1º CAPÍTULO
1 SALVADOR DA BAHIA: DE CAPITAL DO ATLÂNTICO SUL A
METRÓPOLE REGIONAL
Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças das donzelas
Do tempo do imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito
Que nenhuma terra tem
Dorival Caymmi, Você já foi à Bahia?
1 SALVADOR DA BAHIA: DE CAPITAL DO ATLÂNTICO SUL A
METRÓPOLE REGIONAL
FUNDAÇÃO DA CIDADE DO SALVADOR
A história da Cidade do Salvador se confunde com a história do
descobrimentoi do Brasil e os esforços feitos pela Coroa portuguesa para a sua
colonização nos séculos XVI e XVII.
Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, descobriu o Brasil —
talvez por acaso —ii no dia 22 de abril de 1500, e tomou posse da terra, em nome do
rei de Portugal, D. Manuel, o Venturoso. Um ano depois o navegante italiano
Américo Vespucci, a serviço do mesmo rei, descobriu uma vasta baía situada a
12°58’ de latitude sul e 38°31’ de longitude oeste, batizando-a com o nome de Bahia
de Todos os Santos, pois era o dia primeiro de novembro de 1501.iii
Toda esta parte da costa era habitada por índios tupinambás, nação
guerreira, que pelejavam tanto com seus vizinhos do sul, os tupiniquins, como com
os do norte, os caetés. Mais para o interior, os botocudos e os camacans viviam
num estado de seminomadismo. Essas nações indígenas se dedicavam à caça e à
pesca e praticavam a antropofagia.iv
Inicialmente, o descobrimento de terras no novo continente não
provocou maior entusiasmo à Portugal, pois enquanto nas terras americanas sob
domínio espanhol iam sendo encontrados ouro e prata, na porção portuguesa as
possibilidades de exploração eram desconhecidas. O nome “Brasil” começou a
aparecer em 1503, associado à principal riqueza da terra em seus primeiros tempos,
o pau-brasil. Esse era matéria-prima para produção de corantes e a sua madeira, de
grande resistência, era utilizada na construção de móveis e de navios.
O mundo recém-descoberto tinha sido dividido em dois hemisférios
pelo Tratado de Tordesilhas, e as terras descobertas a Oeste da linha pertenceriam
à Espanha; as que se situassem a Leste caberiam a Portugal. A divisão se prestava
a controvérsias, pois nunca foi possível estabelecer com exatidão por onde passa a
linha de Tordesilhas.
Mas a maior ameaça à posse do Brasil por Portugal não veio dos
espanhóis e sim dos franceses. A França não reconhecia os tratados de partilha do
Novo Mundo,v sustentando o principio de que era possuidor de uma área quem
efetivamente a ocupasse.vi
Os franceses comercializavam o pau-brasil, praticavam a pirataria ao
longo da vasta costa brasileira, demasiado grande para que pudesse ser guarnecida
pelos portugueses e, mais tarde, por duas vezes invadiram e ocuparam partes do
Brasil: Rio de Janeiro (1555-1560) e Maranhão (1612-1615).vii
Sob pressão das demais nações europeias, considerações políticas
levaram Portugal à decisão de que era necessário colonizar a nova terra. Dom João
III decidiu-se pela criação das capitanias hereditárias, doações de terra da Coroa,
pelas quais os donatários se tornavam possuidores, mas não proprietários da terra.
Não podiam vender ou dividir a capitania, cabendo ao rei o direito de modificá-la ou
mesmo extingui-la. Porém, a posse dava aos donatários extensos poderes tanto na
esfera econômica (arrecadação de tributos) como na esfera administrativa
(monopólio da justiça).viii Os donatários tinham inclusive a atribuição de doar
sesmarias, o que deu origem à formação de vastos latifúndios, com reflexos na
estrutura agrária brasileira até os dias de hoje.
Com exceção de duas capitanias, São Vicente (ao Sul) e Pernambuco
(Nordeste) as demais fracassaram, por diversos fatores como falta de recursos,
desentendimentos internos, inexperiência, conflitos com os índios ix e foram
paulatinamente sendo retomadas pela Coroa. É quando o rei de Portugal decide
estabelecer um governo geral no Brasil, para uma melhor organização administrativa
e a busca de êxitos econômicos, isto é, encontrar uma forma de utilização
econômica que não fosse a exploração de ouro e prata, como na América
espanhola.x
A instituição de um governo geral representou um esforço de
centralização administrativa, porém encontrou dificuldades devido à grande
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abrangência do empreendimento, como a distância e precariedade da ligação entre
as capitanias, limitando o raio de influência dos governadores.xi
Do ponto de vista econômico, os recursos de que dispunha Portugal
para investir no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido suficientes para
defender as novas terras por muito tempo. O comércio de peles e madeira com os
indígenas, que se desenvolve durante o século XVI em toda a costa oriental do
continente, é de reduzido alcance e não exige mais do que o estabelecimento de
precárias feitorias.xii Como foi dito, fundamental era encontrar uma forma de
utilização das terras americanas que não fosse a “fácil extração de metais
preciosos”.xiii
Tomé de Sousa, primeiro governador geral, chegou à Bahia com a
incumbência de fundar a Cidade do Salvador e organizar administrativamente a
Colônia. Logo, ao redor da capital foram concedidas sesmarias para o plantio de
algodão e cana-de-açúcar.xiv
Das medidas políticas que então foram tomadas, resultou o início da
exploração agrícola das terras brasileiras que, com um produto de larga aceitação
no mercado europeu — o açúcar — passa a constituir-se parte integrante da
economia reprodutiva europeia, e a economia colonial brasileira é organizada como
a primeira grande empresa colonial agrícola na pós-Idade Média e início da era do
capitalismo mercantil.xv
Estava gerado o sentido da colonização do Brasil — produzir
mercadorias “tropicais” para o comércio europeu, estruturado em três grandes
pilares: grande propriedade, monocultura e trabalho escravo.xvi
Já no início do século XVII o Brasil torna-se o principal fornecedor de
açúcar do mundo. Quando a atividade exportadora começa a enfraquecer no final
desse século, devido à concorrência do açúcar antilhano, algumas terras nas
proximidades de Salvador (Recôncavo baiano) passaram a ser utilizadas para o
plantio de fumo,xvii e outras terras foram redirecionadas para a agricultura de
subsistência ou para o cultivo de alimentos para a população costeira em expansão.
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Vale destacar que o crescimento e a importância da Cidade do
Salvador ocorre não apenas no âmbito nacional, mas também, e principalmente — e
isso é demonstrado ao longo de quatro séculos — na esfera regional. Desde a sua
fundação mantém intensas conexões com o seu entorno, conquistado militarmente
aos índios tupinambás,xviii que foram mortos ou escravizados, e fortes vínculos
econômicos são estabelecidos com a economia açucareira do Recôncavo.
Mais tarde, no século XIX, na Bahia se desenvolve o plantio de cacau
e no Nordeste a produção de algodão que iria provocar breves ciclos de
exportação.xix Em síntese, “não há na realidade modificações substanciais do
sistema colonial nos três primeiros séculos de nossa história”.xx
Os vínculos com o Recôncavo só serão secundarizados com as
redefinições de funções e novas espacializações, com o surgimento da Região
Metropolitana de Salvador, na industrialização tardia baiana (segunda metade do
século XX), desenvolvendo-se assim o fenômeno da metropolização.
Este é o pano de fundo para o desenvolvimento urbano da cidade de
Salvador, principal porto e capital administrativa, militar e econômica da colônia
portuguesa na América.
ASPECTOS FÍSICOS E NATURAIS
A Cidade do Salvador está situada a 13º de latitude sul e 38º30’ de
longitude oeste, forma parte da microrregião do Recôncavo e se localiza na região
costeira setentrional do Estado da Bahia. É a capital do Estado e a terceira mais
populosa cidade do Brasilxxi, com população residente de 2.892.625 habitantesxxii e
superfície territorial de 313 km². Exceto no limite norte, a cidade está toda cercada
pelo mar, na parte oriental pelo Oceano Atlântico e na ocidental pela baía de Todos
os Santos. Esta baía se estende por uma superfície de 1.052 km²xxiii e 300 km de
costa.xxiv
Os limites do atual município de Salvador não mudaram muito desde a
sua delimitação pelo antigo “Regimento” da fundação da cidade (1549),xxv e
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demonstram toda a sua grandeza, ao incluir nos seus domínios um verdadeiro “mar
municipal”.
Estes limites partem da praia de Ipitanga (limite com o município de
Lauro de Freitas) aberta no Atlântico, ao norte do Aeroporto Internacional para
encontrar, pelo norte do bairro de Brotas, o fundo da baía de Aratu. Os limites
acompanham a margem norte do canal de Cotegipe, deixando à cidade todas as
praias até a ponta do Passé. Neste ponto os limites municipais atravessam o mar
em linha reta de NE a SO até 2 km no mar ao largo da Ilha de Itaparica para
reencontrar a terra firme na ponta de Santo Antônio da Barra. A extensão do
município de Salvador abraça, ao norte, a Ilha de Maré e suas ilhotas. Esta extensão
é coberta por vastas superfícies de mar interno, pois na sua maior largura há quase
15 km do oceano entre o sítio de Plataforma e os limites mais ocidentais do
município, ao largo do Bom Despacho de Itaparica. Este mar municipal é um
verdadeiro canal, com forma de um tridente, do qual emergem as cúpulas da Ilha de
Maré e as penínsulas de Aratu e de Matoim. Os fundos da baía são formados por
rochas sedimentares; as rochas cristalinas encontram-se somente no continente e
em mar aberto.xxvi
O local originalmente escolhido para a fundação da cidade, e que seria
a capital da colônia portuguesa na América (século XVI), foi uma península cujo
vértice aponta para o sul, e que tem em sua costa oeste uma imensa falha geológica
no sentido sudoeste-nordeste, chamada Falha de Salvador.xxvii
A cidade apresenta uma topografia bastante acidentada, pois, além da
falha que a divide em Cidade Alta e Cidade Baixa, dispõe de muitos morros e vales.
A Cidade Alta está a mais de 60 metros acima do nível do mar.xxviii Os solos de
Salvador são principalmente argilosos, porém sólidos, e quando se apresentam
dispostos horizontalmente dispõem de certa estabilidade. Entretanto, quando estão
situados em encostas apresentam deslizamentos constantes que implicam em riscos
para a população, principalmente nos períodos de chuvas abundantes, entre os
meses de abril e agosto. As precipitações anuais se situam em torno de 1.500 mm.
A cidade conta com um clima tropical suavizado pelos ventos alísios dominantes de
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leste, e a temperatura média é de 25,5ºC, variando entre máxima de 32ºC e mínima
de 19ºC.xxix
A exuberante vegetação original apresenta hoje muita devastação.
Sendo um sítio rico em águas, os rios das terras sedimentárias a oeste, como os rios
Cobre, Cotejipe e Santa Maria, são curtos e correm para a baía de Todos os Santos.
Os rios que correm sobre a cidade alta, como os rios Joanes, Jacaranga, Itaboatã
apresentam vales estreitos e deságuam diretamente no Oceanoxxx (Figura 2).
A evolução urbana ocorrida sobre tal panorama físico apresenta uma
cidade de paisagens diversas, com lugares muito aprazíveis e uma verdadeira
repulsa à monotonia dos ambientes.
Figura 2 — Bacias Hidrográficas de Salvador.Fonte: Elaboração própria. Base Sicar-Conder, 1992 (Sistema Cartográfico).
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SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL E A SUA PERIODIZAÇÃO
São muitas as possíveis periodizações históricas: pode-se atrelá-las
aos mais significativos eventos políticos (Independência; fim da escravatura;
proclamação da República...); vinculá-las aos ciclos econômicos (ciclos do açúcar,
do ouro, do café...); ou simplesmente a circunstâncias locais.
O que não se deve perder de vista é a articulação de uma macro-
periodização com o objetivo proposto de construção da história da cidade e do
urbano.
Para efeito de análise, dividimos a evolução socioespacial de Salvador
em cinco períodos históricos, e a partir daí buscar fazer a “ponte” com o urbano.
Divisão arbitrária — como toda divisão — e não rígida, devido à total impossibilidade
disso, mas que procura seguir uma lógica de associar eventos sociais e econômicos
com o desenvolvimento da cidade.
O primeiro período começa no ano de fundação da Cidade do Salvador
(1549) e se encerra em 1650; o segundo período inicia-se em 1650 e termina em
1763; o terceiro período vai de 1763 até 1850; o quarto período é o de 1850 a 1950;
o quinto e último período começa em 1950 e vem até os nossos dias (2009).
Este primeiro período (1549-1650) tem como acontecimentos mais
significativos a fundação de Salvador e a sua consolidação como capital da Colônia
portuguesa na América, destacando a sua função portuária, rota obrigatória dos
navios que se dirigiam para a África, Índia e Extremo-Oriente; uma crise sucessória
faz com que a Coroa portuguesa passe ao domínio espanhol (1580-1640),
provocando a invasão holandesa na Bahia (1624), de cujo domínio a cidade foi
retomada em 1625 por uma esquadra luso-espanhola. Porém, a recuperação da
cidade não acabou com os confrontos, pois, estabelecidos nas ilhas, os holandeses
realizaram ataques a Salvador e ao Recôncavo até 1627. Em 1640, com a
restauração da monarquia portuguesa, a Bahia passou para um status político mais
elevado, com o primeiro vice-rei à frente da administração da Colônia.xxxi
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Construída como cidadela, tipo acrópole, cercada de muralhas de
adobe, com apenas duas portas, a cidade surge com um traçado aproximadamente
ortogonal, e o seu crescimento se deu de forma linear. Construções importantes
situaram-se intramuros, como o Palácio dos Governadores, a Casa da Câmara, a
Igreja da Ajuda — e os conventos localizaram-se fora dos muros. Dividida em
Cidade Alta e Cidade Baixa, a parte baixa era então bastante estreita, composta de
apenas uma longa rua.
A população estimada em 1650 é de 10.000 habitantes, não incluída a
população escrava.
O segundo período (1650-1763) é considerado pelos historiadores
urbanos como de “idade de ouro” de Salvador, isto é, uma era de fausto religioso e
riqueza urbana, e é uma das mais importantes para a cidade, quando foram
implantados os principais edifícios do conjunto arquitetônico e urbanístico de caráter
monumental. A economia açucareira estava no seu apogeu, com a construção de
grandes e modernos engenhos no Recôncavo e a boa cotação do produto brasileiro
no mercado europeu.
No final do século XVII a atividade exportadora começou a
enfraquecer, devido à concorrência do açúcar das Antilhas.
A descoberta de ouro em Minas Gerais (1698) mudou então o centro
de atividade econômica do Brasil para o Centro-Sul, e o incremento da mineração
fez com que o Rio de Janeiro despontasse como um porto importante, atraindo
atividades comerciais e financeiras para aquela urbe. Em 1763, Salvador perde a
condição de capital da colônia portuguesa na América, que é transferida para o Rio
de Janeiro, elevado à condição de novo centro administrativo do Brasil.
A transferência da capital do governo do Brasil para o Rio de Janeiro
obviamente provocou impactos sobre a cidade. Porém, nessa época, Salvador já se
consolidara como uma grande praça comercial, exportadora de açúcar, algodão e
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tabaco, e importadora de produtos manufaturados; tinha se convertido num
distribuidor de mercadorias pelo interior da província e numa grande área de
influência, chegando a pontos afastados como Piauí, Pernambuco, Sergipe, Minas
Gerais e São Paulo, no Brasil, e também Uruguai e Argentina. Com uma atividade
econômica tão estruturada, a agora capital da Bahia não sente tanto a perda da
função administrativa nacional.
Salvador se consolida como metrópole regional, pois nela também se
concentram e são realizadas as transações financeiras e comerciais necessárias à
expansão agrícola e à exportação dos produtos, usufruindo assim “de todas as
vantagens financeiras, econômicas, políticas e sociais decorrentes desta
situação”.xxxii
O evento mais importante do terceiro período (1763-1850) foi a
invasão de Lisboa pelas tropas napoleônicas, o que provocou a fuga da família real
portuguesa para o Brasil e a instalação do governo de Portugal no Rio de Janeiro.
Parte da esquadra que trazia a Corte portuguesa ancorou em Salvador
no dia 22 de janeiro de 1808, e aqui, por pressão inglesa, o príncipe regente D. João
assinou a Carta Régia que abria os portos brasileiros às “nações amigas”.
Com o fim das restrições mercantilistas, encerram-se trezentos anos
de exclusivismo colonial, o que favorece o comércio e as atividades econômicas de
exportação e importação. Os efeitos dessas mudanças sobre a economia baiana e
as atividades comerciais e portuárias serão intensos, gerando um grande fluxo de
riquezas.
Em 1822 o Brasil se torna independente de Portugal, e a Bahia pega
em armas contra as tropas portuguesas aqui estabelecidas, travando a sua guerra
de independência, cuja libertação do jugo português só ocorrerá no 2 de julho de
1823.
O ano de 1850, escolhido como fim deste período, simboliza - com o
fim definitivo do tráfico de escravos — a transição do mundo patriarcal “fechado e
ensimesmado”xxxiii dos senhores de engenho de açúcar para um tempo mais aberto e
liberal a vir em seguida, com novos agentes sociais e econômicos estabelecendo os
alicerces da modernização brasileira.xxxiv
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O quarto período analisado (1850-1950) corresponde a importantes
eventos ocorridos a partir do fim do tráfico de escravos (1850). Salvador começa a
perder sua importância marítima para outros portos brasileiros, e a inauguração do
Canal de Suez (1869) diminui a importância da navegação no Atlântico Sul, afetando
seu porto e comércio.
Grave crise econômica ocorre em 1873 e atingiu fortemente a
economia baiana baseada no trabalho escravo. A queda da produção de açúcar,
fumo, café e algodão geraram um grande déficit na balança comercial.
A partir de 1860 dá-se início ao ciclo do cacau, no sul do Estado, que
se torna o principal produto de exportação da Bahia, porém essa cultura não se
constitui em fator de acumulação de capitais em favor da cidade do Salvador.
Na primeira metade do século XX, principia-se um processo de
industrialização, e a cidade converte-se em um centro industrial têxtil.
Entretanto, o crescimento acelerado da industrialização no Sudeste do
país, sem que Salvador possa competir no processo de substituição de importações
que se realiza, provoca a estagnação do setor.
A intensificação do processo de industrialização por substituição de
importações (ISI), concentrada no Sudeste brasileiro a partir de 1920, acarretou,
para a Bahia e para Salvador, um período relativamente prolongado de “involução
industrial”: o setor industrial local tornou-se incapaz de competir com o sistema
industrial que se desenvolvia no Rio de Janeiro e São Paulo.
Na primeira metade do século XX, Salvador vê reduzida sua área de
influência sobre os Estados vizinhos e também sobre uma parte de seu vasto
território, cujas cidades mais afastadas passam a ser polarizadas por outros centros.
Mas, apesar disso, consolidou-se, nesse período, como importante
polo comercial, administrativo e de prestação de serviços, e essa especialização
funcional foi favorecida por sua posição geográfica privilegiada, servindo ao interior
densamente povoado. Todavia, este setor terciário crescia em termos intensivos em
trabalho e com baixos níveis de produtividade, por causa da abundância relativa de
mão-de-obra e a escassez de capitais de aplicação local.
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A população da capital baiana cresceu, a taxas bastante moderadas,
entre 1920 e 1940, acelerando-se entre 1940 e 1950. A cidade chega aos 3 mil
hectares de área urbanizada em 1940.xxxv
O novo “padrão de integração de Salvador na divisão interregional do
trabalho”,xxxvi ao dificultar seu desenvolvimento industrial, notadamente entre 1920 e
1950, ocasionou, simultaneamente, crescimento populacional e níveis crônicos de
pobreza.
No ano de 1950, Salvador era um centro urbano de relativa magnitude
populacional — 424.142 habitantes — permanecendo, contudo, estagnado no que
diz respeito à atividade industrial.
O quinto período estudado (a partir de 1950) corresponde à
retomada do desenvolvimento econômico regional com a extensão do movimento
industrial brasileiro para o Nordeste. A descoberta de petróleo na bacia do
Recôncavo baiano; a instalação da refinaria de Mataripe (1950); a criação da
empresa estatal Petrobras (Petróleo Brasileiro S.A., de 1953); a instituição da
Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, em 1959) e políticas
de incentivos fiscais vão representar um impulso desenvolvimentista significativo
para o Estado da Bahia.
A continuidade desse processo de industrialização tardia ocorre com a
criação do Centro Industrial de Aratu (1967), do Complexo Petroquímico de
Camaçari (a partir de 1972) e do Complexo Ford (2001) na Região Metropolitana de
Salvador.
A capital da Bahia se torna metrópole regional e cidade global, e se
qualifica tanto para sediar os escritórios das grandes indústrias que aí se instalam
como também se torna “cidade dormitório” para os dirigentes e empregados dessas
firmas, local de moradia e consumo, devido à falta de condições apropriadas nos
pequenos centros urbanos do Recôncavo.
Período assaz complexo, de crescimento acelerado dessa urbe, que
atinge a marca de 2.534.314 habitantes no ano de 2002, e se torna a terceira mais
populosa cidade brasileira.
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E assim, após esse percorrido histórico, chegamos a Salvador atual —
Salvador e o seu Centro Histórico — estabelecendo uma identificação da totalidade
(que é a cidade) com uma de suas partes (o Centro Histórico), onde o todo e a parte
atuam segundo um movimento combinado, conforme uma lei própria, que rege o
organismo urbano.
SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1549-1650)
É comum dizer-se que o Brasil nasce como empresaxxxvii e nele o
Estado surgiu antes da sociedade —xxxviii e a cidade chegou antes do campo.
O certo é que quando Tomé de Sousa, primeiro governador geral do
Brasil, aqui desembarcou em 1549 para fundar a Cidade do Salvador,xxxix capital do
governo geral do Brasil, não trouxe de Portugal somente o objetivo de criar uma
cidade, mas também seu plano e estatuto.
Ordenou o rei mandar nas “ditas terras fazer uma fortaleza e povoação
grande e forte” em um lugar conveniente para “daí se dar favor e ajuda as outras
povoações e se ministrar justiça e prover nas coisas que competirem a meu serviço
e aos negócios de minha fazenda e a bem das partes”.xl
Por ser el-rei informado que “a Bahia de Todos os Santos é o lugar
mais conveniente da costa do Brasil para se poder fazer a dita povoação e assento”,
assim como pela disposição do porto e rios que nela entram como pela “bondade,
abastança e saúde da terra” que na “dita Bahia se faça a dita povoação e assento”.xli
O nome da cidade-fortaleza foi logo escolhido: Salvador. O nome é
adjetivo, mas serve também por alcunha para designar Jesus Cristo. “A palavra se
torna substantivo, mas não perde a ideia de qualificação. Ela sugere certo tom de
catequese e conversão de almas ao credo católico”,xlii indica a ideologia que motivou
a empreitada da nova capital, pois as igrejas, baluartes e portas da cidadela são
batizadas com os nome de Nossa Senhora e de santos guerreiros e missionários
(São Tiago, São Jorge e São Tomé), e o simbolismo religioso epitético sugere
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implicitamente a imposição e difusão da ordem católica, “então fragilizada pela
expansão das seitas luteranas e calvinistas”.xliii
A instituição do Governo Geral no Brasil e a fundação da Cidade do
Salvador, como sua primeira capital, são consequência do processo de expansão da
sociedade europeia, levado a efeito pelo capitalismo mercantil, sendo a cultura
renascentista, então em desenvolvimento, seu suporte.
No Novo Mundo — português ou espanhol —, por intermédio de
políticas em muitos aspectos semelhantes, há uma projeção da cultura, instituições
e costumes ibéricos.xliv Portugal, por exemplo, buscou reproduzir esse modelo nos
trópicos, e no caso da Cidade do Salvador, esta é concebida para ser uma Nova
Lisboa.xlv
O “Governador das terras do Brasil e Capitão da fortaleza e terras” já
trazia também em suas naus uma completa organização judiciária, fazendária,
administrativa e militar.xlvi
Era um numeroso grupo de altos e pequenos funcionários, nomeados
pelo rei de Portugal, que comporiam a administração: ouvidor-geral, provedor-mor
da Fazenda, capitão-mor da costa, escrivão e tesoureiro das rendas, contador,
escrivão da ouvidoria, feitores da armada e da cidade, médico, porteiro da alfândega
e cerca de trezentos soldados e mais uns seiscentos operários, especialmente de
construção, entre os quais uma porção de degredados. "A cidade surgia como
nenhuma outra em seu tempo, com considerável população de 1.000 pessoas”. No
eclesiástico, “ainda subordinado ao Bispo de Funchal era paróquia e tinha como
pastor Manuel Lourenço".xlvii
Depois do fracasso quase geral da experiência de colonização através
do sistema de Capitanias Hereditárias,xlviii o rei de Portugal decidiu juntá-las e formar
um governo único, com sede em uma cidade que deveria situar-se no meio do
extenso litoral, para poder controlá-lo. O sítio escolhido deveria ter também
determinadas características topográficas que lhe deixassem bem protegido de
possíveis ataques dos índios, por terra, ou por mar, de navegantes estrangeiros.
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Portugal busca a solução tipo acrópole para a sua capital colonial,
seguindo a norma antiga de localização das cidades nas margens do mar e dos rios,
em pontos elevados com um porto. Daí que rapidamente se elegeu o lugar mais
adequado para o povoado grande e forte: o cume de uma colina, que caía em forte
declive até a extremidade das margens de uma baía abrigada, sobre um dos lados
que separam a baía de Todos os Santos e o Oceano Atlântico.xlix
O ponto mais apropriado para este tipo de assentamento urbano foi o
trecho do promontório compreendido entre as posteriormente denominadas
gargantas da Barroquinha e do Taboão, por apresentar as condições favoráveis para
o que se pretendia: situado no cimo de uma escarpa, com altura média da ordem de
64 metros sobre o mar, de fácil defesa para as táticas de guerra então vigentes,
segundo os quatro pontos cardeais.
A oeste está a escarpa, a rocha, o paredão natural de altura
considerável que, bem defendida, era praticamente inexpugnável. Ao nível da baía,
uma estreita faixa de praia; a leste, o vale do rio das Tripas, que se achava numa
cota mais baixa em relação à cumeada, e por isso mesmo numa posição dominante
e defensável, caso ocorresse um ataque por estas bandas; ao norte e ao sul, as
duas gargantas (Taboão e Barroquinha), acidentes topográficos clássicos e eficazes
para a localização de obras defensivas. De fato, nesses pontos foram colocadas as
portas da cidade que, juntamente com o sistema de baluartes ao longo da paliçada
defensiva na parte alta e embaixo na praia, dariam condições de relativa segurança
para os primeiros habitantes da capital da América portuguesa.l
A colina serviu a Tomé de Sousa para construir, em 12 meses, sua
cidadela de casas de adobe, cobertas de palha, que ele cercou de muralhas também
de adobe, e que tinha apenas duas portas: Carmo e Santa Luzia. No exterior das
muralhas foram construídos os conventos, aproveitando-se das vastas concessões
que o governo lhes havia feito. Ao norte se localizou o convento das Carmelitas
(1585); ao sul, dos Beneditinos (1584); a leste, dos Franciscanos (1587). Por essa
40
época, com seus muros espessos, eram verdadeiras fortificações que rodeavam a
cidade, porque a oeste estão a escarpa e a baía.
O sítio escolhido, no Nordeste do Brasil, é estrategicamente
equidistante do Norte e do Sul do litoral, o que permite acessar rapidamente a
qualquer ponto da costa. Constitui-se excelente porto natural, parada obrigatória das
embarcações que chegam da Metrópole (Portugal) em direção a outros pontos do
Brasil ou de passagem a outras colônias portuguesas da África e da Ásia.li
Capital do país de 1549 até 1763, Salvador teve como seu primeiro
núcleo de ocupação a Praça Central, hoje chamada Praça Municipal, no primeiro
platô da parte alta (Cidade Alta) e começou com a forma física de um traçado em
quadrícula de ruas aproximadamente ortogonais,lii adaptadas a um relevo
acidentado e com quadras de casas postas lado a lado.
Sabe-se que o urbanismo português, ao contrário do espanhol, não
tinha a rigidez da Plaza Mayor, preferindo as praças múltiplas,liii e Salvador é um
exemplo disso. Enquanto o centro administrativo é instalado na primeira praça, o
centro cultural situa-se na segunda praça — o Terreiro de Jesus — onde os jesuítas
estabelecem o seu Colégio e a ordem dos franciscanos o seu mosteiro. A Igreja da
Sé, sede do Bispado, fica de permeio entre essas duas praças.
A forma geométrica regular adotada para as cidades — tornada
conhecida mediante a contribuição dos tratadistas italianos a partir do século XV — liv
torna-se prática comum nas cidades do Novo Mundo, mais ainda do que na velha
Europa. E Salvador nasce com esse signo.
Nesse núcleo original se instalaram o centro administrativo, militar,
político e religioso, assim como a maioria das residências. Os prédios principais que
abrigam essas funções são o palácio do governador e a Casa da Câmara (Figura 3),
em torno da primeira praça e voltada para a baía; e a capela de N. Sra. da Ajuda,
junto do Palácio do Bispo, que passa a ser a primeira Sé do Brasil, quando Salvador
é elevada à condição de sede do Bispado em 1551, por Bula Papal.
41
Figura 3 — Câmara Municipal de Salvador. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
A cidade era murada, contava com duas portas, e dispunha de três
baluartes em direção à baía e de outros três voltados para o interior (Figura 4). Era
protegida a oeste, pela escarpa, e ao norte, leste e sul, pela “ribanceira”, lv isto é, as
vertentes do vale do rio das Tripas.
Como a oeste da Cidade Alta estão a escarpa e o mar, a parte baixa
(Cidade Baixa), onde se localiza o porto, então uma franja de praia bastante estreita,
era composta de apenas uma longa rua, na qual estavam localizados a Casa de
Fazenda e Alfândega, o Armazém, a Casa da Pólvora e a Ferraria,lvi
estabelecimentos relacionados à função portuária.
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aFigura 4 — Salvador de Tomé de Sousa
Fonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.
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Esta forma especifica do sítio de Salvador permite um desenvolvimento
futuro concentrado no centro, posto que a falha geológica divide a cidade em duas
partes complementares e articuladas. Dita divisão funcional é tão eficiente que se
mantém até os dias de hoje, e conserva sua trama urbana muito pouco modificada.
Ademais, este é um modelo urbano muito familiar aos portugueses,
pois as cidades de Lisboa e Porto também são assim. Porém há algumas
diferenças, devido às adaptações ao clima (ausência de chaminés) e ao uso de
cores vivaslvii nas fachadas.
Quanto ao traçado que se encontra fora do núcleo, resultante da
expansão da função residencial, este é obrigado a abandonar a regularidade
pretendida, por força da topografia acidentada e das formas de ocupação, áreas de
sesmarias onde se construíam casas de campo, alcançadas e envolvidas pelo
crescimento do núcleo urbano.
Esse núcleo inicial (Cidade Alta e Cidade Baixa) se estendeu, depois,
seguindo as linhas das cumeadas, e ocupando uma estreita faixa entre a escarpa e
o mar.
As mudanças que acontecem desde então correspondem a
transformações do tipo de cidade-fortaleza portuguesa criada com um plano e
estatuto preestabelecido e que logo a seguir passa a ocupar um lugar, na divisão
internacional do trabalho, de cidade portuária, entreposto comercial voltado para a
exportação-importação. Sendo assim, Salvador incorpora outra configuração que é a
da cidade que cresce pouco a pouco, ao acaso e onde a linearidade está presente.
Em 1551 a ocupação espacial da cidade era de aproximadamente
vinte hectares, que correspondem a duzentos mil metros quadrados. O crescimento
espacial e populacional de Salvador foi se dando de maneira natural e lenta, em
torno do núcleo original (Centro Histórico), alongando-se a área urbana sempre
paralela e próxima às praias, adaptando-se à topografia difícil dos terrenos, tanto em
direção ao norte para os lados da península de Itapagipe, quanto para o sul em
direção ao porto da Barra, sem penetrar muito na direção leste, nos terrenos do
interior do município.lviii
44
Até o último quartel do século XVI a cidade não cresceu muito, “porque
a maior parte da gente vive fora em seus engenhos e fazendas”, segundo explicação
do padre Anchieta.lix Porém, quando em 1558 Mem de Sá assumiu o governo geral,
já encontrou a cidade mais larga que a antiga fortaleza.lx
Nesse período, que caracterizamos como de “implantação da capital
colonial” (1549-1650) a expansão se concentrou nas primeiras colinas seguindo
dois eixos (linhas) nas direções norte e sul, a partir da fundação de conventos e
fortificações.
Os muros e portas originais deixarem de existir aproximadamente em
1560. Entre 1560 e 1580 a cidade cresceu em relativa paz, e surgiram pelo menos
dois conjuntos de quarteirões no atual Pelourinho e nos retângulos da Rua dos
Capitães (atual rua Rui Barbosa). Em 1591 os muros e portas começaram a ser
reconstruídos, e a expansão da cidade ao norte e ao sul obrigava o governo a
redefinir os limites amuralhados.
No eixo sul, a cidade cresceu, inicialmente, em direção ao Mosteiro de
São Bento e no final do período alcançava a área do Forte de São Pedro. No eixo
norte a cidade cresceu primeiro em direção às Portas do Carmo e, em seguida, ao
Convento do Carmo, alcançando as trincheiras de Santo Antônio e Barbalho. Na
direção leste havia o obstáculo do rio das Tripas para o crescimento da cidade. lxi
Entretanto, em consequência das contingências do sítio e da história urbana, lxii com
a ocupação a seguir da segunda linha de cumeada, a cidade passou a ter uma
forma radioconcêntrica.lxiii
Na passagem do século XVI ao XVII, Gabriel Soares de Sousa
descreve a situação da Cidade do Salvador cujo crescimento foi no sentido norte,
quando começou a ocupação do bairro da Sé, a partir da Misericórdia, Terreiro e
adjacências e que, nas duas últimas décadas da centúria, tendo como núcleos de
povoamento os conventos de São Bento e do Carmo, apareceram as primeiras
casas nas suas imediações, constituindo-se os bairros de São Bento e Carmo, então
extramuros (Figura 5). Aliás, já por esse tempo, as muralhas deixavam de existir,
devido à sua fragilidade e perda da função defensiva original. A cidade passa a
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contar com um novo sistema de fortificações, devido ao acosso e invasões
holandesas, durante o período que o reino de Portugal, em crise sucessória, ficou
sob domínio espanhol (1580-1640).
A ocupação do solo em Salvador jamais apresentou a forma de
concentração contínua e compacta. Montada sobre geomorfologia acidentada, a
cidade se espalhava sobre as cumeadas, desprezando os vales. Seu crescimento se
fez em forma de leque, com orlas para o Oceano Atlântico e para a Baía de Todos
os Santos, mantendo através desta fortes vínculos com o Recôncavo.lxiv
O bairro aristocrático se achava ao redor da área central. Já na metade
do século XVII, o entorno desse centro estava cercado de um verdadeiro cinturão de
boas casas de campo que pertenciam às pessoas endinheiradas, enquanto que os
pobres e comerciantes viviam na Praia (a Cidade Baixa).
Quanto à periferia da cidade original, o seu entorno estava ocupado
com roças de mantimentos, frutas e hortaliças pertencentes a casais portugueses, lxv
contribuindo assim para o abastecimento da população.
Quanto à conquista da segunda cumeada, essa se dá durante o
período em que Salvador é ocupada pelos holandeses e estes, ao represarem as
águas do riacho que nasciam no terreno dos beneditinos (rio das Tripas),
construíram duas represas, a fim de formar um fosso profundo em torno da parte
nascente da cidade.
A construção dessa obra hidráulica, campo de conhecimento em que
eram especialistas os flamengos, muito contribuiu para a expansão da cidade no
sentido leste, pois, em consequência da dificuldade de sua transposição, as forças
organizadas — a partir de Madri e Lisboa — para a retomada da cidade, no período
do cerco terrestre que antecedeu ao ataque final e definitivo, tiveram de se
estabelecer, construindo inclusive quartéis, nos sítios da Palma, Santana, Desterro e
Saúde, que eram pontos a cavaleiro, iniciando assim a conquista dessa segunda
linha de cumeada no desenvolvimento da Cidade do Salvador,lxvi e tais sítios se
transformaram a posteriori em importantes bairros centrais. Dessa maneira Salvador
vai adquirindo o formato radioconcêntrico.
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47
Figura 5 — Salvador no fim do século XVIFonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.
A Cidade do Salvador apresentava, em 1650, uma área de 140
hectareslxvii (Figura 6) e tinha a seguinte configuração: na Cidade Alta, tanto no
sentido sul (São Bento) e norte (Carmo), como a leste (o dique e os bairros da
segunda cumeada) e a oeste (a escarpa abrupta da falha), o recinto urbanizado
existente conservava o mesmo traçado de suas ruas e praças tal como se
encontravam em 1600, que com pequenas alterações se conserva até os dias de
hoje. Aí se situa o centro político-administrativo e cultural-religioso, com as
edificações urbanas mais significativas.
Na Cidade Baixa está o bairro da Praia, confinado a uma estreita faixa
de terra próxima à montanha, com uma única e comprida rua — e alguns becos e
travessas — onde cumpria a primordial função portuária, indispensável seja na
comunicação com a Metrópole e seu Império na África e na Ásia, como exportador
de produtos locais e importador do produzido no exterior, seja nas suas relações
com as margens da Baía de Todos os Santos e toda a região do Recôncavo, pois
quase todas as ligações eram feitas por via aquática, donde lhe vinha grande parte
dos produtos de sua subsistência e de exportação, e para onde iam os importados,
sendo Salvador o porto onde se centralizavam essa importantes funções.lxviii
A população estimada da cidade é então de 10.000 habitantes, lxix mas
há uma grande imprecisão porque nesse cômputo não se incluía a população
escrava.
Em 1650 a cidade do Salvador já se apresentava como uma urbe
ibero-americana consolidada, o que coincide com a consolidação da colonização
portuguesa na América, nesse mesmo século.
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Figura 6 — Evolução física de Salvador 1580-1650.Fonte: UNIVERSIDADE Federal da Bahia. Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Fundação Gregório de Mattos. Evolução Física de Salvador. Salvador: Pallotti, 1998.
49
SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1650-1763)
Esse período é considerado como de “idade de ouro” de Salvador, uma
era de esplendor religioso e riqueza urbana, capitaneada pelo apogeu da economia
açucareira, com a construção dos “magníficos engenhos do Recôncavo”lxx e o bom
preço do açúcar brasileiro no mercado europeu.
O setor de exportação de açúcar foi lucrativo para vários agentes
econômicos: senhores de engenho; agentes envolvidos na comercialização,
financiamento, expedição e comércio de escravos; e importadores de manufaturas e
alimentos estrangeiros.lxxi
Todavia, são os proprietários de engenhos de açúcar aqueles que
formam a classe dominante na Bahia. Sua riqueza e seu poder se baseiam no
regime das grandes propriedades, plantadas de cana-de-açúcar em vastos campos
desbravados na floresta primitiva,lxxii na úmida zona litorânea nordestina.
Esse é um dos períodos mais importantes da Cidade do Salvador,
durante o qual foram implantados os principais edifícios do conjunto arquitetônico e
urbanístico de caráter monumental,lxxiii principalmente na parte central da cidade.
Os Beneditinos haviam dado início à construção do seu atual mosteiro,
em 1648.lxxiv O Convento dos Carmelitas descalços da Reforma de Santa Teresa
começou a ser construído em 1665, no bairro do Sodré. lxxv No Terreiro de Jesus, a
igreja dos jesuítas (atual Catedral Basílica) foi construída entre 1657 e 1672.
Elevada à condição de Arcebispado em 1676,lxxvi o Palácio Arquiepiscopal foi iniciado
em 1707; a Igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos teve sua construção
autorizada em 1708.
Na área hoje conhecida como Pelourinho, o imponente Solar do Ferrão
foi concluído entre 1690 e 1701, pelo comerciante José Sotero Maciel de Sá Barreto.
A Igreja de São Miguel foi concluída em 1732.lxxvii
Joias da arquitetura barroca baiana, a Igreja da Ordem Terceira de São
Francisco foi construída entre 1702 e 1703, e a atual igreja de São Francisco — a
Igreja de Ouro — entre 1708 e 1720, voltada para o poente (Figura 7). O novo
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convento de São Francisco corresponde a uma verdadeira fortaleza, no limite leste
da cidade, contando com 41 janelas na sua parte de trás.lxxviii
Destaca-se também, devido à sua importância futura como local de
peregrinação e devoção dos baianos, o início da construção da capela do Senhor do
Bonfim em 1745, na península itapagipana, pelo capitão de Mar e Guerra Teodózio
Rodrigues de Faria, traficante de escravos e proprietário de navio negreiro.lxxix
Nascida como cidade fortaleza e fustigada por toda a primeira metade
do século XVII pelos invasores holandeses, construiu-se em Salvador todo um
sistema de fortificações para proteção da cidade, principalmente das investidas pelo
mar.
Na barra da imensa boca do “grande golfão” que é a Baía de Todos os
Santos, está situado o Forte de Santo Antônio da Barra (Figura 8), que “resistiu
bravamente, somente caindo quatro dias depois do assédio”lxxx holandês contra
Salvador, em 1624; próximo a este, ainda na entrada da barra, estão os fortes de
Santa Maria, de 1609, e de São Diogo (anterior a 1638); em seguida, “ao longo da
margem da baía, sob a encosta onde a cidade está pendurada”,lxxxi encontra-se a
bateria de São Paulo da Gamboa; “o porto é defendido pela fortaleza redonda
erguida no meio sobre um rochedo, conhecida sob os nomes de Forte São Marcelo
ou Forte do Mar”lxxxii, de 1623.
Uma série de outros fortes se escalonam em seguida: São Francisco,
Santo Alberto (1583),lxxxiii São Fernando, Lagartixa, Jequitaia e Monte Serrat,
construído a partir de 1583, situado na extremidade oposta à barra, onde o
comandante holandês Van Dorth foi morto, numa emboscada.lxxxiv
Do lado da terra foram construídos o Forte de São Pedro (1723) e a
Casa da Pólvora (Aflitos), na parte sul da cidade; ao norte edificaram-se o Forte do
Barbalho e a Fortaleza de Santo Antônio Além do Carmo, assegurando assim a
proteção da cidadela, porque do lado interior na direção leste encontra-se o dique do
Tororó, um lago artificial “em forma de crescente que rodeia três quartos da
cidade”.lxxxv
51
Figura 7 — Igreja de São Francisco. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 out. 2006.
Figura 8 — Forte de Santo Antônio da Barra (1624). Foto: Barbara Maringoni Bomfim
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O crescimento espacial de Salvador é de forma radioconcêntrica e
compacta, tendo em vista os limites à expansão: ao lado leste, é ocupada a segunda
cumeada, com o povoamento dos novos bairros de Palma, Santana e Saúde, até os
limites do novo dique do Tororó. Os principais fatores dessa ocupação foram o
abandono do dique holandês, a implantação de quartéis, assim como a construção
dos novos conventos, sobretudo os femininos (Desterro e Lapa).
Tanto para o norte como para o sul, a área mais densa ia até os fortes
que defendiam os extremos da cidade: ao norte, os limites dos fortes de Santo
Antônio e do Barbalho; e, ao sul, o conjunto formado pelos fortes de São Pedro e de
São Paulo e pela Casa da Pólvora.lxxxvi
Os conventos também tiveram papel importante na extensão da
cidade: no lado norte, o das Ursulinas, na Soledade; e no lado sul, o dos
Capuchinhos e Ursulinas, que ocuparam áreas da Piedade e das Mercês.lxxxvii
A freguesia de São Pedro, criada em 1676, expandiu-se nesse período
e era importante do ponto de vista defensivo, correspondendo à parte sul da
cidade.lxxxviii
O desenvolvimento da cidade em direção sul ocorreu, de forma
complementar, na grande freguesia da Vitória, que cobria o sul da península.
Sendo Salvador edificada sobre terreno acidentado, esse empecilho
natural não permite “construir uma cidade traçada à régua, com ruas retilíneas
rodeando quadras de casas bem quadradas e todas parecidas, como é o costume
nas outras cidades da América espanhola”.lxxxix
O que ocorre é que, fora do perímetro do núcleo central, as
construções erguem-se sem alinhamento. Isso gera uma assimetria e converte a
área em um labirinto de ruas, becos e vielas. O traçado urbano reconcilia-se com a
topografia acidentada, abandonando a regularidade pretendida.xc
Um viajante francês da época, Le Gentil de la Barbinais, deplora a
aparente desordem urbana de Salvador e transforma a sua crítica em poesia, ao
construir uma linda imagem para descrever o atual Centro Histórico da cidade:
“como cada um construiu sua casa de acordo com sua fantasia, tudo é irregular, de
modo que parece que a praça principal se acha ali por acaso”...
53
Na Casa da Câmara, instituição política colonial, seus membros tentam
regulamentar a ordem urbana, e as primeiras providências pelo alinhamento das
ruas foram para “evitar os danos estruturais das ruas em que se fazem casa
ordinariamente nos arrabaldes”, regulamentando a punição para “toda pessoa que
fizer casa sem ser arruada ou fora da arruação”: se “lhe botará a obra abaixo às
suas custas... e terá trinta dias de cadeia”.xci
Um grave problema da Bahia seiscentista é o da sujeira. O costume de
jogar lixo nas ruas, emporcalhando as vias públicas, era então generalizado.
“Algumas ruas mais estreitas, malpavimentadas, chegavam mesmo a se converter
em depósitos de lixo”.xcii Tornam-se urgentes medidas regulatórias pelo poder
público. Decisão da Câmara Municipal, datada de 1626, proibiu qualquer pessoa de
i Ou encontro de Culturas, segundo GARCÍA ZARZA, Eugenio. La ciudad em cuadrícula o hispanoamericana. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1996, p.42; “o encontro de culturas, formas de vida e trabalho ou modos de ser raramente é único, unívoco, unilateral, ainda que sempre haja o predomínio de um sobre o outro ou os outros”. In IANNI, Octavio. A sociedade global. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 83. ii FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997, p. 30.iii VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. Salvador: Corrupio, F.C.Ba, 1981, p.9.iv Idem, ibidem, p.9.v Como também demais nações européias contestavam o direito de Portugal e Espanha sobre terras que não houvessem efetivamente ocupado. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 25. ed. São Paulo: Ed Nacional, 1995, p.6.vi O reconhecimento do princípio de uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato deve possuir de direito) e não a legitimação de simples divisões geográficas como o Tratado de Tordesilhas (1494). In: SANTOS PÉREZ, José Manuel; PETIT, Pere (Eds). Presentación. La amazonia brasileña em perspectiva histórica. Aquilafuente, 104. Ediciones Universidad de Salamanca: Salamanca-España, 2006, p. 9.vii FAUSTO, B. 1997, p. 42-43.viii Idem, ibidem, p. 44. ix Ibidem, p. 45.x FURTADO, C., 1995, p.8.xi FAUSTO, B., 1997, p. 45.xii FURTADO, C., 1995, p.7.xiii Idem, ibidem, p.8.xiv DIAS TAVARES, Luís Henrique. História da Bahia. 10ª ed. São Paulo: Ed. UNESP; Salvador: EDUFBA, 2001, p. 107. xv “A ocupação econômica das terras americanas constitui um episodio da expansão comercial européia”. FURTADO, C., 1995, p.5. xvi GREMAUD, Amaury Patrick; SAES, F. A. M de; TONETO Jr, R. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Atlas, 1997, p. 15.xvii NARDI, Jean Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial. Lavoura, comércio e administração. São Paulo: Brasiliense, 1996, p.30xviii DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 109; ver também RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004, p.93.xix BAER, Werner. A economia brasileira. São Paulo: Nobel, 1996, p. 31.xx PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 9ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 125 apud GREMAUD, A. P.; SAES, F. A. M.; TONETO Jr, R., 1997, p. 15.
colocar lixo ou imundície no adro da Sé, assim como nas ruas e travessas da
cidade.xciii
As preocupações com a limpeza, a saúde e o abastecimento obrigam a
Câmara a ordenar o lançamento de lixo no mar (1672); “Provedores da Saúde”
foram nomeados, a partir de 1694, para a inspeção de matadouros, lojas, mercados
e navios; a lavagem de roupas nas fontes foi proibida em 1696; assim como os
porcos soltos na cidade, em 1739; os doentes de lepra foram obrigados a deixar a
xxi VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002, p.11.xxii Dados disponíveis em IBGE – Cidades@ http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 Acesso em 29 abr. 2009.xxiii FERNANDES, Rosali Braga. Las políticas de la vivienda en la ciudad de Salvador y los procesos de urbanización en el caso de Cabula. Barcelona, 2000, p. 93. (Tesis doctoral para la Faculdad de Geografia e Historia); BRAGA, Hilda Maria de Carvalho. Producción y desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador-Bahia. Tesis Doctoral presentada al Departamento de Geografia Humana de la Universidad de Barcelona, España, 2004, 470 p.xxiv RISÉRIO, A., 2004, p.20.xxv Em 1958 o distrito de Candeias foi emancipado de Salvador; em 1961 foi criado o município de Simões Filho, com o desmembramento do distrito de Água Comprida, ao norte de Salvador, no lado da baía de Todos os Santos; em 1962 foi criado o município de Lauro de Freitas, com o desmembramento do distrito de Santo Amaro do Ipitanga, a nordeste de Salvador, no lado da orla Atlântica. In VASCONCELOS, 2002, op cit., p. 311. xxvi UNIVERSIDADE Federal da Bahia. Faculdade de arquitetura. Centro de Estudo da Arquitetura na Bahia. Evolução física de Salvador. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1979, v.1, p. 39.xxvii FERNANDES, R. B., 2000, p. 95.xxviii Área formada por um alto platô, com um desnível de 40 a 70 metros. VASCONCELOS, 2002, p. 14.xxix VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 16-17; FERNANDES, R. B., 2000, op. cit., p. 95.xxx FERNANDES, R. B., 2000, p. 95.xxxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p.33; com a Holanda foi estabelecida a paz só em 1661, mediante indenização de cinco milhões de cruzados. Idem, p.73.xxxii MATTEDI, Brito & Barreto, 1979, p. 349 apud PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002, p. 197.xxxiii VERGER, P., 1981, p.07.xxxiv O ano de 1850 é também o ano da promulgação da Lei de Terras, como ficou conhecida a lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, que trata da organização agrária do Brasil. Ela atendia à evidente necessidade de organizar a situação dos registros de terras doadas desde o período colonial e legalizar as ocupadas sem autorização, para depois reconhecer as chamadas terras devolutas, pertencentes ao Estado. Disponível emhttp://www.webhistoria.com.br/arqdirfon2.html Acesso 25 jul. 2006.xxxv NEVES, Laert Pedreira. O crescimento de Salvador e das demais cidades baianas. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1985, p.23.xxxvi FARIA, Vilmar E. Divisão Inter-regional do Trabalho e pobreza urbana - o caso de Salvador. In: SOUZA, G. Adeodato de; FARIA, Vilmar (orgs.). Bahia de Todos os Pobres. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 34.xxxvii “Primeira grande empresa colonial agrícola européia”. FURTADO, C., 1995, p.9. xxxviii “[...] o jesuíta Simão de Vasconcellos demonstrou claro entendimento do sentido da empreita ao observar que o propósito do rei de Portugal era ‘dar principio a um Estado em que pretendia fundar Império’” in RISÉRIO, 2004, p. 80; ver também em BOMFIM, Juarez Duarte. Políticas públicas para o centro histórico de Salvador: investigação de originalidade. Salvador: Escola de Administração da UFBA, 1994 (dissertação de Mestrado), p.12.
cidade em 1758, devendo se retirar a uma distância de quatro léguas.xciv E assim
segue a vida urbana na Salvador colonial.
No início do século XVII o Brasil se tornara o principal fornecedor de
açúcar do mundo, porém, no final desse século a atividade exportadora começou a
declinar. A causa do declínio foi o desenvolvimento de uma crescente oferta do
produto nas colônias inglesas, holandesas e francesas, que tinham acesso
preferencial aos mercados das suas respectivas metrópoles.
xxxix Santos questiona: pode-se falar em “idade” de um lugar? Será possível falar da idade de um lugar segundo outro critério? Por exemplo, será possível um critério propriamente “geográfico”? In: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. 2 ed. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 46.xl UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 23; modernização ortográfica feita pelo autor.xli Idem, p. 23; modernização ortográfica feita pelo autor.xlii COELHO FILHO, Luiz Walter. A fortaleza do Salvador na Baía de Todos os Santos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2004, p. 101.xliii Idem, ibidem, p. 101.xliv UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 29.xlv RISÉRIO, A., 2004, p.87.xlvi AZEVEDO, Thales de. Povoamento da Cidade do Salvador. Salvador: Ed. Itapuã, 1969, p. 137; Tomé de Sousa havia trazido de Portugal a própria população (400 soldados, 400 degradados, alguns padres e raras mulheres) afirma SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador. Estudo de Geografia Urbana. Salvador: Publicação da Universidade da Bahia, IV-4, 1959, p. 35.xlvii AZEVEDO, T., 1969, p. 137. No prefácio à terceira edição, Thales de Azevedo, na p.32, sugere uma ratificação: “propõe o autor, com certos argumento, reduzir para cerca de metade, isso é para 500, o número de habitantes da nova Urbe uma vez que lhe parece improvável, como está consagrada na maioria dos historiógrafos, que o Governador-Geral havia trazido em sua frota 600 homens d'armas e 400 degradados, pois suas naus não teriam capacidade para tanto e as folhas de pagamento, provisões, alvarás e outros papéis não o fazem crer”.xlviii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.30.xlix AZEVEDO, T., 1969, p.136.l UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 26.li A “cabeça de ponte”, no dizer de VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 70.lii CAPEL, Horacio. La morfologia de las ciudades. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2002, p. 190; Capel afirma ser uma excepcionalidade o plano ortogonal no caso de Salvador, devido a ser pouco comum no Brasil colonial.liii UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 66.liv Idem, p. 29; GARCÍA ZARZA, 1996, p.15, diz que ”en efecto, en Hispanoamérica no en Iberoamérica” a quadrícula é base para a ordenação e o funcionamento urbanos. Porém, Salvador é uma exceção.lv VASCONCELOS, 2002, p. 49.lvi COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 115; VASCONCELOS, 2002, p, 59.lvii FERNANDES, R. B., 2000, p. 97; VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 13.lviii NEVES, L. P., 1985, p. 23.lix AZEVEDO, T., 1969, 154.lx BOMFIM, J. D., 1994, p. 21.lxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p, 19; p. 62-64.lxii SANTOS NETO, Isaias de Carvalho. Centralidade Urbana: espaço & lugar; esta questão na Cidade do Salvador. São Paulo: USP/FAU, 1991, p. 47; SANTOS, M., 1959, p. 56 e 118.lxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 19.lxiv BOMFIM, J. D., 1994, p. 14.
A descoberta de ouro (1695) e de diamante (1730) em Minas Geraisxcv
provocou um novo ciclo de crescimento econômico, e a atividade de mineração e
exportação do ouro deslocou o centro de atividade econômica para o Sudeste do
Brasil.
O incremento da mineração fez com que o Rio de Janeiro se
destacasse como importante porto, que se tornou o principal centro exportador de
minérios e pelo qual entravam os artigos importados manufaturados. Importantes
casas comerciais, instituições financeiras e vários outros serviços lá se instalaram.xcvi
lxv VASCONCELOS, P. A., 2002, p, 65.lxvi UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 107-108.lxvii NEVES, L. P., 1985, p. 23; em 1551, três anos após a sua fundação, a área ocupada era de 20 hectares; em 1580 de 60 hectares, e ao término deste período, em 1650, 140 hectares.lxviii UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 102-103.lxix Idem, p. 102.lxx VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 84.lxxi BAER, W., 1996, p. 29.lxxii VERGER, P., 1981, p. 34.lxxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 92.lxxiv Idem, ibidem, p. 77.lxxv Ibidem, p. 110.lxxvi Ibidem, p.. 75.lxxvii Ibidem, p. 104.lxxviii Ibidem, p. 75.lxxix Ibidem, p. 86.lxxx TAVARES, Odorico. Bahia. Imagens da terra e do povo. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951, p. 181; posição divergente quanto à funcionalidade deste forte tem o prof. Mario Mendonça. Segundo ele o forte nunca foi uma posição de destaque na defesa de Salvador. Ficava distante da cidade, então restrita ao centro histórico; era pequeno e mal desenhado. Sua versão original era um polígono de oito lados, depois virou um polígono irregular como ainda é hoje, mas sem nenhum baluarte capaz de flanquear os tiros defensivos. Era muito mais um posto de sentinela do que um forte poderoso. Ver OLIVEIRA, Mário Mendonça de. As Fortificações Portuguesas de Salvador quando Cabeça do Brasil. Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2004. lxxxi VERGER, P., 1981, p. 96.lxxxii Idem, ibidem, p. 96.lxxxiii Em 1660 o Forte de Santo Alberto é considerado inútil à defesa da cidade, o que motivou a sua venda em praça púbica, em 1673. In COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 114.lxxxiv TAVARES, O., 1951, p. 190.lxxxv VERGER, P., 1981, p. 96.lxxxvi VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 97.lxxxvii Idem, ibidem, p. 120; conventos estes construídos em meados do século XVIII.lxxxviii Ibidem, p. 108.lxxxix VERGER, P., 1981, p.20.xc PINHEIRO, E. P., 2002, p. 182 e 188.xci VASCONCELOS, P.A., 2002, p. 83; atualização ortográfica do autor.
Em 1763 a capital do Vice-Reinado foi transferida de Salvador para o Rio de
Janeiro.xcvii
As duas cidades tinham aproximadamente a mesma população, 40 mil
habitantes.xcviii Entretanto, mesmo com a perda da condição de centro administrativo
da colônia, Salvador continuou a ser a principal cidade da América portuguesa,
primeira praça comercial e se converteu em metrópole regional.
A riqueza acumulada e as grandes transformações ocorridas, com a
construção ou a reconstrução dos edifícios monumentais, sobretudo religiosos,
justificaram a designação desse período de “Idade do Ouro de Salvador”,xcix dada
pelo historiador Russell-Wood.c
SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1763-1850)
O episódio mais relevante deste terceiro período (1763–1850) foi a
invasão de Lisboa pelas tropas de Napoleão Bonaparte, o que provocou a fuga da
família real portuguesa para o Brasil e a instalação do governo de Portugal no Rio de
Janeiro.
Uma tempestade fez com que parte da esquadra que trazia a Corte
portuguesa ancorasse em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808, e aqui, por
pressão inglesa, o príncipe regente D. João assinou a Carta Régia, que abria os
portos brasileiros às “nações amigas”.ci
O fim das restrições mercantilistas encerra trezentos anos de exclusivo
colonial, o que favorece o comércio e as atividades econômicas de exportação e
importação. Os impactos dessas medidas sobre a economia baiana e as atividades
comerciais e portuárias serão enormes, criando uma era de pródiga abastança.
xcv FAUSTO, B., 1997, p. 98.xcii RISÉRIO, A., 2004, p. 201.xciii COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 193.xciv VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 84.xcvi BAER, W., 1996, p. 32.xcvii FAUSTO, B., 1997, p. 99.xcviii Idem, ibidem, p. 99.xcix VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 120;c RISÉRIO, A., 2004, p.129.ci FAUSTO, B., 1997, p. 122; e DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 212.
Apesar da mudança da capital da colônia para o Rio de Janeiro, é alto
o crescimento demográfico de Salvador, que continua a ser a maior cidade da
América portuguesa até a proclamação da Independência do Brasil.
Em 1822 proclama-se a Independência do Brasil, e a Bahia trava a sua
guerra particular pela independência, quando se levanta em armas contra as tropas
portuguesas aqui estabelecidas. A libertação do domínio português ocorrerá no 2 de
julho de 1823. O caráter mercantilista da Bahia aparece com nitidez no episódio da
Independência. Pois é somente depois da guerra da Independência, que na Bahia
assumiu forma especialmente violenta, prolongando-se em rebeliões, levantes e
motins de 1824 a 1838, que o exclusivo colonial foi inteiramente desfeito e uma nova
ordem econômica, social e política se estabelece.
O porto de Salvador não tem suas atividades limitadas ao escoamento
da produção baiana e abastecimento da sociedade local de bens importados,
inclusive de escravos. O seu raio de ação é bastante amplo, estendido através de
rotas de cabotagem e das rotas atlânticas portuguesas. A resistência política e
militar portuguesa à independência da Bahia era alentada pela perspectiva da
cidade poder sobreviver à independência do Brasil como enclave português.cii
Nesse período, do ponto de vista urbano, as principais transformações
ocorridas em Salvador visaram a desobstruir a Cidade Alta, devido à perda de
importância de seu sistema defensivo.
O constante alargamento da cidade ao norte e ao sul obrigava o
governo a redefinir de quando em quando os limites amuralhados da cidade, e isso
vai perdurar até o final do século XVIII, quando da derrubada definitiva das Portas da
Cidade (Quadro 1).
Quadro 1 — Histórico das Portas da cidade do Salvador (1549-1796)
NOME DA PORTA PERÍODO PROVÁVEL LOCALIZAÇÃO APROXIMADA
Porta da Ajuda ou Santa Luzia
1549-1560 Lado sul. Em frente à Igreja da Ajuda ou no alto da Rua
cii GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia. Dissertação de Mestrado, defendida na Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA em 1982 (revista em 2003 pelo autor). Disponível em <http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/forma%E7%E3o%20e%20crise%20da%20hegemonia%20burguesa%20na%20Bahia.pdf.> Acesso em 12 agosto 2005.
59
Chile1ª Porta de Santa Catarina 1549-1560 Lado norte. Em frente ao
Terreiro de JesusPorta de Santa Luzia 1591-1634 Lado sul. No meio da atual
Praça Castro Alves2ª Porta de Santa Catarina 1591-1635 Lado norte. No atual Largo
do PelourinhoPorta de São Bento 1634-1796 Lado sul. No meio da atual
Praça Castro AlvesPorta do Carmo 1635-1790 Lado norte. No atual Largo
do PelourinhoFonte: COELHO FILHO, L. W., 2004.
60
No lado sul (1796) ocorre a derrubada das Portas de São Bento, dando
origem à atual Praça Castro Alves; é também deste ano a construção da Praça da
Piedade, a terceira da cidade.
Ao norte, acontece a demolição das Portas do Carmo e a abertura do
Largo do Pelourinho, em 1790.
Coelho Filho afirma que de alguma forma “o Terreiro de Jesus, o Largo
do Pelourinho e a Praça Castro Alves devem gratidão às portas da cidade”,ciii pois,
no passado, foram locais de passagem, transição entre dois mundos, do seguro
para o inseguro, e depois se tornaram espaços abertos ao bem-estar da população.
Daí que, para a defesa da cidade, eram proibidas construções ao redor
das muralhas e portas das fortalezas. Uma vez encerrada essa função, o espaço
aberto poderia ser aproveitado para a criação de praças públicas.
No bairro da Praia, a Igreja da Conceição da Praia foi concluída em
1765 e o Forte de São Marcelo em 1772.
Novos equipamentos foram implantados nesse período, numa onda
modernizadora, como o teatro público, a biblioteca pública, a escola médico-cirúrgica
e o primeiro banco da cidade.civ Em 1810 é implantado o Passeio Públicocv — que
deslumbra os visitantes — e um obelisco, em comemoração à chegada da família
real no Brasil em 1808.
A cidade se dividia administrativamente em freguesias, e a freguesia
era dividida em quarteirões. O nome quarteirão dá idéia de um quadrilátero
delimitado por quatro ruas, formado por casas contíguas.
Porém, havia quarteirões de grande ou pequena extensões de terra,
como também “existiam quarteirões que ocupavam uma só rua ou parte desta, ou
apenas um só dos seus lados”.cvi
Em 1799, o governador Fernando J. de Portugal comentou o estado da
cidade, informando que “os edifícios não são de melhor arquitetura, nem da mais
ciii COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 238.civ VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 161.cv PINHEIRO, E. P., 2002, p.202.cvi NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: Fceba/Egba, 1986, p. 30; em matéria de urbanismo Portugal e Espanha seguiram caminhos próprios, distintos, a partir do século XVI. Os quarteirões quadrados (manzanas) e os solares são unidades do urbanismo espanhol. Já no Brasil os quarteirões são muitas vezes irregulares. In COELHO FILHO, 2004, p. 347.
61
sólida construção, apesar de se encontrarem alguns nobres”. Já o padre português
Manuel Aires de Casal noticia que “a casaria é sólida, e em grande parte nobre”.cvii
Na Bahia oitocentista, o palácio ou o tipo de casa onde se mora é
símbolo de status social.
O governador da Província reside no Paço, palácio dos antigos vice-
reis, e o bispo no palácio episcopal. Na cidade, os barões e viscondes, donos de
engenhos, vivem nos solares; os ricos comerciantes, os bacharéis e os doutores
habitam os sobrados; os negociantes e os cônsules estrangeiros alugam casas
rodeadas de jardins, longe do centro da cidade; os lojistas, os pequeno-burgueses e
os artesãos vivem em simples casas térreas.cviii
O tamanho das casas varia segundo os quarteirões, porém a mais
comum era o sobrado. Os sobrados eram de um, dois, três ou quatro andares, com
sótãos, sobre-sótãos, lojas, sobrelojas e porões. Podiam ser unidomiciliar ou
pluridomiciliares. Quando de dois andares, a família morava no andar superior e o
térreo servia de local de trabalho a seu proprietário, artesão ou negociante; o andar
térreo podia eventualmente estar alugado a escravos ou artesãos livres.cix
Os sobrados eram geralmente encontráveis na paróquia comercial da
Conceição da Praia e naquelas habitadas pelas camadas superiores da população:
Sé, São Pedro, assim como em alguns quarteirões de Santo Antônio Além do Carmo
e de Santana próximas do Centro, situados na paróquia da Sé.cx
Grandes residências senhoriais são encontradas na Penha e na
Vitória. Os materiais construtivos dessas residências são de “uma bela pedra azul
tirada da praia da Vitória” ou tijolo. As casas são todas caiadas, e “onde o chão não
é calçado de madeira, há um belo tijolo vermelho”.cxi A cobertura é feita com telhas
redondasSegundo Verger, “os mulatos soldados, os negros livres são alojados
em casebres ou pardieiros, com janelas gradeadas ou velhas casas assobradadas
mais ou menos em ruínas”.cxii
Os escravos viviam em celas no andar térreo de casas
“repugnantemente sujas”, onde também situavam-se as cavalariças, ou embaixo das
casas, numa espécie de porão; as residências dos mais pobres eram cabanas feitas
de estacas verticais com galhos de árvores trançados, “cobertos e revestidos seja
com folhas de coqueiros, seja com barro. Os tetos são também cobertos de
palha”.cxiii
62
As ruas da cidade “são limpas, mas não regulares”,cxiv disse ainda o
governador Fernando J. de Portugal. A cronista inglesa Maria Graham considerou,
em 1821, a Cidade Alta “incomparavelmente”cxv mais limpa que o porto.
Localizada às margens de uma grande baía, chegar a Salvador por
mar provoca uma forte impressão, pela beleza e originalidade do lugar. A Cidade da
Bahia tinha então “um dos mais belos portos do universo”, afirmava José da Silva
Lisboa, em 1781.cxvi Mas não é só a baía de Todos os Santos que encanta os
viajantes, a Cidade do Salvador “magnífica de aspecto, vista do mar” é “um dos mais
belos espetáculos que jamais contemplei”,cxvii entusiasma-se Maria Graham (Figura
9).
O bairro da Praia (Cidade Baixa) era composto de uma única comprida
e sinuosa rua, cortada ao meio por alguns becos. Ali se realizava a dinâmica
atividade comercial, e se instalaram trapiches, armazéns, mercado de peixe, umas
poucas farmácias, pequenas livrarias, lapidários e joalheiros; os prédios da Bolsa, do
Arsenal e das Docas Reais, todos eles à beira-mar.
Figura 9 — Panorama da cidade do Salvador em 1756.Fonte: BAHIA. Centro Histórico de Salvador. Programa de Recuperação, 1995.
Salvador ainda era o maior porto exportador do Brasil em 1797,
passando para o segundo lugar no ano seguinte.
63
Com a abertura dos portos do Brasil aos navios e ao comércio exterior
decretada em 1808, Salvador torna-se uma cidade rica e poderosa e não mais um
simples entreposto de gêneros produzidos pelo país, aguardando remessa para
Portugal.cxviii
O papel dos comerciantes e negociantes estabelecidos na Bahia, que
até então era reduzido ao de simples intermediários no monopólio exclusivo
reservado à Coroa portuguesa, adquire primeira importância.
Em 1818, foram contabilizados dois mil navios entrando e saindo
anualmente pelo porto de Salvador. Neste mesmo ano, a Bahia exportou 13,8
milhões de florins e importou cerca de 10 milhões; a primeira viagem de navio a
vapor, no Brasil, foi entre Salvador e Cachoeira, em 1819.cxix
A sujeira existente na cidade, especialmente no bairro da Praia,
indignava os viajantes. Em 1824, Maria Graham assim descreve a situação:
A rua pela qual entramos através do portão do arsenal ocupa aqui a largura de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o lugar mais sujo em que eu tenha estado. É extremamente estreita; apesar disso todos os artífices trazem seus bancos e ferramentas para a rua. Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão os vendedores de frutas, de salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e de doces, negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras (espécie de liteiras) com seus carregadores, cães, porcos e aves domésticas, sem separação nem distinção; e como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e se alimentam os animais.cxx
Antes, em 1763, a Câmara havia proibido mais uma vez que as
lavadeiras lavassem roupas nas fontes, “especificando que elas deviam lavar em
vasilhas, numa distância de 50 palmos das mesmas”. Nesse mesmo ano foram
nomeados funcionários para controlar os currais e os matadores. Mais adiante, em
1814, foi proibido depositar cadáveres de escravos nas portas das igrejas.cxxi
Em 1785 foi estabelecida postura sobre arruamentos, determinando a
localização dos negociantes e dos artesãos; a Câmara começou a realizar o plano
64
que visava à pavimentação das ruas principais e exigia, por posturas, a obediência
aos alinhamentos das ruas, obrigando recuos e retiradas das rótulas.cxxii
Numa cidade muito acidentada, cheia de ladeiras íngremes, com
núcleos de povoação nas cumeadas das colinas, o meio de transporte mais comum
são os pés, ou “deixar-se levar por escravos nas cadeirinhas de arruar, palanquins,
serpentinas e liteiras”cxxiii (Figura 10).
Figura 10 — Uma rica senhora sai a passeio na cadeirinha de arruar.Fonte: MELLO e SOUZA, L., 1997.
Foram fixados os preços dos transportes de pessoas em cadeiras.
Aliás, este tipo de transporte vai chamar a atenção de cronistas e viajantes que
visitam a Bahia desse período. Na descrição de Froger (1696):
Trata-se de uma rede coberta de um pequeno dossel bordado e carregado por dois negros através de um longo bastão ao qual está suspensa pelas duas extremidades. As pessoas de qualidade aí se fazem carregar para a igreja, em suas visitas e mesmo ao campo. cxxiv
Nessa época, a abundância de escravos na cidade leva a que eles
cumpram a função de cavalos e transportem de um lugar a outro as mercadorias
mais pesadas. É certo que as diferenças de níveis existentes na cidade tornam
inconvenientes as carruagens, mas o príncipe Maximiliano da Áustria (em 1860)
65
observa que “a cadeirinha, este meio de locomoção do Brasil, deve sua existência à
escravidão”.cxxv
A relação senhor-escravo era então a base da sociedade e da
economia, com os negros escravizados subordinados política, social e
economicamente a seus senhores.cxxvi Historicamente, a relação de produção
escravista inibe o desenvolvimento das forças produtivas, e, no caso de Salvador, o
escravismo adiou o uso intensivo de veículos de transporte sobre rodas, chamando
a atenção dos que aqui chegavam que mercadorias de toda espécie eram
carregadas nas cabeças dos negros escravizados. “A Bahia se carrega na
cabeça”,cxxvii afirma Jorge Amado, traço cultural que se mantém até hoje no cenário
urbano de Salvador.
Frézier estimava em 1714 que 95% das pessoas que transitam na
cidade baixa são negros e negras “completamente nus, com exceção das partes que
o pudor obriga a cobrir, de modo que esta cidade parece uma nova Guiné”.cxxviii
Mais de uma centúria depois (1859), as coisas não mudaram muito:
Poucas cidades pode haver tão originalmente povoadas como a Bahia. Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita imaginação tomá-la por uma capital africana, residênciade poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente desapercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e carrega é negro.cxxix
Avé-Lallemant escreve que “a mim pelo menos pareceu que o
inevitável meio de condução da Bahia, as cadeirinhas, eram como cabriolés nos
quais os negros faziam às vezes de cavalo”;cxxx observação que leva Maximiliano da
Áustria a dizer: “os negros são escravos, e, por isso, animais com alma humana. Os
brancos são os senhores de escravos, portanto, seres humanos com alma
animal”.cxxxi
66
Se as pessoas eram transportadas e carregadas às costas de homens
escravizados da cidade baixa à cidade alta, as mercadorias eram içadas em grande
parte de uma à outra por planos inclinados e elevadores.
Contabilizam-se dois planos inclinados (Gonçalves e Pilar), um
guindaste (Elevador do Taboão) e um elevador hidráulico que fazem o transporte de
cargas e passageiros. A força motriz, que inicialmente era humana, é substituída por
caldeiras a vapor. cxxxii
O Elevador Lacerda se tornará um dos principais cartões postais da
cidade, e assim é descrito por um turista britânico, em 1884:
Do mar pode-se perceber uma torre de aspecto imponente, construída da cidade baixa até a cidade alta, ao longo da encosta e terminando no alto por uma larga plataforma. É o elevador ou parafuso como é conhecido aqui. Não é nada mais que nossos elevadores hidráulicos domésticos em tamanho maior. Apanhamos nossos tickets e entramos em uma espécie de jaula de leão, onde sentamos perto de algumas destas maravilhosas negras majestosas que fazem a reputação da Bahia, e de alguns cavalheiros obscuros fumando enormes charutos.cxxxiii
Após uma reforma, o Elevador Lacerda é ampliado e adquire sua
fachada art déco atual. As duas cabines velhas foram substituídas por quatro,
capazes de transportar 27 pessoas cada, inauguradas no dia 1º de janeiro de
1930cxxxiv (Figura 11).
67
Figura 11 — Elevador Lacerda. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
A expansão da cidade continuou em direção ao sul, ao norte e a leste
do centro tradicional, porém já dando início a um processo de diferenciação social,
com a consolidação da nova maneira de morar em casas ajardinadas, iniciada pelos
ingleses, no bairro da Vitória.
Todo um sistema viário de cumeadas já está articulado ao centro da
cidade: a cumeada do Garcia (pela atual Rua Leovigildo Figueiras), o Porto da Barra
(pela atual Ladeira da Barra), a Graça (pelo atual Corredor da Vitória) e o Rio
Vermelho (pela atual Avenida Cardeal da Silva).cxxxv
No lado leste, no bairro do Desterro, foi autorizado o desmanche da
Casa da Pólvora,cxxxvi em 1838, que daria origem ao Campo da Pólvora. O bairro de
Nazaré começa a se desenvolver em 1827, com a inauguração do Colégio dos
Órfãos do Sagrado Coração de Jesus, na atual Avenida Joana Angélica, quando
teve início a densificação do bairro. A ligação entre a freguesia de Santana e a de
Brotas se fazia, ao norte do Dique do Tororó, pela ladeira que descia em direção à
68
Fonte Nova das Pedras.cxxxvii Em 1835 se implantava a primeira “avenida de vale” de
Salvador, a Rua da Vala (atual Baixa dos Sapateiros).
Com o crescimento linear de ocupação das cumeadas, Salvador vai
deixando de ser uma cidade compacta, especialmente com a expansão em direção
ao sul, no bairro da Vitória, onde os negociantes ingleses residiam e “vinham a
cavalo para os seus escritórios”.cxxxviii O advento dos transportes coletivos urbanos na
segunda metade dos oitocentos vai propiciar novas espacializações.
Na área do Comércio, importantes transformações iniciam-se, em
1785, com aterros que alargam os seus limites, e em 1816 ocorrem as obras de
modernização do porto, que continuam até 1822, com a realização de novos
aterros.cxxxix
A Praça de São João (atual Praça da Inglaterra) teve sua construção
iniciada em 1818; o faustoso prédio da Praça do Comércio (futura Associação
Comercial), em estilo neoclássico, foi inaugurado em 1816.
O aterro da área da Alfândega foi iniciado em 1843. O imponente
prédio da Alfândega (atual Mercado Modelo), em estilo neoclássico, foi construído
entre 1849 e 1861.cxl
Nas novas áreas conquistadas ao mar, projetam-se quarteirões
regulares, num padrão em quadrícula, e edifica-se um conjunto monumental de
prédios com o mesmo número de andares e o mesmo acabamento externo,
parecendo “um único edifício por quarteirão”.cxli A monumentalidade do conjunto
urbano é uma demonstração concreta do poder de uma nova classe social que
começa a se destacar: a burguesia comercial.
SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1850-1950)
O quarto período estudado (1850–1950) relaciona-se a consideráveis
acontecimentos ocorridos com o fim do tráfico de escravos (1850). Até esta data,
grande parte do tráfico de escravos se fazia através do seu porto e, além de seu
destacado porto comercial, a cidade tinha também importância econômica com o
69
comércio de tabaco, que servia de moeda de troca inclusive para a compra de
escravos.
Nos anos 1840 o açúcar deixara de ser o principal produto brasileiro de
exportação, substituído pelo café, que não encontra condições geológicas ou
climáticas para a expansão em larga escala no território baiano, desenvolvendo-se
rapidamente, no entanto, no Sudeste do país, mudando assim, mais uma vez, o polo
de desenvolvimento econômico brasileiro.
Mas o declínio da importância das atividades produtivas na Bahia não
se faz sentir apenas por aí. Também sua participação na produção açucareira do
Império decai durante o período, embora continue como o principal produto da
Bahia, responsável por 69,8% das exportações em 1851. Já em 1873 a participação
do açúcar cai, cedendo o primeiro lugar para o fumo, que participa então com 31,%
das exportações baianas.
Todavia, o dinamismo da economia agroexportadora baiana mantém-
se até 1869 — apesar do declínio da atividade açucareira — graças ao aumento das
exportações de diamantes, entre 1851 e 1865, e do algodão, entre 1863 e 1871.
Salvador começa a perder importância marítima para outros portos,
como o de Recife, mais próximo da Europa, e com a inauguração, em 1869, do
Canal de Suez, é diminuída a importância da navegação no Atlântico Sul, com
consequências negativas para o porto e o comércio de Salvador.cxlii Apesar disso, a
capital da Bahia ainda era a segunda mais populosa cidade do Brasil (Tabela 1).
Tabela 1 — 10 maiores municípios brasileiros em 187210 maiores municípios brasileiros População em 1872Rio de Janeiro 274.972SALVADOR 129.109Recife 116.671Belém 61.997Niterói 47.548Porto Alegre 43.998Fortaleza 42.458Cuiabá 35.987São Luís 31.601São Paulo 31.385
Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil.
70
De 1871 em diante as exportações decrescem rapidamente, até atingir
uma média de valor da ordem de 696.353 libras esterlinas em 1887, quando, em
1869, era de 1.391.362 libras.cxliii
Uma grave crise de produção e comercialização se instalou em 1873
no Brasil e atingiu profundamente a economia baiana baseada no trabalho escravo.
A queda da produção de açúcar, fumo, café e algodão gerou um grande déficit na
balança comercial. A estagnação econômica é considerada decorrente da crise da
relação de trabalho escravista, associado ao uso de antiquados métodos de
produção.cxliv
Se o declínio da economia açucareira baiana não é sentido em toda a
sua plenitude é porque, embora mais rigoroso na Bahia, ele ocorre em todo o país.
Na Bahia, a queda da exportação do açúcar foi de algum modo compensada pelo
aumento das exportações de fumo, café, cacau, diamante e, conjunturalmente, do
algodão.
Portanto, no bojo da crise geral da economia do Império, a Bahia pôde
manter sua posição relativa no conjunto das exportações brasileiras. Não se tratava,
propriamente, de uma diversificação da produção, mas sim de uma quebra da
atividade produtiva, que o comércio exportador procurava compensar através da
comercialização de produtos naturais ou de outros produtos cultivados, que nunca
atingiram a importância do açúcar.
Uma grande epidemia de cólera (1855) veio agravar a situação de
Salvador (10 mil mortos) e do Recôncavo (mais de 26 mil mortos).cxlv
Como o fumo passou a ser o primeiro produto de exportação baiana,
superando o açúcar, esse foi o estímulo para a inauguração de inúmeras fábricas de
charutos em Cachoeira, São Félix e Muritiba.
Em Salvador, um empresário suíço chamado Meuron instala uma
fábrica de charutos num sítio encantador denominado Solar do Unhão, construído no
século XVII, que é uma chácara com majestosa residência, senzalas,
embarcadouros, capela e serviço de abastecimento de água,cxlvi localizada junto á
cidade, “bem às margens da baía ao pé da encosta”,cxlvii descrita em 1855 como um
71
lugar onde as árvores cintilantes cobertas de flores e as fontes de água “murmuram
em cadência com o ruído das ondas vizinhas”cxlviii .
Um dado novo na economia baiana será o início do ciclo do cacau, a
partir de 1860, cuja produção será concentrada no sul do Estado, e logo se torna o
seu principal produto de exportação, e o escoamento do produto para o estrangeiro
ocorre pelo porto de Salvador. Entretanto, a cultura do cacau “não estava em
condições de permitir uma acumulação de capitais em favor da Cidade do
Salvador”.cxlix
Principia-se uma tentativa de industrialização, com implantação das
primeiras fábricas e manufaturas em Salvador entre os anos de 1840 e 1860, e a
cidade converte-se em um centro industrial têxtil.
Uma demonstração desse dinamismo econômico encontra-se na
existência de um grande número de trapichescl no porto de Salvador, que é, “sem
dúvida, um sinal do elevado movimento portuário da cidade; tanto no setor de
importação como no de exportação”.cli Esse crescimento era interrompido por crises
periódicas tanto econômicas como demográficas, como as provocadas pela
epidemia do cólera de 1855, e pelas devastações da seca de 1857. Porém, a longo
prazo, a economia regional registrava crescimento.
Entretanto, a falta de perspectivas de conquista de mercado externo e
o crescimento acelerado da industrialização no Sudeste do país, sem que Salvador
possa competir no processo de substituição de importações que se efetua, levam à
estagnação do setor.
O período posterior, compreendido entre 1870 e 1950, é de fracasso
das tentativas de industrialização em Salvador e no Recôncavo, fenômeno
entendido através da crescente perda de importância da economia baiana, devido
ao fato de que a industrialização do Sudeste do Brasil, baseada no excedente do
café, desloca mais uma vez a hegemonia econômica e política nacional para aquela
região.
Esse período de letargia é conhecido como “enigma baiano”, que decorre de sua descapitalização, da crescente deterioração da indústria do açúcar na região e da mudança do eixo das decisões centrais do país no final do século XIX. Os produtos primários como
72
açúcar, cacau, fumo e café continuam a sofrer sobressaltos e flutuações devido às crises internacionais. Apesar disso, em 1907, a Bahia representa 13% da circulação monetária brasileira, ficando atrás apenas de Minas e São Paulo, o que demonstra ainda sua importância em nível nacional.clii
A atividade comercial predomina na economia soteropolitana, e o
capital mercantil acabou por se transformar na fonte por excelência dos
investimentos internos, e é utilizado em execução de obras para o melhor
funcionamento da cidade.
Por isso que, apesar das dificuldades econômicas, os investimentos
em infraestrutura continuaram na segunda metade do século XIX, com a construção
de ferrovias, instalação de telégrafo e das primeiras linhas telefônicas de Salvador
(1884); Salvador ainda é a segunda cidade brasileira em população (Tabela 2),
posição que logo perde para a dinâmica capital paulista (Tabela 3), e também é a
segunda a contar com serviço de iluminação elétrica, em 1903.cliii
Havia recursos para modernizar a capital da Bahia com a limpeza e
canalização dos rios da Vala e do Camurugipe, a abertura de ladeiras, muradas e
calçadas entre as cidades Baixa e Alta, o calçamento de ruas, a instalação de
chafarizes públicos e de iluminação com combustores de gás.
Tabela 2 — 10 maiores municípios brasileiros em 1890
Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil — 1980.
10 maiores municípios brasileiros População em 1890Rio de Janeiro 552.651SALVADOR 174.412Recife 111.556São Paulo 64.934Porto Alegre 52.421Belém 50.064Fortaleza 40.902Manaus 38.720Niterói 34.269Teresina 31.523
73
Tabela 3 — 10 maiores municípios brasileiros em 1900
10 maiores municípios brasileiros População em 1900Rio de Janeiro 811.443São Paulo 239.820SALVADOR 205.813Recife 113.106Belém 96.560Porto Alegre 73.474Curitiba 59.755Niterói 53.433Manaus 50.300Fortaleza 48.369
Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil — 1980.
Foram feitos melhoramentos das estradas para a periferia da cidade,
como as do Rio Vermelho, dos Pernambués, de Brotas, e a construção da grande
via de acesso a Feira de Santana, a Estrada das Boiadas.
Os limites da cidade são os mesmos desde o século XVIII e, ao longo
do século XIX, a Cidade Alta e a Cidade Baixa mantêm a mesma divisão funcional
dos séculos anteriores. A Cidade Alta conserva as funções administrativa, religiosa e
residencial (Figura 12); na Cidade Baixa se realizam as atividades comerciais,
financeiras e aduaneiras, pois a proximidade com o porto faz com que ali se
realizem as atividades a ele relacionadas. No edifício da Associação Comercial
funcionam as três primeiras companhias de seguros da Bahia: Boa Fé, Conceito
Público e Comércio Marítimo.
74
Figura 12 — Centro de Salvador em 1905.Fonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.
À divisão administrativa e religiosa da cidade dá-se o nome de
freguesia. As freguesias ou paróquias eram delimitações territoriais feitas pela Igreja,
que se caracterizavam por ser a menor das unidades eclesiásticas, sendo
controladas pelas respectivas igrejas matrizes e estando sob a responsabilidade dos
párocos correspondentes. A cada freguesia correspondia o controle da vida dos que
75
residiam dentro de seus limites, inclusive a qualificação eleitoral e o recrutamento
para o serviço militar.cliv Até 1870, Salvador dividia-se em 10 freguesias urbanas e
sete suburbanas.clv
As freguesias urbanas, por ordem cronológica de sua criação, são:
Sé ou São Salvador;
Nossa Senhora da Vitória;
Nossa Senhora da Conceição da Praia;
Santo Antonio Além do Carmo;
São Pedro Velho;
Santana do Sacramento;
Santíssimo Sacramento da Rua do Passo;
Nossa Senhora de Brotas;
Santíssimo Sacramento do Pilar; e
Nossa Senhora da Penha.
A freguesia da Sé corresponde ao primitivo núcleo da cidade do
Salvador; a freguesia da Vitória surge em 1561, e situa-se no local onde nasceu o
primeiro núcleo de povoadores, na Vila Velha, anterior à fundação da cidade; a
freguesia da Conceição da Praia fora criada em 1623, e corresponde a zona
portuária; na freguesia de Santo Antonio era onde vivia a classe média, formada por
pequenos negociantes, alfaiates, empregados públicos.
A freguesia de São Pedro localizava-se extramuros, ao sul; as freguesias
de Santana e do Passo destacavam-se pelos conventos, igrejas, e pela população
que ia crescendo em casas térreas que se agrupavam nos núcleos dos centros
religiosos; a freguesia de Brotas abrigava uma rarefeita população rural, vivendo em
fazendas e engenhos; na freguesia do Pilar se estabeleceram a maioria dos
portugueses que haviam chegado ao Brasil como imigrantes, após a Independência,
e alguns residiam tão próximos aos trapiches e armazéns que não davam
“importância ao desconforto que ocasionavam às suas famílias”, provocado pelo
“odor que emanava das diversas mercadorias com que transacionavam”.clvi
cliv FERNANDES, R. B.,2000, p.167.clv As sete freguesias suburbanas são: São Bartolomeu de Pirajá, Nossa Senhora do Ó de Paripe, São Miguel de Cotejipe, Nossa Senhora da Piedade do Matoim, Nossa Senhora da Conceição de Itapoã, Santana da Ilha de Maré e Nossa Senhora da Encarnação de Passé. In: PINHEIRO, E. P., 2002, p.182.clvi NASCIMENTO, A. A. V., 1986, p. 33.
76
Na freguesia da Penha existiam estaleiros para a construção de grandes
embarcações, comerciava-se o pescado, e foi lá onde se instalaram algumas das
primeiras fábricas de tecidos. À capela do Bonfim se dirigiam os romeiros, desde
essa época local de peregrinação e devoção dos baianos.
A Cidade do Salvador, que conta com 129.109 habitantes no primeiro
censo nacional (1872), tem a sua população composta por 69,1% de negros e
mestiços,clvii e deste contingente de população não-branca apenas 12% eram de
escravos, o que aponta um declínio — pelo menos em termos numéricos — da
atividade escravista no meio urbano.
Em finais do século XIX, a cidade tinha de extensão 800 hectares e se
observa então uma descentralização populacional, com crescimento demográfico
das freguesias mais distantes da área central. Esse início de desconcentração
parece estar relacionado à implantação dos transportes coletivos na cidade, que
propiciam a separação entre local de trabalho e local de moradia.
Depois da promulgação da Constituição republicana de 1891, e com a
separação entre Estado e Igreja, os municípios passaram a ser divididos em
distritos. Porém, a base espacial das antigas freguesias foi conservada.
Os trens são introduzidos na Bahia a partir de 1856 com capital inglês
e depois com capital público nacional. Os locais por onde passa o trem recebem um
impulso com a chegada desse meio de transporte, que se torna vetor da expansão
urbana de Salvador, com o desenvolvimento dos subúrbios ferroviários de Periperi,
Plataforma e Paripe.
O primeiro serviço público de bondes inicia-se em 1862, com “as
gôndolas, carros altos com molas, puxados por quatro animais, em que o cocheiro
fica sobre um deles”.clviii Os avanços tecnológicos a partir daí são de introdução de
bondes puxados por burros sobre trilhos de aço ou de madeira; movidos a vapor; e a
eletrificação dos transportes urbanos, em 1897. No ano de 1920 todas as linhas já
estão eletrificadas.
As linhas de bonde que começam a ser inauguradas valorizam o solo e
incentivam a especulação imobiliária. Bairros como Barra, Graça e Vitória
urbanizam-se e recebem mais habitantes, e até o distante e despovoado bairro do
77
Rio Vermelho muda a sua estrutura e comercializa seus terrenos, após a chegada
dos bondes.
Em 1902 chega à cidade o primeiro automóvel,clix revolucionando mais
uma vez os meios de transporte.
Como “pano de fundo” desse período de franca modernização urbana,
temos a assinalar dois acontecimentos políticos de primeira grandeza: a abolição da
escravatura em 1888 e no ano seguinte, embalados por idéias positivistas, militares
e intelectuais lideram o movimento de Proclamação da República (1889).
A ideologia higienista e sanitarista se estabelece em Salvador, e são
tomadas medidas para melhorar a higiene da cidade. Em 1855 a epidemia de cólera
havia matado 16,8% da população da capital, 10 mil habitantes, e um número três
vezes maior nas cidades do Recôncavo. A modernização exige solução para a
cidade insalubre — herança arquitetônica colonial.
Construída como cidade fortaleza portuguesa e vivendo em função do
porto, Salvador cresceu linearmente no século XIX, seguindo dois vetores que
acompanhavam as bordas da península, mas de forma desordenada e assimétrica,
convertendo a zona em um labirinto de ruas, ruelas e becos.
Como já foi relatado, Salvador era uma cidade suja. Os dejetos se
acumulavam nas ruas, nas praças e rios e, não havendo maneira de eliminá-los,
isso contribuía para a proliferação de enfermidades epidêmicas.
Ainda na segunda metade do século XIX Salvador mantinha um
relativo crescimento e sua posição de segunda cidade do país, sobretudo como
consequência da indústria fabril instalada. Começava então a implantar seus
primeiros sistemas de esgotamento sanitário e recolhimento de lixo.clx
A partir de 1865, o poder público soteropolitano fez sua primeira
contratação de serviços de limpeza pública.clxi A municipalidade firmou um contrato
com uma empresa para que se encarregasse dos serviços de limpeza da cidade.
Estes compreendiam o recolhimento de materiais orgânicos e inorgânicos que
pudessem causar perigo à saúde pública, desde o recolhimento do lixo domiciliar, a
varrição das ruas e limpeza dos arroios até a conservação e arborização da cidade.
78
Havia também um outro grave problema higiênico: a remoção dos
detritos e matéria orgânica existentes nas cocheiras e cavalariças públicas e
particulares que persistiam dentro da zona urbana, assim como os resíduos das
fábricas de tabaco e outras.clxii
O contrato firmado em 1865 estabelecia horas fixas e áreas
determinadas para o recolhimento do lixo, cobrando-se uma taxa diária pelos
serviços de acordo com o número de habitantes por residência. Eram multados por
negligência ou má-fé aqueles cidadãos que depositavam os dejetos nas ruas,
desobedecendo aos ordenamentos municipais. A empresa contratada também
sofreria multas quando não cumprisse as exigências estipuladas no contrato. A
Câmara Municipal designava os espaços onde se depositaria o lixo e os detritos, e
não permitia enterrá-los no perímetro urbano da cidade.
Dessa forma, a contratação dos serviços públicos no século XIX
significou um avanço em conforto e bem-estar da população, com a modernização e
troca dos antigos sistemas de recolhimento do lixo na cidade colonial.
O serviço de saneamento da cidade passou a ser administrado
diretamente pela Intendência Municipal em 1920, após rescisão de contrato com a
empresa prestadora de serviços. Não obstante, isto não significou a melhora dos
serviços. Estes passaram a realizar-se dentro do limite dos recursos financeiros
municipais, considerados insuficientes para a sua execução. Os informes técnicos
acusavam o comportamento da população e o número crescente de prédios que
surgiam quase diariamente como causas da má coleta do lixo.
As bases do contrato dos serviços de limpeza urbana e incineração do
lixo compreendiam: recolhimento, remoção e cremação de todos os dejetos,
imundícies, matérias orgânicas e animais mortos depositados nas ruas, praças,
clxii BRAGA, Hilda Maria de Carvalho. Producción y desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador-Bahia. Tesis Doctoral presentada al Departamento de Geografia Humana de la Universidad de Barcelona, España, 2004, s/n.
79
mercados etc; materiais coletados na varrição; remoção de toda a vegetação, areia
e lodo encontrados no perímetro do serviço; dispor de pessoal necessário para os
serviços de incineração, o qual deveria ser efetuado de acordo com as prescrições
higiênicas.
Dessa maneira, estrutura-se melhor o serviço sanitário e criam-se
órgãos de defesa da saúde. São realizadas desinfecções em pessoas e cargas que
chegam de navio ao porto e são estimuladas as investigações sobre vacinas.
A cidade moderna é idealizada enquanto cidade regular, higiênica,
funcional, fluida, homogênea, equilibrada, sincrônica e gerida cientificamente. Isto se
revela, concretamente, como resultado de um longo período de gestação e de
transformações que se acumulam, em resposta a problemas concretos que se
colocam a uma sociedade em transformação.
Novas espacializações
As duas obras urbanísticas mais importantes do século XIX, e que
terão impacto na estrutura viária da cidade são: a abertura da Rua da Vala (1835)
com a canalização do Rio das Tripas e a construção da Ladeira da Montanha
(1878).
A Rua da Vala significará a utilização, pela primeira vez, “de um vale
como forma de união entre os distintos núcleos existentes sobre as colinas que
formam o espaço construído”,clxiii e se torna um importante vetor de expansão da
cidade, responsável pela conquista de novos espaços.
A Ladeira da Montanha, ligando a Cidade Baixa até a Praça do Teatro,
na Cidade Alta, facilita a circulação de veículos entre as duas partes da cidade,
devido à sua leve inclinação.
A preocupação com a higiene e a salubridade e as novas
possibilidades de circulação abertas com a estruturação de um sistema viário
abrangente e o aparecimento dos transportes coletivos — primeiro o bonde de burro,
depois a introdução de transportes mecânicos como o automóvel e o bonde elétrico
— desempenharão um papel fundamental no "processo de transformação porque
80
passa Salvador, desde o início do século XIX, embora se acentuando em meados do
século: o das novas espacializações".clxiv
Nova espacialização e diferenciação: o advento dos transportes
coletivos viabilizará o rompimento da superposição espacial entre “o local de
moradia e local de trabalho, ao mesmo tempo em que vai facilitar a fuga das áreas
mais congestionadas e insalubres da cidade” para as classes de maior capacidade
econômica.clxv
Urbanismo demolidor
Grave crise política sucessória no governo da Bahia, com reflexos no
plano nacional (Governo do presidente marechal Hermes da Fonseca) faz com que,
no dia 10 de janeiro de 1912, o centro da Cidade do Salvador seja bombardeado
pelo Exército brasileiro a partir do Forte do Mar (São Marcelo), secundado pelo Forte
do Barbalho (ao norte) e Forte de São Pedro (ao sul).
O canhoneiro durou quatro horas. A Casa dos Governadores foi
incendiada, um bem histórico com mais de 300 anos de existência (Figura 13); o
incêndio atingiu a centenária Biblioteca Pública da Bahia (fundada em 1811),
danificando os seus trinta mil volumes; o relógio da Câmara Municipal e a esquina
da Igreja da Sé foram atingidas; tiros alcançaram o Teatro São João e sobrados da
Rua Chile.clxvi
81
Figura 13 — Palácio dos Governadores, atual Palácio Rio Branco.
cvii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 156-158; atualização ortográfica do autor.cviii VERGER, P., 1981, p.26.cix MATTOSO, Kátia M de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. v.2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 161.cx MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988, p. 27.cxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p.158.cxii VERGER, P., 1981, p.26.cxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.158-161.cxiv Idem, ibídem, p.156.cxv Ibidem, p.161.cxvi Ibidem, p.156.cxvii PINHEIRO, E. P., 2002, p.185.cxviii VERGER, P., 1981, p.42.cxix VASCONCELOS, P. A., 2002, p.126.cxx VERGER, P., 1981, p.18.cxxi VASCONCELOS, 2002, p.132; George Félix Cabral de Souza escreve sobre posturas semelhantes adotadas pela Câmara de Recife, no estado de Pernambuco (século XVIII): “El crecimiento de la villa se refleja en los actos cotidianos de la Cámara […] es posible percibir la necesidad de ordenar la circulación y producción de mercancías y bienes, sea por la limitación de velocidad de las carrozas y caballos por las calles de la villa, sea por la reglamentación de las matanzas del ganado y tratamiento de las carnes, por ejemplo”. In: SOUZA, George Félix Cabral de. El post-bellum en Pernambuco: reflejos políticos y sociales da la dominación holandesa. SANTOS PÉREZ, José Manuel; SOUZA, George F. Cabral de. (Eds.). El desafío holandés al dominio ibérico en Brasil en el siglo XVII. Aquilafuente 94. Ediciones Universidad de Salamanca. Salamanca-España, 2006, p. 215.cxxii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.132.cxxiii PINHEIRO, E. P., 2002, p. 206.cxxiv VERGER, P., 1981, p.22.cxxv Idem, ibidem, p.24.cxxvi Ver GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6 ed. São Paulo: Ática, 1992.cxxvii AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos. Guia de ruas e mistérios. R J: Record, 1982, p. 32. cxxviii VERGER, P., 1981, p.21.cxxix Avé-Lallemant in: VERGER, 1981, p.21-22.; E Salvador vai chegar ao século XXI sendo considerada a “Roma Negra”, cidade com a maior população de afro-descendentes fora do continente africano. Estima-se que mais de 85% dos que moram e fazem Salvador são negros. In: Disponível em <http://www.emilianojose.com.br/texto_projeto.php?ID=33> Acesso em 26 julho 2005.cxxx Avé-Lallemant, 1961, v.1, p.20 apud PINHEIRO, E. P., 2002, p.189.cxxxi Habsburgo, 1982, p.75 apud PINHEIRO, E. P., p. 191.cxxxii Ver ANGELIM, Edla Alcântara. Condução urbana. Nem bem no céu nem bem na terra. VERACIDADE. Revista do Centro do Planejamento Municipal. Salvador – Bahia. Ano 2. Dez. 1992 nº4, p.33- 36.cxxxiii VERGER, P., 1981, p.25.
82
Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
Tudo isso era um prenúncio do “urbanismo demolidor” que se avizinha,
pois o século XX será o século das grandes transformações no centro de Salvador.
Entre 1912 e 1916 — primeiro governo de José Joaquim Seabra — desenvolve-se o
plano "Melhoramentos Urbanos", que concentra um surto de modernização
importante na cidade, calcado no binômio saneamento/transportes.
Neste período, o bonde é o responsável pela maior parte dos
deslocamentos da população, o que promove o desenvolvimento e a ocupação de
novos espaços. O centro se densifica, os bairros crescem, e surgem definições
sociais e funcionais mais claras para a cidade.
cxxxiv A segunda torre do Elevador Lacerda será inaugurada em 1930, com 72 metros de altura. In LEAL, Geraldo Costa. Perfis urbanos da Bahia. Os bondes, a demolição da Sé, o futebol e os gallegos. Salvador: Gráfica Santa Helena, 2002, p. 24; ver também TRINCHÃO, Glaucia Maria Costa. "O Parafuso" de meio de transporte a cartão postal. Dissertação de Mestrado. Mestrado de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquiteura da Universidade Federal da Bahia/UFBA, 1999.cxxxv Demonstrado no Mapa de C. Weyll, de 1851. In: VASCONCELOS, 2002, p.195 e 202.cxxxvi Casa da Pólvora posterior a outra, situada nos Aflitos.cxxxvii Demonstrado no Mapa de C. Weyll, de 1851. In: VASCONCELOS, 2002, p.204.cxxxviii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.202.cxxxix Idem, ibídem, 2002, p.165.cxl Ibídem, 2002, p.198.cxli PINHEIRO, E. P., 2002, p.213; no ano de 1930 estavam aterrados e urbanizados 80 hectares de área conquistada da baía de Todos os Santos, permitindo uma ampliação da oferta de terrenos num dos trechos mais valorizados do solo de Salvador. In: VASCONCELOS, P. A. 2002, p. 289.cxlii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.210; a abertura do Canal do Panamá, em 1914, também diminuiu a importância da navegação no Atlântico Sul e do porto de Salvador. Idem, p. 260.cxliii GUIMARÃES, A. S. A., 2005, s/n.cxliv DIAS TAVARES, L. H., 2001, p.286-287.cxlv Ver DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível. Epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: SarahLetras-EDUFBA, 1996. cxlvi RISÉRIO, A. Um olhar sobre o Solar. In: GOVERNO DA BAHIA. Secretaria da Indústria e Turismo MAM. Museu de Arte Moderna da Bahia, 2002, p. 33.cxlvii VERGER, P., 1981, p.41.cxlviii Idem, ibídem, p.41; atualmente esse belíssimo conjunto arquitetônico sedia o Museu de Arte Moderna da Bahia.cxlix SANTOS, M., 1959, p.43.cl Armazéns onde se guardam mercadorias importadas ou para exportar; armazéns-gerais.cli GUIMARÃES, Emmanuel Ribeiro apud FARIA, Vilmar E. In: SOUZA; FARIA, Vilmar, 1980, p. 32.clii PINHEIRO, E. P., 2002, p. 199.cliii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.212; PINHEIRO, E. P., 2002, p.204.clvii Idem, ibidem, p. 97.clviii PINHEIRO, E. P., 2002, p.206.clix Idem, ibídem, p.210.clx NASCIMENTO, A. A. V., p.50.clxi Os serviços de iluminação a óleo (1836) e abastecimento de água (1852) foram feitos anteriormente.clxiii PINHEIRO, E. P., 2002, p.215.clxiv FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A de Filgueiras. Idealizações urbanas e a construção da Salvador moderna: 1850-1920. ESPAÇO & DEBATE. Ano XI nº 34 São Paulo: quadrimestral, 1991, p.100.clxv Idem, ibídem, p.101.clxvi DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 324-327.
83
Pretendia-se redesenhar a cidade em função do veículo automotor que
surgia, a reforma urbana é referenciada numa espacialização modelo, no traçado de
um percurso urbano especializado que "congrega um novo modo de vida, uma nova
estética, um novo sentido de público”.clxvii
A ideologia do "progresso" é utilizada como símbolo das reformas com
uma política de demolições. O "urbanismo demolidor”clxviii então se manifesta.
Conjuntos urbanos monumentais são impiedosamente derrubados. O que se
constroi em séculos é demolido em anos. As obras de alargamento das ruas Chile,
Ajuda, Misericórdia e a construção da Avenida Sete de Setembro — da Ladeira de
São Bento ao Forte de São Pedro — tiveram a régua e o esquadro como elementos
decisivos, destruindo-se monumentos importantes para a cultura e a memória do
país.
O “urbanismo demolidor” da época tem como marco a derrubada da
Igreja da Sé (1933) e dois quarteirões contíguos. Move-se um combate sistemático
ao patrimônio histórico, sob a invocação de "Melhoramentos Urbanos", que tem
como início o[...] primeiro quartel do século atual, sobretudo de 1912 a
1920, quando as intervenções no tradicional Centro Administrativo — entre a Praça Municipal e Terreiro de Jesus — foram projetadas e aprovadas pelas autoridades competentes, mas executadas só em parte, pela falta de recursos financeiros, daí resultando a salvação de alguns monumentos notáveis — como o Palácio Arquiepiscopal junto à Sé.clxix
Em 1940, com a demolição das casas contíguas à Igreja da Sé (já
derrubada), surgiu, finalmente, o espaço que se convencionou chamar de Praça da
Sé, aberto por força das exigências técnicas da empresa concessionária das linhas
de bonde da cidade.clxx As “exigências técnicas" aí significaram abrir espaço para os
bondes poderem manobrar, no fim de linha.
As reformas urbanas realizadas representam o setor de intervenção do
poder público que, talvez, mais tenha consumido recursos no período. No plano
econômico — como sustentáculo das reformas urbanas — o Estado da Bahia “torna-
se, já em 1905, o maior produtor mundial de cacau".clxxi
84
Cabe observar que muito mais que o traçado físico da cidade que então
começava a se alterar, definia-se a nova forma de articulação da economia regional
aos centros econômicos hegemônicos fora da região de influência da cidade.clxxii
A ampliação da Avenida Sete de Setembro até o Porto da Barra
(extremo sul da cidade) acontece no segundo governo de J. J. Seabra (1920-1924).
Essas reformas urbanas
[...] buscavam responder à necessidade de uma maior mobilidade urbana, em um momento em que já se observa tanto uma tendência das classes dominantes em abandonar o velho centro denso e insalubre, quanto a aceleração do processo abolicionista que dotaria a massa urbana de trabalhadores de uma mobilidade habitacional pouco comum para os escravos.clxxiii
As primeiras décadas do século XX encerram para Salvador uma
etapa crítica de redefinição das funções do centro da cidade. Sua expansão na
direção sul, que já vinha se ocorrendo desde meados do século XIX quando a
Avenida Sete se desenvolve como local de moradia da classe dominante — com o
impacto das obras de alargamento das ruas principais — articula o centro com a
parte nobre da cidade, os espigões da Vitória e Graça,clxxiv o que faz com que o
bairro do Pelourinho e demais áreas centrais, quer na sua parte alta como na parte
baixa, sejam gradativamente desocupados por seus moradores originais, que
vendiam seus imóveis já em plena obsolescência funcional.
A obsolescência habitacional se caracteriza pela não correspondência entre a necessidade e a resposta oferecida pela moradia. Há a obsolescência física, decorrente de causas naturais (fadiga dos materiais e sinistros, por exemplo), ou de ação humana (depredações, uso intensivo etc.); e a obsolescência funcional, que decorre das transformações porque passa em particular a família, como resultado das contínuas mudanças da sociedade.clxxv
Construídos em sua maioria nos séculos XVIII e XIX para uma
sociedade patrimonial e escravocrata, os sobrados que integram os quarteirões
centrais não mais se adaptam às necessidades da sociedade atual. Muitos padrões
habitacionais aceitos na época e serviços desenvolvidos até então manualmente por
escravos são melhorados e passam a ser desempenhados por instalações elétricas,
mecânicas e hidráulicas.clxxvi
85
Acompanhando a expansão para o sul, é o centro comercial que para
lá se desloca, concorrendo com a habitação, numa perda contínua de moradores em
favor dos estabelecimentos de negócios. A função habitacional no Centro Histórico é
mantida, com os imóveis agora ocupados por extratos sociais mais baixos.
A migração centrífuga das famílias ricas se correlaciona com a
ocupação das casas por famílias de classe média, e depois pelos pobres.
Ainda que se mantenham as funções primitivas — habitação
complementada por serviços e atividades afins — a substituição de um tipo de
população por outro, de nível economicamente distinto, é um fenômeno próprio da
dinâmica intraurbana, o que implica mudanças sociais profundas e, também, físicas.
"Geralmente, ocorre um rebaixamento social quando o centro histórico é
marginalizado com relação a novos centros dinâmicos da cidade".clxxvii
Muitos sobrados sofrem apenas a substituição da população primitiva
por usuários mais pobres. O processo é acompanhado do retalhamento do espaço
arquitetônico, como forma de recompor a renda perdida. Aquele imóvel grande,
anteriormente ocupado por uma só família, para que pudesse proporcionar uma
renda razoável tinha de ser, necessariamente, retalhado, já que a população que a
substituiu era de nível econômico mais baixo. Através de décadas, o "retalhamento
do espaço" nos imóveis do Centro Histórico contribuiu para o seu arruinamento.
Os mais pobres são atraídos pelo baixo valor do aluguel nos imóveis
degradados e pela sua localização privilegiada. Estabelece-se então um círculo
vicioso, onde a deterioração, oriunda dos primeiros anos deste século, conduziu a
um processo irreversível de empobrecimento da área, e o empobrecimento é,
sabidamente, um fator da deterioração.
A região norte do Pelourinho foi ocupada por uma população de
estratos econômicos médios, que se acomodou nas casas térreas e de dois
pavimentos, tipos de construções capazes de abrigar uma família de classe média,
sem a necessidade de despender grandes somas para mantê-las em condições de
habitabilidade.
Por outro lado, ao sul do Convento e Igreja do Carmo, as casas foram
ocupadas em seus pavimentos térreos por um pequeno comércio e artesanato —
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prolongamento das atividades comerciais da Misericórdia, Praça da Sé e Terreiro de
Jesus — enquanto que os pavimentos superiores dos casarões e sobrados
transformaram-se em hospedarias, casas-de-cômodo e outras formas de moradia
coletiva, reunindo os mais diversos tipos de pessoas, pertencentes a estratos
econômicos mais baixos.
No bairro do Maciel (Pelourinho) predominam as construções de mais
de dois pavimentos, o que permite, em número cada vez maior, as moradias
coletivas.clxxviii Nos anos 1920 ali se estabeleceu o grande meretrício, formando um
novo quadro social no Centro Histórico que se degradava. Forçado pela ação
repressiva da polícia de costumes, dentro dos limites desse bairro liberou-se a
prostituição, e as “atividades paralelas e derivadas”clxxix à prostituição
consequentemente ali se estabeleceram (tráfico de drogas, banditismo), o que
terminou por envolver toda a área residencial. Essa tentativa do Estado de
estabelecer uma zona delimitada para o meretrício constituía-se em tentativa de
controle dessa prática, dentro da política higienista de então.clxxx
A degradação social e o tipo de estrutura arquitetônica do casario
colonial, que propiciava o uso como moradia coletiva, são fatores que favoreceram a
concentração da prostituição na área arruinada. O estigma de bairro maldito e a
guetificação do Maciel/Pelourinho — que paradoxalmente concentra o conjunto
patrimonial de maior relevância no Centro Histórico — teve sua origem aí, no
estabelecimento forçado de zona segregada, ambiente de doenças, misérias e
crimes.clxxxi
Centralidade e especialização funcional do centro de Salvador
A história urbana proporcionou a concentração de funções nos distritos
centrais de Salvador, num vigoroso fenômeno de centralidade. Pelos anos de 1940-
1950 a região central tornara-se extremamente densa de serviços. Essas duas
décadas correspondem ao apogeu de centralidade desse tecido urbano.
Como sede exclusiva das atividades de controle econômico-administrativo e dos serviços de apoio à população de
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renda mais alta, esse centro avarento de equipamentos e serviços tornou-se, juntamente com os velhos bairros adjacentes, uma cidade dentro da cidade, uma grande superquadra, residência de comerciantes, banqueiros, proprietários, altos funcionários, doutores, e de uma infinidade de auxiliares destes — burocratas civis, eclesiásticos e militares — e da multidão de artesões e oficiais de construção e reparos, hortaleiros, “ganhadores” — carregadores e serventes — e empregadas domésticas.clxxxii
Da primitiva função de aglomeração administrativa e militar — que
determinou a escolha do sítio, um sítio difícil, sobre a escarpa — foi se
acrescentando as funções portuária (que existiu desde o início da vida urbana),
religiosa, comercial, residencial, industrial, bancária e turística. De meados do
século XVI até a segunda metade do século XX, quase todas as funções praticadas
numa cidade ali estavam postas. Só a partir do final dos anos 1950 é que esse
fenômeno começará a dar sinais de declínio.
Começa-se a se esboçar uma especialização de funções entre a
Cidade Alta e a Cidade Baixa já em meados do século XVII. O centro era então a
sede da administração civil e eclesiástica, enquanto que o bairro comercial
encontrava-se na parte baixa. Até o final do século XIX toda a função comercial ali
se realizava, era o "Comércio", que conserva até hoje aquela denominação.
No início do século XX acentua-se o processo de centralidade,
especialização e tercialização do centro, com as obras de ampliação do porto, a
criação de terminais e o alargamento da Rua Chile e outras que a continuam,
seguindo a tendência das cidades contemporâneas de domínio da produção do
espaço urbano pelo terciário.
Principal porto do Atlântico Sul durante o período Brasil Colônia, a
atividade portuária foi desde então condição necessária à realização de outras
atividades. A sua pujança determinou a formidável obra de aterro e ampliação, com
a ocupação de uma planície conquistada ao mar, onde se construiu uma verdadeira
massa de edifícios e se concentraram as atividades a si vinculadas: o comércio
atacadista, de exportação e importação, atividades bancária e o “comércio de
papéis”, enquanto que o comércio varejista e os serviços se alojaram na Cidade
Alta, numa nova especialização funcional do centro.
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Até os anos 1950, o centro abrigava quase toda a atividade comercial
da cidade. Fora dos distritos centrais, o comércio desenvolvia-se também na
Calçada, em torno da estação ferroviária, servindo a Itapagipe, e na Liberdade, já
então populoso bairro, que abrigava um quinto dos moradores da capital.
A função administrativa, motivo para a fundação da cidade, havia
sofrido sua primeira crise provocada pela transferência da capital do país para o Rio
de Janeiro, em 1763, mantendo, porém, o papel de capital do Estado e centro
regional. Os serviços públicos concentrar-se-ão, preferencialmente, na Cidade Alta,
mais ou menos agrupados no núcleo primitivo, em torno do Palácio dos
Governadores, que conserva o mesmo local da primeira construção,clxxxiii datada de
1549.
As funções industrial e bancária — esta mais recente em relação a
outras — estão diretamente ligadas à função comercial e dela são derivadas. Nos
anos 1950 há uma concentração de estabelecimentos de porte médio (mais de 25 e
menos de 100 operários) nos quarteirões centrais, cuja atividade estimula a
permanência próxima dos quarteirões comerciais e dos mercados. Todos os jornais,
as tipografias e editoras, casas de confecção e de vestuário, fábricas de calçados,
clxvii, FERNANDES, A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.97.clxviii Termo utilizado pelo urbanista francês Pierre Lavedan para descrever esse tipo de intervenção. In PINHEIRO, E. P., 2002, p.224.clxix SIMAS Filho, Américo. Problemática e critérios para delimitação das Áreas de Proteção Histórica. In: Seminário... Salvador, 1977. Anais do 1º Seminário... Salvador. Governo do Estado/Prefeitura Municipal: 1977, p. 202.clxx SANTOS Neto, I. C., 1991, p.18.clxxi FERNANDES A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.96.clxxii BRANDÃO, Maria de Azevedo. Planejar o núcleo histórico. In: Seminário sobre o Centro da Cidade do Salvador, 1977. Anais do 1º Seminário ... Salvador. Governo do Estado/Prefeitura Municipal: 1977, p, 65-66.clxxiii FERNANDES A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.98.clxxiv A "paróquia da Vitória" era então "um dos pontos mais agradáveis, melhor arejados" . In: MATTOSO, 1988, p. 32.clxxv AZEVEDO, Paulo Ormindo de. A recuperação do patrimônio habitacional. In: RUA - Revista de Arquitetura e Urbanismo. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBa. nº 1 ano 1 dez 1988, p. 45.clxxvi Idem, ibídem, p. 45.clxxvii AZEVEDO, Paulo Ormindo, O caso Pelourinho. p. 219-255. In: Produzindo o passado. Estratégias de construção do patrimônio cultural. Augusto, Antonio. (Organizador). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 221.clxxviii ESPINHEIRA, Carlos G. D'Andrea. Comunidade do Maciel. Salvador: SEC/FPACBa, 1971, p. 10.clxxix ESPINHEIRA, C. G. A. 1971, p. 11clxxx Na cidade do Rio de Janeiro ocorre no mesmo período uma política semelhante, quando a polícia de costumes também delimita áreas liberadas para a prostituição.clxxxi BOMFIM, J. D., 1994, p. 31.clxxxii182 BRANDÃO, M. A., 1977, p. 67-8.clxxxiii O governo J. J. Seabra fez reconstruir o Palácio dos Governadores, bombardeado em 1912. In: LEAL, 2002, p. 113.
duas fábricas de refrigerantes e três quartos das padarias da cidade se estabelecem
na região central.
O Liceu de Artes e Ofícios — uma marcenaria-escola — e alguns
outros estabelecimentos industriais de grande porte (mais de 100 operários) dão
especial relevância a essa função.
Em Salvador, sede regional de capital especulativo, a atividade
bancária desenvolveu-se febrilmente, quase toda ela concentrando-se na área do
Comércio, dinâmico centro financeiro.
Essa era a realidade urbana de Salvador quando importantes
mudanças ocorrem no período a seguir — que será tema do próximo capítulo.
NOTAS DO 1º CAPÍTULO