imagem
e procurava se agradar na criação deste, pois "era muito bom". Em Adão Deus
43 NIEBUHR, Reinhold. The Nature and Destiny of man. Vol. 1 página 160. In. MONDIN, Batista. Os Grandes Teólogos do Século XX, página 157. 44 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 496. 45 DIETRICH BONHOEFFER (1906 – 1945) – Teólogo alemão, morto pelas mãos dos nazistas. Estudou com alguns dos teólogos europeus mais conhecidos, como por exemplo, Harnack e Barth. Também se tornou amigo de Reinhold Niebuhr quando visitou o Union Theological Seminary em Nova York. Sua formação teológica se deu junto com a prática pastoral e seu comprometimento com a comunidade cristã internacional. Quando a igreja alemã oficial se declarou a favor do nazismo, Bonhoeffer lutou para que a igreja internacional reconhecesse a Igreja Confessante como a única legítima na Alemanha. Em 1944, os nazistas descobriram sua participação na conspiração para assassinar Hitler, levaram-no para uma prisão de segurança máxima, e em abril de 1945, foi executado, alguns dias antes das tropas aliadas libertarem a prisão de Flossenbürg. Sua obra de maior impacto de sua obra Nachfolge, “Discipulado”. Esta obra critica a noção de “graça barata”, que distorce a doutrina de salvação pela fé. A alternativa é a “graça dispendiosa” que é parte intrínseca a todo verdadeiro discipulado. O discipulado é caro porque pode custar a vida; e é gratuito porque dá a chance da única vida verdadeira. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 120 - 122.
34
reconhecia-se a si mesmo. Deus criou o ser humano para refletir a Sua "imagem"
neste mundo. Mas este ser perdeu a sua natureza fudamental, a Imago Dei, que o
próprio Deus lhe havia dado. A partir desta perda o homem vive "alienado" de sua
destinação verdadeira: ser semelhante a Deus.
Na concepção de Bonhoeffer, quando o homem pecou, ele perdeu a imagem
de Deus que lhe fora outorgada e o homem, de si mesmo, não pode fazer nada.
Diz ainda que a imagem de Deus como Graça do Criador continua perdida nessa
terra. Em seu livro "Discipulado", Bonhoeffer diz o seguinte:
Deus, porém não desvia o olhar da criatura perdida. Quer uma segunda vez, criar no homem a Sua imagem. Deus quer novamente comprazer-se em sua criatura. Procura nela Sua própria imagem para poder amá-la. Todavia, não a encontrará de outra forma, se não, assumindo ele mesmo, por misericórdia, a imagem e a estatura dos homens perdidos. Deus tem de assumir a forma do homem, porque o homem já não pode reassumir a forma de Deus. 46
Dietrich Bonhoeffer não encara o termo perda da imagem como algo
irrecuperável, mas diz que o homem perdeu a parte espiritual, a comunhão direta
com Deus. O homem ainda reflete a imagem de Deus no mundo, embora de uma
forma obscurecida e diz que se a tivesse perdido totalmente ele deixaria de existir,
mas ela está apenas obscurecida, embaçada. Porém, em Cristo, ela se refaz para o
pleno reconhecimento e nele somos transformados de glória em glória.
Wolfhart Pannenberg (1928 -)
O teólogo luterano alemão Wolfhart Pannenberg47 formulou o seu conceito
único de Imago Dei.
Pannenberg observa que a metafísica tradicional compreende o ser humano
como um microcosmo, que é entendido em termos deste mundo e que se destina a
46 BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado, página 189. 47 WOLFHART PANNENBERG (1928 -) – Teólogo luterano alemão, nascido em Stettin. Estudou filosofia em Berlim e Göttingen, antes de dedicar-se a teologia, a qual estudou na Basiléia com Barth. Depois continuou seus estudos em Heidelberg, onde, mais tarde se tornou professor. Em 1968 assumiu uma vaga na faculdade de teologia da Universidade de Munique. A teologia de Pannenberg se define por uma ênfase histórica universal. A história só pode ser entendida em sua totalidade e interpretada por meio de seu fim ou meta. Este fim se manifesta na vida, morte e ressurreição de Cristo, que devem ser interpretados por uma ótica escatológica. Para Pannenberg, a revelação divina se manifesta mediante os eventos históricos e públicos que são interpretados como ações de Deus na história. Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 513 - 514.
35
duplicar a sua estrutura na própria existência, o que já não é mais aceitável para a
humanidade atual. O homem moderno pretende governar o mundo, para o mundo
que “is no longer a home for man: it is only the material for his transforming
activity.”48 Assim, o ser humano de hoje já não pode firmar sua identidade neste
mundo. A questão sobre a sua identidade é rebatida com o próprio ser humano. O
ser humano só é capaz de lidar com esta questão porque ele é um ser
fundamentalmente distinto do resto do reino animal, através de uma habilidade
única e exclusiva humana, chamada por Pannenberg de “openness to the world.”49
Pannenberg considera dois outros aspectos da humanidade que, por sua vez,
estão relacionados com a imagem de Deus, ou seja, relacionamentos e domínio
sobre o mundo. Sobre o aspecto relacional da humanidade, Pannenberg enxerga o
ser humano como fundamentalmente relacional. Daí, sua definição provisória da
Imago Dei. Pannenberg enfatiza a relação do homem com Deus como pré-
requisito necessário para a correta dominação do mundo:
Man pushes beyond everything he meets in the world, and he is not completely and finally satisfied by anything. However, would that not mean an ascetic turning away from the world rather than openness for it? One might easily think so. The fact is, however, man’s community with God directs him back into the world. In any case that is the thought involved in the biblical idea about man as the image of God. Man’s destiny for God manifests itself in his dominion over the world as the representative of God’s dominion over the world.50
Segundo Pannenberg, a imagem de Deus no ser humano é a garantia da sua
participação no “eterno presente” de Deus, ou simplesmente de colocá-lo na vida
eterna.
“Man’s destiny for dominion over the world as the representative of its Creator also includes the destiny to participate in eternity, for the scope of dominion, as we have seen, is always tied to the scope of what is experienced at present. 51
48 PANNENBERG, W. What is Man, página 2. – (…) não é mais um lar para o homem: é apenas o material para a sua atividade transformadora. (tradução particular). 49 PANNENBERG, W. What is Man, página 3. – abertura para o mundo (tradução particular). 50 PANNENBERG, W. What is Man, página 14. - "O homem empurra para lá tudo o que encontra no mundo, e ele não está completamente e finalmente satisfeito por nada. No entanto, isso não iria significar um desvio ascético para longe do mundo, em vez de abertura para ele? Podemos facilmente pensar assim. O fato é, no entanto, a comunidade do homem com Deus o dirige novamente para o mundo. Em qualquer caso, este é o pensamento envolvido na idéia bíblica sobre o homem como imagem de Deus. O destino do homem é para Deus manifestar-se no seu domínio sobre o mundo, como representante de Deus sobre o mundo.” (tradução particular). 51 PANNENBERG, W. What is Man, página 76. – “O destino do homem para o domínio sobre o mundo como o representante do seu Criador inclui também o destino de participar na eternidade,
36
Pannenberg, ao lado de teólogos como Paul Althaus, Helmut Thielicke, Karl
Barth e outros diz que o ser humano é constituído por "divina intenção criativa"
que em princípio não pode ser perdida.52 Assim, através da conclusão de que nada
foi realmente perdido, Pannenberg, ao mesmo tempo, evita em sua mente, a
dificílima discussão sobre o estado original da união do homem com Deus. E essa
idéia segundo Pannenberg não é nem muito significativa para fins teológicos e
nem é defensável, à luz das descobertas científicas e históricas.
Pannenberg acrescenta ainda outro aspecto muito importante, a saber, o
aspecto comunitário da Imago Dei, ou como ele chama, estrutura da sociedade:
The destiny of human beings to be images of God would then be fulfilled in the reconciliation of the world through the coming of the Messiah. In the New Testament, Christ is described, is he not, as the realized image of God (2 Cor 4:4)? He is such not for himself alone but as head of his body, the church (Col 1:15,18), in which the community of a human race that is renewed and united under the reign of God already makes its appearance in signs. To that extent the image of God in human beings, when viewed from a standpoint of its realization in Jesus Christ, has in fact a “societal structure”.53
Assim, o aspecto comunitário da Imago Dei segue o aspecto comunitário da
igreja, o corpo de Cristo na terra, e está extremamente ligado ao conceito do
homem como representante de Deus como o governante sobre todo o restante da
criação de uma maneira amorosa e responsável.
pois o âmbito do domínio, como já vimos, está sempre vinculado ao alcance do que é experimentado atualmente.” (tradução particular). 52 PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, páginas 59-60. 53 PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 531. - "O destino dos seres humanos de serem imagens de Deus passaria então seria cumprido na reconciliação do mundo através da vinda do Messias. No Novo Testamento, Cristo é descrito, ele não é, como a imagem de Deus realizada (2 Cor 4:4)? Ele o é apenas por si próprio mas como cabeça de seu corpo, a igreja (Col 1:15,18), no qual a comunidade de uma raça humana que renovada e unida sob o reinado de Deus já faz a sua aparição em sinais. Nessa medida a imagem de Deus nos seres humanos, quando visto a partir da sua realização em Jesus Cristo, tem de fato uma "estrutura social". " (tradução particular).
3 Jesus Cristo – Verdadeiro Deus e verdadeiro homem
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.
João 1.14
Jesus, o Verbo Encarnado, reflete com toda a perfeição a Imago Dei. No
entanto, desde o início da igreja cristã, as naturezas de Jesus Cristo foram alvos de
várias controvérsias, despertando, assim, as inquietações dos líderes e teólogos
dessa época que produziram formulações de fé (Credos) e também doutrinas
basilares da cristandade.
Dentre estas controvérsias, seguem algumas das que mais se destacaram e
que mostram a evolução da compreensão das naturezas de Jesus Cristo, bem como
as implicações dessas naturezas para o ser humano.
3.1 Gnosticismo
Deriva do termo grego “gnw/sij”, que significa conhecimento. Era uma
tentativa de incorporar várias idéias da filosofia e mitologia gregas na
interpretação da vida e obra de Jesus Cristo.
De conformidade com o pensamento gnóstico, Jesus é compreendido como
demiurgo deste mundo. Ele é uma criatura superior, mas não o Deus supremo,
nem filho de Deus em qualquer sentido especial. Os gnósticos negavam a
verdadeira humanidade e a deidade essencial de Jesus Cristo.
Alguns gnósticos aceitavam que Jesus era um ser humano controlado por
um ser celestial1; mas outros criam que um ser celeste descera à Terra a fim de
cumprir uma missão e que a sua humanidade não passava de uma mera ilusão.
1 GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 299.
38
3.2 Docetismo
Deriva do termo grego “dokeo”, que significa "parecer". O ensino geral é que
a humanidade de Jesus era ilusória. Jesus apenas parecia ser humano. Entre outras
idéias, encontra-se a de que Jesus já existia como homem quando o "espírito de
Cristo" veio controlá-lo; mas não houve verdadeira encarnação de Cristo, nem o
Cristo sofreu ou morreu. Unicamente o Cristo Divino apossou-se de Jesus no seu
batismo e o abandonou quando morreu na cruz. O homem Jesus em sentido algum
seria Deus, mas tão somente um homem mais sábio do que os demais.
Os primeiros pais da Igreja, Inácio (ca. 35-ca. 107), Irineu de Lyon,
Tertuliano (ca. 155-220) e outros se opuseram vigorosamente ao docetismo. O
bispo Inácio em sua carta a igreja de Esmirna, afirma que aqueles que não crêem
na encarnação negam o próprio Cristo e estão envolvidos pela morte, não sendo
digno que seus nomes sejam citados2.
Parte da doutrina gnóstica tinha tendências ou implicações docéticas. Se o
espírito de Cristo viera controlar o homem Jesus, não havia Cristo humano real,
porquanto seu espírito viera e se fora, mas não fazia parte da personalidade de
Jesus.
Outros seguidores da linha docética também eliminavam completamente a
sua humanidade, imaginando que Jesus teria surgido repentinamente dos céus,
pelo que também não havia qualquer natureza humana. E a sua forma humana que
parecia existir era tão-somente uma ilusão. Essa posição geralmente elimina
qualquer idéia sobre o "Salvador Sofredor". Cristo apenas pareceria ter sofrido.
Ele era divino, logo não poderia sofrer.
2 Ignatius, The Epistle of Ignatius to the Smyrnæans. In The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus, página 165.
39
3.3 Arianismo
O arianismo, que derivou seu nome de Ário (ca. 250-ca. 336), presbítero na
igreja de Baucalis, na cidade de Alexandria e que era discípulo de Luciano de
Antioquia, combinava o ponto de vista monárquico e adocionista com a
cristologia do Logos, de Orígenes. O monarquianismo, que sugere "unidade",
salientava a unidade da deidade em oposição às distinções dentro da própria
deidade. A doutrina do Logos, por sua vez, procurava estabelecer a transcendência
de Deus, e o Logos seria uma emanação ou expressão de Deus, mas não podia ser
identificado com o Deus Altíssimo, que deveria ser visto como totalmente
transcendental3.
Para Ário, o Logos era perfeita criatura, parte da criação de Deus, embora
pudesse ser um agente ativo em outros atos da criação. Ário acreditava que o
Logos se tornara carne em Jesus, mas negava que Jesus possuísse alma humana. A
pessoa de Cristo não possuía deidade essencial. Cristo teria sido a primeira das
criaturas e a maior de todas, podendo até mesmo ter se tornado em uma espécie de
deus por adoção, mas jamais como o Pai transcendental. Todavia, poderia ser
objeto da adoração dos homens.
A idéia fundamental de Ário era que a deidade essencial jamais poderia
identificar-se com esta esfera terrena inferior, porquanto isso seria uma espécie de
contaminação. Logo a deidade de Cristo, deveria ser diferente da deidade do Pai.
Este ensino provocou uma crise na igreja de Alexandria, já que o bispo
Alexandre (?-328) se posicionou contra o ensino de Ário, afirmando que o Pai e o
Filho são coeternos. Após longas discussões, Ário é condenado e deposto do seu
cargo por um sínodo convocado em Alexandria pelo bispo Alexandre.
Depois de receber o apoio tanto da sua igreja local, como de seus
companheiros a quem chamava de “colucianistas”4, entre eles o bispo Eusébio de
Nicomédia (?-ca. 342), que era parente do imperador Constantino; ele fez com
que uma crise que havia se iniciado como uma disputa local se tornasse uma
3 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 54. 4 Maneira empregada por Ário para distinguir os discípulos de Luciano de Antioquia, de quem Ário também fora aluno.
40
ameaça para dividir a igreja, que na visão de Constantino era o “cimento do
império”.
Esta ameaça de cisma fez com que o imperador convocasse uma grande
assembléia dos bispos, para se reunir na cidade de Nicéia. O Concílio de Nicéia
(325)5, como ficou conhecido, contou com a presença de cerca de 250 a 318
bispos. No Concílio de Nicéia o arianismo foi condenado como herético, ficando
estabelecido que o Pai e o Filho são coeternos e consubstanciais. Garantindo-
se,desta forma, a plena divindade de Jesus.
Destaca-se na defesa da fé nicena Atanásio6 (295-373), que na época do
Concílio era um diácono e assumiu o episcopado de Alexandria em 328. Ele teve
um papel fundamental na consolidação da doutrina da encarnação. Para Atanásio,
a encarnação do Verbo foi a forma utilizada por Deus para a restauração da sua
imagem no ser humano: “Por isso, o Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de
que, sendo à Imagem do Pai, possa re-criar o homem segundo essa imagem”7. O
pensamento de Atanásio será retomado mais adiante, bastando por ora a
compreensão de sua postura frente à heresia ariana.
3.4 Apolinarianismo
O Apolinarianismo foi a idéia cristológica defendida por Apolinário (310-
390), Bispo de Laodicéia da Síria8. Enquanto o Arianismo defendia que Jesus
Cristo não era Deus, o Apolinarianismo ia contra o ensino de que Cristo possuía a
natureza humana. Alegava assim, que Cristo era apenas Deus, não aceitando a
doutrina da encarnação de que “[...] o Verbo se fez carne e habitou entre nós [...]”.
Para Apolinário, Cristo possuía mente e espírito divino, o que o
impossibilitaria de passar por tentações e genuínas limitações da humanidade.
Contradizendo que Jesus participou de uma humanidade como a nossa para que
5 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 491. 6 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 493. 7 SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 143. 8 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 52.
41
houvesse o completo efeito da expiação. Para ele, Jesus era dotado de um corpo
humano natural, mas não possuía uma alma humana, e que esta alma, na
realidade, seria o próprio Verbo de Deus.
No Concílio de Constantinopla (381), os ensinamentos do Apolinarianismo
foram declarados heréticos e a postura do Concílio de Nicéia, de que Jesus é
verdadeiro Deus e também verdadeiro homem, foi reafirmada.
Destacam-se no combate ao Apolinarismo os pais Capadócios: Basílio, o
Grande (330-379); Gregório de Nazianzo (ca. 330-ca. 390) e Gregório de Nissa9.
Apesar de Apolinário ter levantado certo grupo de discípulos, seus ensinos não
permaneceram e seu movimento se desfez.
3.5 Nestorianismo
O Nestorianismo, interpretação cristólogica de Nestório patriarca de
Constantinopla (? - ca. 452), foi uma tentativa de solucionar a longa batalha entre
a cristologia alexandrina e a antioquena10. A primeira foi influenciada
profundamente por Orígenes e no tempo do Nestorianismo representada por Cirilo
de Alexandria (?-444). Era uma cristologia “unitiva”. Os teólogos alexandrinos
procuravam formas de salvaguardar a unidade da pessoa de Jesus Cristo, mesmo
que para isso a sua humanidade ficasse sujeita e ofuscada pela divindade. Diante
disso, os teólogos antioquenos sustentavam uma cristologia “disjutinva”11, ou
seja, uma cristologia onde esses teólogos insistiam na completa humanidade de
Jesus a fim de salvaguardá-la, distingui-la mais claramente e, às vezes, até separar
a divindade da humanidade.
No Concílio de Éfeso (431), Nestório foi condenado por afirmar que em
Jesus Cristo “há duas naturezas e duas pessoas”. Distinguindo assim a
humanidade da divindade, rechaçando a communicatio idiomatum, que é o
9 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 199. 10 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 488. 11 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, páginas 129 - 130.
42
princípio pelo qual em virtude da união das duas naturezas, os atributos de uma
podem ser predicados da outra e vice-versa.
3.6 Monofisismo
A luta contra o Nestorianismo deu ocasião a um surto do extremo oposto,
que foi o monofisismo, que afirma que em Jesus há uma só natureza e uma só
pessoa: a divina. O primeiro arauto desta tese foi Eutiques (Séc. V),
arquimandrita12 de Constantinopla. Ele reconhecia que Jesus constava
originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza
divina absorveu a humana, divinizando-a após a encarnação. Logo, só se poderia
falar de uma natureza em Jesus: a divina13. Esta doutrina tornou-se a heresia mais
popular e mais poderosa da antigüidade, pois, para os orientais, a divinização da
humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada cristão.
Eutiques foi condenado como herege no Concílio de Constantinopla (448).
Todavia não cedeu, e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava
combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.
Solicitado pelo patriarca Dióscoro de Alexandria, o imperador Teodósio II
convocou um novo Concílio para Éfeso (449), confiando a presidência do mesmo
a Dióscoro, que era partidário de Eutiques. Dióscoro, não permitiu que fosse lida a
Epístola Dogmática de Leão Magno, que reafirmava a fórmula de Tertuliano, que
em Cristo há duas naturezas (ou substâncias) e uma pessoa14. As duas naturezas
em Cristo não se misturam nem se confundem, mas cada qual exerce a sua
atividade própria em comunhão com a outra. Assim, Cristo teve realmente fome,
12 Arquimandrita (Grego: Αρχιμανδρίτης - Archimandrìtis) é um título dado pelas Igrejas orientais, sejam elas ortodoxas ou católicas, aos higumenos, ou aos sacerdotes celibatários que sejam dignos de honra pelos seus serviços prestados (os sacerdotes casados podem receber o título de arcipreste). O equivalente latino, em relação quando é dado para tais presbíteros celibatários, poderia ser o título de Monsenhor. Etimologicamente, significa Superior do mosteiro (de ἀρχη (arkhè), "maior", ou "archon", "governante" + μάνδρες (màndres), "clausura" ou "redil", denotando "mosteiro"). 13 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 260. 14 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 141
43
sede e cansaço como homem; e pôde ressuscitar os mortos como Deus. Esse
Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques e depôs Flaviano, patriarca
de Constantinopla, e outros bispos contrários à tese monofisita. Todavia os seus
decretos foram de curta duração.
Os bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a
expressão de Leão Magno, como o “latrocínio de Éfeso”. Pediam um novo
Concílio que de fato foi convocado pela Imperatriz Pulquéria e pelo seu marido
Marciano, o imperador do oriente logo após a morte de Teodósio II.
O novo Concílio reuniu-se em Calcedônia em 451. Foi o mais concorrido da
antigüidade, pois dele participaram mais de 600 membros. A assembléia rejeitou o
“latrocínio de Éfeso”; depôs Dióscoro e iniciou uma busca por uma posição
intermediária entre os alexandrinos e antioquenos15.
Em lugar de produzir um novo credo, o Concílio de Calcedônia produziu
uma definição de fé que não possui uma linguagem litúrgica, mas tem por
objetivo esclarecer a fé da igreja com respeito à pessoa de Jesus Cristo. Segundo
essa definição, Jesus era:
[...] perfeito em divindade e perfeito em humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem, de alma racional e corpo [contra Apolinário]; consubstancial ao Pai segundo a divindade [contra Ário], e consubstancial a nós segundo a humanidade [contra Eutiques] [...] da Virgem Maria, a Mãe de Deus [contra Nestório] [...] em duas naturezas [contra Eutiques e Dióscoro], sem fusão, sem mutação, sem divisão, sem separação, e sem que desapareça a diferença das naturezas por razão da união, mas salvaguardando as propriedades de cada natureza, e unindo-as numa só pessoa ou hypóstasis [com o qual o concílio adota uma postura intermediária entre alexandrinos e antioquenos]; não dividindo ou partindo em duas pessoas [contra Nestório], senão um e o mesmo Filho Unigênito [...]16.
Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há
duas naturezas e duas pessoas, pois isso destruiria a realidade da encarnação e da
obra redentora de Cristo; mas também não há uma só natureza e uma só pessoa,
pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito à dor e à morte para transfigurar
estas nossas realidades.
15 Cf. GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, página 142 16 GONZÁLEZ, J. L. (Ed.). Dicionário Ilustrado dos intérpretes da fé: Vinte séculos de pensamento cristão, páginas 142-143.
44
Havia, pois, uma só pessoa divina que, além de dispor da natureza divina
desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana e viveu na terra agindo como
Deus e como homem, mas sempre e somente com o seu eu divino. O
encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do
monofisismo.
3.7 A Encarnação do Verbo na visão de Atanásio
Após a apresentação de algumas das controvérsias a respeito das naturezas
de Jesus Cristo e seguindo a postura ortodoxa estabelecida nos quatro concílios
ecumênicos, que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, verifiquemos
algumas das implicações da encarnação do Verbo para o ser humano como
portador da Imago Dei.
Atanásio, o bispo de Alexandria, foi de fundamental importância para a
compreensão de que através da encarnação do Verbo a imagem de Deus no
homem foi restaurada e plenificada. Em seu livro “A Encarnação do Verbo”,
Atanásio busca mostrar que a encarnação reconduz à compreensão correta da
humanidade, que havia sido perdida após a ocorrência do pecado.
Utilizando uma ilustração de uma figura de madeira que é escurecida pelas
manchas do tempo, Atanásio afirma que somente através dos traços originais
pode-se restaurar a figura esculpida em madeira, não se lançando fora o material
que contém a figura, antes, restaurando-o através daquele que possui os traços
originais da obra.
Se uma figura traçada em madeira apagar-se devido a manchas provenientes de fora, a fim de renovar a imagem sobre o mesmo material, precisa-se da presença daqueles cujos traços foram figurados. Por causa da figura não se joga fora o material sobre qual fora traçada, mas restaura-se nela a imagem. De igual modo, o Filho santíssimo do Pai, Imagem do Pai, veio à terra a fim de renovar o homem que fora feito de conformidade com ele, e a fim de recuperar o que estava perdido, perdoando-lhe os pecados [...]17.
17 SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 143.
45
Assim, Atanásio procura demonstrar que a encarnação do Verbo é a
restauração da imagem de Deus no ser humano. Para que a obra de redenção fosse
plena, Jesus necessariamente teria de assumir a natureza humana, passando por
todas as necessidades e vivenciando as mesmas emoções de um ser humano.
Atanásio insiste em destacar a função salvadora do corpo e da necessidade de
Jesus Cristo ter forma corpórea para poder testemunhar pelas obras corporais a
vontade de redimir os homens. Assim, parece que Deus não tem outro meio para
operar esta restauração senão pela encarnação.
Assim, o Verbo, querendo devidamente socorrer os homens devia residir na terra como homem, tomar corpo semelhante ao deles, e agir através das coisas terrenas, isto é, por obras corporais. Desta forma, os que não haviam querido reconhecê-lo por causa de sua providência e seu domínio universal, reconheceriam pelas obras corporais do Verbo de Deus encarnado, e por ele, o Pai18.
E ainda por este prisma, Atanásio continua a escrever:
[...] o Verbo de Deus, amigo dos homens e Salvador comum de todos, assumiu corpo e viveu como homem no meio dos homens, atraindo a si todos s sentidos, a fim de que os que incluíam a Deus entre os seres corporais, através da obras que o Senhor realizou corporalmente, conhecessem a verdade e por intermédio dele pensassem no Pai19.
Pode-se dizer que o Verbo, que é imagem perfeita do Pai, e por meio do
qual o ser humano foi criado, agora recria o ser humano restaurando nele a
imagem autêntica de Deus.
3.8 O desenvolvimento da humanidade de Jesus Cristo
É importante que olhemos atentamente para a vida humana de Jesus,
conforme registrada nas Sagradas Escrituras. Jesus quando veio ao mundo
experimentou necessidades. Ele precisou entrar profundamente na forma de
18 SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 144. 19 SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 145.
46
pensar do homem e participar integralmente de todas as experiências comuns aos
seres humanos.
Encontramos nos Evangelhos uma apresentação de Jesus no seu mais
completo nível humano: criando uma personalidade própria para executar todos os
atos necessários a sua missão, renunciando aos convites e tentações do mal e
ultrapassando as crises morais. Percebe-se, de uma forma ampliada na vida
daquele que é o Verbo de Deus, um desenvolvimento pleno da sua humanidade.
Na verdade o crescimento não foi da sua posição de Filho ou de único sem
pecado; mas na verdade, foi um crescimento da sua vocação ou até mesmo do seu
caráter. No entanto, houve um crescimento real da compreensão do trabalho que
ele tinha de fazer. Não houve um incremento da sua natureza moral, mas um
desenvolvimento da sua vocação principal e da consciência do seu propósito como
o Salvador encarnado.
Os anos ocultos de Jesus na Galiléia podem ser interpretados como um
caminho de silêncio. A Galiléia forneceu a Jesus o lugar propício para que ele se
desenvolvesse. Trinta anos passados em relativa obscuridade na casa de um
carpinteiro em Nazaré, lá crescendo e aprendendo, vivendo e amando. Este
período pode ser descrito como o desenvolvimento de sua verdadeira e completa
humanidade. Estes anos de silêncio foram mais como um tempo de preparação
para o trabalho do Salvador. Eles estavam ligados a um sentido mais profundo da
tarefa que lhe estava proposta. Sendo necessários trinta anos de vida humana para
que a sua divindade não ofuscasse de forma alguma a sua humanidade20.
Apenas um mero olhar é dado sobre estes anos silenciosos que se passaram
da vida de Jesus e da sua experiência neste tempo, mas temos o suficiente para
afirmar que esse homem é exatamente e realmente um ser humano.
Estes anos na Galiléia foram para Jesus um período de crescimento, como
está registrado no evangelho segundo Lucas “E crescia Jesus em sabedoria,
estatura e graça, diante de Deus e dos homens.” (Cf. Lc. 2.52). Durante esse
período, as tentações que se apresentavam dia a dia eram vencidas por Jesus.
Neste tempo houve claramente um fortalecimento de sua visão e da força dentro
de si. Esse tempo foi também de obediência. A obediência a Deus tornou-se a sua
carne e a sua bebida. Isto também demonstra que não é o passar dos anos que
20 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 27.
47
conduz à maturidade, mas sim o exercício da obediência que leva ao
amadurecimento.
Estes trinta anos não foram nada menos do que um período de disciplina e
mesmo assim Jesus não buscou o que desejava, mas antes buscou cumprir a
vontade de Deus. Durante todos estes anos ele foi se tornando ciente de que
aquele era um período de provas. Jesus suportou todas as restrições da
humanidade com espírito disposto. Foi necessário enfrentar a incompreensão dos
seus próprios irmãos e dos que estavam próximos. O passar deste tempo
aumentou esta separação entre Jesus e os outros, se tornando mais clara esta
distinção entre eles. Assim, Jesus desenvolveu ao longo dos anos a sua
humanidade a fim de cumprir a sua tarefa de ser um real e verdadeiro ser humano,
como vai afirmar o reformador João Calvino em suas Institutas:
Quem poderia fazer isso, a não ser que o Filho de Deus fosse feito Filho do homem e, de tal maneira, tomasse a nossa condição que nos transferisse a sua? Que aquilo que lhe é próprio por natureza, fizesse nosso pela graça? Temos, pois, confiança em que somos filhos de Deus, tendo este penhor, que o Filho natural de Deus assumiu corpo do nosso corpo, carne da nossa carne, ossos dos nossos ossos, para estar unido a nós; o que nos é próprio, ele recebeu em sua pessoa, a fim de que, o que ele tem de propriamente seu, nos pertença; e assim ele fosse, em comunhão conosco, Filho de Deus e Filho do homem21.
Calvino ainda irá afirmar que: “Por essa razão, ele próprio, não se
contentando em chamar-se homem, chama-se a si mesmo Filho do homem,
querendo dizer com isto que ele é homem, gerado de semente humana.”22 Assim,
fica reforçada a verdadeira humanidade assumida pelo Verbo de Deus, que a si
mesmo se designava Filho do homem, apontando para a sua humanidade.
3.9 A maturidade da humanidade de Jesus Cristo
O Breve catecismo de Westminster declara em resposta a sua primeira
pergunta que: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para
21 CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. 2, página 69. 22 CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. 2, página 70.
48
sempre”23. E somente aquele que cumpre essa finalidade pode ser considerado um
verdadeiro ser humano. É precisamente desta forma que se verifica a maturidade
de Jesus Cristo, pois ele, acima de tudo, cumpriu o fim principal do ser humano
glorificando a Deus.
O completo cumprimento do fim principal do ser humano de glorificar a
Deus passa por duas necessidades: a busca da justiça e a resistência às investidas
do mal. Neste contexto o Batismo e as tentações são de extrema importância. No
Batismo ele faz publicamente o que tem feito ao longo dos anos – busca toda a
justiça. As tentações fazem com que ele execute tudo o que já lhe havia sido
ensinado – resistindo a todo mal24. Com certeza, nestas duas experiências
existiram mais significados para Jesus do que se pode imaginar. Porém, sabe-se da
importância do seu Batismo e das tentações reais a que foi submetido. Em ambas
as experiências, Jesus se revela como homem que cumpre o seu fim principal que
é o de glorificar a Deus. E em ambas as experiências, Jesus irá revelar uma
realidade essencial sobre ele: que ele é real e verdadeiro ser humano, o ser
humano maduro25.
O batismo no Jordão (Cf. Mt. 3. 13-17; Mc. 1. 7-11; Lc. 3. 21-23) é o ato da
maturidade de Jesus que demonstra estar ele prestes a assumir o trabalho de sua
vida e desta forma faz uma confissão pública da verdadeira intenção da sua alma.
Ele oferece sua vida em uma plena consagração. Jesus revelou assim a sua real e
verdadeira humanidade, apresentando-se ao batismo de João para assim, “cumprir
toda justiça”. O fato de se batizar foi uma expressão viva da identificação de Jesus
com a humanidade. No Batismo, Jesus se identifica com aquelas pessoas que se
chegaram ao Jordão e confessaram ser pecadoras. No Batismo, Jesus renuncia
publicamente ao pecado através da verdade das escrituras e do Espírito. No Jordão
Jesus se “une” abertamente com o pecado humano, porém sem contaminar-se com
ele, e no Calvário ele irá expiá-lo aberta e publicamente26. Desta forma, Jesus,
como homem toma o seu lugar com a humanidade pecadora e desenvolve a sua
missão com a aprovação do Pai e com o conhecimento de si mesmo. Nas águas
23 O Breve Catecismo, página 7. 24 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 29. 25 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 29. 26 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 30.
49
batismais ele é dedicado e ungido pelo Espírito Santo para o cumprimento desta
missão.
Faz parte da prova de maturidade do ser humano que ele enfrente e combata
as tentações, aplicando o que foi aprendido para lidar com as sutilezas e seduções
do mal. No registro das tentações de Jesus, pode-se observar este fato supremo da
vida. Sem dúvidas, este não foi o seu primeiro nem o último confronto com o mal.
Assim, ao longo da sua vida, Jesus ia vencer o mal e destruí-lo de forma
detalhada. Mas no relato das tentações, vê-se Jesus resistindo a uma das maiores
investidas malignas.
O homem Jesus amadurecido será alvo dos ataques malignos. As tentações
simbolizam um ciclo de agressões contra o ser humano através do corpo, da mente
e do espírito, conforme está registrado em Lucas 4.4 e I João 2.16. Neste ponto se
localiza o centro das tentações contra o messias. Diante da tentativa derrotada de
vencer Jesus, o mal, tipificado pela figura do Diabo, se retira temporariamente. As
tentações, porém, não ficam restritas a este período da vida de Jesus, antes, aquilo
que ele havia resistido no deserto lhe será apresentado no seu trato cotidiano e no
sofrimento da cruz.
Nestas tentações do deserto estão reunidos todos os assaltos do tentador, na
tentativa de que o tentado satisfaça os seus desejos. Transformar pedras em pães
tem um apelo imediato para um homem faminto. Esaú vendeu a sua primogenitura
por um prato de comida (Cf. Gn. 28. 24-34.). Jesus sofre a mesma tentação, mas
ele não cederá. Utiliza-se da Escritura para responder a sugestão do tentador, pois
“Não só de pão viverá o homem” (Cf. Lc. 4.4.). Percebe-se que também para
Jesus, o fim principal do homem é glorificar a Deus. O tentador certificou-se de
ter apresentado um caminho fácil e diretamente para debaixo das suas garras. Para
isto foi simples, natural, bastava que Jesus satisfizesse o seu apetite corporal27, se
tornando assim um egoísta e abrindo mão da sua missão de Salvador.
A segunda tentação, seguindo o relato de Lucas, é uma oferta para que a
cruz seja evitada e a vitória dos cristãos garantida. Ao aceitar um tratado com o
Diabo e dar-lhe a adoração devida a Deus, o sucesso dos seus seguidores estaria
garantido e a sua missão estaria livre da dureza da cruz. A segunda tentação pode
ser entendida como um apelo à necessidade humana de ser bem sucedido.
27 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 32.
50
Na terceira tentação há uma sugestão para que Jesus glorifique a Deus
através de proezas deslumbrantes, lançando-se do pináculo do templo e, assim,
levando muitos a crerem nele. Foi a tentação para fazer a obra de Deus da sua
própria maneira, por sua própria conta, para fazer alguma coisa grande; ser
espetacular! Esta é a terceira fraqueza humana a ser colocada a prova, a
necessidade de auto-afirmação, de atrair a atenção dos outros pelos seus próprios
méritos e realizações. Mais uma vez, Jesus não sucumbe às sugestões do mal,
antes se mantém firme e inabalável demonstrando toda a maturidade da sua
humanidade.
Assim Jesus foi tentado como homem e como homem triunfou. Não houve
um jogo de ação. Essa luta não era uma luta fictícia. Jesus sentiu a tensão da luta e
da resistência. Não houve da parte dele nenhum tipo de fuga a partir das tentações
que assaltam a humanidade. Nele em que todas as coisas foram feitas, ali foi
tentado em todos os pontos como todos os seres humanos são tentados28. A
questão não é saber se era possível que Jesus cedesse ao pecado, ou até mesmo se
seria possível para ele pecar. A pergunta é: Foi ele quem encontrou o diabo como
homem e saiu vitorioso em pleno deserto? A resposta é clara e inequívoca: Sim,
ele o fez.
Aquele que tinha mostrado até ali que estava pronto para cumprir tudo em
retidão, mostra-se pronto para resistir às tentações que lhe foram infligidas. Ele
não recorre a nenhum meio especial para superar as investidas do demônio, mas
ele foi levado para o deserto pelo Espírito e foi no conflito que ele usou a espada
do Espírito, que é a Palavra de Deus (Cf. Ef. 6. 17). Isto foi tudo o que ele utilizou
ali e foi o suficiente.
Desta forma, Jesus amadureceu e através dos sucessivos acontecimentos
tem-se a certeza de que ele foi preparado e cumpriu a sua tarefa que é a de ser o
único mediador entre Deus e o homem. Este é o homem Jesus Cristo.
28 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 32.
51
3.10 Jesus, o homem sob a ação do Espírito Santo
As referências claras a respeito da ação do Espírito Santo estão restritas ao
seu nascimento, batismo e tentações. Este fato levanta a questão sobre o lugar do
Espírito Santo na vida e no ministério de Jesus Cristo. Fica claro que Jesus
possuiu a presença do Espírito para o aperfeiçoamento de sua vida como ser
humano e um revestimento para o cumprimento do seu mandato Messiânico.
Portanto, os efeitos do Espírito foram tanto pessoais como ministeriais.
Fica evidente que o Espírito o revestia de forma oculta durante o
amadurecimento da sua humanidade, tornando-se a causa deste
amadurecimento29. A presença do Espírito foi necessária para permitir à sua
natureza humana um crescente desenvolvimento, aperfeiçoando-o assim para
tornar-se instrumento do seu trabalho, capacitando-o para agir de acordo com o
seu santo projeto. Desta forma, tudo o que Jesus viesse a necessitar para o seu
amadurecimento foi plenamente fornecido pela ação do Espírito Santo. Nascido
do Espírito, Jesus cresceu também nele. O Espírito também operou nos processos
do seu desenvolvimento mental e espiritual, ou seja, no avanço do conhecimento e
no desenvolvimento da sua santidade. O Espírito Santo não apenas dotou a
natureza humana de Jesus de todas as ferramentas necessárias para o seu pleno
desenvolvimento,como também o próprio Espírito o levou a esse desenvolvimento
pleno de forma gradual30. Durante seus dias terrenos, Jesus esteve sob a constante
operação do Espírito. Era como homem debaixo da ação pneumatológica que
realizava suas funções como carpinteiro em Nazaré, se submetendo também às
regras de sua casa terrena. Foi durante este tempo que ele foi preparado pelo
Espírito para o seu período de ação no cumprimento do seu ofício messiânico.
Desta forma, no Espírito e pelo Espírito, Jesus retamente resistiu a todas as
tentações e no poder do Espírito ele retorna à Galiléia e tem a sua fama espalhada
pela circunvizinhança (Cf. Lc. 4.14).
No batismo, Jesus foi consagrado para a sua tarefa messiânica pela descida
do Espírito Santo na forma corpórea de uma pomba (Cf. Lc. 3.22). Esta descida
29 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 33. 30 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 34.
52
simboliza a sua convocação oficial. Assim, os lábios daqueles que ali estiveram
poderiam testemunhar o que tinham visto e ouvido.
Agora com a sua humanidade amadurecida pelo Espírito, Jesus iniciará a
sua obra messiânica entrando na Galiléia no poder do Espírito. Nesse poder ele irá
permanecer e irá desenvolver o seu trabalho numa vida de obediência e serviço a
Deus e ao próximo.
Jesus realizou cada função da sua tarefa messiânica no poder do Espírito. E
sendo o Espírito Santo o divino executor dos poderosos atos de Deus, não é
estranha a idéia de que Jesus cumpriu a sua divina missão através do poder e da
ação pneumatológica durante toda a sua vida. O próprio Jesus declara a sua
dependência da ação do Espírito Santo, pois ele nada poderia fazer (Cf. Jo. 5.19,
30; 8.28.) e nem falar nada (Cf. Jo. 3.34; 7.18; 8.28.) de si mesmo. Jesus
repreendia e expulsava os demônios pelo Espírito de Deus (Cf. Mt. 12.28.) e
declarava as palavras vindas de Deus através deste mesmo Espírito (Cf. Jo. 3.34).
Assim o Espírito permaneceu com ele durante toda a sua vida terrena atuando em
sua vontade, espírito e ações a fim de que ele aprendesse a partir de Deus, atuasse
por Deus e ensinasse de Deus31 para que alcance a perfeita varonilidade, pelo
pleno conhecimento (Cf. Ef. 4.13). E no fim de sua vida terrena ele a si mesmo
ofereceu-se sem mácula ao próprio Deus pelo Espírito eterno (Cf. Hb. 9.14).
Observa-se que mesmo após a sua ressurreição foi através do Espírito Santo que
Jesus dá mandamentos aos apóstolos (Cf. At. 1.2). Não há nenhuma
incongruência ou estranhamento nisto, pois o próprio apóstolo Pedro em seu
sermão na casa do centurião Cornélio declara que Jesus foi ungido por Deus com
o Espírito Santo e com poder. Com esta unção e poder Jesus viveu uma vida
agradável a Deus, pois fez o bem aos que necessitavam (Cf. At. 10.38).
Desta forma, fica claro que em Jesus Cristo residia de forma plena a
natureza humana. E que como homem ele foi capacitado pela ação do Espírito
Santo para desenvolver de forma absoluta a humanidade idealizada por Deus na
criação do ser humano no Gênesis.
Através da encarnação do Verbo, Deus se aproxima e se revela ao ser
humano. Toma sobre si a nossa natureza e ensina aos homens o que
verdadeiramente é ser humano. Jesus demonstra de forma plena a maturidade de
31 Cf. MCDONALD, H. D. Jesus – Human and Divine, página 35.
53
sua humanidade e capacitado pelo Espírito se doa aos necessitados e mostra a
estes, o caminho para se alcançar a plenitude do conhecimento de Deus, que é
viver da forma demonstrada por ele. Conforme ensinado pelo apóstolo Paulo,
devemos ser imitadores de Cristo (Cf. I Co. 11.1).
Assim a cristologia formulada no Concílio de Calcedônia demarca uma
região em que existe mais de uma área a ser explorada. E esta região é definida
por certos limites distintos. Jesus Cristo é entendido como “uma pessoa em duas
naturezas”. As duas naturezas - a sua divindade e sua humanidade - são vistas de
forma interna à sua pessoa. Ele não é apenas um ser humano com uma relação
especial com Deus, nem é simplesmente um ser divino sob a forma de um
“fantasma humano”. Ele é, na linguagem de Calcedônia, uma única pessoa e de
uma só vez completo em divindade e completo em humanidade. Conforme afirma
Karl Barth: “Ele que, por toda a eternidade, decidiu para o nosso bem tornar-ser
homem em Jesus Cristo, tornou-se homem efetivamente no tempo e permanecerá
sendo pelos séculos dos séculos. Eis Jesus Cristo”32. Em Jesus, Deus assume a
natureza humana de uma vez por todas, não por um breve período, mas por toda a
eternidade o Criador se aproxima da criatura, restaurando assim a Imago Dei
obscurecida pelo pecado.
32 BARTH, K. Esboço de uma dogmática, página 94.
4 Imago Dei – a verdadeira humanidade a partir de Jesus Cristo
Quando olhamos para Jesus Cristo é que sabemos, decididamente, que a divindade de Deus não exclui, mas sim, inclui a sua humanidade.
Karl Barth
Como foi apresentado até aqui, o pensamento sobre a doutrina da Imago Dei
sofreu diversas evoluções na sua forma de interpretação. Porém está claro que a
imagem e semelhança, citada no livro do Gênesis, não se refere ao aspecto físico,
mas sim à essência do ser humano, ao seu senso de justiça e à sua disposição de se
relacionar com o restante da criação, bem como com o próprio Criador. Deus
dotou o ser humano com a sua imagem para que este pudesse se relacionar de
forma plena com a sua criação e consigo mesmo1. Deve-se ressaltar que após a
queda humana, esta imagem ficou obscurecida e parte desta capacidade relacional
foi quebrada.
Foram apresentadas também algumas das controvérsias sobre as naturezas
de Jesus Cristo, que vão desde interpretações de que Jesus era um ser humano
dotado de uma sabedoria, de uma relação especial com Deus; até à visão de um
ser celestial, que unicamente tinha uma aparência humana.
Infelizmente, há muitas pessoas dentro das igrejas cristãs que interpretam de
forma errônea as naturezas de Jesus Cristo, apesar de participarem de igrejas
pertencentes à fé ortodoxa, a qual afirma que Jesus é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem e uma só pessoa com duas naturezas. Tais pessoas têm
menosprezado a natureza humana, dizendo que a mesma é pecaminosa e má. Mas,
ao se observar o ensino bíblico e ortodoxo sobre a natureza humana, percebe-se
que ela não é por si só pecaminosa, mas sim limitada, desde a sua criação. A
natureza humana é limitada e não pecaminosa. No mistério da encarnação,
percebemos que o próprio Deus toma esta natureza, humilhando-se – nisto
consiste a humilhação ao se encarnar, Deus se limita de acordo com a natureza
humana –revestindo-se com o corpo e com a alma humana. No Verbo encarnado
1 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 37.
55
vemos Deus se revelando ao ser humano de forma concreta e vivenciando de
forma amadurecida a humanidade idealizada pelo próprio Criador.
Assim, a plena realização do ser humano se dá no amor de Deus revelado na
Encarnação do Verbo.
4.1 Imago Dei realizada em Jesus Cristo
O mundo é o lugar para que o ser humano se descubra como imagem e
semelhança de Deus. E nesse sentido, ele deve buscar viver a sua realização como
imagem de Deus na sua existência no mundo. É na experiência da vida que ele vai
descobrindo o seu destino como Imago Dei. É esta mesma experiência que emerge
como realidade quando o Filho de Deus se encarna e assume de forma inegável a
natureza humana. Desse modo, Jesus é o modelo perfeito do que o homem deve
ser.
Conforme registrado no Novo Testamento, o ser humano no seu destino
final deve ser à imagem e semelhança de Deus que está na figura de Jesus Cristo.
Seguindo o exemplo de Cristo que se coloca no mundo como servo, aquele que o
quiser imitar deve também ser um servo. Assim, Jesus Cristo é o modelo perfeito
da relação entre o ser humano e a criação. Todo homem tem de carregar em si a
imagem de Jesus Cristo como a imagem do segundo Adão e por conseqüência, ir
concretizar em si o que é seu verdadeiro destino – ser imagem e semelhança de
Deus.
Ao assumir em si a imagem de Deus, o ser humano recebe a ordem de
respeitar e honrar a dignidade humana, ordem esta que se refere em última
instância, à percepção dos indivíduos que se encontram à sua volta, se tornando
referência para além da realidade que se faz presente ante os olhos. O homem é
destinado a um horizonte que permanece aberto e, por isso mesmo, voltado para
Deus2. A Imago Dei, revela a sua profunda dignidade e fundamenta a não violação
do mesmo, como constata o Gênesis: sua vida deve ser respeitada (Gn 9,6)3.
2 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 40. 3 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página. 301.
56
Nos escritos do Novo Testamento é apresentada a plenitude da dignidade
humana na figura do homem Jesus Cristo. O ser humano só pode ascender a seu
destino autêntico na história, caso viva em conformidade com Jesus. Com isso,
um acontecimento histórico particular adquire valor universal para o homem4.
Conforme diz o apóstolo Paulo, verifica-se que em Jesus Cristo o ser humano
assume a figura do segundo Adão, o Adão celeste (I Co.15,47-49). Em Jesus
Cristo, o ser humano não está marcado apenas pelo pecado e pela morte, mas
também está marcado pela Imago Dei, participando assim de um horizonte que
supera toda finitude pela graça salvadora, revelada na ressurreição de Jesus Cristo.
Este ser humano participa do infinito divino e se torna o ser humano novo e
imortal5. Na ressurreição de Jesus Cristo e na sua exaltação apresenta-se ao ser
humano a sua real participação na imagem e semelhança com Deus (2 Co. 4,4).
Por conseqüência, a realização da Imago Dei em Jesus Cristo se mostra
como um dos dados mais profundos da nossa fé. É em Jesus que o ser humano
chega à sua plenitude de perfeição e à sua salvação. Para Pannenberg, existe uma
correspondência da Imago Dei no homem com a relação Trinitária de Deus. Sendo
que esta correspondência encontra sua efetivação plena na comunidade humana,
representada na comunidade do Reino de Deus, cujo Messias é Jesus Cristo,
aquele que se fez servo (Lc. 22,27). Neste reino não há mais a possibilidade de
comportar o domínio de uns sobre outros. No Reino de Deus todos devem
construir uma verdadeira comunidade fraterna, unida pelo amor de Deus que nos é
doado em Jesus Cristo, aquele que se fez homem por amor dos seres humanos6.
Torna-se importante afirmar que somente na descoberta da dimensão
espiritual, vivida na forma de uma experiência religiosa pela fé e pela graça, é que
o ser humano consegue se lançar no caminho da sua realização como participante
do Reino de Deus. Desta forma, é necessário que sejam demonstradas algumas
das características que marcam a dimensão espiritual e religiosa do ser humano.
4 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 326. 5 Cf. SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 154. 6 Cf. SANTO ATANÁSIO, A Encarnação do Verbo, página 128.
57
4.2 O ser humano e sua dimensão espiritual
A sociedade moderna é considerada como secularizada. Nessa sociedade a
dimensão espiritual e a religião parecem não ter grande peso na vida das pessoas.
Portanto, debater a validade da dimensão espiritual e religiosa pode parecer uma
realidade deslocada e absurda. Diante deste cenário, a religião e os chamados
valores religiosos do ser humano, passam a ser considerados como meras
tradições ou, ao contrário, relegados ao descaso como mera superstição.
A dimensão espiritual do ser humano se constitui fator fundamental para a
compreensão, enquanto pessoa, da realidade em que está inserido7. Observa-se
que nas mais variadas formas de expressão cultural, desde o surgimento da
humanidade, o ser humano busca no transcendental uma forma de responder suas
questões existenciais mais profundas8. É nesta busca que a abertura para o
transcendente abre no ser humano o espaço para o sagrado levando-o assim, a se
inclinar para o divino. É neste momento que Deus se faz presente na vida do ser
humano e este pode se compreender como ser consciente de si. É nesta
compreensão que o ser humano se percebe então fragilizado e limitado. Deve-se
ressaltar que as fragilidades não são a causa da dimensão religiosa do ser humano.
Ele não procura a Deus como um paliativo para suas fragilidades. Note-se também
que é diante da realidade das fraquezas e deficiências que o ser humano busca
superar as mesmas, não aceitando assim a sua condição finita e de debilidade. A
superação dos limites humanos na sua existência acontecerá em Deus. O estado de
imperfeição também o ajudará a direcioná-lo para Deus tendo em vista que um ser
perfeito não iria carecer de um Deus. No entanto, antes da fragilidade e do pecado,
a graça de Deus já se faz presente na vida do ser humano. É na necessidade da sua
vida, bem como da sua experiência de um ser limitado e mortal que o ser humano,
não se conformando com esta situação, se lança em busca de algo além. Dessa
forma, o ser humano ultrapassa os limites do espaço e do tempo e descobre aquele
que é o maior de todos9. Este ser encontra a Deus. Sendo assim, a dimensão
espiritual e religiosa do ser humano, pode ser entendida como algo que constitui a
7 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 159. 8 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 160. 9 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 161.
58
sua essencialidade. Esta dimensão seria como o fio de esperança que perpassa
toda a história humana e desta forma eleva-o acima de todas as suas fraquezas e
misérias ocorridas neste tempo.
Desta forma o desafio da compreensão da dimensão espiritual e religiosa do
ser humano busca afirmar com base na teologia, análises antropológicas, mas de
forma que não se encerre a teologia cristã em uma forma de antropocentrismo.
Livrando-se deste perigo, a teologia deve refletir sobre a fundamental importância
dos estudos antropológicos e de todo o pensamento atual, de forma a se
reafirmarem os enunciados religiosos sem que contudo seja estabelecida uma
aliança com a crítica ateísta, que irá reduzir a religião e a teologia a uma pura
expressão antropológica10.
Assim não há como se falar de teologia e de religião, sem que se fale
juntamente do ser humano e de sua situação na história. Deve-se buscar empregar
de forma teológica os fenômenos do ser humano, pois as formas religiosas e a
humanidade estão vinculadas estreitamente e, sem dúvida, já se encontra no ser
humano esta predisposição à razão do humanismo e da religião11.
Pode-se observar esta forma de pensamento tanto na antropologia teológica
de Karl Barth como também na de Wolfhart Pannenberg. O teólogo Wolf Krötke,
estudioso da teologia barthiana em seu artigo “The humanity of the human person
in Karl Barth’s anthropology”, comenta a respeito da importância que se tinha
para Barth pensar a teologia e a antropologia de forma conjunta. Krötke afirma:
Wherever the human being is supposed to be understood theologically in relation to God on a purely human basis, the danger looms of replacing real humanity with a short-sighted and constricting image of the human, thereby suppressing and impeding possibilities for the free development of real human being.12
Da mesma forma, Pannenberg evidencia que a problemática da dimensão
espiritual e religiosa se faz presente na estrutura essencial da forma de vida
humana no seu contexto da natureza e nos fenômenos cotidianos. Os conceitos
10 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 21. 11 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 56. 12 Krötker, W. The humanity of the human person in Karl Barth’s anthropology In. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 162. - Quando se supõe que o ser humano é entendido teologicamente em relação a Deus com uma base puramente humana, existe o perigo real de substituírem-se as bases da humanidade a partir de uma ótica míope e restritiva, a imagem do homem, suprimindo assim as possibilidades para o livre desenvolvimento da verdadeira humanidade. (tradução particular)
59
teológicos não são necessariamente externos aos fenômenos naturais; mas antes,
se manifestam através destes fenômenos. Assim a prática religiosa não se agrega
de forma secundária ao comportamento de abertura ao mundo, “openness to the
world” 13, antes se faz presente no ser humano quando este tem de justificar algo
que demonstre que o seu centro está além do mundo14.
Para poder lançar-se numa atitude de transcendência, ou seja, para além
deste mundo, o ser humano necessita experimentar as realidades finitas, para
então poder ultrapassá-las alcançando o infinito e chegando ao divino.
Construindo a sua existência e a sua identidade pela experiência do mundo
externo através das relações com os outros. Por isso o ser humano necessita se
formar e se conhecer na razão, na humanidade e na vida religiosa. E este
conhecimento se dará através da sua experiência com o mundo e, de maneira
especial, na sua relação com os outros seres humanos15.
Pode-se dizer que a experiência religiosa é essencialmente humana na visão
de Pannenberg, já que é na história humana que tal experiência se revela. Daí o
título que lhe é atribuído como teólogo da história. Por isso, mesmo que o ser
humano ainda não tenha atingido a plenitude da experiência com Deus, esta já se
faz fato consumado, realizado em Jesus Cristo, pois Cristo é a revelação total e
plena do Pai. Ele é o protótipo do que o homem deve ser como realização.
Em Jesus Cristo o homem religioso já vislumbra o seu destino realizado e
espera essa realização com toda sua confiança, posto que a confiança é um
elemento indispensável para o homem de fé.
4.2.1 Características da dimensão espiritual
A estrutura de fé do ser humano é essencialmente marcada pela sua atitude
de confiança e de abertura para o mundo; pois quando se crê, abandona-se, sem
reservas, o que não se crê16. É exatamente neste momento em que o indivíduo se
13 PANNENBERG, W. What is Man, página 3. 14 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 82. 15 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 87. 16 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 88.
60
transporta da sua realidade para a do outro que se enxergam nele os traços
religiosos. Esta maneira de transportar o centro da sua vida para além e fora de si
é que se constitui uma maneira do ser humano, através do outro, chegar a si
mesmo.
Deste modo, ‘o outro’ marca a experiência de confiança fundamental para o
indivíduo na sua experiência religiosa. Para Pannenberg, é a partir do contexto da
vivência das realidades finitas que o homem chega ao infinito17. Ele acredita que o
homem que se percebe como finito enquanto parte e momento da realização de
uma totalidade infinita se compraz na sua própria limitação e mortalidade, porque
a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é o infinito.
Então o ser humano se abre de forma confiante, buscando respostas para o
problema do âmago do seu ser. Procurando, a partir dos objetos e das suas
relações com a criação, certificar-se de que o problema do seu destino vai além do
mundo. É desse modo que ele procura as bases que sustentarão a sua vida na
realidade em que está inserido. Logo, este passa a ser um problema relacionado ao
divino e que irá ultrapassar a sua existência natural.
A confiança é apresentada como questão originalmente colocada para todo
ser humano. Para a criança ela é elaborada na sua relação com a mãe que, por sua
vez, faz o papel de mediadora do mundo e da vida. É justamente no meio familiar
que a criança irá construir o seu conceito de confiança, que é indispensável para
estruturação da identidade da pessoa. É no rompimento com o primeiro espaço, no
qual se elabora tal confiança, que se exige uma nova orientação para conservar na
criança a confiança adquirida, sendo um estágio mais além da limitada confiança
humana. Neste momento, a educação da dimensão religiosa assume uma função
imprescindível na vida da pessoa18.
É em conformidade com o desenvolvimento desta confiança básica da
criança em relação à sua mãe e família que será definida a sua forma de relação
com o mundo e também com a religião. Quando a fase infantil e a insegurança
não são superadas, estas serão fatores determinantes nas características do
relacionamento também com Deus. Deste modo, uma elaboração da confiança
básica de um modo falho, levará a pessoa a ter uma relação com Deus marcada
por atitudes que podem ser consideradas narcisistas ou de uma das chamadas
17 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 97. 18 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 282.
61
neuroses religiosas, descaracterizando uma relação verdadeira e profunda com
Deus.
A temática da confiança e da abertura do ser humano revela que a questão
de Deus, “the question of God” 19, está de forma inseparável unida ao ser
humano20 e esta necessidade não é artificial, mas justamente ao contrário, esta
necessidade ocorre por ser parte da essência humana a qual não se pode diminuir
ou produzir substitutos21. No desejo de alcançar a sua totalidade, o indivíduo
desenvolve a sua confiança na experiência religiosa, na qual ele é capaz de
oferecer amparo e alento para si e a para os seus semelhantes.
A salvação que se espera da parte de Deus se refere ao alcance da totalidade
do ser, de forma intacta. O que irá confirmar essa confiança do ser humano é
justamente o fato de que, aquele em que se deposita esta confiança deve ter
garantias palpáveis de que se é possível confiar; caso contrário, essa confiança não
seria exercida. Esta confiança presente no ser humano é como a esperança última
e incondicional. Ela é elaborada no coração humano a partir da fé e da esperança.
É por meio desse sentimento elaborado que se descobre a Deus, ou em alguns
casos, se descobrem os ídolos. Diante deste sentimento, as palavras do reformador
Martinho Lutero se fazem pertinentes: “Aquele a quem tu inclinas e abandonas
teu coração, esse é propriamente teu Deus” 22.
Assim, o ser humano, na sua dimensão religiosa, pode buscar substituir a
confiança pela segurança. Isso pode ser explicado pelo fato de que o ser humano
tem um entendimento do infinito no finito e limitado de sua vida. Desta forma, a
pessoa prefere não arriscar além do seu espaço de domínio.
O ser humano, na autêntica abertura de seu ser, irá demonstrar que antes de
tudo, possui uma atitude de confiança absoluta no Deus infinito; colocando essa
tal abertura em conformidade com a sua própria destinação de uma fé que supera
toda situação e circunstância limitadora.
Desta forma a fé, que é o dom de Deus ao ser humano, o capacita para o
domínio pleno das coisas finitas e para a administração deste mundo, quando
usada em nome do próprio ser humano e sob a orientação divina. O homem pode
19 WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 159. 20 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 159. 21 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 91. 22 LUTERO, M. apud PANNENBERG, W. Ethics, página 54.
62
vir a cair escravo da tirania, usando as coisas para justificar-se. Quando então,
assume como sendo ele mesmo o fim de todas as coisas, entra numa desordem,
passando a depositar a confiança em si mesmo e não mais em alguém fora dele,
ou seja, Deus.
Pode-se observar que na visão antropológica de Pannenberg, a realização
plena da confiança religiosa do ser humano se dará no momento escatológico.
Quando finalmente o ser humano, através da sua renovação em Jesus, tomará
participação de forma efetiva na filiação divina em que é revelada a humanidade
na encarnação do Verbo. Este será o momento em que o ser humano
experimentará a sua liberdade de forma radical, abrindo-se de forma confiante aos
seus mais profundos anseios existenciais. Será neste momento de plena liberdade
que o ser humano encontrará a resposta autêntica para o seu anseio pelo
transcendente e a realização do seu destino de ser imagem de Deus.
Essas duas atitudes, confiança e abertura, são imprescindíveis na
experiência humana na busca da sua plena realização, que será alcançada no
futuro. Assim, o ser humano se lança em busca da sua realização como ser. A
mesma realização já experimentada de forma plena em Jesus Cristo. Porém, esta
ainda não está plenificada na vida dos demais seres humanos, sendo que esta só
será alcançada no “e;scaton”. Desta forma, todo o interesse humano está
concentrado e projetado para o futuro23, quando o seu destino será alcançado.
De acordo com Pannenberg, a escatologia está firmada na ressurreição de
Jesus, pois é em Jesus Cristo que pode ser encontrada a verdadeira e definitiva
esperança do ser humano.
Logo, a escatologia tem que estar fundamentada na ressurreição de Jesus
Cristo. É em Jesus que o homem encontra a sua verdadeira esperança. É por meio
da sua abertura para Deus de forma confiante e através da experiência graciosa da
fé que surge de forma palpável a possibilidade da sua realização como imagem de
Deus e o desejo de eternidade. Assim, o exercício da dimensão espiritual e
religiosa pode ser identificado como uma característica essencial do homem e
também como a resposta decisiva a todas as suas inquietações. Tais inquietudes
estão localizadas além da própria história.
23 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 63.
63
4.2.2 A dimensão espiritual e a definição da identidade humana
O ser humano através de todo seu desenvolvimento busca a resposta para a
necessidade de preencher o seu vazio existencial, que está relacionado à sua
dimensão espiritual. Na busca por respostas que possam suprir aos seus anseios de
forma racional e plausível, o homem elabora, então, a sua chamada identidade
religiosa e constrói símbolos e ritos para si; buscando uma forma de adentrar e
participar do mundo que o transcende. A dimensão espiritual e a manifestação
religiosa fazem parte da essência humana, que só se realizará de forma plena a
partir do posicionamento pessoal de abertura para o mundo e para Deus, que
levará o indivíduo à realização plena da sua identidade.
Para Pannenberg a unidade do ser será a base para o desenvolvimento da
identidade do indivíduo como pessoa, pois é na busca da integração dele próprio
que há a abertura para o relacionamento social. Buscando o seu convívio social o
homem descobre e assume o seu papel e posicionamento como indivíduo24.
A identidade individual acontecerá a partir das experiências vivenciadas
pelo ser humano com seu próprio corpo, com seu nome, em seu convívio social,
com a história, enfim, com a sua própria vida. Estes fatores constituirão, de forma
imprescindível, a pessoa humana em suas características particulares e únicas.
Neste processo se dará a luta do indivíduo com a necessidade de se definir25.
Nesta busca pela sua própria identidade, o ser humano se descobre como ser
carente e limitado, mas ainda assim ele pode identificar a referência de totalidade
em si que supera de forma infinita as limitações vivenciadas. Fazendo-se assim
pessoa26 em sua totalidade, capaz de transcender a sua atual realidade.
24 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 279. 25 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 280. 26 O termo pessoa foi introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular, para designar os papéis representados pelo homem na vida. Do sentido de papel é que se afirma pessoa também como relação. Tal conceito também obteve uma forte influência da definição de Boécio que é caracterizado como individualidade racional. Esta definição substitui a idéia antiga da palavra persona (papel, máscara e rosto). Já na Idade Média, tal termo vai à direção de uma compreensão relacional da pessoa, relacionando-o com os princípios da doutrina Trinitária. É da base da definição de Boécio, da pessoa como individualidade racional, que faz a filosofia idealista afirmar a pessoa como constituída pela autoconsciência. No sentido trinitário, o conceito de pessoa foi útil para expressar as relações entre Deus e Cristo e entre ambos e o Espírito Santo; gerando também mal-entendidos e heresias. Assim no Cristianismo surgem as grandes disputas Trinitárias que caracterizaram os primeiros séculos da vida da Igreja, chegando até o Concílio de Nicéia. O termo
64
Deve-se ter em mente que a unidade da pessoa, bem como a sua totalidade,
não está reunida em um único ponto, mas sim em todo desdobramento da sua
vida. A totalidade é algo que é necessário ser produzido, transcendendo a própria
mudança da pessoa no tempo. A totalidade do indivíduo pode ser entendida como
o seu vínculo consigo mesmo que vai mantendo-se e fortalecendo-se com o passar
do tempo27.
Por isso, a antropologia teológica cristã tem de apontar para o destino da
pessoa como totalidade a ser alcançada e plenamente realizada em Deus. Sendo
que somente através de Jesus Cristo, que é o segundo Adão, o ser humano pode
encontrar a sua plena realização. Embora alguns possam pensar ter o homem um
trágico destino traçado para a morte, a confiança que se deposita em Deus e que
pode ser delineada de forma simbólica na experiência humana da fé e vivenciada
na prática religiosa, irá possibilitar ao indivíduo o uso da sua plena liberdade,
permitindo-lhe assim alcançar a sua plenitude como ser pessoal. Logo, na teologia
cristã não pode haver outro referencial para se atingir esta totalidade que não seja
Jesus Cristo. Este é o modelo mais perfeito e pleno do que é ser pessoa.
Cabe ainda ressaltar que a dimensão espiritual e religiosa é de extrema
importância na elaboração da identidade da pessoa, pois faz parte da essência da
natureza humana. É no contexto antropológico em que o ser humano se instala
como ser pessoal em construção e através das suas experiências de limitação e de
superação destes limites que se dá a formação da personalidade humana. E assim
fortalece-se a sua confiança, permitindo a sua abertura para o transcendente, para
o seu desejo pelo infinito. A busca humana de um sentido transcendente para a
vida, através da fé e da experiência com Deus, será a resposta do ser humano ao
projeto original elaborado para a sua vida, a saber, ser imagem e semelhança de
Deus. A experiência da fé e a vivência religiosa não permitem que o ser humano
se restrinja a valores meramente passageiros, que são marcados pela fatalidade da
hypóstasis busca solucionar o problema da noção de pessoa como máscara. E sobre a idéia de pessoa como relação baseada em Aristóteles (onde aparece o caráter acidental) muitos padres da Igreja (Agostinho, Boécio) negaram a pessoa como relação, insistindo na sua substancialidade. Tomás de Aquino mostra a pessoa como relação e como substância. A partir de Descartes enfraquece a idéia de substância, mas mantém-se o princípio de pessoa como relação. Em Hegel o conceito de pessoa vai estar relacionado com a idéia de consciência. Pessoa é o sujeito autoconsciente, assim ela se volta para o sentido da individualidade se referindo ao si mesmo do indivíduo. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia Verbete Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 27 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 295.
65
morte como muitos pensadores têm divulgado, mas projeta o ser humano para
além da realidade temporal e o insere na eternidade, onde Deus através de Jesus
Cristo se revela em amor e em salvação.
Desta forma, o ser humano através do seu contato com o Deus
transcendental e imanente, descobre dentro de si o dom de Deus, o tesouro
sagrado e oculto do seu ser como pessoa. Percebendo-se assim como ser que não
se aceita de forma finita e pelo fato de não aceitar as suas limitações, ele se lança
na busca por alcançar o infinito. Justamente nesta busca vivenciada na própria
experiência, que o ser humano encontra a realização ideal de seus desejos e
sonhos que se revelaram na realidade vivenciada. O futuro humano então, já é o
presente, onde Deus e o ser humano estão unidos em harmonia perfeita. Nesta
experiência, o homem encontra-se plenamente liberto dos seus limites através da
graça salvadora de Deus, oferecida ao ser humano por intermédio de Jesus Cristo.
4.3 Uma antropologia viva
A abertura para o mundo e para Deus conduz o ser humano a uma prática
dos princípios aprendidos a partir da sua experiência religiosa28. Estes princípios
ou valores não devem ficar restritos à dimensão espiritual; mas sim, devem se
manifestar na vida cotidiana em forma de uma conduta ética.
Esta forma de reflexão é encontrada de forma bem clara na antropologia
teológica elaborada por Karl Barth. Ao analisar o pensamento antropológico
barthiano de forma cuidadosa, percebe-se justamente a sua preocupação com uma
vivência ética real como demonstração prática da Imago Dei contida no homem.
A doutrina da reconciliação, abordada em partes de sua “Church Dogmatics”, vai
demonstrar que para Barth a vida cristã se torna a última palavra para a teologia29.
A forma como o cristão se relaciona com o mundo tem de refletir a sua relação
com Deus.
As bases para a vida do cristão são lançadas pelos princípios do Reino
praticados e ensinados por Jesus Cristo na sua vida terrena, concretizando a
28 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 170. 29 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 174.
66
petição da oração dominical pela vinda do Reino, onde o ser humano unirá a sua
forma de pensar com sua forma de agir. À medida que isso vai se tornando
possível, os seres humanos voltarão as suas atenções para as circunstâncias que
envolvem os seus semelhantes, para o que acontece no seu bairro e na sua cidade,
tendo como objetivo auxiliar as pessoas30. Krötke comentando sobre este
pensamento barthiano afirma:
Where what is at issue is our own responsibility for taking decisions in the are a of ethics and politics, it must be made clear that in relation to all the ambiguous human decision-making, God is a constant advocate of decisions that are to be called 'truly human'.31
Então para que as pessoas se tornem na verdade testemunhas de Deus e
verdadeiros portadores da sua imagem, é imperativo que todas as decisões sejam
pautadas pelos valores do Reino. Esta vivência deve impulsionar o homem para
uma procura que amplia seu anseio pela honra dos seres humanos, elevando seus
pensamentos para Deus, que ao estabelecer seu direito como Criador, entrega a
criação para que o ser humano cuide dela, e concede-lhe vida, liberdade, paz e
alegria32.
Assim, a antropologia deve ser entendida, como na visão de Barth, de forma
prática na comunidade cristã e na vida de cada ser humano no meio da sociedade e
em oposição à desumanidade que ali reina; buscando, assim, uma vida de serviço
mais ativo e uma melhor justiça humana. A comunidade cristã não pode permitir
nunca ser ultrapassada por ninguém na sua solidariedade real para com os seres
humanos. Mas sim - e esta não é a menor das suas atribuições - isto irá representar
a comunidade para as pessoas deste mundo. Por isso, conforme diz Karl Barth
celebrando a proximidade de Deus com seu povo e a sua função de manifestar a
sua própria imagem para este mundo:
Here we celebrate and witness to it. Here we glory in the Immanuel, just as He did who, as He looked at the world, would not cast away the burden of the Church but
30 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 174. 31 WEBSTER, J. L. (Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 171. - Quando é de nossa própria responsabilidade a tomada de decisões na área ética e política, deve ficar claro que, em relação às tomadas de decisão humanas, elas são todas ambíguas, sendo que Deus é um defensor constante das decisões que estão sendo tomadas para que sejam chamadas 'verdadeiramente humanas'. (tradução particular) 32 Cf. WEBSTER, J. L.(Ed.). The Cambridge Companion to Karl Barth, página 174.
67
rather chose to take it upon Himself and bear it in the name of all its members. "If God is for us, who is against us?33
Assim, o ser humano tem de buscar a sua realização como pessoa já
manifestada em Jesus Cristo que vivenciou a humanidade amadurecida, guiada
pelo Espírito Santo. Mostrando ao ser humano a necessidade do exercício da sua
abertura para o mundo e para Deus e da sua confiança no próprio Deus. E que
estas atitudes devem ser refletidas na prática cotidiana, onde a ética e a
solidariedade têm a capacidade de refletir os princípios do Reino incorporados à
vida do indivíduo.
33 BARTH, K. The Humanity of God, página 65. - Aqui vamos celebrar e testemunhar isto. Aqui nós gloriamos no Emanuel, assim como ele fez, que, tal como Ele olhou para o mundo, não iria lançar o ônus da distância para a Igreja, mas sim escolheu para levá-lo à sua imagem e suportar em nome de todos os seus membros. "Se Deus é por nós, quem está contra nós?" (tradução particular)
5 Conclusão
O vulto do reconciliador, do homem-Deus Jesus Cristo, põe-se entre Deus e o mundo, coloca-se no centro de tudo que acontece. Nele se desvenda o mistério do mundo, assim com nele se desvenda o mistério de Deus.
Dietrich Bonhoeffer
Após a reflexão apresentada a respeito da Imago Dei, é imperativo que a
teologia busque, de modo urgente, formular uma antropologia que demonstre de
maneira clara e objetiva o ser humano como a imagem de Deus e sendo digno,
livre e também responsável. Como já demonstrado e afirmado pela CFW e
também pela CB no seu 14º artigo, que trata da criação e queda do ser humano:
Cremos que Deus criou o homem do pó da terra, e o fez e formou conforme sua imagem e semelhança: bom, justo e santo, capaz de concordar, em tudo, com a vontade de Deus. Mas, quando o homem estava naquela posição excelente, ele não a valorizou e não a reconheceu. Dando ouvidos às palavras do diabo, submeteu-se por livre vontade ao pecado e assim à morte e à maldição. Pois transgrediu o mandamento da vida, que tinha recebido e, pelo pecado, separou-se de Deus, que era sua verdadeira vida. Assim ele corrompeu toda a sua natureza e mereceu a morte corporal e espiritual. 1
Assim, mesmo com a queda e ainda que na natureza humana haja
deficiências, há princípios específicos do ser humano, como a razão e a liberdade2,
que o singularizam na cadeia de seres criados. O homem, no uso de sua razão e de
sua liberdade, diferentemente do instinto animal, possui uma direção vital que,
conforme Pannenberg, foi dada por Deus. Porém, Deus não abandonou o homem
ao seu estado de desorientação, mas lhe permitiu um evoluir através da sua
experiência.
A Imago Dei permite ao ser humano pensar a finalidade da realização de sua
essência e constitui ao mesmo tempo o princípio do qual ele parte. Mesmo sendo
imperfeito, o homem está em condições de ultrapassar suas deficiências através de
sua abertura ao mundo e às coisas de fora dele.Portanto,em contato com Deus e
1 Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg, páginas 15 – 16. 2 Cf. PANNENBERG, W. Anthropology in Theological Perspective, página 54.
69
através de Jesus Cristo, ele irá superar as limitações da sua natureza. Um traço
marcante do Cristianismo, essencialmente na fé reformada, é a tentativa de se
compreender o ser humano como imagem do seu Criador. Imagem não no sentido
físico, mas sim, no que se refere ao desenvolvimento de sua capacidade racional,
relacional, do seu senso de justiça e da sua busca pela plena realização como
indivíduo. Realização esta já manifestada e evidenciada em Jesus Cristo, o Verbo
encarnado, mas, que ainda não se encontra revelada nos demais seres humanos, os
quais só a encontrarão na medida em que se aproximarem de Deus, mediante
Jesus Cristo, único mediador e reconciliador entre Deus e o ser humano3. Desta
forma, a Encarnação é um fator primordial para a correta compreensão da Imago
Dei, pois é através dela que enxergamos o próprio Deus aproximando-se da sua
criatura e lhe ensinando o verdadeiro sentido da humanidade, visto que Cristo
assumiu todas as fraquezas e limitações humanas; vivenciando todas as
experiências próprias dos seres humanos. É através da vida, morte e ressurreição
de Jesus Cristo que Deus se reconcilia como ser humano. Conforme está na CFW,
capítulo 8, artigo 3º:
O Senhor Jesus, em sua natureza humana unida à divina, foi santificado e sem medida ungido com o Espírito Santo tendo em si todos os tesouros de sabedoria e ciência. Aprouve ao Pai que nele habitasse toda a plenitude, a fim de que, sendo santo, inocente, incontaminado e cheio de graça e verdade, estivesse perfeitamente preparado para exercer o ofício de Mediador e Fiador. Este ofício ele não tomou para si, mas para ele foi chamado pelo Pai, que lhe pôs nas mãos todo o poder e todo o juízo e lhe ordenou que os exercesse.4
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro Ethik, “Ética”, evoca esta idéia de que,
através do Verbo encarnado, Deus nos ensina a não deixar a nossa humanidade
relegada ou menosprezada, antes, manifesta o desejo de que a sua criatura seja o
que foi criada para ser: Humano! Bonhoeffer comenta então:
Deus se faz ser humano, ser humano real. Enquanto nós nos esforçamos para superar a nossa condição humana, no sentido de deixar o humano atrás de nós, Deus se torna ser humano, e temos de reconhecer que ele deseja que também nós sejamos seres humanos, seres humanos reais. 5
3 Cf. BARTH, K. The Humanity of God, página 47. 4 Confissão de Fé e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana, página 18. 5 Bonhoeffer, Dietrich. Ética, página 45.
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É através do exemplo de Jesus Cristo que o homem pode compreender o que
é ser humano verdadeiramente, como é ser a imagem e semelhança de Deus6. A
mensagem da encarnação do Verbo de Deus ataca o cerne de uma época marcada
pelo desprezo e pela idolatria do ser humano.
Através da encarnação de Cristo é possível conhecer o ser humano real sem
desprezá-lo. O ser humano tal como é pode viver diante de Deus. Não que isso
fosse realmente um valor em si, mas tão somente por que Deus amou e aceitou o
ser humano tal como ele é7. A causa do amor de Deus pelo homem não está no ser
humano, mas está no próprio Deus. Exclusivamente por causa da encarnação de
Cristo, que provou o seu imensurável amor pelo ser humano, o homem pode viver
como ser humano real e amar o próximo assim como é, chegando à realização do
seu destino de ser a Imago Dei.
Em Jesus, pode-se apreender a forma de se relacionar com o próprio
Criador. Não é um relacionamento distante ou estático, mas sim, um
relacionamento de proximidade e dinâmico que restaura, de forma intrínseca, a
relação entre o criador e a criatura. Através de Cristo é possível perceber a
abertura do ser humano para o mundo e para Deus e compreender que o
conhecimento de Deus leva o ser humano a transpor as barreiras do finito. É na
busca pelo transcendente que o homem percebe o mundo ao seu redor, assumindo
assim o seu papel como administrador da criação e; como ser social, sensibiliza-se
também pelas necessidades do seu próximo buscando supri-las.
Compreendendo que a mensagem do evangelho é muito superior a um
conjunto de preceitos ou de regras e que, na realidade, esta mensagem está
diretamente ligada à forma como se vive, o homem ansiará por revelar os valores
pretendidos por Deus. Tais valores do Reino não podem ficar aprisionados numa
dimensão espiritual, mas devem, se transportar para um meio prático, impactando
a toda a sociedade, devem levar à ética do Reino e deve levar o ser humano a
exercer de forma concreta todos os ensinamentos dados e praticados por Jesus
Cristo, ou seja, se conformar ao próprio Cristo.
Estar conformado com Cristo significa ser realmente humano. O ser humano
pode ser e deve ser humano. “Toda mania de super-homem, todo esforço de
superar o humano em si mesmo, todo heroísmo, toda feição de semideus
6 Cf. Bonhoeffer, Dietrich. Ética, página 45. 7 Cf. Bonhoeffer, Dietrich. Ética, página 46.
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eliminam-se para o ser humano, porque não são verdadeiros.” 8 Porque o ser
humano real não deve ser alvo de desprezo nem de idolatria, mas sim, objeto do
amor de Deus. E por esse motivo, a ética deve refletir a Imago Dei, que põe em
prática os valores do Reino. Assim, a ética se ocupa da formação do ser humano.
Para os cristãos isto significa imitar e seguir Cristo. Ser como Cristo.
Jesus não é um ser humano, mas o ser humano. O que acontece com ele, acontece ao ser humano, a todos e, portanto, também a nós. O nome de Jesus inclui a humanidade inteira e a totalidade de Deus.9
Portanto, não é possível se falar em uma teologia equilibrada se a mesma
não for fruto de uma reflexão madura sobre o papel do ser humano enquanto
portador da Imago Dei. Essa reflexão deve unificar-se às perspectivas de toda a
teologia. Não é possível falar em cristologia sem que se vislumbre conjuntamente
a pneumatologia e a antropologia. Da mesma forma que fica sem sentido algum
falarmos de uma antropologia teológica sem que se tenha como ponto-chave a
encarnação, cristologia, e a capacitação do ser humano através da ação do Espírito
Santo, pneumatologia, para que, a exemplo de Jesus, possamos desenvolver uma
humanidade amadurecida. É desta forma que a teologia poderá ajudar a formar
seres humanos conscientes de sua humanidade, com limitações e qualidades. É
somente com uma antropologia teológica viva que o ser humano compreenderá o
que é ser a imagem e semelhança de Deus, ou seja, Imago Dei.
8 Bonhoeffer, Dietrich. Ética, página 50. 9 Bonhoeffer, Dietrich. Ética, página 45.
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