IDENTIDADE MESQUITA
TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL
Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo do Instituto de Educação Superior de Brasília, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Jornalismo.
Orientador: Prof. Marco Antônio Pires
Brasília 2005
Daiane Souza Alves
IDENTIDADE MESQUITA
TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL
Dissertação aprovada pela Banca Examinadora com vistas à obtenção do título de Bacharelado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo pelo Instituto de Educação Superior de Brasília.
Brasília, DF ______de____________ 2005.
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________ Prof. Prof Marco Antônio Pires - orientador
___________________________________ Prof___________________________
_______________________________ Prof__________________________
DEDICATÓRIA
À Deus e aos meus pais,
Jesus Pereira Alves e
Eduvirgens Leandro de Souza Alves, mamãe Dinha.
Sem vocês, nada posso.
AGRADECIMENTOS
À toda a comunidade Mesquita que se permitiu participar para o
cumprimento deste trabalho, não apenas com dedicação mas com muito afeto e
hospitalidade, também deixando partilhar de suas alegrias e sofrimentos. À dona
Carmem Lúcia Lisboa, imprescindível como facilitadora de aproximação com a
população e fonte de informação e apoio. À Sandra Pereira Braga, ao Sr. Sinfrônio
Lisboa da Costa, Sr. João Antônio Pereira, dona Antônia Pereira Braga e a todos os
que, embora não tenham sido citados, colaboraram doando seus momentos de
trabalho, um pouco de sua vida e tradição.
A Jesus, meu pai, e a Dinha, minha mãe, pela chance e pela vitalidade
que herdei. Obrigada pela dedicação e por todo o esforço no acompanhamento
deste trabalho e de toda a minha vida.
A Jefferson Pereira da Silva, razão do meu amor e melhor amigo, por me
equilibrar psicologicamente, sempre compreensivo e disposto a partilhar de todos os
momentos, bons e maus, do processo.
Agradeço também, imensamente, a todos os amigos que, embora
distantes, torceram para que este trabalho fosse possível e aos que se fizeram
presentes propondo-se a colaborar: Eduardo Erthal, Roberto Fleury, Fernando
Paulino, Heloísa Doyle, Amaro Luiz Alves, Iza Mendes, Paulo Cabral.
Por fim, à Fundação Cultural Palmares que atenciosamente se dispôs a
fornecer todas as informações necessárias sobre Mesquita, além de esclarecer
gentilmente todas as dúvidas relacionadas ao reconhecimento desses
remanescentes negros.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.....................................................................................00
1 IDENTIDADE. MESQUITA....................................................................00
2 ACEITAÇÃO E RECONHECIMENTO – IDENTIDADE CULTURAL X MODERNIZAÇÃO................................................................................................... ..00
3 FALHA NA COMUNICAÇÃO COMO OBSTÁCULO PARA O RECONHECIMENTO.................................................................................................00
4 INCLUSÃO SOCIAL: VALORIZAÇÃO e REGISTRO.........................00
5 UM OLHAR SOBRE MESQUITA........................................................00
6 FOTOGRAFIA COMO FONTE DE INFORMAÇÃO e REGISTRO HISTÓRICO...............................................................................................................00
7 CONSTRUINDO HISTÓRIA...............................................................00
8CONCLUSÃO...........................................................................................0
REFERÊNCIAS.........................................................................................00
ANEXO A – O PESO DA ESCRAVIDÃO................................................00
ANEXO B – ENTREVISTA A FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – 31/03/2005.................................................................................................................00
ANEXO C – PROJETO ARCA DAS LETRAS........................................00
ANEXO D – AS COMUNIDADES NEGRAS E O ARTIGO 68 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ...............................................................00
ANEXO E – DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003....00
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APRESENTAÇÃO
A idéia para a realização de um levantamento sobre Mesquita dos
Crioulos partiu de uma sugestão de pauta para o jornal-laboratório durante o sexto
semestre da graduação em Jornalismo no ano 2004. A princípio, a pauta seria uma
reportagem sobre uma comunidade constituída excepcionalmente por negros e sua
relação com o ditado comum entre habitantes de cidades próximas “Em Mesquita,
homem branco não cria raiz”.
Durante as apurações descobriu-se, a razão pela qual a raça negra é
predominante: o fato das terras pertencerem a remanescentes de escravos que
trabalharam para o Garimpo Santa Luzia – atualmente cidade de Luziânia – no
período do Ciclo do Ouro, século XVII, fase de grande importância na História
econômica do Brasil.
Como uma das repórteres, pude, em parceria com Paulo Cabral,
conhecer e transmitir, na matéria Mesquita: um povoado à margem do tempo,
publicada no jornal-laboratório NaPrática Maio/Junho/2004, o que é preservado
desde o período colonial. O estudo sobre o povoado despertou a curiosidade e o
interesse em aprofundar o conhecimento sobre seu passado e em colaborar de
alguma maneira para que sua história não se perca por falta de memória, de
registro.
Na matéria, foi abordada parte da história do povoado, interligando a sua
origem à atualidade e às razões pelas quais manteve-se e/ou resistiu mais de um
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século, praticamente isolado, paralelo ao crescimento urbano e econômico a apenas
8 quilômetros da Cidade Ocidental e à 55 quilômetros da Capital Federal.
A reportagem teve repercussão em alguns veículos de comunicação. Por
exemplo, no Correio Braziliense, que publicou, em 29 de agosto de 2004, na capa
da Revista “D”, a matéria Mesquita: Poeira, Quietude, Passado, apontando hipóteses
sobre a origem do povoado e apresentando sua rotina e tradições.
Houve, também, retorno de órgãos públicos, como a Fundação Cultural
Palmares (FCP) – entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura – que realizou
trabalho de conscientização dos mesquitas – como serão chamados os habitantes
de Mesquita neste relatório – sobre a importância e as vantagens de se assumirem
quilombolas, independentemente de o serem ou não, literalmente.
Essas respostas funcionaram como elo entre o vilarejo e a sociedade
divulgando e incentivando a preservação da cultura deixada pelos escravos que
viveram durante a monarquia, apresentando, implicitamente, o contraste existente
entre os dois meios, o rural e o urbano.
Há anos, ser reconhecido como quilombo tem sido a principal dificuldade
de Mesquita. Como o governo pode reconhecer o povoado se os próprios moradores
não se assumem quilombolas? Se não se assumem, existem políticas em favor de
comunidades negras, independente de aceitarem essa condição? Como exigir de
um povo que aceite determinadas condições para que tenha “direito” à terra onde
vive há mais de três séculos consecutivos? O que é necessário para que Mesquita
seja reconhecido? Existem possibilidades de o vilarejo ser assistido de alguma
maneira? Se existe, quais os benefícios? Essa é uma questão que gira em torno das
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chamadas terras de pretos e das limitações a partir de como o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 a aborda:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
A reivindicação deste povo é por assistência. Para isto é necessário que
sejam reconhecidos como remanescentes de comunidades de quilombo. Para se
conquistar o reconhecimento é preciso que haja auto-aceitação, o que não ocorre
neste caso devido à condição que Mesquita tem de descender de escravos
alforriados.
O principal obstáculo é, portanto, a falta de esclarecimento e
conscientização sobre como o governo vem tratando a expressão “remanescente de
quilombo” e associando-a as comunidades negras rurais. Situação semelhante
ocorre com os índios, primeiros habitantes do Brasil, que hoje lutam na Justiça pelo
direito a pequenas porcentagens de terra em um território com área de 8.511.996
km2, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE).
O objetivo deste trabalho é, portanto, colaborar para a divulgação de
Mesquita como comunidade conservadora de tradições coloniais proporcionando
sua aproximação com o Estado. Com base em apurações anteriores, entrevistas,
relatos (Junho/2004) e pesquisas recentes sobre comunidades quilombolas,
pretende-se, a partir deste produto – catálogo fotográfico –, reunir vestígios capazes
de evidenciar Mesquita como um povoado digno de ser apreciado e que merece e
precisa ser registrado como comunidade de remanescentes de escravos.
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Optar por produzir um catálogo a partir de imagens que definam o dia-a-
dia de um mesquita foi uma decisão não muito complicada de se tomar pelos
seguintes fatos: 1. A facilidade da fotografia em atentar para a curiosidade de quem
a observa, no sentido de buscar conhecimento sobre a situação exposta; 2. A
eficácia da imagem impressa como documento, prova concreta e, principalmente,
visível do que é representado; 3. A interação e familiarização entre o apreciador e o
fato proporcionado pela imagem; 4. O manuseio do catálogo, que promove maior
“contato” e proximidade entre as realidades envolvidas (observador e
representação).
A intenção é, com este produto, apresentar ao Estado e aos demais
interessados o que há de preservado da cultura colonial (desde o período da
monarquia no Brasil) em Mesquita e como o povoado conseguiu manter-se sem
afiliar-se à modernidade, e com isto abrir discussões a este respeito e às
possibilidades de se assistir a comunidade, esta assumindo-se ou não quilombola.
Para a realização deste trabalho foram necessários acompanhamento
durante um ano do cotidiano da comunidade, referências bibliográficas, dados
adquiridos por pesquisadores das comunidades quilombolas e de órgãos do governo
responsáveis pelo seu monitoramento, tais como a Fundação Cultural Palmares
(FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
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1 IDENTIDADE MESQUITA
Terra de negros, Mesquita dos Crioulos surgiu após a assinatura da
Abolição da Escravatura pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, segundo
descendentes de habitantes da região pertencente ao garimpo Santa Luzia que, há
época, se estendia dos pontos onde hoje se encontra a cidade de Cristalina à
Brazlândia e Planaltina de Goiás. Com a desagregação das grandes propriedades,
fazendeiros e garimpeiros perderam ou cederam partes de suas terras para famílias
de ex-escravos.
Embora saiba-se pouco sobre Mesquita, existem evidências suficientes
para esclarecer trechos de seu passado. Durante o Ciclo do Ouro, século XVII, a
grande fazenda pertencente a João Manoel Mesquita serviu ao garimpo, hoje cidade
de Luziânia, com mão-de-obra escrava. As águas de seus córregos eram usadas
para a lavagem do minério, segundo consta em documentos da época e em raras
obras de autores que escreveram sobre o garimpo.
Os habitantes locais relatam o surgimento da pequena comunidade como
se esta tivesse se originado de apenas duas famílias negras do século XVIII, Pereira
Braga e Magalhães, que se entrelaçaram gerações a dentro no decorrer dos
séculos. No povoado, todos os habitantes são parentes. Somente há cerca de 50
anos teria sido possível detectar focos de miscigenação e conseqüente aculturação.
11
Não se sabe ao certo como as terras se tornaram posse desses
remanescentes. Existem três versões contadas pelos moradores sobre como essas
famílias teriam se apossado do terreno. Uma delas diz que João Manoel Mesquita,
com a assinatura da Lei Áurea sem herdeiros, permitiu a seus ex-escravos o
domínio de um trecho das terras. A outra diz que o fazendeiro teria vendido a um
casal de escravos uma porcentagem de seu território. Na última versão, três
escravas, entre elas a que teria sido sua ama de leite, teriam recebido parte da
fazenda pertencente a sinhá, esposa de Mesquita, como gratidão pelos anos de
serviços prestados, após a abolição da escravatura.
Com as tradições culturais herdadas de seus antepassados, durante todo
esse tempo a comunidade foi capaz de se manter independente no que diz respeito
à subsistência. Por meio do sistema de troca do escambo, foram eles capazes de
trocar alimentos agrícolas, doces artesanais por bem e mercadorias não produzidas
na localidade. Em cada casa produzia-se um determinado tipo de alimento que as
famílias mesquitas trocavam entre si para que as necessidades de todos fossem
supridas.
A cultura do marmelo (cultivo do marmelo e produção artesanal do doce
marmelada), os engenhos de cana-de-açúcar para a produção da rapadura e da
cachaça-de-alambique e a feitura artesanal da farinha-de-mandioca, do fubá de
milho e do polvilho são o que garantem, ainda hoje, o sustento de várias dessas
famílias que, até a segunda metade do século XX, tinham pouco contato com o
dinheiro. Esse contato cresceu após a fundação da Cidade Ocidental em 1974, a
apenas oito quilômetros de seu centro, desde então a divisão jurisdicional mais
próxima.
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Hoje, alguns desses produtos, além de fazerem parte da subsistência,
têm considerável valor para a economia local. São feitos em maior quantidade para
serem, também, vendidos em feiras e pequenos comércios de fora do povoado.
Durante meados do século passado, o maior produtor da marmelada foi o senhor
Aleixo Pereira Braga, que, além de cultivar o marmelo, incentivava pessoas da
região a também plantarem e produzirem o doce. Hoje, seu genro, João Antônio
Pereira, tem esse título, sendo também o fundador e presidente da Associação
Renovadora de Moradores e Amigos de Mesquita (AREME), instituição que luta por
melhorias e responde pelo povoado.
A população, constituída por cerca de 1.200 habitantes (dados da
Fundação Cultural Palmares – 2004) conta com apenas uma escola de ensino
fundamental. Tem também um posto de saúde, sem dia nem hora certa para
funcionar. Não existe endereçamento. As referências das casas são os números dos
medidores de energia. A população é basicamente constituída por idosos e crianças,
já que parte dos jovens deixa o povoado e vai para cidades mais desenvolvidas em
busca de melhores condições, retornando somente nos finais de semana.
Uma característica torna o vilarejo interessante: sobreviveu mais de um
século isolado, “independente” e, por 45 anos, praticamente, ao lado da capital do
poder nacional, Brasília, sem que houvesse incorporado certas conquistas da
modernização. O povo mesquita só teve contato com a energia elétrica há menos de
20 anos, a partir do governo José Sarney.
O catolicismo colonial e práticas tradicionais como a coletividade no
trabalho das lavouras, a feitura artesanal de doces, farinha e cachaça, os encontros
religiosos, são ainda preservados e considerados principais características do
13
povoado. As principais festas tradicionais religiosas são a Folia de São Sebastião,
que acontece no mês de janeiro, a Festa do Divino Espírito Santo ou Folia de
Pentecostes, durante o mês de maio, e a Festa de Nossa Senhora da Abadia,
padroeira mesquita, no mês de agosto.
A comunidade vem sendo invadida por sitas cristãs pentecostais, o que
provoca modificações substanciais nos hábitos e na cultura locais, haja visto que o
protestantismo conseguiu à nova ideologia. Os conflitos se dão por conta dos
vínculos remanescentes do catolicismo tornando inaceitável aos mesquitas
seguidores de seus preceitos a alteração de valores simbólicos espirituais dentro de
sua religião tradicional e oficial.
Resistentes à sua memória histórica, os mesquitas referem-se à
escravidão com sofrimento, evitando resgatar tristes fatos contados por seus
antepassados que vivenciaram essa realidade. Segundo eles, o regime escravocrata
é uma parte de sua história que deve ser esquecida, pois a comunidade é livre e não
vale a pena se prender ao passado.
O “isolamento” decorrente da distância existente entre Mesquita e outras
cidades, até meados da década de 70, foi um dos fatores que fizeram com que a
comunidade perdesse o direito a recursos federal e municipal por ignorar o que vem
sendo feito em favor dos remanescentes de escravos.
Através deste estudo pretende-se alertar para a necessidade de registro
como comunidade remanescente de quilombo sem que haja a necessidade de
Mesquita assumir-se quilombo ou que se trabalhe a questão da aceitação da
comunidade como quilombola. Resgatar a questão do período escravocrata como
“requisito” para se adquirir o reconhecimento tem o mesmo significado de se magoar
14
uma ferida aberta há mais de um século devido aos abusos e maus tratos sofridos
pelos negros durante a colonização.
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2 ACEITAÇÃO E RECONHECIMENTO – IDENTIDADE CULTURAL X MODERNIZAÇÃO
A grande questão associada às terras de pretos são as dificuldades
encontradas para que sejam reconhecidas e, consequentemente, tituladas,
podendo, assim, receber os recursos destinados pelo Ministério da Cultura por meio
da Fundação Cultural Palmares – que é encarregada de acompanhar e assessorar
os povos negros – e de outros órgãos do governo, a partir de ações afirmativas.
Anjos (2004, p.27) denomina terras de preto da forma que se segue:
As comunidades negras rurais, também chamadas terras de pretos, surgem a partir dos quilombos constituídos por negros que fugiram do sistema escravocrata. [...] As denominadas terras de pretos resultam de domínios doados, entregues ou adquiridos com ou sem formalização jurídica, à família de ex-escravos a partir da desagregação das grandes propriedades monocultoras.
Terra de preto é uma expressão utilizada atualmente como forma de
amenizar o impacto da palavra “quilombo” e como sinal de respeito àqueles que não
se assumem quilombolas, mas se vêem apenas como remanescentes negros ou
descendentes de escravos alforriados.
Segundo ordens do rei de Portugal em 1740, o Conselho Ultramarino –
organização de ações conjuntas entre colônias no período de 1642 a 1833 – definiu
quilombo como sendo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em
parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões
neles”, conforme cita Moura (1981, p.16).
Na língua congolesa, “quilombo” significa grupo que se reúne para rezar a
Deus. No Brasil, eram grupos formados por escravos negros que se concentravam
para adquirir força na fé e resistência na luta pela liberdade, fugindo da escravidão e
construindo novos sítios de moradia.
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Mesquita não tem registro como remanescente de escravos perante o
governo. Para que haja reconhecimento, é preciso a autoaceitação dos habitantes
como quilombolas, mas alguns não aceitam essa condição porque toda a
comunidade descende de escravos alforriados.
Outros mesquitas, sequer assumem-se negros pelo medo de se exporem
a preconceitos racial e de classe socioeconômica, além do receio à exploração
remetida ao seu passado histórico, que seria a pressão por parte de visitantes em
saber sobre o sofrimento a que os negros eram remetidos durante a escravidão.
Outras comunidades também passam por esse problema, pelo
desconhecimento de sua origem, por falta de registro ou informações que
evidenciem ou as comprovem como remanescentes de quilombos.
Entre outros casos, embora “algumas permaneçam parcialmente isoladas
geográfica, cultural e geneticamente até o presente e várias preservem muito de sua
identidade étnica” (OLIVEIRA, 1998, p.7).
Coordenado por Anjos (2005), o Centro de Geografia e Cartografia
Aplicada (Ciga) da UnB realizou durante os últimos cinco anos projeto que consiste
na localização de quilombos no Brasil. No dia 5 de maio de 2005 foi apresentado o
Quadro dos Registos Municipais das Comunidades Quilombolas do Brasil, com o
cadastro de 2.228 comunidades identificadas como remanescentes de quilombos e
sua localização municipal. O dado mostra que existe um número inestimável de
comunidades contemporâneas não registradas. Esse número tende a diminuir à
medida que o crescimento urbano apropria-se dessas regiões e ocorre o fenômeno
da miscigenação, que obriga a aceitação de outros hábitos ou práticas culturais
descaracterizadoras por parte dessas populações que poderiam ser preservadas.
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Essa “exclusão social” colabora também para a degeneração progressiva
dessas etnias devido à falta de monitoramento com vistas à sua preservação e
esclarecimento de seu valor social. Anjos (2005), em divulgação de resultados do
Projeto Geografia Afro-Brasileira da Universidade de Brasília (UnB), afirmou que
muitos negros do Brasil não se sentem brasileiros por falta de reconhecimento e pelo
não cumprimento da demarcação territorial como um direito.
A ausência da autoaceitação decorre da descaracterização ou perda da
identidade cultural por conta do sofrimento histórico associado ao período
escravocrata, tornando-se, assim, empecilho para o reconhecimento, valorização e
registro desses grupos. É possível que Mesquita não tenha sido registrado pela falta
de informação e divulgação de projetos e leis em favor das comunidades negras e
por não haver iniciativa por parte dos moradores em mobilizar o Estado.
O não reconhecimento e devido registro podem representar perda parcial
ou total de seu território, bem como a ausência de apoio em recursos para a
preservação de suas tradições e melhoramento de sua qualidade de vida.
Caracterizado pelo contato contínuo entre sociedades que trocam traços
culturais entre si, o processo de aculturação tem sido relevante obstáculo para o
reconhecimento de comunidades rurais negras. Devido ao processo de urbanização
que cerca e termina por se apropriar desses territórios, o contato extenso danifica e,
em alguns casos, leva à perda total da identidade desses povos. O desenvolvimento
e conseqüente aproximação de bairros e cidades impõem aos moradores desses
povoados a necessidade de se adaptar a novos valores culturais.
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As influências dessas cidades e vilarejos próximos às terras de pretos
prejudicam a conservação de sua identidade, pois a interação com outros costumes
pode modificar e até destruir valores tradicionais seculares. Isto acontece, devido a
necessidade de comunicação entre os homens e, para que haja interação, os
envolvidos, em constante aprendizado, adaptam linguagens e símbolos a sua
cultura. Segundo Linton (1959, p.309), os hábitos mais antigos de um determinado
povo, quando colocados como opção diante de um costume recente, deixam de ser
devidamente valorizados dentro de determinada cultura.
Há alguns anos, com o surgimento da Cidade Ocidental, Mesquita foi
cortado por uma estrada que ligaria o município a Brasília. Ás margens da estrada
formaram-se loteamentos, como Jardim ABC e Dom Bosco, que se encontram
próximos ao povoado. As pessoas que passam a residir nesses bairros vêm de
diversas regiões do país trazendo costumes que vão sendo compartilhados e
adaptados, gerando novas identidades culturais e ameaçando a preservação da
identidade colonial mesquita.
A comunidade negra de Morro Alto é uma das que passaram por situação
semelhante à de Mesquita, como define Barcelos (2004, p.167):
O impacto sobre a região de Morro Alto com o desenvolvimento da BR-101 configurou-se dentro do contexto nacional. Nesse contexto, no qual a estrada (unidade do sistema rodoviário) demarcava o ingresso ao progresso, ao desenvolvimento e à integração da sociedade brasileira, conforme as concepções governamentais, a comunidade de Morro Alto acabou, como grande parte da população marginalizada brasileira, ‘forçada’ à modernização excludente.
Em Mesquita, com o declínio na cultura do marmelo – principal fonte de
renda entre os séculos XIX e XX – devido às pragas, os habitantes buscam outras
formas de garantir o sustento. Os mais jovens saem do povoado em busca de
emprego e estudo. Com novas oportunidades, acabam por conhecer e retornar ao
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seu povo com hábitos que vão sendo agregados aos seus. Por exemplo, os ritmos
musicais e a variação de linguagem (novas expressões, gírias).
No povoado, a modernização, embora lentamente, vai sendo incorporada
à cultura mesquita, nem sempre substituindo, mas sendo adaptada ao rústico
facilitando o trabalho, a produção, e tornando acessível o contato com outros meios.
Por exemplo, a cachaça é ainda produzida em alambique embora, em algumas
casas a moagem da cana para o preparo da bebida seja feita em engenho elétrico.
Cultura, sob o ponto de vista antropológico, significa conjunto de hábitos e
costumes tradicionais transmitidos de geração para geração dentro de uma
comunidade. É o agrupamento de valores simbólicos, de conhecimentos específicos
característicos de um determinado povo. Pode-se definir como sendo “a vida total
de um povo, a herança social que o indivíduo adquire de seu grupo. Ou, ser
considerada a parte do ambiente que o próprio homem criou” (KLUCKHOHN, 1963,
p.28). A influência que uma cultura exerce sobre outra, descaracterizando a primeira,
é também um fator capaz de originar uma nova.
Tradições vão perdendo seu valor histórico-social à medida que são
modificadas, como é o caso da Catira, dança folclórica pertencente a comunidades
rurais negras, localizadas, principalmente, na região Centro-Oeste que, em
Mesquita, vem sofrendo adaptações por parte de alguns jovens, tendo seus passos
combinados aos da dança norte-americana cowntry por influência de freqüentadores
do povoado.
Uma das dificuldades enfrentadas para a elaboração deste catálogo foi o
primeiro contato com os habitantes. A aproximação nesse caso mereceu todo um
preparo especial, já que os mesquitas são pessoas que viveram durante anos
20
“isolados” de uma comunicação intensa com pessoas de fora que, somente, há
pouco tempo vem se intensificando.
Anunciar-se como estudante de jornalismo causou rejeição em algumas
famílias, que classificaram os jornalistas como mentirosos. “A gente conta uma coisa
sobre nossa história e eles falam outra usando nosso nome para explicar o que
querem e ganharem dinheiro às nossas custas”, disse uma moradora que preferiu
não se identificar.
Em pesquisa sobre o território negro Conceição dos Caetanos, Ratts
(1996, p.106) notou situação parecida e chamou a atenção ao depoimento de Bibiu
(2004), habitante da comunidade, que relatou:
Aqui tem vindo muita gente, muito reporte, fazer entrevista, mas antes da gente conhecer a história da consciência negra, a história dos antepassado dos nossos avô, todo reporte que vinha a gente fazia entrevista com eles, conversava, mas depois que a gente pegou a conhecer a realidade, a gente recuou. [...] Os reporte que anda aí no mundo atrás de saber da história para ganhar dinheiro, eles não tão recebendo nada aqui mais não. [...] A última vez que viero fazer entrevista aqui, os reporte trouxero uma corrente... O pessoal não sabia de nada. Amarraram os pés do pessoal pra mostrar como era que tinha sido a escravidão. Só que nós não interessava saber como tinha sido a escravidão, não. Abastava nós saber que negro era escravizado pela pele, pelo cabelo, pelo andado, pelos beiços.
Foram longas as conversas. O uso de uma linguagem simples e clara
explicitou todo o processo e objetivos deste acompanhamento durante um ano aos
mesquitas. Esclarecendo atentamente as dúvidas dos moradores a esse respeito
deu espaço a um sentimento recíproco de confiança.
Esse respeito foi abalado em algum momento com o número crescente de
jornalistas, pesquisadores e alunos de faculdades que chegaram ao povoado, em
alguns casos, praticamente exigindo dos habitantes informações a respeito do
regime escravocrata, principal fator da resistência ainda existente entre os
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mesquitas. A pressão ocasionou revolta em parte dos moradores, que deixaram de
falar sobre o pouco que sabem a esse respeito.
Todo o trabalho de aproximação foi reiniciado, desta vez mais
cautelosamente, refazendo e fortalecendo os vínculos de amizade e, como os
mesquitas, esquecendo a escravidão durante as conversas e apurações, tratando
apenas das tradições, foco para este registro fotográfico.
Outras dificuldades para a realização desta apuração estiveram
relacionadas à produção ou feitura artesanal de alimentos – por dependerem de
épocas de colheitas, clima, disponibilidade dos produtores –, às festas religiosas
tradicionais que ocorrem somente uma vez por ano e à preocupação das pessoas
ao lidar com supostos preconceitos a que estariam sujeitos com a divulgação de sua
imagem, entre outras.
A colheita, por exemplo, do marmelo se dá no mês de janeiro,
consequentemente a feitura da marmelada acontece também nessa época do ano.
A dificuldade em retratar o processo de produção do doce foi a falta de equipamento
fotográfico, que, emprestado pelo Instituto de Educação Superior de Brasília a
alunos do curso de jornalismo, não esteve disponível durante o período de férias.
Nesse aspecto, a metodologia utilizada foi selecionar alguns dos
moradores e explicar todo o processo detalhadamente, incentivando-os a comunicar
a importância deste catálogo para a comunidade, até que fosse possível conseguir o
equipamento adequado para fotografar seu cotidiano. Os pontos mais importantes
para a compreensão dessas pessoas que trataram de transmiti-los pelo povoado
foram:
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1. importância do reconhecimento por parte do governo;
2. valor histórico da comunidade;
3. significado do catálogo como ferramenta de registro histórico;
4. necessidade deste produto como arquivo para fazer parte de um possível acervo
em torno de Mesquita;
5. acompanhamento fotográfico das tradições culturais preservadas;
6. público alvo para a recepção do produto;
7. objetivos.
A explicação detalhada, transparente e paciente dos objetivos deste
trabalho permitiu superar as resistências e a desconfiança que alimentavam a
relação a jornalistas e a pesquisadores, o que possibilitou a confirmação de laços de
respeito e de aceitação, garantindo ao final, até mesmo o apoio dos moradores.
A partir do uso da clareza e transparência com que foi tratado o objetivo
da produção do catálogo em relação aos mesquitas, pôde-se conseguir melhores
resultados. O ato de fotografar foi facilitado e o interesse dos habitantes em
apresentar sua riqueza tradicional os incentivou a valorizá-la e preservá-la um pouco
mais.
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3 FALHA NA COMUNICAÇÃO COMO OBSTÁCULO
PARA O RECONHECIMENTO
Mesquita não é o primeiro povoado de remanescentes de escravos a
resistir à denominação de quilombo. O motivo desta resistência decorre do
preconceito dos mesquitas em relação à expressão “quilombola” que, no período
colonial, era conferida a negros que se rebelavam contra seus senhores e fugiam
das fazendas por discordarem das condições de trabalho forçado e maus tratos.
Entre os mesquitas as expressões “quilombo” e “quilombola” remetem a
sentimentos de vergonha e são consideradas ofensas, já que a população descende
de escravos alforriados. Não foi necessário o uso da rebeldia por parte de seus
antepassados contra seu senhor para que fossem livres. Pelo contrário, segundo os
habitantes, os anos de serviços prestados, ainda que sob condições injustas, foram
pagos com parte das terras como gratidão para que pudessem desfrutar de sua
liberdade após a assinatura da Lei Áurea. Para os mesquitas, o período de
escravidão em sua história é algo qual não gostam de lembrar.
O fato de eles não se reconhecerem como quilombolas afeta diferentes
questões legais como a falta de apoio do Estado, a atenção para a catalogação e
preservação da memória, o problema da legalização da posse da terra, a
especificidade educacional e o resgate da auto-estima negra. Andrade Filho (2004)
diz que a falha está na comunicação e cita a expressão “comunidades de
remanescentes de quilombos”, constante no Artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
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De acordo com o autor, o modo como são colocadas as palavras, em
qualquer texto, pode influenciar os fatos, principalmente se relacionados a leis.
Nesse caso, as prejudicadas seriam as comunidades que descendem de negros
alforriados, que perdem o direito de serem registradas simplesmente por não se
aceitarem quilombolas.
Gusmão (1996, p. 03) alerta que o mau uso de expressões, também em
campo de pesquisa, pode trazer danos à minoria que se pretende apoiar e defender.
Para se conseguir resultados positivos que contribuam de alguma maneira para o
grupo de estudo, o cuidado durante a fala deve estar dimensionado dentro da
antropologia, não colocando em jogo sentimentos e o conhecimento do que já foi
levantado desse grupo.
Em Mesquita notou-se incompreensão dos habitantes sobre a razão pela
qual o tratamento da comunidade teria que ser diferente em relação às comunidades
vizinhas, por exemplo, de loteamentos. Ficam confusos por serem alvo de atenção,
pela razão a qual são tão procurados somente por descenderem de escravos. Um
caso delicado, já que a questão do reconhecimento envolve a origem deste povo.
O não reconhecimento acarreta danos, como a não demarcação territorial
do povoado, expondo-o às chances de perda para loteamentos que vêm se
formando ao seu redor, à descaracterização de sua identidade histórica e cultural e
à ausência de direito para se exigir benefícios, como saúde, segurança e educação.
Andrade Filho (2004) esclarece que o artigo 68 do Ato das Disposições
Transitórias da constituição, se analisado ao pé da letra, gera transtorno por se
deixar compreender como se todas as propriedades rurais negras fossem
constituídas por descendentes de negros que geraram resistência ao regime
25
escravocrata. Afirma que a expressão utilizada na Constituição Federal desrespeita
os grupos originados de famílias de escravos alforriados ao impor-lhes que, para
terem direito ao registro acatem a condição de quilombolas.
Em consenso, Gusmão (1996, p. 04) remete a falha de comunicação à
exclusão social do negro:
Impasses de toda ordem se revelam no caso exemplar do próprio enunciado do artigo 68 do ADCT, tomado aqui como base de discussão. Seu enunciado trouxe à baila alguns dilemas que não lhe pertencem exclusivamente, mas que refletem os dilemas do próprio padrão que rege a inserção do negro na sociedade brasileira, e que resultam em dificuldades para reconhecer-lhe a especificidade de sua condição enquanto negro, em particular negro brasileiro.
Os negros tiveram “vida social” no Brasil, ainda no período colonial. Os
quilombos eram formados por escravos insubmissos que fugiam e se organizavam
em grupos os quais se diferenciavam uns dos outros por sua estrutura interna, forma
e origem e se estruturavam de acordo com o seu número de habitantes, segundo
Moura (1981; p.17-19). Soares (1995, p.60) ressalta a cidadania existente entre
quilombolas dentro de sua estrutura comunitária:
O quilombo era seu Estado Nacional, era sua nação, era um povo politicamenteorganizado e, de consequencia, o habitante daquele ‘refúgio’ era cidadão, gozava de todos os seus direitos políticos, sociais, ecnômicos e civis no seu meio, no seu ambiente.
Embora espalhados por diversos estados brasileiros, os quilombos,
mesmo distantes uns dos outros, cresciam cada vez mais, e os quilombolas tinham
um único ideal: a partir de contato com escravos ainda cativos, organizar planos que
resultassem na libertação dos negros. Essa comunicação foi de grande importância
para o fim da escravidão no Brasil.
A escravidão acabou e os mesquitas mantiveram as tradições herdadas
dos portugueses, seus senhores, e dos negros coloniais. É preciso conscientizar a
26
população para a necessidade da preservação de sua memória histórica,
reafirmando e mantendo a identidade, fazendo compreender seu valor perante a
sociedade, além de esclarecer dúvidas a respeito das etapas para o registro como
remanescente de escravos.
A Fundação Cultural Palmares considera como de extrema importância
que estes sejam devidamente registrados para que tenham, além da garantia da
posse da terra e políticas de estado de preservação territorial, recursos para
sobrevivência e, consequentemente, a conservação da cultura enquanto
comunidade negra.
Documentar os hábitos e ritos transmitidos entre gerações com o intuito
de chamar a atenção para o valor histórico-cultural de Mesquita, fazer uso da
linguagem visual e, a partir dela, instaurar maior compreensão e aproximação do
observador à sua realidade, é o que se pretende ao produzir um catálogo fotográfico
contendo seu registro sob o ponto de vista antropológico.
A produção de um catálogo fotográfico seria, também, uma estratégia
para que os mesquitas percebessem seu valor perante a sociedade brasileira e
tivessem um registro histórico de memória. A fotografia funcionaria como objeto de
recordação, elemento de reconhecimento e “autoaceitação” pelos moradores e como
documento de comprovação de sua situação cultural no presente momento para a
luta por recursos e melhoria em sua qualidade de vida.
Ver-se como representante ou como modelo de preservação de uma
cultura rica, porém ameaçada, daria a essas pessoas satisfação pessoal e coletiva –
por ser a comunidade extremamente fraterna e exemplo de respeito mútuo entre os
27
moradores – no que diz respeito à valorização da cultura, incentivando o resgate de
tradições e preservação das existentes.
A Fundação Cultural Palmares estabelece que, atualmente, toda e
qualquer comunidade negra que mantenha sua identidade de origem escravo-
colonial, tem direito a recursos, e que todos os órgãos do governo têm políticas
públicas voltadas a esses povos sob a condição de se assumirem quilombolas: a
solução encontrada para beneficiar os grupos negros “não incluídos” na
Constituição.
A principal dificuldade encontrada pela Fundação Cultural Palmares,
outros órgãos do governo e organizações não governamentais (ONGs) para
acompanhar esses povos é justamente o fato destes não se aceitarem como tais por
ingenuidade ou mesmo falta de conhecimento desse conceito.
Assim, Anjos (2004, p. 10) define que, “ao aprofundar-se no relato sobre a
realidade de cada comunidade, possibilita, ainda, afastar uma concepção arcaica do
termo Quilombo, decorrente da aplicação equivocada de cânones próprios da
sociedade escravocrata”. E cita como complemento afirmação da Associação
Brasileira de Antropologia, ABA (1996, p. 81), que coloca o termo quilombo como
tendo “assumido novos significados na literatura especializada e também para
indivíduos, grupos e organizações”.
A exigência de se assumirem como quilombolas é o que dá aos povos
negros de comunidades rurais o direito de exigirem subsídios para melhoria de sua
qualidade de vida, infelizmente nem todas as comunidades têm consciência desta
realidade ou, não possuem informações a esse respeito.
28
O complicador para que Mesquita não fosse devidamente reconhecido
pelo governo foi justamente a falta de informação por parte dos habitantes sobre o
que chegaria a ser “considerado” quilombo atualmente. Somente em meados do ano
2004 houve uma tentativa de esclarecimento por parte da Diretoria de Proteção do
Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares.
No ano 2005, para o Projeto de Etnodesenvolvimento Econômico
Solidário das Comunidades Quilombolas desenvolvido pela fundação, foram
convidados jovens, representantes de povoados remanescentes de quilombos.
Tornado-se agentes de etnodesenvolvimento, estes jovens são preparados para
realizarem apurações em suas comunidades. Em Mesquita, João Paulo Braga foi
convidado a participar do curso e levantar dados dentro da comunidade.
A partir desse levantamento, que inclui o perfil da população, infra-
estrutura, situação territorial e atividades econômicas, a Fundação Cultural Palmares
poderá estudar melhor o caso Mesquita e desenvolver atividades com foco no
resgate cultural e no desenvolvimento sustentável. Outra atividade também
elaborada pela fundação é o intercâmbio quilombola, em que são selecionados
alguns habitantes de terras de pretos para que passem temporadas em outras terras
e troquem experiências, podendo, assim, descobrir o valor de suas tradições e a
importância do reconhecimento.
A Associação Renovadora dos Moradores e Amigos do Mesquita (Areme)
aguarda da comunidade respostas afirmativas para que Mesquita tenha direito ao
seu Certificado de Autodefinição Quilombola. Esse certificado permitirá a entrada no
Processo de Definição Fundiária que trata da delimitação legal e inalienável de seu
território e, aos habitantes, solicitar monitoramento por parte do Estado.
29
Para que Mesquita fosse contemplado com outros projetos de
responsabilidade da Fundação Cultural Palmares (projeto de apoio emergencial e
programa Bibliotecas Rurais Arca das Letras) foi realizada uma apuração
socioeconômica na comunidade. Após o diagnóstico, foram atendidas durante os
três últimos meses de 2004 com a cestas-básicas, as famílias mais carentes.
Já com o projeto Arca das Letras – organizado pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário por meio da Secretaria de Reordenamento Agrário e pelo
Ministério da Cultura através da FCP –, voltado às comunidades quilombolas,
Mesquita recebeu uma arca com cerca de 220 obras de diversos autores nas mais
variadas áreas da literatura para pessoas de todas as idades. Entre elas, livros sobre
outros quilombos, com o intuito de incentivar o interesse dos habitantes pelo resgate
e preservação de sua identidade.
30
4 INCLUSÃO SOCIAL: VALORIZAÇÃO E REGISTRO
Sensibilizar o Estado para que analise a situação do povoado, discutindo
meios de se resgatar suas tradições esquecidas, recorrendo a ONGs e órgãos
públicos para a necessidade de assistir Mesquita possibilitaria, por exemplo, o
monitoramento das questões relacionadas à legalidade e proteção da terra que não
pode, assim como qualquer outro território negro, segundo o artigo 1º da Lei Federal
nº 7.668 de 22 de outubro de 1988, ser comercializada, mas por falta de orientação,
são vendidos a qualquer preço a não remanescentes negros diretos.
Para não deixar que a memória simplesmente se perca, a preocupação
atual é resgatar e perpetuar a herança social antes que se descaracterize a
identidade. A reprodução da imagem (neste caso a fotografia) foi selecionada para o
cumprimento deste trabalho por sua eficiência bem como representação fiel e
inalienável de um determinado instante, como meio de informação, como objeto de
recordação e como arquivo de memória do que é retratado.
Fotografar Mesquita remeteria a uma construção de memória voltada à
raiz, à origem do povo brasileiro, à sobrevivência no pós-colonialismo e às
dificuldades enfrentadas durante todo o percurso após a queda do Regime
Monárquico até se chegar à época atual.
As festas religiosas, em homenagem a Nossa Senhora da Abadia, Divino
Espírito Santo e Folia de Reis –, com cantorias, comidas fartas e fogueiras são
tradições que, mantidas desde o colonialismo até os dias atuais. Estes rituais fazem
parte do folclore de Mesquita e são o que o fazem digno de ser registrado por tornar
31
possível a análise dos efeitos do progresso para a sociedade urbana e ser
considerado patrimônio vivo da humanidade.
A historiografia corre o risco de perder vários registros do povoado. Com a
morte de lideranças e dos mais velhos, aquilo que poderia ser resgatado por meio da
história oral, das narrativas, vai se perdendo. Ainda é pequeno o interesse
acadêmico pela experiência dos Mesquitas. Existem poucos livros ou referências à
sua história. Existem citações sobre a fazenda de João Manoel Mesquita no Ciclo do
Ouro em livros sobre a história do Garimpo Santa Luzia ou sobre a origem da cidade
de Luziânia e sua relação com Mesquita.
A produção de um catálogo fotográfico é uma maneira de registrar a
memória histórica garantindo participação no acervo do que é documentado. A
importância de um documento desse tipo, é a idéia de época que ele proporciona, a
prova do que passa em tal período, em detalhes, e a necessidade de se “agendar”
os fatos dentro deste período.
32
5 UM OLHAR SOBRE MESQUITA
O objeto de investigação deste trabalho é o cotidiano dos habitantes de
Mesquita relacionado ao que há de preservado em tradições seculares. Registrar
fotograficamente esta herança cultural é permitir que outras gerações tomem
conhecimento deste passado. Possibilita também que a imagem do grupo possa ser
um atestado de identidade, de valorização das suas práticas, a ser melhor
reconhecida pelos próprios mesquitas.
A historiografia já reconhece na fotografia um imoprtante elemento de
pesquisa e de dados historiográficos. O próprio Imperador Dom Pedro II foi um
rigoroso colecionador de fotos, sendo ele mesmo personagem importante da prática
fotográfica em nosso país.
As principais tradições religiosas são a Folia do Divino Espírito Santo e a
Festa de Nossa Senhora da Abadia. A Festa do Divino, como é mais conhecida, que
acontece no mês de maio e normalmente dura de nove à dez dias, terminando
sempre até o dia 15 do mês é um exemplo do que deveria ser representado dentro
de um ensaio fotográfico.
No ano 2005, a festa durou apenas sete dias. Durante esse período, os
foliões, como são chamados os seguidores do giro ou Procissão da Bandeira,
passam por todas as casas do povoado onde realizam as cantorias – orações
cantadas e acompanhadas por instrumentos como violas, violinos e caixa, que é um
pequeno tambor com o qual são marcados os “tempos” musicais e que serve para
anunciar a chegada e a saída da bandeira de uma determinada casa. As letras das
33
cantorias falam de reverência ao Divino Espírito Santo, pedidos de proteção e
agradecimentos, como no trecho abaixo:
“E nas hora de Deus, Amém. (Bis) Pai e Filho e Espírito Santo.
Uniu a pureza Divina. (Bis) Distribui todos encanto.
Louvado seja o Divino. (Bis) Que a cinco dia vem girando.
E retirando o mal da Terra. (Bis) Que aqui está abençoando.
Ele chegou, benzeu a porta. (Bis) E por esta casa entrou.
E ele abençoou o lar. (Bis) E à cidade apresentou.
E damo louvor a Jesus Cristo. (Bis) Que está na porta principal.
E nossos santo por Deus. (Bis) Livrai-no de todo mal. (...)”
Após as cantorias são servidos lanches ou a farofa – porção de farinha
temperada com carnes e especiarias – como forma de agradecimento pela
mandioca (matéria-prima para a produção da farinha e do polvilho) que se pode
colher durante todo o ano. É dançada a Catira pelos foliões para retribuir a acolhida
ao dono da casa, depois há a saída em procissão, para a casa seguinte.
Quem comanda é o Imperador ou Alfer, que é responsável pela folia
durante todos os dias da festa. Dentro da comunidade, o Imperador é considerado
uma liderança espiritual e é quem comanda a folia durante anos até que esteja
debilitado e anuncie reunião para a declaração de um novo líder.
O senhor Evando Sousa e Silva, 67 anos, assumiu a liderança junto com
o senhor Alceu Teixeira Magalhães, “seu” Ageu, 75 anos. Os dois receberam a
Bandeira do Divino de Sebastião Pereira Braga, sogro de “seu” Ageu há 12 anos.
34
No rito existem outros cargos entre os foliões que são escolhidos pelo
imperador, como mestre-guia, regente, caixeiro. Durante a festa, todas as casas se
preparam para receber a bandeira e algumas delas são oferecidas para que se
cumpram os pousos – hospedagens durante os dias da festa. No último dia, todos
reúnem-se para participar da missa e da festa de encerramento.
A Festa do Divino é um exemplo das tradições que poderiam vir a ser
representadas a partir das fotografias que constituiriam o catálogo, servindo de
prova de seu folclore e apontando que Mesquita preenche os requisitos para ser
devidamente reconhecido e registrado.
Outra tradição interessante é produção artesanal da rapadura. A cana é
descascada e moída ainda em engenho manual movido a tração animal. A garapa,
ou caldo, retirado e colocado em grandes tachos de cobre, unida ao açúcar, será
Durante a passagem da Bandeira do Divino Espírito Santo fiéis fazemreverências, pedidos e agradecimentos.
35
cozido e mexido até que se torne uma espécie de mel. A próxima etapa do processo
é adquirir a consistência.
O melado, como é também chamado o mel a partir da garapa, é desviado
através de uma vala de madeira preparada, para o cocho onde será batido para
adquirir a consistência. Neste momento as crianças da vizinhança começam a
chegar e a sentar-se enquanto aguardam inquietas o final da produção. O cheiro do
doce toma grande parte do povoado atraindo-as.
Ao encontrar-se no ponto, o preparo para a rapadura é despejado em
pequenas fôrmas de madeira forradas com folhas de bananeira onde permanecerá
até que se esfrie para ser embalada. Enquanto isso, o ataque as espátulas e ao
cocho de madeira é certo. Seu Sinfrônio, ciente da expectativa, sempre antes de
enformar o doce, separa uma porção para os pequenos apreciadores e para a
Sinfrônio Lisboa da Costa, 78 anos, maior produtor em Mesquita,prepara a rapadura também com mamão e leite de vaca.
36
família. “Aqui todo mundo gosta do doce, principalmente as crianças”, diz e se
empolga “tem gente que fica sabendo e vem de fora comprar. Já vendi a rapadura
até pra estrangeiro. A rapadura do Sinfrônio já foi até pra África”.
37
6 FOTOGRAFIA COMO FONTE DE INFORMAÇÃO E REGISTRO HISTÓRICO
O catálogo foi escolhido como produto para registro e divulgação de
Mesquita por cumprir três papéis importantes: fornecer informações; fornecer
interpretações que tornem significativas e coerentes as informações; exprimir valores
culturais e simbólicos próprios da identidade e da continuidade sociais.
A imagem reflete a realidade de um determinado fato, propondo maior
interação entre a situação e o apreciador e fazendo com que este se identifique com
maior facilidade ao que lhe é proposto.
O manuseio do catálogo proporciona proximidade e familiarização entre
as realidades envolvidas, no caso o observador e o que é representado. Ao se
apreciar fotografias, segundo Kossoy (2002; 132) é comum que quase que
imperceptivelmente o observador se deixe envolver pela trama ali representada e
esboce relações entre os fatos e as circunstâncias, levando, também, em
consideração, o contexto em que a foto foi produzida.
As imagens sem conta produzidas [...] dos microaspectos captados de diferentes contextos sociogeográficos têm preservado a memória visual de inúmeros fragmentos do mundo, dos seus cenários e personagens, dos seus eventos contínuos, de suas transformações ininterruptas. Estas imagens são documentos para a história e também para a história da fotografia. (KOSSOY, 2001;27)
Segundo o autor, a fotografia assume seu valor como documento de
resgate histórico à medida que recorta da vida real o imperceptível e torna-o foco.
Além de capturar “momentos históricos”, torna-se, ao mesmo tempo, peça de tal
importância para a história da fotografia. Deixa de ser objeto de aproximação e
passa a prova concreta de um determinado instante, situando, assim, o apreciador
38
no tempo e espaço. Fotografar Mesquita é uma questão de valorização social e
reconhecimento.
Fotografar e testemunhar o objeto de interesse numa fração de segundos
mostra a importância da foto, também, como meio de comunicação, por trazer à
tona, além do fato em si, sua riqueza em pequenos detalhes essenciais para a
caracterização do cenário onde ele ocorre.
A imagem possui a capacidade de chamar a atenção do observador e
fazer com que este se envolva de modo a se familiarizar e tornar a fotografia um
ícone de associação à realidade histórica de determinados tempo e local. A
princípio, pretende-se fotografar em preto e branco, focando a fração do cotidiano
que inclui o que foi mantido das tradições negras e o que proporcionou a
sobrevivência durante quase dois séculos além da interação entre os moradores.
A limitação das cores tratará de emitir o contraste entre o rústico e o
moderno. Os tons em preto e branco ressaltarão detalhes da composição. Seguidas
de legendas e aspas dos entrevistados, as imagens interagirão com o observador de
modo que este analise, vivencie e tire, daí, conclusões a respeito do tema.
Dividida em fases, a História tem registrados seus mais importantes fatos.
Seja através da escrita, de vídeos, de sonoras, a fotografia também tem seu papel
como documento de registro histórico, congelando frações das mais variadas
situações e servindo como prova concreta da realidade no determinado tempo e
espaço no qual serviu como instrumento de registro. Assim, este projeto pretende
servir como documento de memória histórica do cotidiano de Mesquita tal como o é,
possibilitando um maior contato entre sua realidade e a de quem o aprecia.
39
Toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente. Se, por um lado, este artefato nos oferece indícios quanto aos elementos constitutivos (assunto, fotógrafo, tecnologia) que lhe eram origem, por outro o registro visual nele contido reúne um inventário de informações acerca daquele preciso fragmento de espaço/tempo retratado. O artefato fotográfico, através da matéria (que lhe dá corpo) e de sua expressão (o registro visual nele contido), constitui uma fonte histórica. (KOSSOY, 2001;45)
Levar em consideração, fotograficamente, um acontecimento, torna
simples a percepção de que cada momento é subdividido em vários outros. São
fragmentos de situações a partir de imagens. O simples ato de se pressionar o botão
de uma câmera é o ato de se perder um instante histórico. É o tempo no qual a
câmera “pensa”, ou seja, realiza todo um processo técnico de reconhecimento da
imagem, de foco e fotometragem para que a situação seja retratada. Por isso, é
necessário prever o desenrolar dos fatos para que seja capturado aquilo que mais
convém ao fotógrafo. Só então seria possível “selecionar” o que há de mais
importante naquele período de tempo. Do mesmo modo acontece com a história no
sentido de se recortar seus marcos.
Partindo da reprodução da imagem, há maior interação entre os meios
sociais em todo o mundo, amplitude do conhecimento e identificação pelo homem
com outras realidades e proximidade com melhor compreensão do passado,
anteriormente transmitido verbalmente entre gerações e/ou através da escrita.
Constituir um catálogo a partir das fotos retiradas em campo nas quais
serão abordados o trabalho rústico e as tradições, apresentá-lo aos órgãos públicos
alertando sobre a perda em riqueza, principalmente histórica, desta cultura é o
objetivo deste produto que visa ao reconhecimento desta comunidade por seu valor,
além de retorno em recursos. Ao mesmo tempo, pretende-se beneficiar a
comunidade incentivando o resgate de suas tradições e contribuindo para a sua
preservação.
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7 CONSTRUINDO HISTÓRIA
Fotografar Mesquita não é algo fácil de se fazer, por haver necessidade
em se dividir e trabalhar fases no processo. Fotografar é um trabalho que exige
muito cuidado por envolver pessoas, valores, história. E retratar a comunidade exige
acima de tudo, psicologia, por se tratar de uma comunidade que se encontra
sensível a um sofrimento histórico:
a) Aproximação: A primeira visita ao povoado com a intenção de se
apurar informações para este catálogo foi desprovida de um interesse direto. Seria
apenas uma familiarização. À chegada para assistir a missa de domingo, em
primeiro instante atentou justo pela discrição, como alguém que morasse há anos no
povoado mas há muito não participava na igreja. Estranharam apenas pelo fato de
verem um rosto pouco comum, ou o terem visto poucas vezes como visitante de
alguma das famílias tempos antes, durante apurações para o jornal laboratório
NaPrática, já citado neste relatório.
Após estas participações durante as missas, encontros com pessoas já
conhecidas, e a apresentação à novos habitantes, gerou-se certa afinidade. O
tratamento e o respeito aos limites como, até onde se deveria chegar a cada
encontro, deram espaço às conversas em fins de tarde. Em meio à elas, anúncios de
um futuro trabalho sobre a comunidade, desta vez mostrando a partir de imagens
sua riqueza em tradições, deixou-os por ocasião duvidosos.
Esta dúvida foi a primeira chance para um possível esclarecimento sobre
que razões chamariam atenção de pessoas de fora ao povoado. Logo de início, foi
41
esclarecida a relação entre a origem do povoado e as tradições mantidas até os dias
atuais, daí foram tiradas conclusões próprias pelos habitantes sobre seu valor.
A estratégia funcionou, pena ter sido utilizada somente em algumas
famílias devido ao tempo delimitado para a conclusão do trabalho, o número de
pessoas existentes no povoado e a disponibilidade dos dois lados para que
ocorressem os encontros. A visão destas pessoas tornou-se menos intimidada,
menos apreensiva.
b) Dificuldades: Vários foram os obstáculos. À começar pelo
esclarecimento de dúvidas cada vez mais crescente. Por exemplo, perguntas como
“Porquê fotos?”, “Quem vai querer ver fotos de gente de Mesquita?”, Estas fotos vão
para onde?”, “Você ganha para fazer isso?”, etc. Todas respondidas diretamente e
da maneira clara.
Outro, teria sido um erro cometido na publicação do jornal NaPrática,
onde a idade de uma senhora estaria errada. O erro foi confirmado por parentes que
logo disseram que a mesma jamais disse sua idade certa por não saber ou pela
vergonha em ter ultrapassado os cem anos. Em entrevista, à época para o jornal,
dona Antônia Pereira Braga disse ter 72 anos. Em última visita, no dia 23 de maio,
seu sobrinho-neto, Sinfrônio Lisboa da Costa, 78 anos, afirmou que dona Antônia
tem 112 anos. A situação colocou em risco a confiança e o respeito conquistados.
Em visita, a falha foi discutida.
Além destas houveram, ainda outras dificuldades. O acesso, as chuvas
nos dias marcados para se fotografar produções geralmente feitas a céu aberto,
insuficiência do material fotográfico, entre outras.
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c) Dados levantados: As informações levantadas em grande parte foram
peças de um verdadeiro quebra-cabeça. As histórias contadas pelos moradores, se
relacionavam com trechos descritos em livros, que por sua vez existiam em
processos judiciais sobre a demarcação das terras que iam, aos poucos,
esclarecendo fatos, até então, hipóteses.
d) Das fotos: Durante o período de cinco meses foram retratadas cerca
de 300 imagens focando as produções da rapadura, da cachaça e da farinha, as
festas religiosas, danças tradicionais e outros hábitos comuns entre os moradores.
Destas foram selecionadas as que melhor expressariam o trabalho na roça onde
melhor se expressam as tradições coloniais.
e) O título: Identidade Mesquita: Tradição e Descendência Colonial foi
escolhido título, justo para que a primeira impressão do observador seja voltada a
realidade transmitida a partir das fotos, situando-o no foco de cada imagem.
f) O catálogo: Foram escolhidas cores neutras para a ilustração do
catálogo por se tratar de um trabalho com fotos em preto e branco. O fundo preto
oferece maior relevância a imagem, valorizando os tons de cinza.
g) Plano de divulgação: Um possível plano de divulgação e veiculação
do catálogo seria primeiramente seu lançamento. Suponde que ocorresse durante o
segundo semestre deste ano, a idéia seria marcar para o dia 20 de novembro, por se
tratar do Dia da Consciência Negra.
Seriam entregues convites ao público alvo (representantes de ONGs e de
órgãos do governo voltados às comunidades negras) para que participassem da
reunião de exposição de lançamento do catálogo fotográfico, onde estariam,
43
também, presentes representantes da comunidade mesquita para que recebessem
um exemplar.
O convite teria o tamanho 10cm X 15cm: tamanho de uma foto
convencional por divulgar o produto como sendo um registro fotográfico.
Modelo do convite:
Também para a divulgação, entregariam-se releases para a imprensa
explicando a importância do evento para a comunidade Mesquita, o objetivo e a
necessidade em se divulgar a questão do reconhecimento para as terras de preto.
Além disso, seriam distribuídos cartazes em locais estratégicos com o título da
exposição , data, endereço e local como nos modelos abaixo:
Modelo de texto para release:
Daiane Souza convida para a exposição de lançamento do catálogo fotográfico
“Identidade Mesquita” Tradição e Descendência Colonial Data: 20/11/2005 Horário: 20h30 Local: Galeria Fayga Ostrower Complexo Cultural da Funarte Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02
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Um retrato da cultura colonial
Fotógrafa lança catálogo apresentando a preservação da cultura colonial em
Mesquita, povoado remanescente de escravos a 55Km de Brasília
O grande problema das comunidades rurais negras é a dificuldade de
serem registradas como remanescentes de quilombos, seja pelo desconhecimento
da origem de seus habitantes e do conceito de o que é um quilombo, seja pela falta
de informação sobre o que é necessário para serem reconhecidas como tal.
A falta do reconhecimento acarreta danos, como a falta de monitoramento
e de assistência a esses remanescentes. Em Mesquita, comunidade rural negra
situada a 8 quilômetros da Cidade Ocidental e a 55 quilômetros de Brasília, existem
ainda tradições preservadas desde o período colonial, o que é um quesito para que
o povoado receba sua Carta de Autodefinição Quilombola.
Isso não acontece, pois, atualmente, para que uma comunidade seja
assistida, é necessário que os habitantes do povoado se assumam quilombolas.
Essa imposição gera conflitos, pelo fato de a comunidade descender de escravos
alforriados e verem as expressões quilombo e quilombola como uma ofensa já que
para eles a alforria foi considerada um reconhecimento.
Com o objetivo de mostrar que Mesquita preenche os quesitos para ser
devidamente registrado como comunidade remanescente de quilombo, a fotógrafa
Daiane Souza lança, neste domingo, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o
catálogo fotográfico Identidade Mesquita: Tradição e Descendência Colonial. Nas
fotos, Daiane dirige o foco para as tradições preservadas desde o período colonial
pela comunidade rural negra.
O evento será realizado na Galeria Fayga Ostrower, Complexo Cultural da
Funarte, no Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02, a partir das
45
20h30, e contará com a presença do ministro da Cultura, Gilberto Gil, do presidente
da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro, e de representantes de ONGs que
trabalham na luta pela comunidade negra, além de habitantes de Mesquita. Junto
com o lançamento do livro haverá exposição das fotos que compõem o catálogo.
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Modelo de cartaz:
Exposição
“Identidade Mesquita”
Tradição e Descendência Colonial
Por Daiane Souza
Lançamento do Catálogo Fotográfico Data: 20 de novembro de 2005 Horário: 20h30 Local: Galeria Fayga Ostrower Complexo Cultural da Funarte Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02
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47
8 CONCLUSÃO
Os mesquitas são pessoas que se demonstram, à maioria das vezes,
resistentes, por não compreenderem a razão pela qual sua história é tão visada. No
povoado, há ainda quem diga que, a escravidão não acabou, em conta da
perseguição da mídia, dos interesses de pesquisadores e de pessoas que buscam
tirar, de alguma forma, proveito através da participação em sua história.
Reforçada a partir da crescente demanda desacompanhada de uma
explicação, de informação, pela qual estariam sendo alvo e sobre quais interesses
os envolveria, a resistência por parte de habitantes é uma maneira de demarcar o
limite até onde é possível conhecer de sua história.
A principal questão relacionada à Mesquita, o reconhecimento como
comunidade remanescente de quilombo, é o pesadelo dos moradores por
desconhecerem a amplitude do significado atual da expressão “remanescente de
quilombo”. Os mesquitas, a têm como ofensa, pois em sua história consta que os
escravos da Fazenda Mesquita teriam recebido sua carta de alforria como gratidão
pelos anos de dedicação, o que têm como um reconhecimento, um troféu, embora
seja óbvio que os verdadeiros heróis, no período colonial, foram os quilombolas por
sua coragem em lutar pela libertação de seus irmãos cativos, tornando-se principais
símbolos da força em favor da insurreição dos grandes proprietários de terras.
Rico em tradições mantidas e em cultura colonial, o que falta para o
povoado ser registrado é a atenção de grupos que acompanhem a comunidade e
troquem informações a seu respeito, esclarecendo a importância de se assumirem
48
quilombo e a necessidade do reconhecimento para melhoria em qualidade de vida e
valorização de sua cultura.
Apresentar aos moradores e ao Estado que o povoado se enquadra nos
quesitos para o registro, é o objetivo ao se produzir um catálogo fotográfico
incentivando sua preservação e reduzindo a resistência a partir da informação.
fazendo com que tanto a comunidade quanto o governo vejam-na com um outro
olhar, desta vez com olhar crítico e positivo.
49
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ABA. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais. Boletim Informativo do NUER, Rio de Janeiro, 1996, p. 81.
ANJOS, José Carlos dos; SILVA, Sergio Baptista da Silva. São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais. Rio Grande do Sul: editora da UFRGS, 2004.
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Território da Comunidades Quilombolas do Brasil: segunda configuração espacial. Brasília: Mapas Editora & Consultoria, 2005.
BARCELLOS, Daisy Macedo de et al. Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade. Rio Grande do Sul: editora da UFRGS, 2004.
CABRAL, Oswaldo R. Cultura e folclore. Goiás: Catarinense, 1954.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de. Da antropologia e do Direito: impasses da questão negra no campo. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 1996.
KLUCKHOHN, Clyde. Antropologia: um Espelho para o homem. Belo Horizonte: Itatiaia editora, 1963.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História.2.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
KOSSOY. Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. 3.ed.. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. São Paulo: Edusp.
LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à Antropologia. Tradução de Lívia Vilela, Livraria Martins,1959.
MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a Rebelião Negra. 2.ed.. São Paulo: Brasiliense Editora,1981.
50
OLIVEIRA, Silviene Fabiana de; GUIMARÃES, Maria Nazaré Klautau e PILLA, Ernani José Sfoglia, Palmares em Revista nº 2, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1998.
RATTS, Alecsandro J.P. Conceição dos Caetanos: memória coletiva e território negro. Palmares em Revista n° 1, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1996.
SALGADO, Sebastião. Outras Américas. São Paulo: Compainha das Letras, 1999.
SANTAELLA, Lucia. A Assinatura das coisas : Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro: Imago editora,1992.
SOARES, Aldo Azevedo. Kalunga: o direito de existir. Brasília: Fundação Cultural Palamares, 1995.
51
ANEXO A
O Peso da Escravidão
“A escravidão foi um peso terrível: a ‘nódoa’ da colonização portuguesa,
como dizia Joaquim Nabuco. Uma sociedade que durante quatro séculos manteve
sua prosperidade na base do trabalho escravo paga um preço muito alto por isso.
Deforma-se. Estamos há um século sem escravidão, mas é preciso Ter consciência
do que ela representou para combater o que restou em cada um de nós. Restou
muito, inclusive nos descendentes de escravos, que muitas vezes aceitaram coisas
inaceitáveis.
Nas reações violentas contra a violência senhorial institucionalizada e nas
fugas constantes, o negro exprimiu a qualidade fundamental de homem, negando,
na prática, a representação que dele se fazia como um ser capaz apenas de realizar
a vontade e os interesses dos que socialmente eram seus contrários.
A abolição, desacompanhada como foi de medidas que sinalizassem a
responsabilidade social dos brancos pela situação degradada dos negros, não
implicou democratização da ordem social. Desprovidos de recursos mínimos para o
exercício da cidadania, os negros sem chances reais de uma inserção positiva no
processo produtivo”.
Fernando Henrique Cardoso
- Cerimônia de comemoração do sesquicentenário do nascimento de Joaquim Nabuco.
Brasília, 24 de agosto de 1998; O presidente segundo sociólogo: entrevista de FHC a Roberto Pompeu de Toledo. São Paulo. Companhia das Letras, 1998, página 24.
52
ANEXO B
Entrevista a Fundação Cultural Palmares – 31/03/2005 • O que a Fundação Cultural Palmares considera, hoje, quilombo ou quilombola?
• Quais os requisitos para que uma comunidade rural negra seja reconhecida e titulada como remanescente de escravos e faça valer seus direitos?
• Segundo o Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, toda terra proveniente de quilombo deve ser preservada. Pode-se afirmar que todo povoado quilombola tem apoio do governo mas, o que acontece com as comunidades que descendem de escravos alforriados?
• Quais os benefícios para uma comunidade reconhecida e registrada como remanescente de escravos?
• Quantas são as terras de pretos em número aproximado em todo o território nacional? E na região Centro- Oeste? Qual o número de terras de pretos registradas?
• Existe algum projeto relacionado à Mesquita dos Crioulos? De que se trata?
• Mesquita é registrado? É reconhecido como remanescente de escravo?
• O que falta para Mesquita receber seu Certificado de Autodefinição Quilombola?
• Quando foi a última visita de representantes da FCP ao povoado? A que conclusões chegaram?
• O que foi abordado sobre a história do povoado?
• Dados estatísticos sobre o povoado.
• O que pode ser feito para a melhoria da qualidade de vida da comunidade mesquita?
• Quais os danos conseqüentes da falta de registro?
• De que se trata o projeto Biblioteca Rural Arca das Letras?
• Existe divulgação dentro das comunidades rurais negras a respeito do reconhecimento e da importância do registro e do Certificado de Autodefinição Quilombola?
• Quais outros projetos e órgãos poderiam beneficiar a comunidade de alguma forma?
54
são fabricadas por sentenciados das Penitenciárias Estaduais, mediante convênios
com o Ministério da Justiça.
A biblioteca tem cerca de 220 títulos entre literatura infantil, literatura para
jovens e adultos, livros didáticos, técnicos, sobre cidadania, saúde, agricultura, livros
sobre a história afro-brasileira, entre outros de interesse das populações
remanescentes de quilombos.
- Texto veiculado no foolder de divulgação do Projeto Arca das Letras pela Secretaria de
Reordenamento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
55
ANEXO D
As comunidades negras e o artigo 68 da Constituição Federal
O artigo 68 da Constituição Federal traz palavras que necessitam de
esclarecimentos (*) Sílvio Vieira de Andrade Filho
O artigo 68 da Constituição do Brasil reza que "aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".
A redação deste artigo tem provocado problemas de entendimento como
poderemos constatar a seguir.
Se de um lado houve no Brasil comunidades que serviram de refúgio de
escravos (quilombos), por outro, houve a formação de comunidades por negros
originários de propriedades rurais. Não foram no passado núcleos de resistência e
nem receberam ataques com o objetivo de serem destruídas. Como podemos
perceber, o referido artigo menciona somente "quilombos".
Para efeitos constitucionais, o governo explica que “quilombo” deve ter
sentido abrangente, devendo ser entendido como qualquer comunidade negra rural
que agrupa descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as
manifestações culturais têm forte vínculo com o passado africano. Como se vê, foi
colocado de modo forçado um novo significado para a palavra "quilombo". Como
sabemos, as palavras podem receber novos significados, mas estes ocorrem de
modo espontâneo e não por imposições de medidas provisórias, de legislação
complementar, etc.
56
No artigo 68, não é só a palavra "quilombo" que gera confusão. A palavra
"Estado" deve ter sentido abrangente também, podendo referir-se ao governo
federal, estadual ou municipal.
Pelo referido artigo, só podem receber títulos os que já estão ocupando
suas terras. Este trecho do artigo tem sentido muito limitado e desnecessário
porque, com 20 anos ou mais de moradia em uma comunidade, os interessados já
têm direito a usucapião.
Outro esclarecimento diz respeito ao órgão incumbido de trabalhar com as
questões fundiárias envolvendo as comunidades negras no âmbito federal. Em
1995, no terceiro centenário da morte de Zumbi, o Incra (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária) e o governo do Pará emitiram o primeiro título de
posse à comunidade de Boa Vista. Atualmente, a Fundação Cultural Palmares,
órgão do Ministério da Cultura, está encarregada no âmbito federal de analisar as
referidas comunidades que desejam obter títulos de posse através destas fases:
identificação, reconhecimento de que são realmente comunidades negras,
delimitação, demarcação, titulação e registro em cartório. Se houver necessidade,
haverá a devida desapropriação de terras. A referida fundação conta com os
pareceres técnicos do Incra, do Ibama, etc. e com a parceria dos estados e dos
municípios.
O Estado de São Paulo tem alguma legislação própria e sua atuação é
feita principalmente através do Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo,
órgão pertencente à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania) e da
Procuradoria Geral do Estado que contam também com a colaboração das
Secretarias do Meio Ambiente e da Cultura, do Condephaat e da OAB-SP. O Estado
de São Paulo só atua em suas próprias terras. Não interfere em terras federais.
Quando solicitado, colabora com o governo federal, emitindo pareceres, etc. Quando
57
há necessidade, o Estado de São Paulo tem providenciado com êxito
desapropriações amigáveis. Exige dos interessados a formação de associações para
poder emitir títulos coletivos com cláusula de inalienabilidade. O governo paulista e a
maioria dos interessados preferem o título coletivo para evitar que alguém da
comunidade beneficiada ao sair desta possa vender parte de terras a estranhos. Há
maior facilidade para o governo realizar benefícios na comunidade possuidora de
título coletivo. Além disto, a forma de viver dos negros sempre foi coletiva. O uso de
cercas só ocorre em casos absolutamente necessários.
- (*) Sílvio Vieira de Andrade Filho é autor do livro "Um Estudo Sociolingüístico das Comunidades Negras do Cafundó, do Antigo Caxambu e de seus Arredores" “As comunidades negras e o artigo 68 da Constituição Federal” – Artigo publicado na coluna Ponto de Vista do jornal Diário de Sorocaba em 14.05.2004, p. 02, disponibilizado no endereço http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=7863&id_ noticia=15, visitado em 30 de março de 2005.
58
ANEXO E
Presidência da República Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. Regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o
art. 84, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art.
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
DECRETA:
Art. 1o Os procedimentos administrativos para a identificação, o
reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que
trata o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão
procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto.
Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-
atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.
59
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria
comunidade.
§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica
e cultural.
§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em
consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar
as peças técnicas para a instrução procedimental.
Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência
concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de
sessenta dias da publicação deste Decreto.
§ 2o Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios,
contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública
federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e
entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§ 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou
por requerimento de qualquer interessado.
60
§ 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será
inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá
certidão respectiva na forma do regulamento.
Art. 4o Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério
do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para
garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos
quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.
Art. 5o Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural
Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o
INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da
identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como
para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de
identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.
Art. 6o Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos
quilombos a participação em todas as fases do procedimento administrativo,
diretamente ou por meio de representantes por eles indicados.
Art. 7o O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação,
delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes
consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde
se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações:
I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos;
II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;
III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo
das terras a serem tituladas; e
61
IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as
terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.
§ 1o A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal
onde está situado o imóvel.
§ 2o O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área
delimitada.
Art. 8o Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA
remeterá o relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no
prazo comum de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas
competências:
I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN;
II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - IBAMA;
III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão;
IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;
V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;
VI - Fundação Cultural Palmares.
Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos
órgãos e entidades, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do
relatório técnico.
Art. 9o Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a
publicação e notificações a que se refere o art. 7o, para oferecer contestações ao
relatório, juntando as provas pertinentes.
62
Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o
INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos.
Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o
INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a
expedição do título.
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às
áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o
IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a
Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a
sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado.
Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados,
do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes
responsáveis pela titulação.
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das
comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade,
prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será
realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários
à sua desapropriação, quando couber.
§ 1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no
imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o
efeitos de comunicação prévia.
63
§ 2o O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação,
com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do
título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua
origem.
Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos
administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores
pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de
boa-fé, quando couber.
Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos
interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões
surgidas em decorrência da titulação das suas terras.
Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a
Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos
remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra
esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e
sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou
órgãos que prestem esta assistência.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento
aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os
interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do
Artigo 134 da Constituição.
Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada
mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o
art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade,
imprescritibilidade e de impenhorabilidade.
64
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas
associações legalmente constituídas.
Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas
dos antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação,
devem ser comunicados ao IPHAN.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo
para fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do
patrimônio cultural brasileiro.
Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de
noventa dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das
comunidades dos quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir
indicado:
I - Casa Civil da Presidência da República;
II - Ministérios:
a) da Justiça;
b) da Educação;
c) do Trabalho e Emprego;
d) da Saúde;
e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;
f) das Comunicações;
g) da Defesa;
h) da Integração Nacional;
i) da Cultura;
j) do Meio Ambiente;
k) do Desenvolvimento Agrário;
l) da Assistência Social;
65
m) do Esporte;
n) da Previdência Social;
o) do Turismo;
p) das Cidades;
III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança
Alimentar e Combate à Fome;
IV - Secretarias Especiais da Presidência da República:
a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
b) de Aqüicultura e Pesca; e
c) dos Direitos Humanos.
§ 1o O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
§ 2o Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares
dos órgãos referidos nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
§ 3o A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de
serviço público relevante, não remunerada.
Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das
comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento
preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à
realização de suas atividades produtivas e de infra-estrutura.
Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os
procedimentos administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase
em que se encontrem.
66
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão
regras de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais
anteriores à publicação deste Decreto.
Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo
INCRA far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da
área.
Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis
titulados em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em
formulários específicos que respeitem suas características econômicas e culturais.
Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas
neste Decreto correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei
orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e
empenho e de pagamento.
Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 25. Revoga-se o Decreto n° 3.912, de 10 de setembro de 2001.
Brasília, 20 de novembro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Gilberto Gil
Miguel Soldatelli Rossetto
José Dirceu de Oliveira e Silva