“O que fazes aí? É a rua!”: controles, estratégias e tensões em torno
dos malabarismos em semáforos1
Juliana Oliveira Silva
Mestranda em Antropologia Social, PPGAS-MN/UFRJ
Palavras-chave: Conflito; Trabalho; Malabares.
No contexto de disputas pelo uso legítimo do espaço público, incentivos ao
trabalho formal e o compromisso de residência fixa, muitas pessoas insatisfeitas com
suas rotinas rompem com empregos, moradias fixas e instituições de ensino superior
para viver viajando através dos malabarismos em semáforos. Essas práticas circenses
constituem a engrenagem de um estilo de vida “viajero”, que emerge e se sustenta nas
cidades, pois permite aos malabaristas trabalhar sem horário e local fixos por serem seus
próprios patrões.
O fato dos semáforos tornarem-se lugares de mercado (NEIBURG, 2010), onde
transações monetárias ocorrem, pode provocar inúmeros conflitos. Por um lado, as
atividades circenses de rua, motivadas por valores diversos, adquirem múltiplas
concepções e contribuem à construção das figuras de alteridade, seja na forma de
rótulos ou estigmas (GOFFMAN, 2008; BECKER, 1977) atribuídos aos seus
praticantes. De modo que o significado de malabarear acaba transitando entre “arte”,
“trabalho” e “vagabundagem”. Por vezes, essas atribuições podem ultrapassar o âmbito
verbal e exprimir-se em agressões físicas ou assédios sexuais: elementos recorrentes no
cotidiano dos malabaristas de rua. Nos semáforos, malabarear constitui uma prática
“marginal” que permeia as fronteiras entre o lícito (para os malabaristas) e o ilícito (para
outrem), afinal “sempre tem alguém que pergunta: ‘o que fazes aí?’ é a rua!”. Em outras
palavras, constantemente as apropriações do espaço público são questionadas.
Por outro lado, a multiplicidade de pessoas que utilizam o espaço público para
ganhar dinheiro é tamanha que surgem conflitos que, por sua vez, podem culminar na
ação policial e na institucionalização de regras. No caso da cidade de São Paulo, por
exemplo, esses conflitos resultaram no decreto municipal Nº 15.776/2013 que
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB.
2
estabelece os horários e locais permitidos para as apresentações, os equipamentos que
podem ser utilizados, as obrigações dos “artistas” e como será feita a fiscalização.
Este artigo se dedica a compreender, a partir da abordagem antropológica,
ancorada em trabalho de campo intermitente realizado em São Luís do Maranhão entre
2013 e 2015, como os malabarismos de rua constituem uma forma de viver nas margens
do Estado (DAS e POOLE, 2008) frente aos múltiplos esforços normatizadores. O
esforço de compreensão perpassa (i) a análise do conflito entre as expectativas morais
dos malabaristas e as reações normativas da alteridade, (ii) as relações com a força
policial, as criações de leis estatais que visam regulamentar as atividades dos “artistas
de rua”, e o modo como os malabaristas se relacionam com elas.
Nos semáforos: arte, trabalho ou vagabundagem?
Os dezenove malabaristas que conheci possuíam faixas etárias entre dezessete e
trinta anos. Eram seis argentinos, seis brasileiros (do Maranhão, Paraná e Rio Grande do
Sul), três venezuelanos, dois chilenos e dois colombianos. Destes, somente sete pessoas
não possuíam formação universitária, e quatro haviam trancado cursos de nível superior,
ao todo: Pedagogia, Música, Psicologia, Letras, Cinema, Desenho Industrial, Artes
Visuais, História, Gastronomia, Teatro e Terapia Psicossocial. Todos eles, antes de
iniciarem a circulação, já haviam trabalhado em empregos (in) formais, e afirmaram ter
abandonado estas ocupações pela insatisfação de “ficar no mesmo lugar”.
O nomadismo para esses “viajeros” apareceu como resistência ao compromisso
de residência fixa (MAFFESOLI, 2001), mas também ao trabalho formal, que limitam a
circulação. Ávidos por experimentar novas vivências e lugares, a fronteira Brasil-
Argentina os atraiu por três motivos principais: economizar tempo circulando um país
extenso; explorar paisagens litorâneas; evitar o calor do sertão brasileiro. Essas
justificativas são estratégias de viagem, trocadas durante os encontros nas estradas, que
delineiam um circuito de cidades visitadas por malabaristas. Esta categoria viabiliza a
compreensão dos fluxos móveis, na medida em que identifica “um conjunto de
estabelecimentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou oferta de
algum serviço, porém não contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos, contudo,
em sua totalidade, pelos usuários habituais” (MAGNANI, 1999, p.68). Aqui não se trata
de um circuito de estabelecimentos, e sim de locais visitados por “viajeros”.
3
Deste modo, verifiquei duas possibilidades de entrada no Brasil: saindo da
Venezuela, entrando por Boa Vista (RR); ou saindo do Uruguai, entrando por Pelotas
(RS).
Figura 1: Rotas de entrada no Brasil.
O fluxo de informações entre “viajeros” desenha o curso das viagens, em forma
de círculo, quer dizer quem está vindo por cima (Venezuela) passa a quem está vindo
por baixo (Uruguai) informações sobre os locais conhecidos, e vice-versa. As duas rotas
desembocam no litoral, onde o circuito de cidades torna-se mais perceptível.2 Nesse
sentido, esses trajetos são projetos que, longe de serem individuais, se esboçam nas
relações sociais, construídos em linguagens compartilhadas e mutáveis (VELHO,
2008a). A circulação, maior valor para os “viajeros”, é mantida pelos malabarismos, na
medida em que é uma atividade que os ajuda a obter os recursos para viagens sem
patrão ou horário fixos. E, conforme veremos, é justamente essa instrumentalidade que
norteia a concepção que os malabaristas têm da atividade.
Neste sentido, poderíamos pensar que as pessoas malabareiam nos semáforos
por amor à arte? A princípio essa questão pairava em minha mente, mas no decorrer da
pesquisa de campo, verifiquei o quanto a ideia de arte estava desvinculada das técnicas
2 Os estados Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia são conhecidos de modo geral. Posteriormente, percebi
maior visibilidade das cidades visitadas: Porto Seguro, Ilhéus, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João
Pessoa. Nos estados Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, respectivamente, as cidades sempre
mencionadas eram Pipa, Jericoacora, Canoa Quebrada e São Luís.
4
circenses per si3 e, mais que isso, os malabarismos “dentro” e “fora” dos semáforos
possuíam significados díspares.
Então o que seria arte no ponto de vista dos malabaristas? A capacidade de
utilizar a técnica circense para expressar sentimentos e, assim, contagiar outrem. Arte
seria transmitir um “saber viver”, que eles só conseguem oferecer porque vivem como
vivem: circulando. Essa ideia de ofertar algo se respalda na visão que eles têm dos
habitantes citadinos: “estressados” com suas rotinas de trabalho, “necessitam de
felicidade e sorriso”. Com a técnica circense, os malabaristas acreditam “ajudar” as
pessoas a se “desconectarem” de tudo aquilo que lhes oprime:
Quando eu fazia malabares, além de estar mostrando, oferecendo a minha
arte, a minha técnica, tudo... Eu também via que eu tava conseguindo,
poderia até ser algumas pessoas, mas eu via que eu tava conseguindo tirar
um foco daquele stress que as pessoas têm no sinal (Entrevista com
Alicia, em 28/01/15) [grifos meus].
Segundo essa concepção, a arte não está na técnica circense, e sim incorporada
ao estilo de vida circulante. As técnicas seriam um veículo de transmissão dos
sentimentos resultantes da circulação. Em outras palavras, os malabarismos só são arte
dependendo da pessoa que o executa, e dos sentimentos que ela exprime. À vista disso,
qual seria a distinção entre malabarear nos semáforos e em outros espaços?
Para eles, malabarear nos semáforos é, por excelência, “um trabalho totalmente
marginal e livre”, ferramenta na manutenção de um modo de vida, que viabiliza viajar
sem ter um patrão e carga horária obrigatória. Daí ser também uma crítica ao “sistema”,
já que acreditam viver em suas “margens”. Sob a ótica dos malabaristas, os semáforos
são apenas um “local de treino” e aperfeiçoamento, pois ali o tempo só lhes permite o
fazer rápido em detrimento do fazer bem4:
Tenho uma coisa na cabeça que eu quero fazer e vou para o sinal treinar...
O que eu gosto de fazer pra mostrar agora... Eu gosto de ter um pouco mais
de disciplina, de organização. Algo mais organizado, algo mais trabalhado,
sabe? Pra mostrar um espetáculo, preciso de mais tempo, o vestuário. Não
no sinal, no sinal eu vou treinar só, complemento às pessoas, treino...
Despeço e se eles querem colaborar, de boa. Se não, é de boa também
3 Na pesquisa de campo, verifiquei a utilização de instrumentos musicais (pandeiro, percussão) e
circenses: bolas de contato, diabolô, swings poi/bandeira, facões, pernas de pau e pirofagia, que envolve
swing de fogo corrente, bastões chineses e tochas de fogo.
4 Jeudy-Ballini (2002) investigou a percepção que os trabalhadores de uma fábrica de artigos de couro,
chamada sob o pseudônimo La Marque, têm sobre seu próprio trabalho. Essa etnografia mostrou que os
trabalhadores criam estratégias de resistência, embora não necessariamente identificadas como tais,
extremamente relevantes para o cotidiano de trabalho, pois são também formas de criticar o padrão de
produtividade da empresa (fazer rápido) que sufoca o savoir-faire dos trabalhadores (fazer bem).
5
porque eu estou ganhando... Estou ganhando em treinamento (Entrevista
com Quino, em 21/01/15) [grifos meus].
[...] para mim, o semáforo é um treino também. Ainda que seja uma
pequena apresentação, é só um treino porque passo cada minuto
treinando, aperfeiçoando minha técnica (Entrevista com Elloy, em
05/02/15) [grifos meus].
Nos semáforos, com a expressão parcial dos sentimentos resultantes da
circulação, eles “treinam” e “complementam” a rotina dos transeuntes, pois o tempo
exíguo não os permite a completa expressão. Por isso, o que é revelado ali não se
constitui, primordialmente, como arte ou espetáculo. Malabares enquanto arte é “algo
mais trabalhado”, um “espetáculo” que o parco tempo dos semáforos impede, e só
viabiliza apresentações cujas sequências circenses sejam previamente memorizadas:
No semáforo é algo muito rápido, entendeu? Tu não tem o tempo pra tu
mostrar muito. Tu tem que sair com algo já na cabeça: “vou fazer isso
assim, assim”. E o outro lado [fora dos semáforos], tu pode formar uma
história de qualquer coisa, é um mundo muito maior que o sinal. O sinal
é como... pra mim foi a entrada, sabe? Como a porta de acesso ao que hoje
em dia eu conheço como circo (Entrevista com Quino, em 21/01/15) [grifos
meus].
[nos semáforos] não demonstro tudo o que posso fazer, hein?
Em que momento tu mostras tudo o que podes fazer?
Quando eu tô praticando sozinho por aí, em uma praia sozinho. No meio do
mato.
No semáforo tu não mostras tudo? Não.
Por que? Às vezes é pelo tempo muito curto. O primeiro passo é formar
uma rotina (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15) [grifos meus].
O tempo é uma variável importante no estilo de vida circulante. Enquanto
instituição, sua contagem é aprendida desde a infância a ponto de se tornar consciência
individual naturalizada (ELIAS, 1998). A posse e o controle do tempo são astúcias que
os malabaristas anseiam continuamente conquistar: equilibrando suas necessidades de
“viajeros” com o tempo dos transeuntes (tráfego), sem deixar de auto regular suas
jornadas de trabalho e serem, de fato, donos do seu tempo.
O “trabalho convencional”, típico do “sistema” capitalista, é criticado pelos
malabaristas que proclamam o “trabalhar para viver, e não viver para trabalhar”.
Malabarear é a forma mais preeminente que encontram de tecer essa crítica, conforme
assinalou Quino: “quer outra forma de criticar o trabalho que jogando enquanto tu
trabalhas?”. E isso é possível a partir de uma retroalimentação entre formalidades e
informalidades, ou seja, na medida em que pessoas estão inseridas no trabalho formal e,
por conseguinte, podem “colaborar” monetariamente com informalidades. Vivendo nas
6
“margens” desse Estado, quer dizer nos espaços de criatividade5, conscientes de sua
posição, os malabaristas de rua acreditam estar mostrando às pessoas, através de suas
performances nos semáforos, o quanto conseguem driblar as imposições desse
“sistema”.
Como muitos trabalhos, malabarear requer preparativos. O tempo escasso dos
semáforos conduz os malabaristas à elaboração de padrões que cada profissional cria
consoante aos instrumentos circenses e locais (semáforos, praças etc.) onde trabalhará,
pois “cativar” o público exige “organização”. O interesse em satisfazê-lo é latente, caso
sintam-se tecnicamente “despreparados”, os malabaristas não vão aos semáforos antes
de “evoluir”, leia-se aprender/aprimorar técnicas circenses para “não passar vergonha”.
Nesta perspectiva, “trocar de semáforo” é uma estratégia para que as habilidades do
malabarista não se banalizem, logo, sejam extraordinárias aos olhos do público que,
muitas vezes, avalia a apresentação e, a partir disso, pode “colaborar”.
Malgrado os preparativos, nem sempre as ocasiões geram apenas comunhão,
como a dança da cerveja entre os Azande, no Sudão Anglo-Egípcio, que produz também
conflitos e disputas (EVANS-PRITCHARD, 2014). Nesse sentindo, quais são as
concepções dos transeuntes acerca das atividades circenses em semáforos? Um dos
limites desta etnografia é ser um trabalho somente a partir do ponto de vista dos
malabaristas. Não elaborei uma estratégia de abordagem dos transeuntes em semáforos,
mas considero algumas reações que ouvi e presenciei interessantes para que possamos
vislumbrar as sociabilidades nesses espaços. Ali as relações são fortemente
caracterizadas por conflitos de significados, e transitam numa linha tênue entre simpatia
e antipatia, engendrando complexidades.
Nem sempre o público se deixa “cativar”, afinal “sempre tem alguém que
pergunta: ‘o que fazes aí?’ é a rua!”. Em outras palavras, frequentemente as
apropriações do espaço público são questionadas. Muitos transeuntes “colaboram” com
o trabalho dos malabaristas. Acenando, gritando e sorrindo. Outros apenas olham
curiosamente, por vezes, viram o rosto.
Na opinião dos malabaristas, o estado de espírito do público, fortemente
influenciado por eventos festivos (Natal, Copa do Mundo etc.), reflete-se nas
5 Ao assegurarmos nossa sobrevivência ou buscarmos diariamente justiça, os limites do Estado são
estendidos e restabelecidos. A ideia de margens questiona a solidez atribuída ao Estado, pois “los
márgenes, como limites reales del estado, son también los espacios en los que se crean y se extienden los
limites conceptuales de la economía” (DAS; POOLE, 2008, p. 23).
7
“colaborações”. É consenso entre os malabaristas que as “colaborações” independem
apenas dos seus esforços. Em grande medida, decorrem da predisposição dos
transeuntes a “colaborar”. Ao contrário do que Mauss (2003) dissera sobre as três
obrigações presentes numa relação de troca: nos semáforos, as pessoas não são
obrigadas a receber e, muito menos, retribuir.
Os malabaristas classificam as posturas do público em positivas —
“colaborações” com gestos, incentivos, avaliações críticas e/ou dinheiro —, e negativas
— críticas destrutivas, assédios, agressões físicas e verbais. Essas relações delineiam a
lista dos “bons semáforos” para trabalhar, ou seja, locais onde as pessoas “colaboram
com gratidão”, pois só a oferta monetária, para os malabaristas, é insuficiente. O que os
interessa é a forma como o dinheiro é oferecido, com “gratidão” ou como “esmola”.
Reiteradamente, nos semáforos, o dinheiro vem acompanhado de expressões
corporais que revelam sentimentos criticados pelos malabaristas, como pessoas que
oferecem dinheiro quando o malabarista erra, e dizem: “só porque caiu”. A meu ver, o
público por estar no lugar daquele que pode ou não oferecer dinheiro, em alguns casos,
acaba se sentindo um patrão e, muitas vezes, faz críticas destrutivas à apresentação: “ó
eu vou te dar esse dinheiro aqui, mas vê se na próxima vez tu faz algo melhorzinho,
tá?”. Havia ainda transeuntes que ofereciam cédulas por engano (dar cem reais em vez
de dois) e, ao perceber, retornavam ao semáforo para reivindicar junto ao malabarista
que, questionando se o trabalho não valia uma “colaboração” melhor, se recusava a
devolver.
O assédio sexual é outra constante no universo circense de rua. Quando havia
somente mulheres malabareando nos semáforos, muitos comportamentos do público
eram considerados insuportáveis, e provocavam reações diversas: algumas ignoravam
temporariamente e manifestavam sua indignação depois; outras reagiam no exato
momento. Creio que, majoritariamente, essas formas de conflito estavam associadas aos
múltiplos significados que os malabarismos adquirem nos semáforos. Diversos insultos
verbais desconsideravam a performance circense nas ruas como um trabalho:
[...] As pessoas gritam muito isso “Ah isso é coisa de vagabundo por que
vocês não procuram trabalhar?”; “Ah, tu fica aí, e tu podia tá numa sala de
aula”. Às vezes também eles falam: “podia ta numa sala de aula, né?
Estudando... Podia ta estudando, e tá aí nessa vida” (Entrevista com Alicia,
em 28/01/15) [grifos meus].
Manifestações mais extremas resultavam em agressões físicas: Já teve alguma experiência boa ou ruim que te marcou nos semáforos?
Várias vezes já me atropelaram.
Várias vezes?
8
Com o carro assim...
Mas como assim?
Várias vezes. O cara ta aí [no semáforo] e não gostou, tem tempo de
atravessar e pum! (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15).
Se para alguns, os malabarismos em semáforos são vagabundagem, para os
malabaristas, é um trabalho fortemente valorizado, na medida em que “colabora” para
manter o estilo de vida circulante e, simultaneamente, oferece “ajuda” ao público sob a
forma de um “escape das rotinas estressantes”. Pantzike, um malabarista ludovicense,
ilustrou eminentemente esse conflito de significados: “tem gente que ainda diz ‘vai
trabalhar, vagabundo!’; respondo ‘vai lá, peão explorado’; ele [transeunte] trabalha o
dia todo pra ganhar mal, chega em casa não tem ânimo pra nada, só pra ver TV, e eu é
que sou o vagabundo!”.
As pessoas enquadram umas às outras em categorias (identidade social virtual),
nem sempre correspondentes ao que a pessoa é (identidade social real). Quando uma
pessoa corresponde às expectativas sociais, é considerada normal; por outro lado, se
ocorre um desencontro de categorizações, ela é estigmatizada porque possui uma
característica diferente da prevista socialmente (GOFFMAN, 2008). Essa pessoa pode
incorporar o estigma, mas este não é o caso dos malabaristas de rua que, apesar de
marginalizados, rejeitam e criticam os padrões sociais, supervalorizando seu trabalho e
modo de vida e, por isso, não tentam corrigir a característica que acreditam ser a razão
de sua não aceitação.
Ao contrário dos boxeadores em Chicago analisados por Wacquant (2000)6, os
malabaristas criticam ferozmente e não consentem com as explorações inerentes ao
mundo do trabalho. No ponto de vista de Pantzike, “vagabundo” é o transeunte que o
insultou, pois ele supervaloriza seu trabalho (malabares), já que é seu próprio patrão;
enquanto o transeunte é explorado por outrem e, na concepção do malabarista, parece
inconsciente disso.
Os malabaristas são rotulados em relação aos limites estabelecidos socialmente
por não atenderem algumas expectativas. Considero relevante pensarmos que a noção
6 A cumplicidade e o consentimento dos boxeadores com a exploração de seus corpos são expressos em
três vocabulários: (i) a exploração é um componente natural da vida, e entrar no mundo do boxe requer
aceitar posições subordinadas; (ii) crença na figura do indivíduo guerreiro, onde o boxe seria uma rota de
fuga de outras ocupações igualmente mal remuneradas; (iii) crença de que serão uma exceção à regra,
aqueles que darão a volta por cima através de seu esforço e dedicação.
9
de desvio é circunstancial, ou seja, uma prática é condenada dentro de uma gama de
valores construídos e mutáveis (BECKER, 1977). Neste caso, os malabaristas são
rotulados de marginais e desviantes dentro do contexto de valorização do trabalho
formal e do compromisso de residência fixa.
Há, portanto, uma incompatibilidade entre os que estipulam e os que não seguem
as regras. Os malabaristas não cumprem essas regras porque não as consideram válidas,
nem aqueles que os julgam como legítimos para tal. Em nossas conversas, sempre
enfatizavam discursivamente as violências sofridas nos semáforos, e a recusa aos
estigmas que lhes atribuíam. Muitas vezes, aos olhos dos malabaristas, o público projeta
sobre eles a imagem de pessoas que “não tiveram oportunidades na vida”, e estão ali por
“necessidade”. Essas posturas, dentro de outro modo de vida com valores próprios
(circulação, trocas), são consideradas ilógicas: “não entendo um cara que, só por estar
num carro de luxo, se acha melhor que o malabarista”. Seja arte, trabalho ou
vagabundagem, significados variados giram em torno dos malabarismos em semáforos
e, geralmente conflituosos, expressam a diversidade de valores que as pessoas carregam.
Por um lado, as agressões verbais dos transeuntes expressam o valor do emprego
formal e inserções em instituições de ensino. Por outro, malabarear em semáforos,
representa as valorizações da circulação e das trocas que, na concepção desses
profissionais, produz seu aperfeiçoamento enquanto pessoas. No entanto, as ruas são
pontos de encontro, e os semáforos abrigam outras relações além daquelas entre os
malabaristas e seu público alvo.
Com a polícia e as leis
Os usos do espaço público são diversos e podem gerar diferentes formas de
controle, conflitos e estratégias de (sobre) vivência. Barroso (2008), por exemplo,
mostrou como os vendedores ambulantes de CDs e DVDs sem notas fiscais na rua
Voluntários da Pátria, em Porto Alegre (RS), faziam arranjos cotidianos para lidar com
as ações de poderes públicos municipais e com a polícia militar: estrategicamente,
utilizavam roupas semelhantes às dos pedestres com o intuito de se misturar e,
facilmente, passar despercebidos. Em Porto Alegre (RS), as investidas contra
ambulantes, auto identificados como pirateiros, aumentaram após a construção do
Centro Popular de Compras, destinado aos camelôs regularizados pela Secretaria
Municipal de Produção, Indústria e Comércio (SMIC). A autora mostrou ainda como os
10
pirateiros entram em acordo quanto ao ponto da calçada próprio a cada um, forma
fluida de organização no espaço público que se confunde com uma imagem distorcida
sobre os ambulantes: os “responsáveis pela desorganização urbana”.
Outra etnografia interessante para pensarmos usos do espaço público foi
realizada por Cunegatto (2009) na Rua da Praia, atualmente chamada Rua dos
Andradas, primeiro espaço público e popular de Porto Alegre (RS). Localizada no
centro da cidade, esta rua abriga distintas artes de fazer, ou seja, intenso comércio e
trocas sociais. Nas narrativas dos interlocutores, a Rua da Praia foi um espaço
glamouroso, e agora está degradada repleta de pessoas de classe popular, que fazem
dela um centro de compra e venda de produtos expostos na vitrine popular. Essa nova
configuração é criticada por membros das classes sociais média e alta. Assim, os
comércios formal e informal são, simultaneamente, objeto de orgulho e desgosto.
Todavia, não é somente o ganho monetário que norteia os usos do espaço público. À
exemplo disso, Silva (2000) destacou a presença do Candomblé nas ruas de São Paulo.
Muitas vezes, essas situações ultrapassam o âmbito do conflito verbal e se
materializam em agressões físicas, pois as pessoas que ali trabalham ou executam outras
atividades realizam, na visão de muitos, um uso “distorcido” do espaço público. Neste
sentido, alguns estudos sobre malabaristas de rua também já foram realizados. Um deles
é o de Campos, Marques e Debortoli (2011) que se propuseram a pensar estratégias e
escolhas teórico-metodológicas de uma etnografia, realizada durante doze meses, junto
a crianças e jovens, com faixa etária entre nove e dezenove anos, que malabareavam nos
semáforos de Belo Horizonte (MG).
Os autores vincularam infância, trabalho e espaço urbano para criticar a ideia de
que todo trabalho infantil é explorado construindo, assim, um novo olhar sobre as ações
das crianças na cidade, onde a rua é o espaço do confronto com o diferente, mas
também o da sociabilidade. Apesar de muitos órgãos se incomodarem com a presença
de crianças malabareando nas ruas, pois parece ser antônimo de estudar, os autores
perceberam que as crianças estavam redesenhando suas participações na cidade através
do malabares. Elas iam aos semáforos nos fins de semana, justamente em dias que não
havia aulas, e por meio das técnicas circenses complementavam suas rendas familiares,
buscavam melhores condições de vida, criavam e mantinham vínculos de amizade.
Albino, Davies e Vaz (2012), por sua vez, focalizaram as relações ou ausência
de relações entre um grupo de malabaristas, com faixas etárias entre vinte e dois e trinta
e quatro anos, em Florianópolis (SC). Esta etnografia foi construída em um contexto
11
proibição de trabalhos nos semáforos daquela cidade, mas apesar disso, os autores
verificaram a existência de fronteiras simbólicas entre: (i) artistas que participavam dos
encontros semanais na praça Bento Silvério; (ii) artistas que não participam desses
encontros circenses; (iii) micróbios, isto é, viajantes sem ambições, que não trabalham
muito, apenas o suficiente para sobreviver.
Entre eles não havia um consenso quanto ao que caracteriza um artista, mas
interagir com o público, o interesse em aprender algo novo e a busca da satisfação em
primeiro lugar ou a frequências nos encontros semanais na praça eram alguns aspectos
presentes na concepção que eles possuíam sobre ser artista. Diferentemente, o micróbio
é o estrangeiro, que não trabalha de maneira considerada “adequada” e, com isso, acaba
gerando disputas nos semáforos. Na concepção dos autodenominados artistas, os
micróbios não chegam cedo aos semáforos, são oportunistas e querem dividir os
semáforos. Assim, esta etnografia revela as clivagens e conflitos existentes não somente
entre artistas e pedintes ou limpadores de vidro, mas também entre os próprios
malabaristas. Esses artistas tentam se diferenciar dos micróbios, configurando redes de
não relações ou redes de diferenciação, a fim de ser bem recebidos pelo público (idem).
Desta forma, falar de espaço público consiste em fazermos reflexões que, de
uma forma ou de outra, perpassam as relações entre os diversos usuários destes espaços,
mas também suas relações com a força policial e as leis. No que tange aos malabaristas
de rua, as revistas policiais eram constantes dentro e fora do Brasil. Aqui no Brasil, os
malabaristas que, frequentemente, jogavam facões já tiveram seus objetos confiscados
pela polícia, como Julio e Pirmin. Ter os objetos confiscados gerava um sentimento de
revolta nos malabaristas que, depois, precisavam conseguir dinheiro (sem ter os
materiais necessários para tal) a fim de comprar novos materiais:
Assisti a um espetáculo doido [em Boa Vista/RR] com a polícia e um
amigo venezuelano, que jogava com facões no sinal. A polícia chegou
muito rápido assim e falavam “violência, violência”, sabe? Ele não podia
fazer malabarismo com facões ali porque incitava a violência. [Disseram]
que ele podia cortar um braço, uma perna, o pescoço. E ele [policial] pegou
os facões do malabarista (Entrevista com Quino, em 21/01/15).
A postura policial estava respaldada em leis? Em muitos contextos, devido à
multiplicidade de pessoas que utilizam o espaço público das ruas para ganhar dinheiro é
tamanha que a institucionalização de regras se faz “necessária”. Essas regras muitas
vezes não se sustentam apenas no consenso entre essas pessoas, trabalhadores ou
artistas, e passam a circular no âmbito legal. No caso de São Paulo, o prefeito Fernando
12
Haddad assinou em 23/05/14 o decreto que regulamenta a lei 15.776/2013. Construída
junto aos representantes dos artistas de rua em São Paulo, a lei prevê que:
Art. 1º As apresentações de trabalho cultural por artistas de rua em vias,
cruzamentos, parques e praças públicas deverão observar as seguintes
condições:
I – permanência transitória no bem público, limitando-se a utilização ao
período de execução da manifestação artística;
II – gratuidade para os espectadores, permitidas doações espontâneas e
coleta mediante passagem de chapéu;
III – não impedir a livre fluência do trânsito;
IV – respeitar a integridade das áreas verdes e demais instalações do
logradouro, preservando-se os bens particulares e os de uso comum do
povo;
V – não impedir a passagem e circulação de pedestres, bem como o acesso
a instalações públicas ou privadas;
VI – não utilizar palco ou qualquer outra estrutura sem a prévia
comunicação ou autorização junto ao órgão competente do Poder
Executivo, conforme o caso;
VII – obedecer aos parâmetros de incomodidade e os níveis máximos de
ruído estabelecidos pela Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004;
VIII – estar concluídas até as 22:00 h (vinte e duas horas); e
IX – não ter patrocínio privado que as caracterize como evento de
marketing, salvo projetos apoiados por lei municipal, estadual ou federal de
incentivo à cultura.
Art. 2º Compreendem-se como atividades culturais de artistas de rua, dentre
outras, o teatro, a dança individual ou em grupo, a capoeira, a mímica, as
artes plásticas, o malabarismo ou outra atividade circense, a música, o
folclore, a literatura e a poesia declamada ou em exposição física das obras.
Art. 3º Durante a atividade ou evento, fica permitida a comercialização de
bens culturais duráveis como CDs, DVDs, livros, quadros e peças
artesanais, desde que sejam de autoria do artista ou grupo de artistas de rua
em apresentação e sejam observadas as normas que regem a matéria.
Art. 4º O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 60 (sessenta)
dias a partir de sua publicação.
Art. 5º As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de
dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.
Art. 6º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as
disposições em contrário.
Os responsáveis pela fiscalização são a subprefeitura da área e a Guarda Civil
Municipal. Esta lei substituiu um decreto anterior que exigia um pré-cadastro dos
artistas para que eles pudessem exercer suas atividades por causa dos conflitos entre
comerciantes, artistas de rua e artesãos. O decreto prevê que a apresentação no espaço
público seja gratuita, porém, é permitida a “passagem do chapéu” para receber “doações
espontâneas” do público. Semelhantemente, no Rio de Janeiro, o vereador Reimont
decretou, no projeto de lei Nº 931/2011, que os artistas de rua podem se apresentar no
espaço público sem precisar pagar taxa desde que:
I - Sejam gratuitas para os espectadores, permitidas doações espontâneas;
II - Permitam a livre fluência do trânsito;
III - Permitam a passagem e circulação de pedestres, bem como o acesso a
instalações públicas ou privadas;
13
IV - Prescindam de palco ou de qualquer outra estrutura de prévia
instalação no local;
V - utilizem fonte de energia para alimentação de som com potência
máxima de 30 (trinta) kVAs;
VI - tenham duração máxima de até 4 (quatro) horas e estejam concluídas
até as 22:00 (vinte e duas horas); e,
VII - Não tenham patrocínio privado que as caracterize como um evento de
marketing, salvo projetos apoiados por leis municipal, estadual ou federal
de incentivo à cultura.
Inspirado nesses casos, em Londrina (PR), a partir do Movimento dos Artistas
de Rua (MARL), a “taxa prevista no código tributário da cidade deixa de existir para
artistas que ocupam praças e ruas de Londrina”. Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte
(MG) são outras cidades que seguiram este exemplo. Existem ainda propostas
proibicionistas como, por exemplo, em Presidente Prudente (SP), o vereador Adilson
Silgueiro escreveu um projeto para “proibição da prática por parte de artistas,
profissionais ou não, que utilizem, portem ou manuseiem substâncias incandescentes”.
Portanto, várias cidades brasileiras têm decretado leis relacionadas às atividades dos
artistas de rua. O interessante é perceber que, na maioria das reportagens que li, as leis
surgiram a partir da demanda de grupos específicos que se reconheciam como artistas
de rua.
Quem são essas pessoas que estão demandando regulamentação? Porque, aos
olhos delas, a regulamentação é necessária? Como está sendo feita a fiscalização dessas
atividades? Entre os malabaristas que conheci somente duas pessoas, quando questionei
suas opiniões acerca das leis para regulamentar as atividades, afirmaram conhecer ou já
ter ouvido falar nessas leis. No entanto, era perceptível que eles não sabiam exatamente
as ordens do decreto:
Tem uma lei em São Paulo pra regulamentar a atividade de artistas de rua.
Não sei se tu já ouviu falar nisso...? Já.
O que tu acha das criações dessas leis? Olha tem o seu lado bom e o seu
lado ruim, né? Porque às vezes digamos que o tempo estipulado seja meia
hora pra cada pessoa ou uma hora. Uma hora tu pode ganhar muito ou
pouco dinheiro, entendeu? Aí às vezes a pessoa tá contando assim naquele
dia ganhar uma grana legal pra comprar comida, enfim N coisas. E tipo
numa hora tu não vai ganhar aquela grana. Até porque é um tipo de trabalho
que tu não sai de casa já sabendo que tu vai ganhar aquela grana. Aí é
difícil. Mas por outro lado, pelo menos ajuda... com essa lei, né? Que as
pessoas vejam que é um trabalho, porque às vezes é necessário ter algo
documentado pras pessoas terem essa noção (Entrevista com Alicia, em
28/01/15).
Outros malabaristas quando ouviam a palavra “regulamentar” as atividades de
artistas de rua, pensavam logo que o Estado brasileiro estava querendo retirá-los das
14
ruas e criticavam o decreto, imaginando que se vão retirá-los das ruas, esse Estado
deveria propor alternativas:
O que tu acha das leis que regulamentam a atividade dos artistas de rua?
Não sei, acho que se vai fazer isso deveria criar mais espaços para esses
trabalhos que vai tirar da rua. Então, se você quer tirar malabarista da rua,
há de botar uma escola de malabares pro cara, que faz ensino de malabares
pro povo, pras escolas, mas se tu paga cada um salário, né? Sei lá, se você
vai tirar da rua tem que fornecer algo.
Mas e se não for pra tirar da rua necessariamente, se for só pra regular o
tempo que as pessoas trabalham num determinado local? Não sei, depende.
Pra mim pode ser boa ou ruim, depende do que estou necessitando, porque
se estou precisando de alguma grana e o tempo não dá, o tempo da
regulação não dá, ficou ruim. Mas se dá, ficou bom, então é muito variável.
Acho que o cara tem que jogar o que sente que precisa (Entrevista com
Elloy, em 05/02/15).
O que tu acha dessas leis que regulam a atividade de malabaristas no
semáforo? Não entendi, que não permitem?
Ou que regulam... Que querem regular o tempo... O que tu acha? Os caras
são fodas, né? Todo mundo tem direito de trabalhar. Eu acho que se a gente
quer trabalhar, ele pode trabalhar do jeito que ele sabe trabalhar, hein?
Tu não acha que em alguma medida as leis poderiam ajudar a evitar
conflitos? Claro, com certeza, mas... (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15).
Percebi que esses malabaristas, desvinculados de associações de artistas de rua,
não tinham conhecimento concreto acerca das leis. Talvez porque circulassem bastante,
mas penso que isso também pode ser resultado de uma não fiscalização, pois
majoritariamente, já passaram por cidades que possuem decretos quanto às atividades
em espaços públicos.
De qualquer modo, a regulamentação da atividade não era uma demanda dessas
pessoas. Mesmo sem saber profundamente sobre essas regras, aos olhos dos
malabaristas, a ideia de criação de leis que interferem em seus trabalhos não era bem
vista, considerando que legislação e “trabalho marginal/livre” não parecem combinar
muito. Apesar de se apresentar como uma alternativa às disputas por espaço público, os
malabaristas acreditavam que o Estado, de algum modo, quer “tirar proveito disso”
porque “tem muita gente fazendo” arte nas ruas. Por outro lado, criticavam o tempo
máximo de quatro horas afirmando que “eu não passo quatro horas no sinal”, revelando
uma criação que é imposta de cima pra baixo e não alcança as demandas plurais dos
grupos alvo.
Esta situação de criação de leis que não alcançam as realidades permeia diversos
grupos sociais. Em São Paulo (SP), os Pankararu tiveram que estrategicamente
promover sua visibilidade e legitimidade étnica, apresentando em espaços públicos sua
performance política e ritual dos praiás, no intuito de ser reconhecidos como indígenas
15
que vivem nas cidades e, assim, conseguirem alcançar seus direitos previstos na lei
(ALBUQUERQUE; NAKASHIMA, 2011). No Timor-Leste, as pessoas passaram a
fazer falsas acusações de estupro para garantir o dote da noiva, utilizando a ideia de
“violência doméstica” que acompanhava o novo sistema judiciário (SIMIÃO, 2006).
No Rio Grande do Sul, a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM),
através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), para lidar com a demanda
excessiva de atendimento começou a priorizar as “crianças indisciplinadas” ao invés das
“crianças necessitadas”. Estrategicamente, os pais das crianças passaram a justificar
como motivo de institucionalização dos filhos sua “insubmissão”, no intuito de
subverter as regras impostas pela instituição, e garantir a vaga para os filhos
(CARDARELLO; FONSECA, 1999). Essas três etnografias revelam a necessidade dos
dispositivos jurídicos serem pensados a partir de contextos concretos, a fim de serem
eficazes.
A legislação que visa os artistas de rua, evidentemente, não engloba somente
malabaristas. Mas, por meio da etnografia, pude verificar um pouco das disparidades
entre o dispositivo legal e a vida concreta dessas pessoas. Como pensar um decreto que
proíbe pessoas que trabalhar com determinados instrumentos (fogo, facões) sem
conhecer os materiais utilizados por elas? Como estabelecer uma lei que utiliza um
tempo (quatro horas) que nem de longe alcança o tempo real de trabalho (duas horas)
dessas pessoas?
Esses decretos nos ajudam a lidar com as inúmeras agressões verbais e físicas
que ocorrem diariamente nos espaços públicos? Ou apenas contribui à marginalização
de algumas atividades? A partir da pesquisa de campo, a postura policial pareceu-me
muito mais preocupada com o que os malabaristas pudessem fazer com os swings de
fogo ou com seus facões não amolados (“cegos”) do que com o que as pessoas
poderiam fazer de dentro dos seus automóveis. São leis criadas assim, de cima para
baixo, descoladas de contextos concretos, que forçam as pessoas a lançar mão de
estratégias criativas para conseguirem alcançar “seus” direitos e compartilhar o espaço
público.
Algumas considerações
As pessoas se apropriam do espaço urbano de múltiplas formas com objetivos
diversos. Neste artigo, mostrei que o fato dos semáforos tornarem-se lugares de
mercado (NEIBURG, 2010) pode provocar inúmeros conflitos entre malabaristas e o
16
público alvo, ou entre malabaristas e outras instâncias. Hostilidades que, muitas vezes,
giram em torno dos significados controversos que malabarear em semáforos adquire,
transitando entre arte, trabalho e vagabundagem. Os valores característicos de um modo
de vida norteiam os significados, as construções da alteridade e, por conseguinte, os
comportamentos que as pessoas dirigem umas às outras. Sobretudo nas relações que
ocorrem nos semáforos, pois se tratam de contatos efêmeros e imagéticos. Não há
conversa ou convivência duradoura. Esta relação por imagem abriga uma série de
construções das figuras de alteridade, que norteiam as ações e reações das pessoas no
instante em que se cruzam.
Assim, um semáforo comporta muitas versões. Para o malabarista, movido pela
circulação e trocas como valores, sua atividade é um nobre “trabalho” que, além dos
ganhos individuais, “ajuda” outrem por meio das técnicas circenses que veiculam uma
“arte”, fruto do seu estilo de vida. Para alguns transeuntes, detentores do trabalho formal
como um valor, malabarear nos semáforos não é um trabalho, e sim “vagabundagem”
(antônimo de trabalho).
Essas construções da alteridade se traduzem em comportamentos. Se os
transeuntes oferecem dinheiro como “esmola” ou assediam malabaristas creio que é
porque, de alguma forma, eles os consideram vulneráveis por “estarem na rua”. O
interessante é que essa concepção de “necessidade” ligada às pessoas que utilizam o
espaço público nem sempre condiz com as realidades. Para os malabaristas, a relação
com o público é unicamente um meio de acessar elementos que garantirão a
manutenção da circulação, na medida em que os “ajudam”.
Neste sentido, o público alvo não é nem de longe considerado patrão. A
retribuição nos semáforos remete à ideia de pagamento do manakuni, onde pagar não é
terminar uma dívida, e sim a possibilidade de continuá-la, mantendo o fluxo de dons
(FLORIDO, 2013). Nas relações de trocas, as pessoas podem ser afins potenciais ou
reais (idem). Os “viajeros” entre si são afins reais, ao passo que o público pode ser um
afim potencial, que jamais se tornará real porque possui outro modo de viver.
Inicialmente, destaquei características gerais e particularidades nos perfis dos
malabaristas de rua estudados, para que pudéssemos perceber suas próprias concepções
acerca da atividade circense que desempenham. A partir disso, discuti suas relações com
a polícia e as leis. Os valores “viajeros” (circulação e trocas) são o que motivam essas
pessoas a viver viajando e, por conseguinte, estarem nos semáforos fazendo malabares.
17
Assim, as sociabilidades nos semáforos são delineadas por identidades
imagéticas que as pessoas constroem umas sobre as outras com base nos seus padrões
valorativos. Conflitos ocorrem não apenas por causa do antagonismo de interesses, mas
também devido aos desencontros afetivos entre as pessoas, ou seja, uma pessoa pode
expressar um sentimento e ser mal interpretada. As interações sociais dependem de
compreensões básicas porque a vida social é um processo de negociação da realidade
que só acontece se houver negociação entre as pessoas (VELHO, 2008b).
Minha intenção aqui não foi apresentar uma visão maniqueísta do conflito.
Compartilho a noção de conflito como uma das formas de sociação que possibilitam a
vida em sociedade (SIMMEL, 1983). Por intermédio do conflito surgem hostilidades,
que preservam limites no interior dos grupos, dão agência às pessoas e garantem as
condições de sobrevivência ao proporcionarem posições recíprocas entre elas. O
conflito, assim, funciona como força integradora do grupo (idem). Nos semáforos,
servem para consolidar vínculos entre “viajeros” que, compartilhando um estilo de vida,
formam elos entre si. Os espaços urbanos proporcionam o surgimento de múltiplas
formas de viver. As valorizações da circulação contínua e do trabalho informal se
chocam com outros valores, como fixidez e formalidade. Desprezando-as, aos olhos do
público, os malabaristas parecem brincar enquanto outros trabalham.
Referências
ALBINO, Beatriz; DAVIES, Vanessa; VAZ, Alexandre. “Encontros e desvios nos
semáforos: investigando artistas em Florianópolis/SC”. In: Revista de Ciências
Humanas. Florianópolis: v. 46, n. 2, out. 2012, p. 469-479.
ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos; NAKASHIMA, Edson Yukio. “A
cultura da visibilidade: os Pankararu na cidade de São Paulo”. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 24, nº47, 2011, p. 182-201.
BARROSO, Priscila F. “Etnografia de Rua na ‘Voluntários da Pátria’: fotografando
ambulantes no Espaço Público”. In: Revista Ensaios. n.1, v.1, ano 1, 2º semestre de
2008, p. 1-12.
BECKER, Howard S. “Marginais e desviantes”; “Tipos de Desvio”. In: Uma teoria da
ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 53-85.
CARDARELLO, Andrea; FONSECA, Claudia. “Os direitos dos mais e menos
humanos”. In: Revista Horizontes Antropológicos, n. 10, Porto Alegre, 1999, p. 83-122.
18
CAMPOS, Túlio; MARQUES, Walter; DEBORTOLI, José A. “A cidade e seus sinais:
a construção de uma pesquisa com as crianças do malabares”. In: Licere, Belo
Horizonte, v.14, n.2, jun/2011, p. 1-40.
CUNEGATTO, Thais. Etnografia na rua da praia: um estudo antropológico sobre
cotidiano, memória e formas de sociabilidade no centro urbano porto-alegrense.
Dissertação de Mestrado, PPGAS/UFRGS, 2009, 138p.
DAS, Veena; POOLE, Deborah. “El Estado y sus márgenes: etnografías comparadas”.
In: Revista Académica de Relaciones Internacionales, Madri, nº8, jun. 2008, p. 1-39.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Editado por Michael Schröter. Traduzido por Vera
Ribeiro. Revisão técnica de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1998,
165p.
EVANS-PRITCHARD, E. E. “A dança”. In: Ritual e performance: 4 estudos clássicos.
Maria Laura Cavalcanti (org.). 1ª ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014, p. 21-28.
FLORIDO, Marcelo Pedro. “O manakuni dos Deni: prestações e contraprestações no rio
Cuniuá (AM)”. In: Paisagens ameríndias: lugares, circuitos e modos de vida na
Amazônia. Marta Amoroso e Gilton Mendes dos Santos (org.). São Paulo: Terceiro
nome, 2013, p. 275-298.
GOFFMAN, Erving. “Estigma e identidade social”; “O eu e seu outro”. In: Estigma:
notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LCT, 2008,
p. 11-50; 137-150.
JEUDY-BALLINI, Monique. « Et il paraît qu’ils ne sont pas tous sourds ? ». In:
Terrain [En ligne], 39 | 2002, mis en ligne le 19 décembre 2007, 17 octobre 2013. URL
: http://terrain.revues.org/1391 ; DOI : 10.4000/terrain.1391
MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Tradução de
Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001, 203p.
MAGNANI, José Guilherme C. Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito
neo-esotérico na cidade. São Paulo: Studio Nobel, 1999, 143p.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas”; “As técnicas do corpo”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac
Naify, 2003, p. 183-314; 399-422.
NEIBURG, Federico. “Os sentidos sociais da economia”. In: Horizontes das ciências
sociais no Brasil: antropologia. Coordenador geral Carlos Benedito Martins;
Coordenador de área Luiz Fernando Duarte. São Paulo: ANPOCS, 2010, p. 225-258.
SILVA, Vagner Gonçalves da. “As esquinas sagradas: o candomblé e o uso religioso da
cidade”. In: MAGNANI, José Guilherme C. Na metrópole: textos de antropologia
urbana. São Paulo: EDUSP, FAPESP, 2000, p. 88-123.
19
SIMMEL, Georg. “A natureza sociológica do conflito”. In: MORAES FILHO, Evaristo
(org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-134.
SIMIÃO, Daniel. “O feiticeiro desencantado: gênero, justiça e a invenção da violência
doméstica em Timor-Leste”. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2006, p. 127-154.
VELHO, Gilberto. “Projeto, emoção e orientação”. In: Individualismo e cultura: notas
para uma antropologia da sociedade contemporânea. 8. Ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2008a, p. 13-40.
___________. “Goffman, mal-entendidos e riscos interacionais”. In: Revista Brasileira
de Ciências Sociais. Vol. 23. Nº68, 2008b, p. 145-148.
WACQUANT, Loïc. “Putas, escravos e garanhões: linguagens de exploração e de
acomodação entre boxeadores profissionais”. In: Mana 6(2), 2000, p. 127-146.