o centro histÓrico de salvador e a sua integraÇÃo sociourbana parte 4

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1º CAPÍTULO 1 SALVADOR DA BAHIA: DE CAPITAL DO ATLÂNTICO SUL A METRÓPOLE REGIONAL Nas sacadas dos sobrados Da velha São Salvador Há lembranças das donzelas Do tempo do imperador Tudo, tudo na Bahia Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito Que nenhuma terra tem

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JUAREZ DUARTE BOMFIM

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Page 1: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

1º CAPÍTULO

1 SALVADOR DA BAHIA: DE CAPITAL DO ATLÂNTICO SUL A

METRÓPOLE REGIONAL

Nas sacadas dos sobrados

Da velha São Salvador

Há lembranças das donzelas

Do tempo do imperador

Tudo, tudo na Bahia

Faz a gente querer bem

A Bahia tem um jeito

Que nenhuma terra tem

Dorival Caymmi, Você já foi à Bahia?

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1 SALVADOR DA BAHIA: DE CAPITAL DO ATLÂNTICO SUL A

METRÓPOLE REGIONAL

FUNDAÇÃO DA CIDADE DO SALVADOR

A história da Cidade do Salvador se confunde com a história do

descobrimentoi do Brasil e os esforços feitos pela Coroa portuguesa para a sua

colonização nos séculos XVI e XVII.

Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, descobriu o Brasil —

talvez por acaso —ii no dia 22 de abril de 1500, e tomou posse da terra, em nome do

rei de Portugal, D. Manuel, o Venturoso. Um ano depois o navegante italiano

Américo Vespucci, a serviço do mesmo rei, descobriu uma vasta baía situada a

12°58’ de latitude sul e 38°31’ de longitude oeste, batizando-a com o nome de Bahia

de Todos os Santos, pois era o dia primeiro de novembro de 1501.iii

Toda esta parte da costa era habitada por índios tupinambás, nação

guerreira, que pelejavam tanto com seus vizinhos do sul, os tupiniquins, como com

os do norte, os caetés. Mais para o interior, os botocudos e os camacans viviam

num estado de seminomadismo. Essas nações indígenas se dedicavam à caça e à

pesca e praticavam a antropofagia.iv

Inicialmente, o descobrimento de terras no novo continente não

provocou maior entusiasmo à Portugal, pois enquanto nas terras americanas sob

domínio espanhol iam sendo encontrados ouro e prata, na porção portuguesa as

possibilidades de exploração eram desconhecidas. O nome “Brasil” começou a

aparecer em 1503, associado à principal riqueza da terra em seus primeiros tempos,

o pau-brasil. Esse era matéria-prima para produção de corantes e a sua madeira, de

grande resistência, era utilizada na construção de móveis e de navios.

O mundo recém-descoberto tinha sido dividido em dois hemisférios

pelo Tratado de Tordesilhas, e as terras descobertas a Oeste da linha pertenceriam

à Espanha; as que se situassem a Leste caberiam a Portugal. A divisão se prestava

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a controvérsias, pois nunca foi possível estabelecer com exatidão por onde passa a

linha de Tordesilhas.

Mas a maior ameaça à posse do Brasil por Portugal não veio dos

espanhóis e sim dos franceses. A França não reconhecia os tratados de partilha do

Novo Mundo,v sustentando o principio de que era possuidor de uma área quem

efetivamente a ocupasse.vi

Os franceses comercializavam o pau-brasil, praticavam a pirataria ao

longo da vasta costa brasileira, demasiado grande para que pudesse ser guarnecida

pelos portugueses e, mais tarde, por duas vezes invadiram e ocuparam partes do

Brasil: Rio de Janeiro (1555-1560) e Maranhão (1612-1615).vii

Sob pressão das demais nações europeias, considerações políticas

levaram Portugal à decisão de que era necessário colonizar a nova terra. Dom João

III decidiu-se pela criação das capitanias hereditárias, doações de terra da Coroa,

pelas quais os donatários se tornavam possuidores, mas não proprietários da terra.

Não podiam vender ou dividir a capitania, cabendo ao rei o direito de modificá-la ou

mesmo extingui-la. Porém, a posse dava aos donatários extensos poderes tanto na

esfera econômica (arrecadação de tributos) como na esfera administrativa

(monopólio da justiça).viii Os donatários tinham inclusive a atribuição de doar

sesmarias, o que deu origem à formação de vastos latifúndios, com reflexos na

estrutura agrária brasileira até os dias de hoje.

Com exceção de duas capitanias, São Vicente (ao Sul) e Pernambuco

(Nordeste) as demais fracassaram, por diversos fatores como falta de recursos,

desentendimentos internos, inexperiência, conflitos com os índios ix e foram

paulatinamente sendo retomadas pela Coroa. É quando o rei de Portugal decide

estabelecer um governo geral no Brasil, para uma melhor organização administrativa

e a busca de êxitos econômicos, isto é, encontrar uma forma de utilização

econômica que não fosse a exploração de ouro e prata, como na América

espanhola.x

A instituição de um governo geral representou um esforço de

centralização administrativa, porém encontrou dificuldades devido à grande

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abrangência do empreendimento, como a distância e precariedade da ligação entre

as capitanias, limitando o raio de influência dos governadores.xi

Do ponto de vista econômico, os recursos de que dispunha Portugal

para investir no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido suficientes para

defender as novas terras por muito tempo. O comércio de peles e madeira com os

indígenas, que se desenvolve durante o século XVI em toda a costa oriental do

continente, é de reduzido alcance e não exige mais do que o estabelecimento de

precárias feitorias.xii Como foi dito, fundamental era encontrar uma forma de

utilização das terras americanas que não fosse a “fácil extração de metais

preciosos”.xiii

Tomé de Sousa, primeiro governador geral, chegou à Bahia com a

incumbência de fundar a Cidade do Salvador e organizar administrativamente a

Colônia. Logo, ao redor da capital foram concedidas sesmarias para o plantio de

algodão e cana-de-açúcar.xiv

Das medidas políticas que então foram tomadas, resultou o início da

exploração agrícola das terras brasileiras que, com um produto de larga aceitação

no mercado europeu — o açúcar — passa a constituir-se parte integrante da

economia reprodutiva europeia, e a economia colonial brasileira é organizada como

a primeira grande empresa colonial agrícola na pós-Idade Média e início da era do

capitalismo mercantil.xv

Estava gerado o sentido da colonização do Brasil — produzir

mercadorias “tropicais” para o comércio europeu, estruturado em três grandes

pilares: grande propriedade, monocultura e trabalho escravo.xvi

Já no início do século XVII o Brasil torna-se o principal fornecedor de

açúcar do mundo. Quando a atividade exportadora começa a enfraquecer no final

desse século, devido à concorrência do açúcar antilhano, algumas terras nas

proximidades de Salvador (Recôncavo baiano) passaram a ser utilizadas para o

plantio de fumo,xvii e outras terras foram redirecionadas para a agricultura de

subsistência ou para o cultivo de alimentos para a população costeira em expansão.

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Vale destacar que o crescimento e a importância da Cidade do

Salvador ocorre não apenas no âmbito nacional, mas também, e principalmente — e

isso é demonstrado ao longo de quatro séculos — na esfera regional. Desde a sua

fundação mantém intensas conexões com o seu entorno, conquistado militarmente

aos índios tupinambás,xviii que foram mortos ou escravizados, e fortes vínculos

econômicos são estabelecidos com a economia açucareira do Recôncavo.

Mais tarde, no século XIX, na Bahia se desenvolve o plantio de cacau

e no Nordeste a produção de algodão que iria provocar breves ciclos de

exportação.xix Em síntese, “não há na realidade modificações substanciais do

sistema colonial nos três primeiros séculos de nossa história”.xx

Os vínculos com o Recôncavo só serão secundarizados com as

redefinições de funções e novas espacializações, com o surgimento da Região

Metropolitana de Salvador, na industrialização tardia baiana (segunda metade do

século XX), desenvolvendo-se assim o fenômeno da metropolização.

Este é o pano de fundo para o desenvolvimento urbano da cidade de

Salvador, principal porto e capital administrativa, militar e econômica da colônia

portuguesa na América.

ASPECTOS FÍSICOS E NATURAIS

A Cidade do Salvador está situada a 13º de latitude sul e 38º30’ de

longitude oeste, forma parte da microrregião do Recôncavo e se localiza na região

costeira setentrional do Estado da Bahia. É a capital do Estado e a terceira mais

populosa cidade do Brasilxxi, com população residente de 2.892.625 habitantesxxii e

superfície territorial de 313 km². Exceto no limite norte, a cidade está toda cercada

pelo mar, na parte oriental pelo Oceano Atlântico e na ocidental pela baía de Todos

os Santos. Esta baía se estende por uma superfície de 1.052 km²xxiii e 300 km de

costa.xxiv

Os limites do atual município de Salvador não mudaram muito desde a

sua delimitação pelo antigo “Regimento” da fundação da cidade (1549),xxv e

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demonstram toda a sua grandeza, ao incluir nos seus domínios um verdadeiro “mar

municipal”.

Estes limites partem da praia de Ipitanga (limite com o município de

Lauro de Freitas) aberta no Atlântico, ao norte do Aeroporto Internacional para

encontrar, pelo norte do bairro de Brotas, o fundo da baía de Aratu. Os limites

acompanham a margem norte do canal de Cotegipe, deixando à cidade todas as

praias até a ponta do Passé. Neste ponto os limites municipais atravessam o mar

em linha reta de NE a SO até 2 km no mar ao largo da Ilha de Itaparica para

reencontrar a terra firme na ponta de Santo Antônio da Barra. A extensão do

município de Salvador abraça, ao norte, a Ilha de Maré e suas ilhotas. Esta extensão

é coberta por vastas superfícies de mar interno, pois na sua maior largura há quase

15 km do oceano entre o sítio de Plataforma e os limites mais ocidentais do

município, ao largo do Bom Despacho de Itaparica. Este mar municipal é um

verdadeiro canal, com forma de um tridente, do qual emergem as cúpulas da Ilha de

Maré e as penínsulas de Aratu e de Matoim. Os fundos da baía são formados por

rochas sedimentares; as rochas cristalinas encontram-se somente no continente e

em mar aberto.xxvi

O local originalmente escolhido para a fundação da cidade, e que seria

a capital da colônia portuguesa na América (século XVI), foi uma península cujo

vértice aponta para o sul, e que tem em sua costa oeste uma imensa falha geológica

no sentido sudoeste-nordeste, chamada Falha de Salvador.xxvii

A cidade apresenta uma topografia bastante acidentada, pois, além da

falha que a divide em Cidade Alta e Cidade Baixa, dispõe de muitos morros e vales.

A Cidade Alta está a mais de 60 metros acima do nível do mar.xxviii Os solos de

Salvador são principalmente argilosos, porém sólidos, e quando se apresentam

dispostos horizontalmente dispõem de certa estabilidade. Entretanto, quando estão

situados em encostas apresentam deslizamentos constantes que implicam em riscos

para a população, principalmente nos períodos de chuvas abundantes, entre os

meses de abril e agosto. As precipitações anuais se situam em torno de 1.500 mm.

A cidade conta com um clima tropical suavizado pelos ventos alísios dominantes de

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leste, e a temperatura média é de 25,5ºC, variando entre máxima de 32ºC e mínima

de 19ºC.xxix

A exuberante vegetação original apresenta hoje muita devastação.

Sendo um sítio rico em águas, os rios das terras sedimentárias a oeste, como os rios

Cobre, Cotejipe e Santa Maria, são curtos e correm para a baía de Todos os Santos.

Os rios que correm sobre a cidade alta, como os rios Joanes, Jacaranga, Itaboatã

apresentam vales estreitos e deságuam diretamente no Oceanoxxx (Figura 2).

A evolução urbana ocorrida sobre tal panorama físico apresenta uma

cidade de paisagens diversas, com lugares muito aprazíveis e uma verdadeira

repulsa à monotonia dos ambientes.

Figura 2 — Bacias Hidrográficas de Salvador.Fonte: Elaboração própria. Base Sicar-Conder, 1992 (Sistema Cartográfico).

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SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL E A SUA PERIODIZAÇÃO

São muitas as possíveis periodizações históricas: pode-se atrelá-las

aos mais significativos eventos políticos (Independência; fim da escravatura;

proclamação da República...); vinculá-las aos ciclos econômicos (ciclos do açúcar,

do ouro, do café...); ou simplesmente a circunstâncias locais.

O que não se deve perder de vista é a articulação de uma macro-

periodização com o objetivo proposto de construção da história da cidade e do

urbano.

Para efeito de análise, dividimos a evolução socioespacial de Salvador

em cinco períodos históricos, e a partir daí buscar fazer a “ponte” com o urbano.

Divisão arbitrária — como toda divisão — e não rígida, devido à total impossibilidade

disso, mas que procura seguir uma lógica de associar eventos sociais e econômicos

com o desenvolvimento da cidade.

O primeiro período começa no ano de fundação da Cidade do Salvador

(1549) e se encerra em 1650; o segundo período inicia-se em 1650 e termina em

1763; o terceiro período vai de 1763 até 1850; o quarto período é o de 1850 a 1950;

o quinto e último período começa em 1950 e vem até os nossos dias (2009).

Este primeiro período (1549-1650) tem como acontecimentos mais

significativos a fundação de Salvador e a sua consolidação como capital da Colônia

portuguesa na América, destacando a sua função portuária, rota obrigatória dos

navios que se dirigiam para a África, Índia e Extremo-Oriente; uma crise sucessória

faz com que a Coroa portuguesa passe ao domínio espanhol (1580-1640),

provocando a invasão holandesa na Bahia (1624), de cujo domínio a cidade foi

retomada em 1625 por uma esquadra luso-espanhola. Porém, a recuperação da

cidade não acabou com os confrontos, pois, estabelecidos nas ilhas, os holandeses

realizaram ataques a Salvador e ao Recôncavo até 1627. Em 1640, com a

restauração da monarquia portuguesa, a Bahia passou para um status político mais

elevado, com o primeiro vice-rei à frente da administração da Colônia.xxxi

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Page 9: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Construída como cidadela, tipo acrópole, cercada de muralhas de

adobe, com apenas duas portas, a cidade surge com um traçado aproximadamente

ortogonal, e o seu crescimento se deu de forma linear. Construções importantes

situaram-se intramuros, como o Palácio dos Governadores, a Casa da Câmara, a

Igreja da Ajuda — e os conventos localizaram-se fora dos muros. Dividida em

Cidade Alta e Cidade Baixa, a parte baixa era então bastante estreita, composta de

apenas uma longa rua.

A população estimada em 1650 é de 10.000 habitantes, não incluída a

população escrava.

O segundo período (1650-1763) é considerado pelos historiadores

urbanos como de “idade de ouro” de Salvador, isto é, uma era de fausto religioso e

riqueza urbana, e é uma das mais importantes para a cidade, quando foram

implantados os principais edifícios do conjunto arquitetônico e urbanístico de caráter

monumental. A economia açucareira estava no seu apogeu, com a construção de

grandes e modernos engenhos no Recôncavo e a boa cotação do produto brasileiro

no mercado europeu.

No final do século XVII a atividade exportadora começou a

enfraquecer, devido à concorrência do açúcar das Antilhas.

A descoberta de ouro em Minas Gerais (1698) mudou então o centro

de atividade econômica do Brasil para o Centro-Sul, e o incremento da mineração

fez com que o Rio de Janeiro despontasse como um porto importante, atraindo

atividades comerciais e financeiras para aquela urbe. Em 1763, Salvador perde a

condição de capital da colônia portuguesa na América, que é transferida para o Rio

de Janeiro, elevado à condição de novo centro administrativo do Brasil.

A transferência da capital do governo do Brasil para o Rio de Janeiro

obviamente provocou impactos sobre a cidade. Porém, nessa época, Salvador já se

consolidara como uma grande praça comercial, exportadora de açúcar, algodão e

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tabaco, e importadora de produtos manufaturados; tinha se convertido num

distribuidor de mercadorias pelo interior da província e numa grande área de

influência, chegando a pontos afastados como Piauí, Pernambuco, Sergipe, Minas

Gerais e São Paulo, no Brasil, e também Uruguai e Argentina. Com uma atividade

econômica tão estruturada, a agora capital da Bahia não sente tanto a perda da

função administrativa nacional.

Salvador se consolida como metrópole regional, pois nela também se

concentram e são realizadas as transações financeiras e comerciais necessárias à

expansão agrícola e à exportação dos produtos, usufruindo assim “de todas as

vantagens financeiras, econômicas, políticas e sociais decorrentes desta

situação”.xxxii

O evento mais importante do terceiro período (1763-1850) foi a

invasão de Lisboa pelas tropas napoleônicas, o que provocou a fuga da família real

portuguesa para o Brasil e a instalação do governo de Portugal no Rio de Janeiro.

Parte da esquadra que trazia a Corte portuguesa ancorou em Salvador

no dia 22 de janeiro de 1808, e aqui, por pressão inglesa, o príncipe regente D. João

assinou a Carta Régia que abria os portos brasileiros às “nações amigas”.

Com o fim das restrições mercantilistas, encerram-se trezentos anos

de exclusivismo colonial, o que favorece o comércio e as atividades econômicas de

exportação e importação. Os efeitos dessas mudanças sobre a economia baiana e

as atividades comerciais e portuárias serão intensos, gerando um grande fluxo de

riquezas.

Em 1822 o Brasil se torna independente de Portugal, e a Bahia pega

em armas contra as tropas portuguesas aqui estabelecidas, travando a sua guerra

de independência, cuja libertação do jugo português só ocorrerá no 2 de julho de

1823.

O ano de 1850, escolhido como fim deste período, simboliza - com o

fim definitivo do tráfico de escravos — a transição do mundo patriarcal “fechado e

ensimesmado”xxxiii dos senhores de engenho de açúcar para um tempo mais aberto e

liberal a vir em seguida, com novos agentes sociais e econômicos estabelecendo os

alicerces da modernização brasileira.xxxiv

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Page 11: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

O quarto período analisado (1850-1950) corresponde a importantes

eventos ocorridos a partir do fim do tráfico de escravos (1850). Salvador começa a

perder sua importância marítima para outros portos brasileiros, e a inauguração do

Canal de Suez (1869) diminui a importância da navegação no Atlântico Sul, afetando

seu porto e comércio.

Grave crise econômica ocorre em 1873 e atingiu fortemente a

economia baiana baseada no trabalho escravo. A queda da produção de açúcar,

fumo, café e algodão geraram um grande déficit na balança comercial.

A partir de 1860 dá-se início ao ciclo do cacau, no sul do Estado, que

se torna o principal produto de exportação da Bahia, porém essa cultura não se

constitui em fator de acumulação de capitais em favor da cidade do Salvador.

Na primeira metade do século XX, principia-se um processo de

industrialização, e a cidade converte-se em um centro industrial têxtil.

Entretanto, o crescimento acelerado da industrialização no Sudeste do

país, sem que Salvador possa competir no processo de substituição de importações

que se realiza, provoca a estagnação do setor.

A intensificação do processo de industrialização por substituição de

importações (ISI), concentrada no Sudeste brasileiro a partir de 1920, acarretou,

para a Bahia e para Salvador, um período relativamente prolongado de “involução

industrial”: o setor industrial local tornou-se incapaz de competir com o sistema

industrial que se desenvolvia no Rio de Janeiro e São Paulo.

Na primeira metade do século XX, Salvador vê reduzida sua área de

influência sobre os Estados vizinhos e também sobre uma parte de seu vasto

território, cujas cidades mais afastadas passam a ser polarizadas por outros centros.

Mas, apesar disso, consolidou-se, nesse período, como importante

polo comercial, administrativo e de prestação de serviços, e essa especialização

funcional foi favorecida por sua posição geográfica privilegiada, servindo ao interior

densamente povoado. Todavia, este setor terciário crescia em termos intensivos em

trabalho e com baixos níveis de produtividade, por causa da abundância relativa de

mão-de-obra e a escassez de capitais de aplicação local.

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A população da capital baiana cresceu, a taxas bastante moderadas,

entre 1920 e 1940, acelerando-se entre 1940 e 1950. A cidade chega aos 3 mil

hectares de área urbanizada em 1940.xxxv

O novo “padrão de integração de Salvador na divisão interregional do

trabalho”,xxxvi ao dificultar seu desenvolvimento industrial, notadamente entre 1920 e

1950, ocasionou, simultaneamente, crescimento populacional e níveis crônicos de

pobreza.

No ano de 1950, Salvador era um centro urbano de relativa magnitude

populacional — 424.142 habitantes — permanecendo, contudo, estagnado no que

diz respeito à atividade industrial.

O quinto período estudado (a partir de 1950) corresponde à

retomada do desenvolvimento econômico regional com a extensão do movimento

industrial brasileiro para o Nordeste. A descoberta de petróleo na bacia do

Recôncavo baiano; a instalação da refinaria de Mataripe (1950); a criação da

empresa estatal Petrobras (Petróleo Brasileiro S.A., de 1953); a instituição da

Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, em 1959) e políticas

de incentivos fiscais vão representar um impulso desenvolvimentista significativo

para o Estado da Bahia.

A continuidade desse processo de industrialização tardia ocorre com a

criação do Centro Industrial de Aratu (1967), do Complexo Petroquímico de

Camaçari (a partir de 1972) e do Complexo Ford (2001) na Região Metropolitana de

Salvador.

A capital da Bahia se torna metrópole regional e cidade global, e se

qualifica tanto para sediar os escritórios das grandes indústrias que aí se instalam

como também se torna “cidade dormitório” para os dirigentes e empregados dessas

firmas, local de moradia e consumo, devido à falta de condições apropriadas nos

pequenos centros urbanos do Recôncavo.

Período assaz complexo, de crescimento acelerado dessa urbe, que

atinge a marca de 2.534.314 habitantes no ano de 2002, e se torna a terceira mais

populosa cidade brasileira.

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E assim, após esse percorrido histórico, chegamos a Salvador atual —

Salvador e o seu Centro Histórico — estabelecendo uma identificação da totalidade

(que é a cidade) com uma de suas partes (o Centro Histórico), onde o todo e a parte

atuam segundo um movimento combinado, conforme uma lei própria, que rege o

organismo urbano.

SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1549-1650)

É comum dizer-se que o Brasil nasce como empresaxxxvii e nele o

Estado surgiu antes da sociedade —xxxviii e a cidade chegou antes do campo.

O certo é que quando Tomé de Sousa, primeiro governador geral do

Brasil, aqui desembarcou em 1549 para fundar a Cidade do Salvador,xxxix capital do

governo geral do Brasil, não trouxe de Portugal somente o objetivo de criar uma

cidade, mas também seu plano e estatuto.

Ordenou o rei mandar nas “ditas terras fazer uma fortaleza e povoação

grande e forte” em um lugar conveniente para “daí se dar favor e ajuda as outras

povoações e se ministrar justiça e prover nas coisas que competirem a meu serviço

e aos negócios de minha fazenda e a bem das partes”.xl

Por ser el-rei informado que “a Bahia de Todos os Santos é o lugar

mais conveniente da costa do Brasil para se poder fazer a dita povoação e assento”,

assim como pela disposição do porto e rios que nela entram como pela “bondade,

abastança e saúde da terra” que na “dita Bahia se faça a dita povoação e assento”.xli

O nome da cidade-fortaleza foi logo escolhido: Salvador. O nome é

adjetivo, mas serve também por alcunha para designar Jesus Cristo. “A palavra se

torna substantivo, mas não perde a ideia de qualificação. Ela sugere certo tom de

catequese e conversão de almas ao credo católico”,xlii indica a ideologia que motivou

a empreitada da nova capital, pois as igrejas, baluartes e portas da cidadela são

batizadas com os nome de Nossa Senhora e de santos guerreiros e missionários

(São Tiago, São Jorge e São Tomé), e o simbolismo religioso epitético sugere

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implicitamente a imposição e difusão da ordem católica, “então fragilizada pela

expansão das seitas luteranas e calvinistas”.xliii

A instituição do Governo Geral no Brasil e a fundação da Cidade do

Salvador, como sua primeira capital, são consequência do processo de expansão da

sociedade europeia, levado a efeito pelo capitalismo mercantil, sendo a cultura

renascentista, então em desenvolvimento, seu suporte.

No Novo Mundo — português ou espanhol —, por intermédio de

políticas em muitos aspectos semelhantes, há uma projeção da cultura, instituições

e costumes ibéricos.xliv Portugal, por exemplo, buscou reproduzir esse modelo nos

trópicos, e no caso da Cidade do Salvador, esta é concebida para ser uma Nova

Lisboa.xlv

O “Governador das terras do Brasil e Capitão da fortaleza e terras” já

trazia também em suas naus uma completa organização judiciária, fazendária,

administrativa e militar.xlvi

Era um numeroso grupo de altos e pequenos funcionários, nomeados

pelo rei de Portugal, que comporiam a administração: ouvidor-geral, provedor-mor

da Fazenda, capitão-mor da costa, escrivão e tesoureiro das rendas, contador,

escrivão da ouvidoria, feitores da armada e da cidade, médico, porteiro da alfândega

e cerca de trezentos soldados e mais uns seiscentos operários, especialmente de

construção, entre os quais uma porção de degredados. "A cidade surgia como

nenhuma outra em seu tempo, com considerável população de 1.000 pessoas”. No

eclesiástico, “ainda subordinado ao Bispo de Funchal era paróquia e tinha como

pastor Manuel Lourenço".xlvii

Depois do fracasso quase geral da experiência de colonização através

do sistema de Capitanias Hereditárias,xlviii o rei de Portugal decidiu juntá-las e formar

um governo único, com sede em uma cidade que deveria situar-se no meio do

extenso litoral, para poder controlá-lo. O sítio escolhido deveria ter também

determinadas características topográficas que lhe deixassem bem protegido de

possíveis ataques dos índios, por terra, ou por mar, de navegantes estrangeiros.

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Portugal busca a solução tipo acrópole para a sua capital colonial,

seguindo a norma antiga de localização das cidades nas margens do mar e dos rios,

em pontos elevados com um porto. Daí que rapidamente se elegeu o lugar mais

adequado para o povoado grande e forte: o cume de uma colina, que caía em forte

declive até a extremidade das margens de uma baía abrigada, sobre um dos lados

que separam a baía de Todos os Santos e o Oceano Atlântico.xlix

O ponto mais apropriado para este tipo de assentamento urbano foi o

trecho do promontório compreendido entre as posteriormente denominadas

gargantas da Barroquinha e do Taboão, por apresentar as condições favoráveis para

o que se pretendia: situado no cimo de uma escarpa, com altura média da ordem de

64 metros sobre o mar, de fácil defesa para as táticas de guerra então vigentes,

segundo os quatro pontos cardeais.

A oeste está a escarpa, a rocha, o paredão natural de altura

considerável que, bem defendida, era praticamente inexpugnável. Ao nível da baía,

uma estreita faixa de praia; a leste, o vale do rio das Tripas, que se achava numa

cota mais baixa em relação à cumeada, e por isso mesmo numa posição dominante

e defensável, caso ocorresse um ataque por estas bandas; ao norte e ao sul, as

duas gargantas (Taboão e Barroquinha), acidentes topográficos clássicos e eficazes

para a localização de obras defensivas. De fato, nesses pontos foram colocadas as

portas da cidade que, juntamente com o sistema de baluartes ao longo da paliçada

defensiva na parte alta e embaixo na praia, dariam condições de relativa segurança

para os primeiros habitantes da capital da América portuguesa.l

A colina serviu a Tomé de Sousa para construir, em 12 meses, sua

cidadela de casas de adobe, cobertas de palha, que ele cercou de muralhas também

de adobe, e que tinha apenas duas portas: Carmo e Santa Luzia. No exterior das

muralhas foram construídos os conventos, aproveitando-se das vastas concessões

que o governo lhes havia feito. Ao norte se localizou o convento das Carmelitas

(1585); ao sul, dos Beneditinos (1584); a leste, dos Franciscanos (1587). Por essa

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época, com seus muros espessos, eram verdadeiras fortificações que rodeavam a

cidade, porque a oeste estão a escarpa e a baía.

O sítio escolhido, no Nordeste do Brasil, é estrategicamente

equidistante do Norte e do Sul do litoral, o que permite acessar rapidamente a

qualquer ponto da costa. Constitui-se excelente porto natural, parada obrigatória das

embarcações que chegam da Metrópole (Portugal) em direção a outros pontos do

Brasil ou de passagem a outras colônias portuguesas da África e da Ásia.li

Capital do país de 1549 até 1763, Salvador teve como seu primeiro

núcleo de ocupação a Praça Central, hoje chamada Praça Municipal, no primeiro

platô da parte alta (Cidade Alta) e começou com a forma física de um traçado em

quadrícula de ruas aproximadamente ortogonais,lii adaptadas a um relevo

acidentado e com quadras de casas postas lado a lado.

Sabe-se que o urbanismo português, ao contrário do espanhol, não

tinha a rigidez da Plaza Mayor, preferindo as praças múltiplas,liii e Salvador é um

exemplo disso. Enquanto o centro administrativo é instalado na primeira praça, o

centro cultural situa-se na segunda praça — o Terreiro de Jesus — onde os jesuítas

estabelecem o seu Colégio e a ordem dos franciscanos o seu mosteiro. A Igreja da

Sé, sede do Bispado, fica de permeio entre essas duas praças.

A forma geométrica regular adotada para as cidades — tornada

conhecida mediante a contribuição dos tratadistas italianos a partir do século XV — liv

torna-se prática comum nas cidades do Novo Mundo, mais ainda do que na velha

Europa. E Salvador nasce com esse signo.

Nesse núcleo original se instalaram o centro administrativo, militar,

político e religioso, assim como a maioria das residências. Os prédios principais que

abrigam essas funções são o palácio do governador e a Casa da Câmara (Figura 3),

em torno da primeira praça e voltada para a baía; e a capela de N. Sra. da Ajuda,

junto do Palácio do Bispo, que passa a ser a primeira Sé do Brasil, quando Salvador

é elevada à condição de sede do Bispado em 1551, por Bula Papal.

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Page 17: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Figura 3 — Câmara Municipal de Salvador. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.

A cidade era murada, contava com duas portas, e dispunha de três

baluartes em direção à baía e de outros três voltados para o interior (Figura 4). Era

protegida a oeste, pela escarpa, e ao norte, leste e sul, pela “ribanceira”, lv isto é, as

vertentes do vale do rio das Tripas.

Como a oeste da Cidade Alta estão a escarpa e o mar, a parte baixa

(Cidade Baixa), onde se localiza o porto, então uma franja de praia bastante estreita,

era composta de apenas uma longa rua, na qual estavam localizados a Casa de

Fazenda e Alfândega, o Armazém, a Casa da Pólvora e a Ferraria,lvi

estabelecimentos relacionados à função portuária.

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Page 18: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

aFigura 4 — Salvador de Tomé de Sousa

Fonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.

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Page 19: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Esta forma especifica do sítio de Salvador permite um desenvolvimento

futuro concentrado no centro, posto que a falha geológica divide a cidade em duas

partes complementares e articuladas. Dita divisão funcional é tão eficiente que se

mantém até os dias de hoje, e conserva sua trama urbana muito pouco modificada.

Ademais, este é um modelo urbano muito familiar aos portugueses,

pois as cidades de Lisboa e Porto também são assim. Porém há algumas

diferenças, devido às adaptações ao clima (ausência de chaminés) e ao uso de

cores vivaslvii nas fachadas.

Quanto ao traçado que se encontra fora do núcleo, resultante da

expansão da função residencial, este é obrigado a abandonar a regularidade

pretendida, por força da topografia acidentada e das formas de ocupação, áreas de

sesmarias onde se construíam casas de campo, alcançadas e envolvidas pelo

crescimento do núcleo urbano.

Esse núcleo inicial (Cidade Alta e Cidade Baixa) se estendeu, depois,

seguindo as linhas das cumeadas, e ocupando uma estreita faixa entre a escarpa e

o mar.

As mudanças que acontecem desde então correspondem a

transformações do tipo de cidade-fortaleza portuguesa criada com um plano e

estatuto preestabelecido e que logo a seguir passa a ocupar um lugar, na divisão

internacional do trabalho, de cidade portuária, entreposto comercial voltado para a

exportação-importação. Sendo assim, Salvador incorpora outra configuração que é a

da cidade que cresce pouco a pouco, ao acaso e onde a linearidade está presente.

Em 1551 a ocupação espacial da cidade era de aproximadamente

vinte hectares, que correspondem a duzentos mil metros quadrados. O crescimento

espacial e populacional de Salvador foi se dando de maneira natural e lenta, em

torno do núcleo original (Centro Histórico), alongando-se a área urbana sempre

paralela e próxima às praias, adaptando-se à topografia difícil dos terrenos, tanto em

direção ao norte para os lados da península de Itapagipe, quanto para o sul em

direção ao porto da Barra, sem penetrar muito na direção leste, nos terrenos do

interior do município.lviii

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Page 20: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Até o último quartel do século XVI a cidade não cresceu muito, “porque

a maior parte da gente vive fora em seus engenhos e fazendas”, segundo explicação

do padre Anchieta.lix Porém, quando em 1558 Mem de Sá assumiu o governo geral,

já encontrou a cidade mais larga que a antiga fortaleza.lx

Nesse período, que caracterizamos como de “implantação da capital

colonial” (1549-1650) a expansão se concentrou nas primeiras colinas seguindo

dois eixos (linhas) nas direções norte e sul, a partir da fundação de conventos e

fortificações.

Os muros e portas originais deixarem de existir aproximadamente em

1560. Entre 1560 e 1580 a cidade cresceu em relativa paz, e surgiram pelo menos

dois conjuntos de quarteirões no atual Pelourinho e nos retângulos da Rua dos

Capitães (atual rua Rui Barbosa). Em 1591 os muros e portas começaram a ser

reconstruídos, e a expansão da cidade ao norte e ao sul obrigava o governo a

redefinir os limites amuralhados.

No eixo sul, a cidade cresceu, inicialmente, em direção ao Mosteiro de

São Bento e no final do período alcançava a área do Forte de São Pedro. No eixo

norte a cidade cresceu primeiro em direção às Portas do Carmo e, em seguida, ao

Convento do Carmo, alcançando as trincheiras de Santo Antônio e Barbalho. Na

direção leste havia o obstáculo do rio das Tripas para o crescimento da cidade. lxi

Entretanto, em consequência das contingências do sítio e da história urbana, lxii com

a ocupação a seguir da segunda linha de cumeada, a cidade passou a ter uma

forma radioconcêntrica.lxiii

Na passagem do século XVI ao XVII, Gabriel Soares de Sousa

descreve a situação da Cidade do Salvador cujo crescimento foi no sentido norte,

quando começou a ocupação do bairro da Sé, a partir da Misericórdia, Terreiro e

adjacências e que, nas duas últimas décadas da centúria, tendo como núcleos de

povoamento os conventos de São Bento e do Carmo, apareceram as primeiras

casas nas suas imediações, constituindo-se os bairros de São Bento e Carmo, então

extramuros (Figura 5). Aliás, já por esse tempo, as muralhas deixavam de existir,

devido à sua fragilidade e perda da função defensiva original. A cidade passa a

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Page 21: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

contar com um novo sistema de fortificações, devido ao acosso e invasões

holandesas, durante o período que o reino de Portugal, em crise sucessória, ficou

sob domínio espanhol (1580-1640).

A ocupação do solo em Salvador jamais apresentou a forma de

concentração contínua e compacta. Montada sobre geomorfologia acidentada, a

cidade se espalhava sobre as cumeadas, desprezando os vales. Seu crescimento se

fez em forma de leque, com orlas para o Oceano Atlântico e para a Baía de Todos

os Santos, mantendo através desta fortes vínculos com o Recôncavo.lxiv

O bairro aristocrático se achava ao redor da área central. Já na metade

do século XVII, o entorno desse centro estava cercado de um verdadeiro cinturão de

boas casas de campo que pertenciam às pessoas endinheiradas, enquanto que os

pobres e comerciantes viviam na Praia (a Cidade Baixa).

Quanto à periferia da cidade original, o seu entorno estava ocupado

com roças de mantimentos, frutas e hortaliças pertencentes a casais portugueses, lxv

contribuindo assim para o abastecimento da população.

Quanto à conquista da segunda cumeada, essa se dá durante o

período em que Salvador é ocupada pelos holandeses e estes, ao represarem as

águas do riacho que nasciam no terreno dos beneditinos (rio das Tripas),

construíram duas represas, a fim de formar um fosso profundo em torno da parte

nascente da cidade.

A construção dessa obra hidráulica, campo de conhecimento em que

eram especialistas os flamengos, muito contribuiu para a expansão da cidade no

sentido leste, pois, em consequência da dificuldade de sua transposição, as forças

organizadas — a partir de Madri e Lisboa — para a retomada da cidade, no período

do cerco terrestre que antecedeu ao ataque final e definitivo, tiveram de se

estabelecer, construindo inclusive quartéis, nos sítios da Palma, Santana, Desterro e

Saúde, que eram pontos a cavaleiro, iniciando assim a conquista dessa segunda

linha de cumeada no desenvolvimento da Cidade do Salvador,lxvi e tais sítios se

transformaram a posteriori em importantes bairros centrais. Dessa maneira Salvador

vai adquirindo o formato radioconcêntrico.

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Page 22: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

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Page 23: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Figura 5 — Salvador no fim do século XVIFonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.

A Cidade do Salvador apresentava, em 1650, uma área de 140

hectareslxvii (Figura 6) e tinha a seguinte configuração: na Cidade Alta, tanto no

sentido sul (São Bento) e norte (Carmo), como a leste (o dique e os bairros da

segunda cumeada) e a oeste (a escarpa abrupta da falha), o recinto urbanizado

existente conservava o mesmo traçado de suas ruas e praças tal como se

encontravam em 1600, que com pequenas alterações se conserva até os dias de

hoje. Aí se situa o centro político-administrativo e cultural-religioso, com as

edificações urbanas mais significativas.

Na Cidade Baixa está o bairro da Praia, confinado a uma estreita faixa

de terra próxima à montanha, com uma única e comprida rua — e alguns becos e

travessas — onde cumpria a primordial função portuária, indispensável seja na

comunicação com a Metrópole e seu Império na África e na Ásia, como exportador

de produtos locais e importador do produzido no exterior, seja nas suas relações

com as margens da Baía de Todos os Santos e toda a região do Recôncavo, pois

quase todas as ligações eram feitas por via aquática, donde lhe vinha grande parte

dos produtos de sua subsistência e de exportação, e para onde iam os importados,

sendo Salvador o porto onde se centralizavam essa importantes funções.lxviii

A população estimada da cidade é então de 10.000 habitantes, lxix mas

há uma grande imprecisão porque nesse cômputo não se incluía a população

escrava.

Em 1650 a cidade do Salvador já se apresentava como uma urbe

ibero-americana consolidada, o que coincide com a consolidação da colonização

portuguesa na América, nesse mesmo século.

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Figura 6 — Evolução física de Salvador 1580-1650.Fonte: UNIVERSIDADE Federal da Bahia. Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Fundação Gregório de Mattos. Evolução Física de Salvador. Salvador: Pallotti, 1998.

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Page 25: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1650-1763)

Esse período é considerado como de “idade de ouro” de Salvador, uma

era de esplendor religioso e riqueza urbana, capitaneada pelo apogeu da economia

açucareira, com a construção dos “magníficos engenhos do Recôncavo”lxx e o bom

preço do açúcar brasileiro no mercado europeu.

O setor de exportação de açúcar foi lucrativo para vários agentes

econômicos: senhores de engenho; agentes envolvidos na comercialização,

financiamento, expedição e comércio de escravos; e importadores de manufaturas e

alimentos estrangeiros.lxxi

Todavia, são os proprietários de engenhos de açúcar aqueles que

formam a classe dominante na Bahia. Sua riqueza e seu poder se baseiam no

regime das grandes propriedades, plantadas de cana-de-açúcar em vastos campos

desbravados na floresta primitiva,lxxii na úmida zona litorânea nordestina.

Esse é um dos períodos mais importantes da Cidade do Salvador,

durante o qual foram implantados os principais edifícios do conjunto arquitetônico e

urbanístico de caráter monumental,lxxiii principalmente na parte central da cidade.

Os Beneditinos haviam dado início à construção do seu atual mosteiro,

em 1648.lxxiv O Convento dos Carmelitas descalços da Reforma de Santa Teresa

começou a ser construído em 1665, no bairro do Sodré. lxxv No Terreiro de Jesus, a

igreja dos jesuítas (atual Catedral Basílica) foi construída entre 1657 e 1672.

Elevada à condição de Arcebispado em 1676,lxxvi o Palácio Arquiepiscopal foi iniciado

em 1707; a Igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos teve sua construção

autorizada em 1708.

Na área hoje conhecida como Pelourinho, o imponente Solar do Ferrão

foi concluído entre 1690 e 1701, pelo comerciante José Sotero Maciel de Sá Barreto.

A Igreja de São Miguel foi concluída em 1732.lxxvii

Joias da arquitetura barroca baiana, a Igreja da Ordem Terceira de São

Francisco foi construída entre 1702 e 1703, e a atual igreja de São Francisco — a

Igreja de Ouro — entre 1708 e 1720, voltada para o poente (Figura 7). O novo

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Page 26: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

convento de São Francisco corresponde a uma verdadeira fortaleza, no limite leste

da cidade, contando com 41 janelas na sua parte de trás.lxxviii

Destaca-se também, devido à sua importância futura como local de

peregrinação e devoção dos baianos, o início da construção da capela do Senhor do

Bonfim em 1745, na península itapagipana, pelo capitão de Mar e Guerra Teodózio

Rodrigues de Faria, traficante de escravos e proprietário de navio negreiro.lxxix

Nascida como cidade fortaleza e fustigada por toda a primeira metade

do século XVII pelos invasores holandeses, construiu-se em Salvador todo um

sistema de fortificações para proteção da cidade, principalmente das investidas pelo

mar.

Na barra da imensa boca do “grande golfão” que é a Baía de Todos os

Santos, está situado o Forte de Santo Antônio da Barra (Figura 8), que “resistiu

bravamente, somente caindo quatro dias depois do assédio”lxxx holandês contra

Salvador, em 1624; próximo a este, ainda na entrada da barra, estão os fortes de

Santa Maria, de 1609, e de São Diogo (anterior a 1638); em seguida, “ao longo da

margem da baía, sob a encosta onde a cidade está pendurada”,lxxxi encontra-se a

bateria de São Paulo da Gamboa; “o porto é defendido pela fortaleza redonda

erguida no meio sobre um rochedo, conhecida sob os nomes de Forte São Marcelo

ou Forte do Mar”lxxxii, de 1623.

Uma série de outros fortes se escalonam em seguida: São Francisco,

Santo Alberto (1583),lxxxiii São Fernando, Lagartixa, Jequitaia e Monte Serrat,

construído a partir de 1583, situado na extremidade oposta à barra, onde o

comandante holandês Van Dorth foi morto, numa emboscada.lxxxiv

Do lado da terra foram construídos o Forte de São Pedro (1723) e a

Casa da Pólvora (Aflitos), na parte sul da cidade; ao norte edificaram-se o Forte do

Barbalho e a Fortaleza de Santo Antônio Além do Carmo, assegurando assim a

proteção da cidadela, porque do lado interior na direção leste encontra-se o dique do

Tororó, um lago artificial “em forma de crescente que rodeia três quartos da

cidade”.lxxxv

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Page 27: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Figura 7 — Igreja de São Francisco. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 out. 2006.

Figura 8 — Forte de Santo Antônio da Barra (1624). Foto: Barbara Maringoni Bomfim

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Page 28: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

O crescimento espacial de Salvador é de forma radioconcêntrica e

compacta, tendo em vista os limites à expansão: ao lado leste, é ocupada a segunda

cumeada, com o povoamento dos novos bairros de Palma, Santana e Saúde, até os

limites do novo dique do Tororó. Os principais fatores dessa ocupação foram o

abandono do dique holandês, a implantação de quartéis, assim como a construção

dos novos conventos, sobretudo os femininos (Desterro e Lapa).

Tanto para o norte como para o sul, a área mais densa ia até os fortes

que defendiam os extremos da cidade: ao norte, os limites dos fortes de Santo

Antônio e do Barbalho; e, ao sul, o conjunto formado pelos fortes de São Pedro e de

São Paulo e pela Casa da Pólvora.lxxxvi

Os conventos também tiveram papel importante na extensão da

cidade: no lado norte, o das Ursulinas, na Soledade; e no lado sul, o dos

Capuchinhos e Ursulinas, que ocuparam áreas da Piedade e das Mercês.lxxxvii

A freguesia de São Pedro, criada em 1676, expandiu-se nesse período

e era importante do ponto de vista defensivo, correspondendo à parte sul da

cidade.lxxxviii

O desenvolvimento da cidade em direção sul ocorreu, de forma

complementar, na grande freguesia da Vitória, que cobria o sul da península.

Sendo Salvador edificada sobre terreno acidentado, esse empecilho

natural não permite “construir uma cidade traçada à régua, com ruas retilíneas

rodeando quadras de casas bem quadradas e todas parecidas, como é o costume

nas outras cidades da América espanhola”.lxxxix

O que ocorre é que, fora do perímetro do núcleo central, as

construções erguem-se sem alinhamento. Isso gera uma assimetria e converte a

área em um labirinto de ruas, becos e vielas. O traçado urbano reconcilia-se com a

topografia acidentada, abandonando a regularidade pretendida.xc

Um viajante francês da época, Le Gentil de la Barbinais, deplora a

aparente desordem urbana de Salvador e transforma a sua crítica em poesia, ao

construir uma linda imagem para descrever o atual Centro Histórico da cidade:

“como cada um construiu sua casa de acordo com sua fantasia, tudo é irregular, de

modo que parece que a praça principal se acha ali por acaso”...

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Page 29: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Na Casa da Câmara, instituição política colonial, seus membros tentam

regulamentar a ordem urbana, e as primeiras providências pelo alinhamento das

ruas foram para “evitar os danos estruturais das ruas em que se fazem casa

ordinariamente nos arrabaldes”, regulamentando a punição para “toda pessoa que

fizer casa sem ser arruada ou fora da arruação”: se “lhe botará a obra abaixo às

suas custas... e terá trinta dias de cadeia”.xci

Um grave problema da Bahia seiscentista é o da sujeira. O costume de

jogar lixo nas ruas, emporcalhando as vias públicas, era então generalizado.

“Algumas ruas mais estreitas, malpavimentadas, chegavam mesmo a se converter

em depósitos de lixo”.xcii Tornam-se urgentes medidas regulatórias pelo poder

público. Decisão da Câmara Municipal, datada de 1626, proibiu qualquer pessoa de

i Ou encontro de Culturas, segundo GARCÍA ZARZA, Eugenio. La ciudad em cuadrícula o hispanoamericana. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1996, p.42; “o encontro de culturas, formas de vida e trabalho ou modos de ser raramente é único, unívoco, unilateral, ainda que sempre haja o predomínio de um sobre o outro ou os outros”. In IANNI, Octavio. A sociedade global. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 83. ii FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997, p. 30.iii VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. Salvador: Corrupio, F.C.Ba, 1981, p.9.iv Idem, ibidem, p.9.v Como também demais nações européias contestavam o direito de Portugal e Espanha sobre terras que não houvessem efetivamente ocupado. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 25. ed. São Paulo: Ed Nacional, 1995, p.6.vi O reconhecimento do princípio de uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato deve possuir de direito) e não a legitimação de simples divisões geográficas como o Tratado de Tordesilhas (1494). In: SANTOS PÉREZ, José Manuel; PETIT, Pere (Eds). Presentación. La amazonia brasileña em perspectiva histórica. Aquilafuente, 104. Ediciones Universidad de Salamanca: Salamanca-España, 2006, p. 9.vii FAUSTO, B. 1997, p. 42-43.viii Idem, ibidem, p. 44. ix Ibidem, p. 45.x FURTADO, C., 1995, p.8.xi FAUSTO, B., 1997, p. 45.xii FURTADO, C., 1995, p.7.xiii Idem, ibidem, p.8.xiv DIAS TAVARES, Luís Henrique. História da Bahia. 10ª ed. São Paulo: Ed. UNESP; Salvador: EDUFBA, 2001, p. 107. xv “A ocupação econômica das terras americanas constitui um episodio da expansão comercial européia”. FURTADO, C., 1995, p.5. xvi GREMAUD, Amaury Patrick; SAES, F. A. M de; TONETO Jr, R. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Atlas, 1997, p. 15.xvii NARDI, Jean Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial. Lavoura, comércio e administração. São Paulo: Brasiliense, 1996, p.30xviii DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 109; ver também RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004, p.93.xix BAER, Werner. A economia brasileira. São Paulo: Nobel, 1996, p. 31.xx PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 9ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 125 apud GREMAUD, A. P.; SAES, F. A. M.; TONETO Jr, R., 1997, p. 15.

Page 30: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

colocar lixo ou imundície no adro da Sé, assim como nas ruas e travessas da

cidade.xciii

As preocupações com a limpeza, a saúde e o abastecimento obrigam a

Câmara a ordenar o lançamento de lixo no mar (1672); “Provedores da Saúde”

foram nomeados, a partir de 1694, para a inspeção de matadouros, lojas, mercados

e navios; a lavagem de roupas nas fontes foi proibida em 1696; assim como os

porcos soltos na cidade, em 1739; os doentes de lepra foram obrigados a deixar a

xxi VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002, p.11.xxii Dados disponíveis em IBGE – Cidades@ http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 Acesso em 29 abr. 2009.xxiii FERNANDES, Rosali Braga. Las políticas de la vivienda en la ciudad de Salvador y los procesos de urbanización en el caso de Cabula. Barcelona, 2000, p. 93. (Tesis doctoral para la Faculdad de Geografia e Historia); BRAGA, Hilda Maria de Carvalho. Producción y desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador-Bahia. Tesis Doctoral presentada al Departamento de Geografia Humana de la Universidad de Barcelona, España, 2004, 470 p.xxiv RISÉRIO, A., 2004, p.20.xxv Em 1958 o distrito de Candeias foi emancipado de Salvador; em 1961 foi criado o município de Simões Filho, com o desmembramento do distrito de Água Comprida, ao norte de Salvador, no lado da baía de Todos os Santos; em 1962 foi criado o município de Lauro de Freitas, com o desmembramento do distrito de Santo Amaro do Ipitanga, a nordeste de Salvador, no lado da orla Atlântica. In VASCONCELOS, 2002, op cit., p. 311. xxvi UNIVERSIDADE Federal da Bahia. Faculdade de arquitetura. Centro de Estudo da Arquitetura na Bahia. Evolução física de Salvador. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1979, v.1, p. 39.xxvii FERNANDES, R. B., 2000, p. 95.xxviii Área formada por um alto platô, com um desnível de 40 a 70 metros. VASCONCELOS, 2002, p. 14.xxix VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 16-17; FERNANDES, R. B., 2000, op. cit., p. 95.xxx FERNANDES, R. B., 2000, p. 95.xxxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p.33; com a Holanda foi estabelecida a paz só em 1661, mediante indenização de cinco milhões de cruzados. Idem, p.73.xxxii MATTEDI, Brito & Barreto, 1979, p. 349 apud PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002, p. 197.xxxiii VERGER, P., 1981, p.07.xxxiv O ano de 1850 é também o ano da promulgação da Lei de Terras, como ficou conhecida a lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, que trata da organização agrária do Brasil. Ela atendia à evidente necessidade de organizar a situação dos registros de terras doadas desde o período colonial e legalizar as ocupadas sem autorização, para depois reconhecer as chamadas terras devolutas, pertencentes ao Estado. Disponível emhttp://www.webhistoria.com.br/arqdirfon2.html Acesso 25 jul. 2006.xxxv NEVES, Laert Pedreira. O crescimento de Salvador e das demais cidades baianas. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1985, p.23.xxxvi FARIA, Vilmar E. Divisão Inter-regional do Trabalho e pobreza urbana - o caso de Salvador. In: SOUZA, G. Adeodato de; FARIA, Vilmar (orgs.). Bahia de Todos os Pobres. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 34.xxxvii “Primeira grande empresa colonial agrícola européia”. FURTADO, C., 1995, p.9. xxxviii “[...] o jesuíta Simão de Vasconcellos demonstrou claro entendimento do sentido da empreita ao observar que o propósito do rei de Portugal era ‘dar principio a um Estado em que pretendia fundar Império’” in RISÉRIO, 2004, p. 80; ver também em BOMFIM, Juarez Duarte. Políticas públicas para o centro histórico de Salvador: investigação de originalidade. Salvador: Escola de Administração da UFBA, 1994 (dissertação de Mestrado), p.12.

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cidade em 1758, devendo se retirar a uma distância de quatro léguas.xciv E assim

segue a vida urbana na Salvador colonial.

No início do século XVII o Brasil se tornara o principal fornecedor de

açúcar do mundo, porém, no final desse século a atividade exportadora começou a

declinar. A causa do declínio foi o desenvolvimento de uma crescente oferta do

produto nas colônias inglesas, holandesas e francesas, que tinham acesso

preferencial aos mercados das suas respectivas metrópoles.

xxxix Santos questiona: pode-se falar em “idade” de um lugar? Será possível falar da idade de um lugar segundo outro critério? Por exemplo, será possível um critério propriamente “geográfico”? In: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. 2 ed. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 46.xl UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 23; modernização ortográfica feita pelo autor.xli Idem, p. 23; modernização ortográfica feita pelo autor.xlii COELHO FILHO, Luiz Walter. A fortaleza do Salvador na Baía de Todos os Santos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2004, p. 101.xliii Idem, ibidem, p. 101.xliv UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 29.xlv RISÉRIO, A., 2004, p.87.xlvi AZEVEDO, Thales de. Povoamento da Cidade do Salvador. Salvador: Ed. Itapuã, 1969, p. 137; Tomé de Sousa havia trazido de Portugal a própria população (400 soldados, 400 degradados, alguns padres e raras mulheres) afirma SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador. Estudo de Geografia Urbana. Salvador: Publicação da Universidade da Bahia, IV-4, 1959, p. 35.xlvii AZEVEDO, T., 1969, p. 137. No prefácio à terceira edição, Thales de Azevedo, na p.32, sugere uma ratificação: “propõe o autor, com certos argumento, reduzir para cerca de metade, isso é para 500, o número de habitantes da nova Urbe uma vez que lhe parece improvável, como está consagrada na maioria dos historiógrafos, que o Governador-Geral havia trazido em sua frota 600 homens d'armas e 400 degradados, pois suas naus não teriam capacidade para tanto e as folhas de pagamento, provisões, alvarás e outros papéis não o fazem crer”.xlviii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.30.xlix AZEVEDO, T., 1969, p.136.l UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 26.li A “cabeça de ponte”, no dizer de VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 70.lii CAPEL, Horacio. La morfologia de las ciudades. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2002, p. 190; Capel afirma ser uma excepcionalidade o plano ortogonal no caso de Salvador, devido a ser pouco comum no Brasil colonial.liii UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 66.liv Idem, p. 29; GARCÍA ZARZA, 1996, p.15, diz que ”en efecto, en Hispanoamérica no en Iberoamérica” a quadrícula é base para a ordenação e o funcionamento urbanos. Porém, Salvador é uma exceção.lv VASCONCELOS, 2002, p. 49.lvi COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 115; VASCONCELOS, 2002, p, 59.lvii FERNANDES, R. B., 2000, p. 97; VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 13.lviii NEVES, L. P., 1985, p. 23.lix AZEVEDO, T., 1969, 154.lx BOMFIM, J. D., 1994, p. 21.lxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p, 19; p. 62-64.lxii SANTOS NETO, Isaias de Carvalho. Centralidade Urbana: espaço & lugar; esta questão na Cidade do Salvador. São Paulo: USP/FAU, 1991, p. 47; SANTOS, M., 1959, p. 56 e 118.lxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 19.lxiv BOMFIM, J. D., 1994, p. 14.

Page 32: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

A descoberta de ouro (1695) e de diamante (1730) em Minas Geraisxcv

provocou um novo ciclo de crescimento econômico, e a atividade de mineração e

exportação do ouro deslocou o centro de atividade econômica para o Sudeste do

Brasil.

O incremento da mineração fez com que o Rio de Janeiro se

destacasse como importante porto, que se tornou o principal centro exportador de

minérios e pelo qual entravam os artigos importados manufaturados. Importantes

casas comerciais, instituições financeiras e vários outros serviços lá se instalaram.xcvi

lxv VASCONCELOS, P. A., 2002, p, 65.lxvi UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 107-108.lxvii NEVES, L. P., 1985, p. 23; em 1551, três anos após a sua fundação, a área ocupada era de 20 hectares; em 1580 de 60 hectares, e ao término deste período, em 1650, 140 hectares.lxviii UNIVERSIDADE Federal da Bahia, 1979, v.1, p. 102-103.lxix Idem, p. 102.lxx VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 84.lxxi BAER, W., 1996, p. 29.lxxii VERGER, P., 1981, p. 34.lxxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 92.lxxiv Idem, ibidem, p. 77.lxxv Ibidem, p. 110.lxxvi Ibidem, p.. 75.lxxvii Ibidem, p. 104.lxxviii Ibidem, p. 75.lxxix Ibidem, p. 86.lxxx TAVARES, Odorico. Bahia. Imagens da terra e do povo. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951, p. 181; posição divergente quanto à funcionalidade deste forte tem o prof. Mario Mendonça. Segundo ele o forte nunca foi uma posição de destaque na defesa de Salvador. Ficava distante da cidade, então restrita ao centro histórico; era pequeno e mal desenhado. Sua versão original era um polígono de oito lados, depois virou um polígono irregular como ainda é hoje, mas sem nenhum baluarte capaz de flanquear os tiros defensivos. Era muito mais um posto de sentinela do que um forte poderoso. Ver OLIVEIRA, Mário Mendonça de. As Fortificações Portuguesas de Salvador quando Cabeça do Brasil. Salvador: Fundação Gregório de Mattos, 2004. lxxxi VERGER, P., 1981, p. 96.lxxxii Idem, ibidem, p. 96.lxxxiii Em 1660 o Forte de Santo Alberto é considerado inútil à defesa da cidade, o que motivou a sua venda em praça púbica, em 1673. In COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 114.lxxxiv TAVARES, O., 1951, p. 190.lxxxv VERGER, P., 1981, p. 96.lxxxvi VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 97.lxxxvii Idem, ibidem, p. 120; conventos estes construídos em meados do século XVIII.lxxxviii Ibidem, p. 108.lxxxix VERGER, P., 1981, p.20.xc PINHEIRO, E. P., 2002, p. 182 e 188.xci VASCONCELOS, P.A., 2002, p. 83; atualização ortográfica do autor.

Page 33: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Em 1763 a capital do Vice-Reinado foi transferida de Salvador para o Rio de

Janeiro.xcvii

As duas cidades tinham aproximadamente a mesma população, 40 mil

habitantes.xcviii Entretanto, mesmo com a perda da condição de centro administrativo

da colônia, Salvador continuou a ser a principal cidade da América portuguesa,

primeira praça comercial e se converteu em metrópole regional.

A riqueza acumulada e as grandes transformações ocorridas, com a

construção ou a reconstrução dos edifícios monumentais, sobretudo religiosos,

justificaram a designação desse período de “Idade do Ouro de Salvador”,xcix dada

pelo historiador Russell-Wood.c

SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1763-1850)

O episódio mais relevante deste terceiro período (1763–1850) foi a

invasão de Lisboa pelas tropas de Napoleão Bonaparte, o que provocou a fuga da

família real portuguesa para o Brasil e a instalação do governo de Portugal no Rio de

Janeiro.

Uma tempestade fez com que parte da esquadra que trazia a Corte

portuguesa ancorasse em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808, e aqui, por

pressão inglesa, o príncipe regente D. João assinou a Carta Régia, que abria os

portos brasileiros às “nações amigas”.ci

O fim das restrições mercantilistas encerra trezentos anos de exclusivo

colonial, o que favorece o comércio e as atividades econômicas de exportação e

importação. Os impactos dessas medidas sobre a economia baiana e as atividades

comerciais e portuárias serão enormes, criando uma era de pródiga abastança.

xcv FAUSTO, B., 1997, p. 98.xcii RISÉRIO, A., 2004, p. 201.xciii COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 193.xciv VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 84.xcvi BAER, W., 1996, p. 32.xcvii FAUSTO, B., 1997, p. 99.xcviii Idem, ibidem, p. 99.xcix VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 120;c RISÉRIO, A., 2004, p.129.ci FAUSTO, B., 1997, p. 122; e DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 212.

Page 34: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Apesar da mudança da capital da colônia para o Rio de Janeiro, é alto

o crescimento demográfico de Salvador, que continua a ser a maior cidade da

América portuguesa até a proclamação da Independência do Brasil.

Em 1822 proclama-se a Independência do Brasil, e a Bahia trava a sua

guerra particular pela independência, quando se levanta em armas contra as tropas

portuguesas aqui estabelecidas. A libertação do domínio português ocorrerá no 2 de

julho de 1823. O caráter mercantilista da Bahia aparece com nitidez no episódio da

Independência. Pois é somente depois da guerra da Independência, que na Bahia

assumiu forma especialmente violenta, prolongando-se em rebeliões, levantes e

motins de 1824 a 1838, que o exclusivo colonial foi inteiramente desfeito e uma nova

ordem econômica, social e política se estabelece.

O porto de Salvador não tem suas atividades limitadas ao escoamento

da produção baiana e abastecimento da sociedade local de bens importados,

inclusive de escravos. O seu raio de ação é bastante amplo, estendido através de

rotas de cabotagem e das rotas atlânticas portuguesas. A resistência política e

militar portuguesa à independência da Bahia era alentada pela perspectiva da

cidade poder sobreviver à independência do Brasil como enclave português.cii

Nesse período, do ponto de vista urbano, as principais transformações

ocorridas em Salvador visaram a desobstruir a Cidade Alta, devido à perda de

importância de seu sistema defensivo.

O constante alargamento da cidade ao norte e ao sul obrigava o

governo a redefinir de quando em quando os limites amuralhados da cidade, e isso

vai perdurar até o final do século XVIII, quando da derrubada definitiva das Portas da

Cidade (Quadro 1).

Quadro 1 — Histórico das Portas da cidade do Salvador (1549-1796)

NOME DA PORTA PERÍODO PROVÁVEL LOCALIZAÇÃO APROXIMADA

Porta da Ajuda ou Santa Luzia

1549-1560 Lado sul. Em frente à Igreja da Ajuda ou no alto da Rua

cii GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia. Dissertação de Mestrado, defendida na Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA em 1982 (revista em 2003 pelo autor). Disponível em <http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/forma%E7%E3o%20e%20crise%20da%20hegemonia%20burguesa%20na%20Bahia.pdf.> Acesso em 12 agosto 2005.

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Page 35: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Chile1ª Porta de Santa Catarina 1549-1560 Lado norte. Em frente ao

Terreiro de JesusPorta de Santa Luzia 1591-1634 Lado sul. No meio da atual

Praça Castro Alves2ª Porta de Santa Catarina 1591-1635 Lado norte. No atual Largo

do PelourinhoPorta de São Bento 1634-1796 Lado sul. No meio da atual

Praça Castro AlvesPorta do Carmo 1635-1790 Lado norte. No atual Largo

do PelourinhoFonte: COELHO FILHO, L. W., 2004.

60

Page 36: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

No lado sul (1796) ocorre a derrubada das Portas de São Bento, dando

origem à atual Praça Castro Alves; é também deste ano a construção da Praça da

Piedade, a terceira da cidade.

Ao norte, acontece a demolição das Portas do Carmo e a abertura do

Largo do Pelourinho, em 1790.

Coelho Filho afirma que de alguma forma “o Terreiro de Jesus, o Largo

do Pelourinho e a Praça Castro Alves devem gratidão às portas da cidade”,ciii pois,

no passado, foram locais de passagem, transição entre dois mundos, do seguro

para o inseguro, e depois se tornaram espaços abertos ao bem-estar da população.

Daí que, para a defesa da cidade, eram proibidas construções ao redor

das muralhas e portas das fortalezas. Uma vez encerrada essa função, o espaço

aberto poderia ser aproveitado para a criação de praças públicas.

No bairro da Praia, a Igreja da Conceição da Praia foi concluída em

1765 e o Forte de São Marcelo em 1772.

Novos equipamentos foram implantados nesse período, numa onda

modernizadora, como o teatro público, a biblioteca pública, a escola médico-cirúrgica

e o primeiro banco da cidade.civ Em 1810 é implantado o Passeio Públicocv — que

deslumbra os visitantes — e um obelisco, em comemoração à chegada da família

real no Brasil em 1808.

A cidade se dividia administrativamente em freguesias, e a freguesia

era dividida em quarteirões. O nome quarteirão dá idéia de um quadrilátero

delimitado por quatro ruas, formado por casas contíguas.

Porém, havia quarteirões de grande ou pequena extensões de terra,

como também “existiam quarteirões que ocupavam uma só rua ou parte desta, ou

apenas um só dos seus lados”.cvi

Em 1799, o governador Fernando J. de Portugal comentou o estado da

cidade, informando que “os edifícios não são de melhor arquitetura, nem da mais

ciii COELHO FILHO, L. W., 2004, p. 238.civ VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 161.cv PINHEIRO, E. P., 2002, p.202.cvi NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: Fceba/Egba, 1986, p. 30; em matéria de urbanismo Portugal e Espanha seguiram caminhos próprios, distintos, a partir do século XVI. Os quarteirões quadrados (manzanas) e os solares são unidades do urbanismo espanhol. Já no Brasil os quarteirões são muitas vezes irregulares. In COELHO FILHO, 2004, p. 347.

61

Page 37: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

sólida construção, apesar de se encontrarem alguns nobres”. Já o padre português

Manuel Aires de Casal noticia que “a casaria é sólida, e em grande parte nobre”.cvii

Na Bahia oitocentista, o palácio ou o tipo de casa onde se mora é

símbolo de status social.

O governador da Província reside no Paço, palácio dos antigos vice-

reis, e o bispo no palácio episcopal. Na cidade, os barões e viscondes, donos de

engenhos, vivem nos solares; os ricos comerciantes, os bacharéis e os doutores

habitam os sobrados; os negociantes e os cônsules estrangeiros alugam casas

rodeadas de jardins, longe do centro da cidade; os lojistas, os pequeno-burgueses e

os artesãos vivem em simples casas térreas.cviii

O tamanho das casas varia segundo os quarteirões, porém a mais

comum era o sobrado. Os sobrados eram de um, dois, três ou quatro andares, com

sótãos, sobre-sótãos, lojas, sobrelojas e porões. Podiam ser unidomiciliar ou

pluridomiciliares. Quando de dois andares, a família morava no andar superior e o

térreo servia de local de trabalho a seu proprietário, artesão ou negociante; o andar

térreo podia eventualmente estar alugado a escravos ou artesãos livres.cix

Os sobrados eram geralmente encontráveis na paróquia comercial da

Conceição da Praia e naquelas habitadas pelas camadas superiores da população:

Sé, São Pedro, assim como em alguns quarteirões de Santo Antônio Além do Carmo

e de Santana próximas do Centro, situados na paróquia da Sé.cx

Grandes residências senhoriais são encontradas na Penha e na

Vitória. Os materiais construtivos dessas residências são de “uma bela pedra azul

tirada da praia da Vitória” ou tijolo. As casas são todas caiadas, e “onde o chão não

é calçado de madeira, há um belo tijolo vermelho”.cxi A cobertura é feita com telhas

redondasSegundo Verger, “os mulatos soldados, os negros livres são alojados

em casebres ou pardieiros, com janelas gradeadas ou velhas casas assobradadas

mais ou menos em ruínas”.cxii

Os escravos viviam em celas no andar térreo de casas

“repugnantemente sujas”, onde também situavam-se as cavalariças, ou embaixo das

casas, numa espécie de porão; as residências dos mais pobres eram cabanas feitas

de estacas verticais com galhos de árvores trançados, “cobertos e revestidos seja

com folhas de coqueiros, seja com barro. Os tetos são também cobertos de

palha”.cxiii

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Page 38: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

As ruas da cidade “são limpas, mas não regulares”,cxiv disse ainda o

governador Fernando J. de Portugal. A cronista inglesa Maria Graham considerou,

em 1821, a Cidade Alta “incomparavelmente”cxv mais limpa que o porto.

Localizada às margens de uma grande baía, chegar a Salvador por

mar provoca uma forte impressão, pela beleza e originalidade do lugar. A Cidade da

Bahia tinha então “um dos mais belos portos do universo”, afirmava José da Silva

Lisboa, em 1781.cxvi Mas não é só a baía de Todos os Santos que encanta os

viajantes, a Cidade do Salvador “magnífica de aspecto, vista do mar” é “um dos mais

belos espetáculos que jamais contemplei”,cxvii entusiasma-se Maria Graham (Figura

9).

O bairro da Praia (Cidade Baixa) era composto de uma única comprida

e sinuosa rua, cortada ao meio por alguns becos. Ali se realizava a dinâmica

atividade comercial, e se instalaram trapiches, armazéns, mercado de peixe, umas

poucas farmácias, pequenas livrarias, lapidários e joalheiros; os prédios da Bolsa, do

Arsenal e das Docas Reais, todos eles à beira-mar.

Figura 9 — Panorama da cidade do Salvador em 1756.Fonte: BAHIA. Centro Histórico de Salvador. Programa de Recuperação, 1995.

Salvador ainda era o maior porto exportador do Brasil em 1797,

passando para o segundo lugar no ano seguinte.

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Page 39: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Com a abertura dos portos do Brasil aos navios e ao comércio exterior

decretada em 1808, Salvador torna-se uma cidade rica e poderosa e não mais um

simples entreposto de gêneros produzidos pelo país, aguardando remessa para

Portugal.cxviii

O papel dos comerciantes e negociantes estabelecidos na Bahia, que

até então era reduzido ao de simples intermediários no monopólio exclusivo

reservado à Coroa portuguesa, adquire primeira importância.

Em 1818, foram contabilizados dois mil navios entrando e saindo

anualmente pelo porto de Salvador. Neste mesmo ano, a Bahia exportou 13,8

milhões de florins e importou cerca de 10 milhões; a primeira viagem de navio a

vapor, no Brasil, foi entre Salvador e Cachoeira, em 1819.cxix

A sujeira existente na cidade, especialmente no bairro da Praia,

indignava os viajantes. Em 1824, Maria Graham assim descreve a situação:

A rua pela qual entramos através do portão do arsenal ocupa aqui a largura de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o lugar mais sujo em que eu tenha estado. É extremamente estreita; apesar disso todos os artífices trazem seus bancos e ferramentas para a rua. Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão os vendedores de frutas, de salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e de doces, negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras (espécie de liteiras) com seus carregadores, cães, porcos e aves domésticas, sem separação nem distinção; e como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e se alimentam os animais.cxx

Antes, em 1763, a Câmara havia proibido mais uma vez que as

lavadeiras lavassem roupas nas fontes, “especificando que elas deviam lavar em

vasilhas, numa distância de 50 palmos das mesmas”. Nesse mesmo ano foram

nomeados funcionários para controlar os currais e os matadores. Mais adiante, em

1814, foi proibido depositar cadáveres de escravos nas portas das igrejas.cxxi

Em 1785 foi estabelecida postura sobre arruamentos, determinando a

localização dos negociantes e dos artesãos; a Câmara começou a realizar o plano

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Page 40: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

que visava à pavimentação das ruas principais e exigia, por posturas, a obediência

aos alinhamentos das ruas, obrigando recuos e retiradas das rótulas.cxxii

Numa cidade muito acidentada, cheia de ladeiras íngremes, com

núcleos de povoação nas cumeadas das colinas, o meio de transporte mais comum

são os pés, ou “deixar-se levar por escravos nas cadeirinhas de arruar, palanquins,

serpentinas e liteiras”cxxiii (Figura 10).

Figura 10 — Uma rica senhora sai a passeio na cadeirinha de arruar.Fonte: MELLO e SOUZA, L., 1997.

Foram fixados os preços dos transportes de pessoas em cadeiras.

Aliás, este tipo de transporte vai chamar a atenção de cronistas e viajantes que

visitam a Bahia desse período. Na descrição de Froger (1696):

Trata-se de uma rede coberta de um pequeno dossel bordado e carregado por dois negros através de um longo bastão ao qual está suspensa pelas duas extremidades. As pessoas de qualidade aí se fazem carregar para a igreja, em suas visitas e mesmo ao campo. cxxiv

Nessa época, a abundância de escravos na cidade leva a que eles

cumpram a função de cavalos e transportem de um lugar a outro as mercadorias

mais pesadas. É certo que as diferenças de níveis existentes na cidade tornam

inconvenientes as carruagens, mas o príncipe Maximiliano da Áustria (em 1860)

65

Page 41: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

observa que “a cadeirinha, este meio de locomoção do Brasil, deve sua existência à

escravidão”.cxxv

A relação senhor-escravo era então a base da sociedade e da

economia, com os negros escravizados subordinados política, social e

economicamente a seus senhores.cxxvi Historicamente, a relação de produção

escravista inibe o desenvolvimento das forças produtivas, e, no caso de Salvador, o

escravismo adiou o uso intensivo de veículos de transporte sobre rodas, chamando

a atenção dos que aqui chegavam que mercadorias de toda espécie eram

carregadas nas cabeças dos negros escravizados. “A Bahia se carrega na

cabeça”,cxxvii afirma Jorge Amado, traço cultural que se mantém até hoje no cenário

urbano de Salvador.

Frézier estimava em 1714 que 95% das pessoas que transitam na

cidade baixa são negros e negras “completamente nus, com exceção das partes que

o pudor obriga a cobrir, de modo que esta cidade parece uma nova Guiné”.cxxviii

Mais de uma centúria depois (1859), as coisas não mudaram muito:

Poucas cidades pode haver tão originalmente povoadas como a Bahia. Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita imaginação tomá-la por uma capital africana, residênciade poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente desapercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e carrega é negro.cxxix

Avé-Lallemant escreve que “a mim pelo menos pareceu que o

inevitável meio de condução da Bahia, as cadeirinhas, eram como cabriolés nos

quais os negros faziam às vezes de cavalo”;cxxx observação que leva Maximiliano da

Áustria a dizer: “os negros são escravos, e, por isso, animais com alma humana. Os

brancos são os senhores de escravos, portanto, seres humanos com alma

animal”.cxxxi

66

Page 42: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Se as pessoas eram transportadas e carregadas às costas de homens

escravizados da cidade baixa à cidade alta, as mercadorias eram içadas em grande

parte de uma à outra por planos inclinados e elevadores.

Contabilizam-se dois planos inclinados (Gonçalves e Pilar), um

guindaste (Elevador do Taboão) e um elevador hidráulico que fazem o transporte de

cargas e passageiros. A força motriz, que inicialmente era humana, é substituída por

caldeiras a vapor. cxxxii

O Elevador Lacerda se tornará um dos principais cartões postais da

cidade, e assim é descrito por um turista britânico, em 1884:

Do mar pode-se perceber uma torre de aspecto imponente, construída da cidade baixa até a cidade alta, ao longo da encosta e terminando no alto por uma larga plataforma. É o elevador ou parafuso como é conhecido aqui. Não é nada mais que nossos elevadores hidráulicos domésticos em tamanho maior. Apanhamos nossos tickets e entramos em uma espécie de jaula de leão, onde sentamos perto de algumas destas maravilhosas negras majestosas que fazem a reputação da Bahia, e de alguns cavalheiros obscuros fumando enormes charutos.cxxxiii

Após uma reforma, o Elevador Lacerda é ampliado e adquire sua

fachada art déco atual. As duas cabines velhas foram substituídas por quatro,

capazes de transportar 27 pessoas cada, inauguradas no dia 1º de janeiro de

1930cxxxiv (Figura 11).

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Page 43: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Figura 11 — Elevador Lacerda. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.

A expansão da cidade continuou em direção ao sul, ao norte e a leste

do centro tradicional, porém já dando início a um processo de diferenciação social,

com a consolidação da nova maneira de morar em casas ajardinadas, iniciada pelos

ingleses, no bairro da Vitória.

Todo um sistema viário de cumeadas já está articulado ao centro da

cidade: a cumeada do Garcia (pela atual Rua Leovigildo Figueiras), o Porto da Barra

(pela atual Ladeira da Barra), a Graça (pelo atual Corredor da Vitória) e o Rio

Vermelho (pela atual Avenida Cardeal da Silva).cxxxv

No lado leste, no bairro do Desterro, foi autorizado o desmanche da

Casa da Pólvora,cxxxvi em 1838, que daria origem ao Campo da Pólvora. O bairro de

Nazaré começa a se desenvolver em 1827, com a inauguração do Colégio dos

Órfãos do Sagrado Coração de Jesus, na atual Avenida Joana Angélica, quando

teve início a densificação do bairro. A ligação entre a freguesia de Santana e a de

Brotas se fazia, ao norte do Dique do Tororó, pela ladeira que descia em direção à

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Page 44: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Fonte Nova das Pedras.cxxxvii Em 1835 se implantava a primeira “avenida de vale” de

Salvador, a Rua da Vala (atual Baixa dos Sapateiros).

Com o crescimento linear de ocupação das cumeadas, Salvador vai

deixando de ser uma cidade compacta, especialmente com a expansão em direção

ao sul, no bairro da Vitória, onde os negociantes ingleses residiam e “vinham a

cavalo para os seus escritórios”.cxxxviii O advento dos transportes coletivos urbanos na

segunda metade dos oitocentos vai propiciar novas espacializações.

Na área do Comércio, importantes transformações iniciam-se, em

1785, com aterros que alargam os seus limites, e em 1816 ocorrem as obras de

modernização do porto, que continuam até 1822, com a realização de novos

aterros.cxxxix

A Praça de São João (atual Praça da Inglaterra) teve sua construção

iniciada em 1818; o faustoso prédio da Praça do Comércio (futura Associação

Comercial), em estilo neoclássico, foi inaugurado em 1816.

O aterro da área da Alfândega foi iniciado em 1843. O imponente

prédio da Alfândega (atual Mercado Modelo), em estilo neoclássico, foi construído

entre 1849 e 1861.cxl

Nas novas áreas conquistadas ao mar, projetam-se quarteirões

regulares, num padrão em quadrícula, e edifica-se um conjunto monumental de

prédios com o mesmo número de andares e o mesmo acabamento externo,

parecendo “um único edifício por quarteirão”.cxli A monumentalidade do conjunto

urbano é uma demonstração concreta do poder de uma nova classe social que

começa a se destacar: a burguesia comercial.

SALVADOR: EVOLUÇÃO SOCIOESPACIAL (1850-1950)

O quarto período estudado (1850–1950) relaciona-se a consideráveis

acontecimentos ocorridos com o fim do tráfico de escravos (1850). Até esta data,

grande parte do tráfico de escravos se fazia através do seu porto e, além de seu

destacado porto comercial, a cidade tinha também importância econômica com o

69

Page 45: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

comércio de tabaco, que servia de moeda de troca inclusive para a compra de

escravos.

Nos anos 1840 o açúcar deixara de ser o principal produto brasileiro de

exportação, substituído pelo café, que não encontra condições geológicas ou

climáticas para a expansão em larga escala no território baiano, desenvolvendo-se

rapidamente, no entanto, no Sudeste do país, mudando assim, mais uma vez, o polo

de desenvolvimento econômico brasileiro.

Mas o declínio da importância das atividades produtivas na Bahia não

se faz sentir apenas por aí. Também sua participação na produção açucareira do

Império decai durante o período, embora continue como o principal produto da

Bahia, responsável por 69,8% das exportações em 1851. Já em 1873 a participação

do açúcar cai, cedendo o primeiro lugar para o fumo, que participa então com 31,%

das exportações baianas.

Todavia, o dinamismo da economia agroexportadora baiana mantém-

se até 1869 — apesar do declínio da atividade açucareira — graças ao aumento das

exportações de diamantes, entre 1851 e 1865, e do algodão, entre 1863 e 1871.

Salvador começa a perder importância marítima para outros portos,

como o de Recife, mais próximo da Europa, e com a inauguração, em 1869, do

Canal de Suez, é diminuída a importância da navegação no Atlântico Sul, com

consequências negativas para o porto e o comércio de Salvador.cxlii Apesar disso, a

capital da Bahia ainda era a segunda mais populosa cidade do Brasil (Tabela 1).

Tabela 1 — 10 maiores municípios brasileiros em 187210 maiores municípios brasileiros População em 1872Rio de Janeiro 274.972SALVADOR 129.109Recife 116.671Belém 61.997Niterói 47.548Porto Alegre 43.998Fortaleza 42.458Cuiabá 35.987São Luís 31.601São Paulo 31.385

Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil.

70

Page 46: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

De 1871 em diante as exportações decrescem rapidamente, até atingir

uma média de valor da ordem de 696.353 libras esterlinas em 1887, quando, em

1869, era de 1.391.362 libras.cxliii

Uma grave crise de produção e comercialização se instalou em 1873

no Brasil e atingiu profundamente a economia baiana baseada no trabalho escravo.

A queda da produção de açúcar, fumo, café e algodão gerou um grande déficit na

balança comercial. A estagnação econômica é considerada decorrente da crise da

relação de trabalho escravista, associado ao uso de antiquados métodos de

produção.cxliv

Se o declínio da economia açucareira baiana não é sentido em toda a

sua plenitude é porque, embora mais rigoroso na Bahia, ele ocorre em todo o país.

Na Bahia, a queda da exportação do açúcar foi de algum modo compensada pelo

aumento das exportações de fumo, café, cacau, diamante e, conjunturalmente, do

algodão.

Portanto, no bojo da crise geral da economia do Império, a Bahia pôde

manter sua posição relativa no conjunto das exportações brasileiras. Não se tratava,

propriamente, de uma diversificação da produção, mas sim de uma quebra da

atividade produtiva, que o comércio exportador procurava compensar através da

comercialização de produtos naturais ou de outros produtos cultivados, que nunca

atingiram a importância do açúcar.

Uma grande epidemia de cólera (1855) veio agravar a situação de

Salvador (10 mil mortos) e do Recôncavo (mais de 26 mil mortos).cxlv

Como o fumo passou a ser o primeiro produto de exportação baiana,

superando o açúcar, esse foi o estímulo para a inauguração de inúmeras fábricas de

charutos em Cachoeira, São Félix e Muritiba.

Em Salvador, um empresário suíço chamado Meuron instala uma

fábrica de charutos num sítio encantador denominado Solar do Unhão, construído no

século XVII, que é uma chácara com majestosa residência, senzalas,

embarcadouros, capela e serviço de abastecimento de água,cxlvi localizada junto á

cidade, “bem às margens da baía ao pé da encosta”,cxlvii descrita em 1855 como um

71

Page 47: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

lugar onde as árvores cintilantes cobertas de flores e as fontes de água “murmuram

em cadência com o ruído das ondas vizinhas”cxlviii .

Um dado novo na economia baiana será o início do ciclo do cacau, a

partir de 1860, cuja produção será concentrada no sul do Estado, e logo se torna o

seu principal produto de exportação, e o escoamento do produto para o estrangeiro

ocorre pelo porto de Salvador. Entretanto, a cultura do cacau “não estava em

condições de permitir uma acumulação de capitais em favor da Cidade do

Salvador”.cxlix

Principia-se uma tentativa de industrialização, com implantação das

primeiras fábricas e manufaturas em Salvador entre os anos de 1840 e 1860, e a

cidade converte-se em um centro industrial têxtil.

Uma demonstração desse dinamismo econômico encontra-se na

existência de um grande número de trapichescl no porto de Salvador, que é, “sem

dúvida, um sinal do elevado movimento portuário da cidade; tanto no setor de

importação como no de exportação”.cli Esse crescimento era interrompido por crises

periódicas tanto econômicas como demográficas, como as provocadas pela

epidemia do cólera de 1855, e pelas devastações da seca de 1857. Porém, a longo

prazo, a economia regional registrava crescimento.

Entretanto, a falta de perspectivas de conquista de mercado externo e

o crescimento acelerado da industrialização no Sudeste do país, sem que Salvador

possa competir no processo de substituição de importações que se efetua, levam à

estagnação do setor.

O período posterior, compreendido entre 1870 e 1950, é de fracasso

das tentativas de industrialização em Salvador e no Recôncavo, fenômeno

entendido através da crescente perda de importância da economia baiana, devido

ao fato de que a industrialização do Sudeste do Brasil, baseada no excedente do

café, desloca mais uma vez a hegemonia econômica e política nacional para aquela

região.

Esse período de letargia é conhecido como “enigma baiano”, que decorre de sua descapitalização, da crescente deterioração da indústria do açúcar na região e da mudança do eixo das decisões centrais do país no final do século XIX. Os produtos primários como

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Page 48: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

açúcar, cacau, fumo e café continuam a sofrer sobressaltos e flutuações devido às crises internacionais. Apesar disso, em 1907, a Bahia representa 13% da circulação monetária brasileira, ficando atrás apenas de Minas e São Paulo, o que demonstra ainda sua importância em nível nacional.clii

A atividade comercial predomina na economia soteropolitana, e o

capital mercantil acabou por se transformar na fonte por excelência dos

investimentos internos, e é utilizado em execução de obras para o melhor

funcionamento da cidade.

Por isso que, apesar das dificuldades econômicas, os investimentos

em infraestrutura continuaram na segunda metade do século XIX, com a construção

de ferrovias, instalação de telégrafo e das primeiras linhas telefônicas de Salvador

(1884); Salvador ainda é a segunda cidade brasileira em população (Tabela 2),

posição que logo perde para a dinâmica capital paulista (Tabela 3), e também é a

segunda a contar com serviço de iluminação elétrica, em 1903.cliii

Havia recursos para modernizar a capital da Bahia com a limpeza e

canalização dos rios da Vala e do Camurugipe, a abertura de ladeiras, muradas e

calçadas entre as cidades Baixa e Alta, o calçamento de ruas, a instalação de

chafarizes públicos e de iluminação com combustores de gás.

Tabela 2 — 10 maiores municípios brasileiros em 1890

Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil — 1980.

10 maiores municípios brasileiros População em 1890Rio de Janeiro 552.651SALVADOR 174.412Recife 111.556São Paulo 64.934Porto Alegre 52.421Belém 50.064Fortaleza 40.902Manaus 38.720Niterói 34.269Teresina 31.523

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Tabela 3 — 10 maiores municípios brasileiros em 1900

10 maiores municípios brasileiros População em 1900Rio de Janeiro 811.443São Paulo 239.820SALVADOR 205.813Recife 113.106Belém 96.560Porto Alegre 73.474Curitiba 59.755Niterói 53.433Manaus 50.300Fortaleza 48.369

Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil — 1980.

Foram feitos melhoramentos das estradas para a periferia da cidade,

como as do Rio Vermelho, dos Pernambués, de Brotas, e a construção da grande

via de acesso a Feira de Santana, a Estrada das Boiadas.

Os limites da cidade são os mesmos desde o século XVIII e, ao longo

do século XIX, a Cidade Alta e a Cidade Baixa mantêm a mesma divisão funcional

dos séculos anteriores. A Cidade Alta conserva as funções administrativa, religiosa e

residencial (Figura 12); na Cidade Baixa se realizam as atividades comerciais,

financeiras e aduaneiras, pois a proximidade com o porto faz com que ali se

realizem as atividades a ele relacionadas. No edifício da Associação Comercial

funcionam as três primeiras companhias de seguros da Bahia: Boa Fé, Conceito

Público e Comércio Marítimo.

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Page 50: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Figura 12 — Centro de Salvador em 1905.Fonte: DIAS TAVARES, L. H., 2001.

À divisão administrativa e religiosa da cidade dá-se o nome de

freguesia. As freguesias ou paróquias eram delimitações territoriais feitas pela Igreja,

que se caracterizavam por ser a menor das unidades eclesiásticas, sendo

controladas pelas respectivas igrejas matrizes e estando sob a responsabilidade dos

párocos correspondentes. A cada freguesia correspondia o controle da vida dos que

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Page 51: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

residiam dentro de seus limites, inclusive a qualificação eleitoral e o recrutamento

para o serviço militar.cliv Até 1870, Salvador dividia-se em 10 freguesias urbanas e

sete suburbanas.clv

As freguesias urbanas, por ordem cronológica de sua criação, são:

Sé ou São Salvador;

Nossa Senhora da Vitória;

Nossa Senhora da Conceição da Praia;

Santo Antonio Além do Carmo;

São Pedro Velho;

Santana do Sacramento;

Santíssimo Sacramento da Rua do Passo;

Nossa Senhora de Brotas;

Santíssimo Sacramento do Pilar; e

Nossa Senhora da Penha.

A freguesia da Sé corresponde ao primitivo núcleo da cidade do

Salvador; a freguesia da Vitória surge em 1561, e situa-se no local onde nasceu o

primeiro núcleo de povoadores, na Vila Velha, anterior à fundação da cidade; a

freguesia da Conceição da Praia fora criada em 1623, e corresponde a zona

portuária; na freguesia de Santo Antonio era onde vivia a classe média, formada por

pequenos negociantes, alfaiates, empregados públicos.

A freguesia de São Pedro localizava-se extramuros, ao sul; as freguesias

de Santana e do Passo destacavam-se pelos conventos, igrejas, e pela população

que ia crescendo em casas térreas que se agrupavam nos núcleos dos centros

religiosos; a freguesia de Brotas abrigava uma rarefeita população rural, vivendo em

fazendas e engenhos; na freguesia do Pilar se estabeleceram a maioria dos

portugueses que haviam chegado ao Brasil como imigrantes, após a Independência,

e alguns residiam tão próximos aos trapiches e armazéns que não davam

“importância ao desconforto que ocasionavam às suas famílias”, provocado pelo

“odor que emanava das diversas mercadorias com que transacionavam”.clvi

cliv FERNANDES, R. B.,2000, p.167.clv As sete freguesias suburbanas são: São Bartolomeu de Pirajá, Nossa Senhora do Ó de Paripe, São Miguel de Cotejipe, Nossa Senhora da Piedade do Matoim, Nossa Senhora da Conceição de Itapoã, Santana da Ilha de Maré e Nossa Senhora da Encarnação de Passé. In: PINHEIRO, E. P., 2002, p.182.clvi NASCIMENTO, A. A. V., 1986, p. 33.

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Page 52: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Na freguesia da Penha existiam estaleiros para a construção de grandes

embarcações, comerciava-se o pescado, e foi lá onde se instalaram algumas das

primeiras fábricas de tecidos. À capela do Bonfim se dirigiam os romeiros, desde

essa época local de peregrinação e devoção dos baianos.

A Cidade do Salvador, que conta com 129.109 habitantes no primeiro

censo nacional (1872), tem a sua população composta por 69,1% de negros e

mestiços,clvii e deste contingente de população não-branca apenas 12% eram de

escravos, o que aponta um declínio — pelo menos em termos numéricos — da

atividade escravista no meio urbano.

Em finais do século XIX, a cidade tinha de extensão 800 hectares e se

observa então uma descentralização populacional, com crescimento demográfico

das freguesias mais distantes da área central. Esse início de desconcentração

parece estar relacionado à implantação dos transportes coletivos na cidade, que

propiciam a separação entre local de trabalho e local de moradia.

Depois da promulgação da Constituição republicana de 1891, e com a

separação entre Estado e Igreja, os municípios passaram a ser divididos em

distritos. Porém, a base espacial das antigas freguesias foi conservada.

Os trens são introduzidos na Bahia a partir de 1856 com capital inglês

e depois com capital público nacional. Os locais por onde passa o trem recebem um

impulso com a chegada desse meio de transporte, que se torna vetor da expansão

urbana de Salvador, com o desenvolvimento dos subúrbios ferroviários de Periperi,

Plataforma e Paripe.

O primeiro serviço público de bondes inicia-se em 1862, com “as

gôndolas, carros altos com molas, puxados por quatro animais, em que o cocheiro

fica sobre um deles”.clviii Os avanços tecnológicos a partir daí são de introdução de

bondes puxados por burros sobre trilhos de aço ou de madeira; movidos a vapor; e a

eletrificação dos transportes urbanos, em 1897. No ano de 1920 todas as linhas já

estão eletrificadas.

As linhas de bonde que começam a ser inauguradas valorizam o solo e

incentivam a especulação imobiliária. Bairros como Barra, Graça e Vitória

urbanizam-se e recebem mais habitantes, e até o distante e despovoado bairro do

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Page 53: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Rio Vermelho muda a sua estrutura e comercializa seus terrenos, após a chegada

dos bondes.

Em 1902 chega à cidade o primeiro automóvel,clix revolucionando mais

uma vez os meios de transporte.

Como “pano de fundo” desse período de franca modernização urbana,

temos a assinalar dois acontecimentos políticos de primeira grandeza: a abolição da

escravatura em 1888 e no ano seguinte, embalados por idéias positivistas, militares

e intelectuais lideram o movimento de Proclamação da República (1889).

A ideologia higienista e sanitarista se estabelece em Salvador, e são

tomadas medidas para melhorar a higiene da cidade. Em 1855 a epidemia de cólera

havia matado 16,8% da população da capital, 10 mil habitantes, e um número três

vezes maior nas cidades do Recôncavo. A modernização exige solução para a

cidade insalubre — herança arquitetônica colonial.

Construída como cidade fortaleza portuguesa e vivendo em função do

porto, Salvador cresceu linearmente no século XIX, seguindo dois vetores que

acompanhavam as bordas da península, mas de forma desordenada e assimétrica,

convertendo a zona em um labirinto de ruas, ruelas e becos.

Como já foi relatado, Salvador era uma cidade suja. Os dejetos se

acumulavam nas ruas, nas praças e rios e, não havendo maneira de eliminá-los,

isso contribuía para a proliferação de enfermidades epidêmicas.

Ainda na segunda metade do século XIX Salvador mantinha um

relativo crescimento e sua posição de segunda cidade do país, sobretudo como

consequência da indústria fabril instalada. Começava então a implantar seus

primeiros sistemas de esgotamento sanitário e recolhimento de lixo.clx

A partir de 1865, o poder público soteropolitano fez sua primeira

contratação de serviços de limpeza pública.clxi A municipalidade firmou um contrato

com uma empresa para que se encarregasse dos serviços de limpeza da cidade.

Estes compreendiam o recolhimento de materiais orgânicos e inorgânicos que

pudessem causar perigo à saúde pública, desde o recolhimento do lixo domiciliar, a

varrição das ruas e limpeza dos arroios até a conservação e arborização da cidade.

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Page 54: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Havia também um outro grave problema higiênico: a remoção dos

detritos e matéria orgânica existentes nas cocheiras e cavalariças públicas e

particulares que persistiam dentro da zona urbana, assim como os resíduos das

fábricas de tabaco e outras.clxii

O contrato firmado em 1865 estabelecia horas fixas e áreas

determinadas para o recolhimento do lixo, cobrando-se uma taxa diária pelos

serviços de acordo com o número de habitantes por residência. Eram multados por

negligência ou má-fé aqueles cidadãos que depositavam os dejetos nas ruas,

desobedecendo aos ordenamentos municipais. A empresa contratada também

sofreria multas quando não cumprisse as exigências estipuladas no contrato. A

Câmara Municipal designava os espaços onde se depositaria o lixo e os detritos, e

não permitia enterrá-los no perímetro urbano da cidade.

Dessa forma, a contratação dos serviços públicos no século XIX

significou um avanço em conforto e bem-estar da população, com a modernização e

troca dos antigos sistemas de recolhimento do lixo na cidade colonial.

O serviço de saneamento da cidade passou a ser administrado

diretamente pela Intendência Municipal em 1920, após rescisão de contrato com a

empresa prestadora de serviços. Não obstante, isto não significou a melhora dos

serviços. Estes passaram a realizar-se dentro do limite dos recursos financeiros

municipais, considerados insuficientes para a sua execução. Os informes técnicos

acusavam o comportamento da população e o número crescente de prédios que

surgiam quase diariamente como causas da má coleta do lixo.

As bases do contrato dos serviços de limpeza urbana e incineração do

lixo compreendiam: recolhimento, remoção e cremação de todos os dejetos,

imundícies, matérias orgânicas e animais mortos depositados nas ruas, praças,

clxii BRAGA, Hilda Maria de Carvalho. Producción y desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador-Bahia. Tesis Doctoral presentada al Departamento de Geografia Humana de la Universidad de Barcelona, España, 2004, s/n.

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mercados etc; materiais coletados na varrição; remoção de toda a vegetação, areia

e lodo encontrados no perímetro do serviço; dispor de pessoal necessário para os

serviços de incineração, o qual deveria ser efetuado de acordo com as prescrições

higiênicas.

Dessa maneira, estrutura-se melhor o serviço sanitário e criam-se

órgãos de defesa da saúde. São realizadas desinfecções em pessoas e cargas que

chegam de navio ao porto e são estimuladas as investigações sobre vacinas.

A cidade moderna é idealizada enquanto cidade regular, higiênica,

funcional, fluida, homogênea, equilibrada, sincrônica e gerida cientificamente. Isto se

revela, concretamente, como resultado de um longo período de gestação e de

transformações que se acumulam, em resposta a problemas concretos que se

colocam a uma sociedade em transformação.

Novas espacializações

As duas obras urbanísticas mais importantes do século XIX, e que

terão impacto na estrutura viária da cidade são: a abertura da Rua da Vala (1835)

com a canalização do Rio das Tripas e a construção da Ladeira da Montanha

(1878).

A Rua da Vala significará a utilização, pela primeira vez, “de um vale

como forma de união entre os distintos núcleos existentes sobre as colinas que

formam o espaço construído”,clxiii e se torna um importante vetor de expansão da

cidade, responsável pela conquista de novos espaços.

A Ladeira da Montanha, ligando a Cidade Baixa até a Praça do Teatro,

na Cidade Alta, facilita a circulação de veículos entre as duas partes da cidade,

devido à sua leve inclinação.

A preocupação com a higiene e a salubridade e as novas

possibilidades de circulação abertas com a estruturação de um sistema viário

abrangente e o aparecimento dos transportes coletivos — primeiro o bonde de burro,

depois a introdução de transportes mecânicos como o automóvel e o bonde elétrico

— desempenharão um papel fundamental no "processo de transformação porque

80

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passa Salvador, desde o início do século XIX, embora se acentuando em meados do

século: o das novas espacializações".clxiv

Nova espacialização e diferenciação: o advento dos transportes

coletivos viabilizará o rompimento da superposição espacial entre “o local de

moradia e local de trabalho, ao mesmo tempo em que vai facilitar a fuga das áreas

mais congestionadas e insalubres da cidade” para as classes de maior capacidade

econômica.clxv

Urbanismo demolidor

Grave crise política sucessória no governo da Bahia, com reflexos no

plano nacional (Governo do presidente marechal Hermes da Fonseca) faz com que,

no dia 10 de janeiro de 1912, o centro da Cidade do Salvador seja bombardeado

pelo Exército brasileiro a partir do Forte do Mar (São Marcelo), secundado pelo Forte

do Barbalho (ao norte) e Forte de São Pedro (ao sul).

O canhoneiro durou quatro horas. A Casa dos Governadores foi

incendiada, um bem histórico com mais de 300 anos de existência (Figura 13); o

incêndio atingiu a centenária Biblioteca Pública da Bahia (fundada em 1811),

danificando os seus trinta mil volumes; o relógio da Câmara Municipal e a esquina

da Igreja da Sé foram atingidas; tiros alcançaram o Teatro São João e sobrados da

Rua Chile.clxvi

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Figura 13 — Palácio dos Governadores, atual Palácio Rio Branco.

cvii VASCONCELOS, P. A., 2002, p. 156-158; atualização ortográfica do autor.cviii VERGER, P., 1981, p.26.cix MATTOSO, Kátia M de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. v.2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 161.cx MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988, p. 27.cxi VASCONCELOS, P. A., 2002, p.158.cxii VERGER, P., 1981, p.26.cxiii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.158-161.cxiv Idem, ibídem, p.156.cxv Ibidem, p.161.cxvi Ibidem, p.156.cxvii PINHEIRO, E. P., 2002, p.185.cxviii VERGER, P., 1981, p.42.cxix VASCONCELOS, P. A., 2002, p.126.cxx VERGER, P., 1981, p.18.cxxi VASCONCELOS, 2002, p.132; George Félix Cabral de Souza escreve sobre posturas semelhantes adotadas pela Câmara de Recife, no estado de Pernambuco (século XVIII): “El crecimiento de la villa se refleja en los actos cotidianos de la Cámara […] es posible percibir la necesidad de ordenar la circulación y producción de mercancías y bienes, sea por la limitación de velocidad de las carrozas y caballos por las calles de la villa, sea por la reglamentación de las matanzas del ganado y tratamiento de las carnes, por ejemplo”. In: SOUZA, George Félix Cabral de. El post-bellum en Pernambuco: reflejos políticos y sociales da la dominación holandesa. SANTOS PÉREZ, José Manuel; SOUZA, George F. Cabral de. (Eds.). El desafío holandés al dominio ibérico en Brasil en el siglo XVII. Aquilafuente 94. Ediciones Universidad de Salamanca. Salamanca-España, 2006, p. 215.cxxii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.132.cxxiii PINHEIRO, E. P., 2002, p. 206.cxxiv VERGER, P., 1981, p.22.cxxv Idem, ibidem, p.24.cxxvi Ver GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6 ed. São Paulo: Ática, 1992.cxxvii AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos. Guia de ruas e mistérios. R J: Record, 1982, p. 32. cxxviii VERGER, P., 1981, p.21.cxxix Avé-Lallemant in: VERGER, 1981, p.21-22.; E Salvador vai chegar ao século XXI sendo considerada a “Roma Negra”, cidade com a maior população de afro-descendentes fora do continente africano. Estima-se que mais de 85% dos que moram e fazem Salvador são negros. In: Disponível em <http://www.emilianojose.com.br/texto_projeto.php?ID=33> Acesso em 26 julho 2005.cxxx Avé-Lallemant, 1961, v.1, p.20 apud PINHEIRO, E. P., 2002, p.189.cxxxi Habsburgo, 1982, p.75 apud PINHEIRO, E. P., p. 191.cxxxii Ver ANGELIM, Edla Alcântara. Condução urbana. Nem bem no céu nem bem na terra. VERACIDADE. Revista do Centro do Planejamento Municipal. Salvador – Bahia. Ano 2. Dez. 1992 nº4, p.33- 36.cxxxiii VERGER, P., 1981, p.25.

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Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.

Tudo isso era um prenúncio do “urbanismo demolidor” que se avizinha,

pois o século XX será o século das grandes transformações no centro de Salvador.

Entre 1912 e 1916 — primeiro governo de José Joaquim Seabra — desenvolve-se o

plano "Melhoramentos Urbanos", que concentra um surto de modernização

importante na cidade, calcado no binômio saneamento/transportes.

Neste período, o bonde é o responsável pela maior parte dos

deslocamentos da população, o que promove o desenvolvimento e a ocupação de

novos espaços. O centro se densifica, os bairros crescem, e surgem definições

sociais e funcionais mais claras para a cidade.

cxxxiv A segunda torre do Elevador Lacerda será inaugurada em 1930, com 72 metros de altura. In LEAL, Geraldo Costa. Perfis urbanos da Bahia. Os bondes, a demolição da Sé, o futebol e os gallegos. Salvador: Gráfica Santa Helena, 2002, p. 24; ver também TRINCHÃO, Glaucia Maria Costa. "O Parafuso" de meio de transporte a cartão postal. Dissertação de Mestrado. Mestrado de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquiteura da Universidade Federal da Bahia/UFBA, 1999.cxxxv Demonstrado no Mapa de C. Weyll, de 1851. In: VASCONCELOS, 2002, p.195 e 202.cxxxvi Casa da Pólvora posterior a outra, situada nos Aflitos.cxxxvii Demonstrado no Mapa de C. Weyll, de 1851. In: VASCONCELOS, 2002, p.204.cxxxviii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.202.cxxxix Idem, ibídem, 2002, p.165.cxl Ibídem, 2002, p.198.cxli PINHEIRO, E. P., 2002, p.213; no ano de 1930 estavam aterrados e urbanizados 80 hectares de área conquistada da baía de Todos os Santos, permitindo uma ampliação da oferta de terrenos num dos trechos mais valorizados do solo de Salvador. In: VASCONCELOS, P. A. 2002, p. 289.cxlii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.210; a abertura do Canal do Panamá, em 1914, também diminuiu a importância da navegação no Atlântico Sul e do porto de Salvador. Idem, p. 260.cxliii GUIMARÃES, A. S. A., 2005, s/n.cxliv DIAS TAVARES, L. H., 2001, p.286-287.cxlv Ver DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível. Epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: SarahLetras-EDUFBA, 1996. cxlvi RISÉRIO, A. Um olhar sobre o Solar. In: GOVERNO DA BAHIA. Secretaria da Indústria e Turismo MAM. Museu de Arte Moderna da Bahia, 2002, p. 33.cxlvii VERGER, P., 1981, p.41.cxlviii Idem, ibídem, p.41; atualmente esse belíssimo conjunto arquitetônico sedia o Museu de Arte Moderna da Bahia.cxlix SANTOS, M., 1959, p.43.cl Armazéns onde se guardam mercadorias importadas ou para exportar; armazéns-gerais.cli GUIMARÃES, Emmanuel Ribeiro apud FARIA, Vilmar E. In: SOUZA; FARIA, Vilmar, 1980, p. 32.clii PINHEIRO, E. P., 2002, p. 199.cliii VASCONCELOS, P. A., 2002, p.212; PINHEIRO, E. P., 2002, p.204.clvii Idem, ibidem, p. 97.clviii PINHEIRO, E. P., 2002, p.206.clix Idem, ibídem, p.210.clx NASCIMENTO, A. A. V., p.50.clxi Os serviços de iluminação a óleo (1836) e abastecimento de água (1852) foram feitos anteriormente.clxiii PINHEIRO, E. P., 2002, p.215.clxiv FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A de Filgueiras. Idealizações urbanas e a construção da Salvador moderna: 1850-1920. ESPAÇO & DEBATE. Ano XI nº 34 São Paulo: quadrimestral, 1991, p.100.clxv Idem, ibídem, p.101.clxvi DIAS TAVARES, L. H., 2001, p. 324-327.

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Pretendia-se redesenhar a cidade em função do veículo automotor que

surgia, a reforma urbana é referenciada numa espacialização modelo, no traçado de

um percurso urbano especializado que "congrega um novo modo de vida, uma nova

estética, um novo sentido de público”.clxvii

A ideologia do "progresso" é utilizada como símbolo das reformas com

uma política de demolições. O "urbanismo demolidor”clxviii então se manifesta.

Conjuntos urbanos monumentais são impiedosamente derrubados. O que se

constroi em séculos é demolido em anos. As obras de alargamento das ruas Chile,

Ajuda, Misericórdia e a construção da Avenida Sete de Setembro — da Ladeira de

São Bento ao Forte de São Pedro — tiveram a régua e o esquadro como elementos

decisivos, destruindo-se monumentos importantes para a cultura e a memória do

país.

O “urbanismo demolidor” da época tem como marco a derrubada da

Igreja da Sé (1933) e dois quarteirões contíguos. Move-se um combate sistemático

ao patrimônio histórico, sob a invocação de "Melhoramentos Urbanos", que tem

como início o[...] primeiro quartel do século atual, sobretudo de 1912 a

1920, quando as intervenções no tradicional Centro Administrativo — entre a Praça Municipal e Terreiro de Jesus — foram projetadas e aprovadas pelas autoridades competentes, mas executadas só em parte, pela falta de recursos financeiros, daí resultando a salvação de alguns monumentos notáveis — como o Palácio Arquiepiscopal junto à Sé.clxix

Em 1940, com a demolição das casas contíguas à Igreja da Sé (já

derrubada), surgiu, finalmente, o espaço que se convencionou chamar de Praça da

Sé, aberto por força das exigências técnicas da empresa concessionária das linhas

de bonde da cidade.clxx As “exigências técnicas" aí significaram abrir espaço para os

bondes poderem manobrar, no fim de linha.

As reformas urbanas realizadas representam o setor de intervenção do

poder público que, talvez, mais tenha consumido recursos no período. No plano

econômico — como sustentáculo das reformas urbanas — o Estado da Bahia “torna-

se, já em 1905, o maior produtor mundial de cacau".clxxi

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Cabe observar que muito mais que o traçado físico da cidade que então

começava a se alterar, definia-se a nova forma de articulação da economia regional

aos centros econômicos hegemônicos fora da região de influência da cidade.clxxii

A ampliação da Avenida Sete de Setembro até o Porto da Barra

(extremo sul da cidade) acontece no segundo governo de J. J. Seabra (1920-1924).

Essas reformas urbanas

[...] buscavam responder à necessidade de uma maior mobilidade urbana, em um momento em que já se observa tanto uma tendência das classes dominantes em abandonar o velho centro denso e insalubre, quanto a aceleração do processo abolicionista que dotaria a massa urbana de trabalhadores de uma mobilidade habitacional pouco comum para os escravos.clxxiii

As primeiras décadas do século XX encerram para Salvador uma

etapa crítica de redefinição das funções do centro da cidade. Sua expansão na

direção sul, que já vinha se ocorrendo desde meados do século XIX quando a

Avenida Sete se desenvolve como local de moradia da classe dominante — com o

impacto das obras de alargamento das ruas principais — articula o centro com a

parte nobre da cidade, os espigões da Vitória e Graça,clxxiv o que faz com que o

bairro do Pelourinho e demais áreas centrais, quer na sua parte alta como na parte

baixa, sejam gradativamente desocupados por seus moradores originais, que

vendiam seus imóveis já em plena obsolescência funcional.

A obsolescência habitacional se caracteriza pela não correspondência entre a necessidade e a resposta oferecida pela moradia. Há a obsolescência física, decorrente de causas naturais (fadiga dos materiais e sinistros, por exemplo), ou de ação humana (depredações, uso intensivo etc.); e a obsolescência funcional, que decorre das transformações porque passa em particular a família, como resultado das contínuas mudanças da sociedade.clxxv

Construídos em sua maioria nos séculos XVIII e XIX para uma

sociedade patrimonial e escravocrata, os sobrados que integram os quarteirões

centrais não mais se adaptam às necessidades da sociedade atual. Muitos padrões

habitacionais aceitos na época e serviços desenvolvidos até então manualmente por

escravos são melhorados e passam a ser desempenhados por instalações elétricas,

mecânicas e hidráulicas.clxxvi

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Acompanhando a expansão para o sul, é o centro comercial que para

lá se desloca, concorrendo com a habitação, numa perda contínua de moradores em

favor dos estabelecimentos de negócios. A função habitacional no Centro Histórico é

mantida, com os imóveis agora ocupados por extratos sociais mais baixos.

A migração centrífuga das famílias ricas se correlaciona com a

ocupação das casas por famílias de classe média, e depois pelos pobres.

Ainda que se mantenham as funções primitivas — habitação

complementada por serviços e atividades afins — a substituição de um tipo de

população por outro, de nível economicamente distinto, é um fenômeno próprio da

dinâmica intraurbana, o que implica mudanças sociais profundas e, também, físicas.

"Geralmente, ocorre um rebaixamento social quando o centro histórico é

marginalizado com relação a novos centros dinâmicos da cidade".clxxvii

Muitos sobrados sofrem apenas a substituição da população primitiva

por usuários mais pobres. O processo é acompanhado do retalhamento do espaço

arquitetônico, como forma de recompor a renda perdida. Aquele imóvel grande,

anteriormente ocupado por uma só família, para que pudesse proporcionar uma

renda razoável tinha de ser, necessariamente, retalhado, já que a população que a

substituiu era de nível econômico mais baixo. Através de décadas, o "retalhamento

do espaço" nos imóveis do Centro Histórico contribuiu para o seu arruinamento.

Os mais pobres são atraídos pelo baixo valor do aluguel nos imóveis

degradados e pela sua localização privilegiada. Estabelece-se então um círculo

vicioso, onde a deterioração, oriunda dos primeiros anos deste século, conduziu a

um processo irreversível de empobrecimento da área, e o empobrecimento é,

sabidamente, um fator da deterioração.

A região norte do Pelourinho foi ocupada por uma população de

estratos econômicos médios, que se acomodou nas casas térreas e de dois

pavimentos, tipos de construções capazes de abrigar uma família de classe média,

sem a necessidade de despender grandes somas para mantê-las em condições de

habitabilidade.

Por outro lado, ao sul do Convento e Igreja do Carmo, as casas foram

ocupadas em seus pavimentos térreos por um pequeno comércio e artesanato —

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Page 62: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

prolongamento das atividades comerciais da Misericórdia, Praça da Sé e Terreiro de

Jesus — enquanto que os pavimentos superiores dos casarões e sobrados

transformaram-se em hospedarias, casas-de-cômodo e outras formas de moradia

coletiva, reunindo os mais diversos tipos de pessoas, pertencentes a estratos

econômicos mais baixos.

No bairro do Maciel (Pelourinho) predominam as construções de mais

de dois pavimentos, o que permite, em número cada vez maior, as moradias

coletivas.clxxviii Nos anos 1920 ali se estabeleceu o grande meretrício, formando um

novo quadro social no Centro Histórico que se degradava. Forçado pela ação

repressiva da polícia de costumes, dentro dos limites desse bairro liberou-se a

prostituição, e as “atividades paralelas e derivadas”clxxix à prostituição

consequentemente ali se estabeleceram (tráfico de drogas, banditismo), o que

terminou por envolver toda a área residencial. Essa tentativa do Estado de

estabelecer uma zona delimitada para o meretrício constituía-se em tentativa de

controle dessa prática, dentro da política higienista de então.clxxx

A degradação social e o tipo de estrutura arquitetônica do casario

colonial, que propiciava o uso como moradia coletiva, são fatores que favoreceram a

concentração da prostituição na área arruinada. O estigma de bairro maldito e a

guetificação do Maciel/Pelourinho — que paradoxalmente concentra o conjunto

patrimonial de maior relevância no Centro Histórico — teve sua origem aí, no

estabelecimento forçado de zona segregada, ambiente de doenças, misérias e

crimes.clxxxi

Centralidade e especialização funcional do centro de Salvador

A história urbana proporcionou a concentração de funções nos distritos

centrais de Salvador, num vigoroso fenômeno de centralidade. Pelos anos de 1940-

1950 a região central tornara-se extremamente densa de serviços. Essas duas

décadas correspondem ao apogeu de centralidade desse tecido urbano.

Como sede exclusiva das atividades de controle econômico-administrativo e dos serviços de apoio à população de

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renda mais alta, esse centro avarento de equipamentos e serviços tornou-se, juntamente com os velhos bairros adjacentes, uma cidade dentro da cidade, uma grande superquadra, residência de comerciantes, banqueiros, proprietários, altos funcionários, doutores, e de uma infinidade de auxiliares destes — burocratas civis, eclesiásticos e militares — e da multidão de artesões e oficiais de construção e reparos, hortaleiros, “ganhadores” — carregadores e serventes — e empregadas domésticas.clxxxii

Da primitiva função de aglomeração administrativa e militar — que

determinou a escolha do sítio, um sítio difícil, sobre a escarpa — foi se

acrescentando as funções portuária (que existiu desde o início da vida urbana),

religiosa, comercial, residencial, industrial, bancária e turística. De meados do

século XVI até a segunda metade do século XX, quase todas as funções praticadas

numa cidade ali estavam postas. Só a partir do final dos anos 1950 é que esse

fenômeno começará a dar sinais de declínio.

Começa-se a se esboçar uma especialização de funções entre a

Cidade Alta e a Cidade Baixa já em meados do século XVII. O centro era então a

sede da administração civil e eclesiástica, enquanto que o bairro comercial

encontrava-se na parte baixa. Até o final do século XIX toda a função comercial ali

se realizava, era o "Comércio", que conserva até hoje aquela denominação.

No início do século XX acentua-se o processo de centralidade,

especialização e tercialização do centro, com as obras de ampliação do porto, a

criação de terminais e o alargamento da Rua Chile e outras que a continuam,

seguindo a tendência das cidades contemporâneas de domínio da produção do

espaço urbano pelo terciário.

Principal porto do Atlântico Sul durante o período Brasil Colônia, a

atividade portuária foi desde então condição necessária à realização de outras

atividades. A sua pujança determinou a formidável obra de aterro e ampliação, com

a ocupação de uma planície conquistada ao mar, onde se construiu uma verdadeira

massa de edifícios e se concentraram as atividades a si vinculadas: o comércio

atacadista, de exportação e importação, atividades bancária e o “comércio de

papéis”, enquanto que o comércio varejista e os serviços se alojaram na Cidade

Alta, numa nova especialização funcional do centro.

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Page 64: O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO   SOCIOURBANA  parte 4

Até os anos 1950, o centro abrigava quase toda a atividade comercial

da cidade. Fora dos distritos centrais, o comércio desenvolvia-se também na

Calçada, em torno da estação ferroviária, servindo a Itapagipe, e na Liberdade, já

então populoso bairro, que abrigava um quinto dos moradores da capital.

A função administrativa, motivo para a fundação da cidade, havia

sofrido sua primeira crise provocada pela transferência da capital do país para o Rio

de Janeiro, em 1763, mantendo, porém, o papel de capital do Estado e centro

regional. Os serviços públicos concentrar-se-ão, preferencialmente, na Cidade Alta,

mais ou menos agrupados no núcleo primitivo, em torno do Palácio dos

Governadores, que conserva o mesmo local da primeira construção,clxxxiii datada de

1549.

As funções industrial e bancária — esta mais recente em relação a

outras — estão diretamente ligadas à função comercial e dela são derivadas. Nos

anos 1950 há uma concentração de estabelecimentos de porte médio (mais de 25 e

menos de 100 operários) nos quarteirões centrais, cuja atividade estimula a

permanência próxima dos quarteirões comerciais e dos mercados. Todos os jornais,

as tipografias e editoras, casas de confecção e de vestuário, fábricas de calçados,

clxvii, FERNANDES, A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.97.clxviii Termo utilizado pelo urbanista francês Pierre Lavedan para descrever esse tipo de intervenção. In PINHEIRO, E. P., 2002, p.224.clxix SIMAS Filho, Américo. Problemática e critérios para delimitação das Áreas de Proteção Histórica. In: Seminário... Salvador, 1977. Anais do 1º Seminário... Salvador. Governo do Estado/Prefeitura Municipal: 1977, p. 202.clxx SANTOS Neto, I. C., 1991, p.18.clxxi FERNANDES A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.96.clxxii BRANDÃO, Maria de Azevedo. Planejar o núcleo histórico. In: Seminário sobre o Centro da Cidade do Salvador, 1977. Anais do 1º Seminário ... Salvador. Governo do Estado/Prefeitura Municipal: 1977, p, 65-66.clxxiii FERNANDES A.; GOMES, M. A. A. F., 1991, p.98.clxxiv A "paróquia da Vitória" era então "um dos pontos mais agradáveis, melhor arejados" . In: MATTOSO, 1988, p. 32.clxxv AZEVEDO, Paulo Ormindo de. A recuperação do patrimônio habitacional. In: RUA - Revista de Arquitetura e Urbanismo. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBa. nº 1 ano 1 dez 1988, p. 45.clxxvi Idem, ibídem, p. 45.clxxvii AZEVEDO, Paulo Ormindo, O caso Pelourinho. p. 219-255. In: Produzindo o passado. Estratégias de construção do patrimônio cultural. Augusto, Antonio. (Organizador). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 221.clxxviii ESPINHEIRA, Carlos G. D'Andrea. Comunidade do Maciel. Salvador: SEC/FPACBa, 1971, p. 10.clxxix  ESPINHEIRA, C. G. A. 1971, p. 11clxxx  Na cidade do Rio de Janeiro ocorre no mesmo período uma política semelhante, quando a polícia de costumes também delimita áreas liberadas para a prostituição.clxxxi BOMFIM, J. D., 1994, p. 31.clxxxii182 BRANDÃO, M. A., 1977, p. 67-8.clxxxiii O governo J. J. Seabra fez reconstruir o Palácio dos Governadores, bombardeado em 1912. In: LEAL, 2002, p. 113.

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duas fábricas de refrigerantes e três quartos das padarias da cidade se estabelecem

na região central.

O Liceu de Artes e Ofícios — uma marcenaria-escola — e alguns

outros estabelecimentos industriais de grande porte (mais de 100 operários) dão

especial relevância a essa função.

Em Salvador, sede regional de capital especulativo, a atividade

bancária desenvolveu-se febrilmente, quase toda ela concentrando-se na área do

Comércio, dinâmico centro financeiro.

Essa era a realidade urbana de Salvador quando importantes

mudanças ocorrem no período a seguir — que será tema do próximo capítulo.

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NOTAS DO 1º CAPÍTULO