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“O que fazes aí? É a rua!”: controles, estratégias e tensões em torno dos malabarismos em semáforos 1 Juliana Oliveira Silva Mestranda em Antropologia Social, PPGAS-MN/UFRJ Palavras-chave: Conflito; Trabalho; Malabares. No contexto de disputas pelo uso legítimo do espaço público, incentivos ao trabalho formal e o compromisso de residência fixa, muitas pessoas insatisfeitas com suas rotinas rompem com empregos, moradias fixas e instituições de ensino superior para viver viajando através dos malabarismos em semáforos. Essas práticas circenses constituem a engrenagem de um estilo de vida “viajero”, que emerge e se sustenta nas cidades, pois permite aos malabaristas trabalhar sem horário e local fixos por serem seus próprios patrões. O fato dos semáforos tornarem-se lugares de mercado (NEIBURG, 2010), onde transações monetárias ocorrem, pode provocar inúmeros conflitos. Por um lado, as atividades circenses de rua, motivadas por valores diversos, adquirem múltiplas concepções e contribuem à construção das figuras de alteridade, seja na forma de rótulos ou estigmas (GOFFMAN, 2008; BECKER, 1977) atribuídos aos seus praticantes. De modo que o significado de malabarear acaba transitando entre “arte”, “trabalho” e “vagabundagem”. Por vezes, essas atribuições podem ultrapassar o âmbito verbal e exprimir-se em agressões físicas ou assédios sexuais: elementos recorrentes no cotidiano dos malabaristas de rua. Nos semáforos, malabarear constitui uma prática “marginal” que permeia as fronteiras entre o lícito (para os malabaristas) e o ilícito (para outrem), afinal “sempre tem alguém que pergunta: ‘o que fazes aí?’ é a rua!”. Em outras palavras, constantemente as apropriações do espaço público são questionadas. Por outro lado, a multiplicidade de pessoas que utilizam o espaço público para ganhar dinheiro é tamanha que surgem conflitos que, por sua vez, podem culminar na ação policial e na institucionalização de regras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, esses conflitos resultaram no decreto municipal Nº 15.776/2013 que 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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Page 1: “O que fazes aí? É a rua!”: controles, estratégias e ... · dependendo da pessoa que o executa, e dos sentimentos que ela exprime. À vista disso, qual seria a distinção

“O que fazes aí? É a rua!”: controles, estratégias e tensões em torno

dos malabarismos em semáforos1

Juliana Oliveira Silva

Mestranda em Antropologia Social, PPGAS-MN/UFRJ

Palavras-chave: Conflito; Trabalho; Malabares.

No contexto de disputas pelo uso legítimo do espaço público, incentivos ao

trabalho formal e o compromisso de residência fixa, muitas pessoas insatisfeitas com

suas rotinas rompem com empregos, moradias fixas e instituições de ensino superior

para viver viajando através dos malabarismos em semáforos. Essas práticas circenses

constituem a engrenagem de um estilo de vida “viajero”, que emerge e se sustenta nas

cidades, pois permite aos malabaristas trabalhar sem horário e local fixos por serem seus

próprios patrões.

O fato dos semáforos tornarem-se lugares de mercado (NEIBURG, 2010), onde

transações monetárias ocorrem, pode provocar inúmeros conflitos. Por um lado, as

atividades circenses de rua, motivadas por valores diversos, adquirem múltiplas

concepções e contribuem à construção das figuras de alteridade, seja na forma de

rótulos ou estigmas (GOFFMAN, 2008; BECKER, 1977) atribuídos aos seus

praticantes. De modo que o significado de malabarear acaba transitando entre “arte”,

“trabalho” e “vagabundagem”. Por vezes, essas atribuições podem ultrapassar o âmbito

verbal e exprimir-se em agressões físicas ou assédios sexuais: elementos recorrentes no

cotidiano dos malabaristas de rua. Nos semáforos, malabarear constitui uma prática

“marginal” que permeia as fronteiras entre o lícito (para os malabaristas) e o ilícito (para

outrem), afinal “sempre tem alguém que pergunta: ‘o que fazes aí?’ é a rua!”. Em outras

palavras, constantemente as apropriações do espaço público são questionadas.

Por outro lado, a multiplicidade de pessoas que utilizam o espaço público para

ganhar dinheiro é tamanha que surgem conflitos que, por sua vez, podem culminar na

ação policial e na institucionalização de regras. No caso da cidade de São Paulo, por

exemplo, esses conflitos resultaram no decreto municipal Nº 15.776/2013 que

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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estabelece os horários e locais permitidos para as apresentações, os equipamentos que

podem ser utilizados, as obrigações dos “artistas” e como será feita a fiscalização.

Este artigo se dedica a compreender, a partir da abordagem antropológica,

ancorada em trabalho de campo intermitente realizado em São Luís do Maranhão entre

2013 e 2015, como os malabarismos de rua constituem uma forma de viver nas margens

do Estado (DAS e POOLE, 2008) frente aos múltiplos esforços normatizadores. O

esforço de compreensão perpassa (i) a análise do conflito entre as expectativas morais

dos malabaristas e as reações normativas da alteridade, (ii) as relações com a força

policial, as criações de leis estatais que visam regulamentar as atividades dos “artistas

de rua”, e o modo como os malabaristas se relacionam com elas.

Nos semáforos: arte, trabalho ou vagabundagem?

Os dezenove malabaristas que conheci possuíam faixas etárias entre dezessete e

trinta anos. Eram seis argentinos, seis brasileiros (do Maranhão, Paraná e Rio Grande do

Sul), três venezuelanos, dois chilenos e dois colombianos. Destes, somente sete pessoas

não possuíam formação universitária, e quatro haviam trancado cursos de nível superior,

ao todo: Pedagogia, Música, Psicologia, Letras, Cinema, Desenho Industrial, Artes

Visuais, História, Gastronomia, Teatro e Terapia Psicossocial. Todos eles, antes de

iniciarem a circulação, já haviam trabalhado em empregos (in) formais, e afirmaram ter

abandonado estas ocupações pela insatisfação de “ficar no mesmo lugar”.

O nomadismo para esses “viajeros” apareceu como resistência ao compromisso

de residência fixa (MAFFESOLI, 2001), mas também ao trabalho formal, que limitam a

circulação. Ávidos por experimentar novas vivências e lugares, a fronteira Brasil-

Argentina os atraiu por três motivos principais: economizar tempo circulando um país

extenso; explorar paisagens litorâneas; evitar o calor do sertão brasileiro. Essas

justificativas são estratégias de viagem, trocadas durante os encontros nas estradas, que

delineiam um circuito de cidades visitadas por malabaristas. Esta categoria viabiliza a

compreensão dos fluxos móveis, na medida em que identifica “um conjunto de

estabelecimentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou oferta de

algum serviço, porém não contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos, contudo,

em sua totalidade, pelos usuários habituais” (MAGNANI, 1999, p.68). Aqui não se trata

de um circuito de estabelecimentos, e sim de locais visitados por “viajeros”.

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Deste modo, verifiquei duas possibilidades de entrada no Brasil: saindo da

Venezuela, entrando por Boa Vista (RR); ou saindo do Uruguai, entrando por Pelotas

(RS).

Figura 1: Rotas de entrada no Brasil.

O fluxo de informações entre “viajeros” desenha o curso das viagens, em forma

de círculo, quer dizer quem está vindo por cima (Venezuela) passa a quem está vindo

por baixo (Uruguai) informações sobre os locais conhecidos, e vice-versa. As duas rotas

desembocam no litoral, onde o circuito de cidades torna-se mais perceptível.2 Nesse

sentido, esses trajetos são projetos que, longe de serem individuais, se esboçam nas

relações sociais, construídos em linguagens compartilhadas e mutáveis (VELHO,

2008a). A circulação, maior valor para os “viajeros”, é mantida pelos malabarismos, na

medida em que é uma atividade que os ajuda a obter os recursos para viagens sem

patrão ou horário fixos. E, conforme veremos, é justamente essa instrumentalidade que

norteia a concepção que os malabaristas têm da atividade.

Neste sentido, poderíamos pensar que as pessoas malabareiam nos semáforos

por amor à arte? A princípio essa questão pairava em minha mente, mas no decorrer da

pesquisa de campo, verifiquei o quanto a ideia de arte estava desvinculada das técnicas

2 Os estados Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia são conhecidos de modo geral. Posteriormente, percebi

maior visibilidade das cidades visitadas: Porto Seguro, Ilhéus, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João

Pessoa. Nos estados Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, respectivamente, as cidades sempre

mencionadas eram Pipa, Jericoacora, Canoa Quebrada e São Luís.

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circenses per si3 e, mais que isso, os malabarismos “dentro” e “fora” dos semáforos

possuíam significados díspares.

Então o que seria arte no ponto de vista dos malabaristas? A capacidade de

utilizar a técnica circense para expressar sentimentos e, assim, contagiar outrem. Arte

seria transmitir um “saber viver”, que eles só conseguem oferecer porque vivem como

vivem: circulando. Essa ideia de ofertar algo se respalda na visão que eles têm dos

habitantes citadinos: “estressados” com suas rotinas de trabalho, “necessitam de

felicidade e sorriso”. Com a técnica circense, os malabaristas acreditam “ajudar” as

pessoas a se “desconectarem” de tudo aquilo que lhes oprime:

Quando eu fazia malabares, além de estar mostrando, oferecendo a minha

arte, a minha técnica, tudo... Eu também via que eu tava conseguindo,

poderia até ser algumas pessoas, mas eu via que eu tava conseguindo tirar

um foco daquele stress que as pessoas têm no sinal (Entrevista com

Alicia, em 28/01/15) [grifos meus].

Segundo essa concepção, a arte não está na técnica circense, e sim incorporada

ao estilo de vida circulante. As técnicas seriam um veículo de transmissão dos

sentimentos resultantes da circulação. Em outras palavras, os malabarismos só são arte

dependendo da pessoa que o executa, e dos sentimentos que ela exprime. À vista disso,

qual seria a distinção entre malabarear nos semáforos e em outros espaços?

Para eles, malabarear nos semáforos é, por excelência, “um trabalho totalmente

marginal e livre”, ferramenta na manutenção de um modo de vida, que viabiliza viajar

sem ter um patrão e carga horária obrigatória. Daí ser também uma crítica ao “sistema”,

já que acreditam viver em suas “margens”. Sob a ótica dos malabaristas, os semáforos

são apenas um “local de treino” e aperfeiçoamento, pois ali o tempo só lhes permite o

fazer rápido em detrimento do fazer bem4:

Tenho uma coisa na cabeça que eu quero fazer e vou para o sinal treinar...

O que eu gosto de fazer pra mostrar agora... Eu gosto de ter um pouco mais

de disciplina, de organização. Algo mais organizado, algo mais trabalhado,

sabe? Pra mostrar um espetáculo, preciso de mais tempo, o vestuário. Não

no sinal, no sinal eu vou treinar só, complemento às pessoas, treino...

Despeço e se eles querem colaborar, de boa. Se não, é de boa também

3 Na pesquisa de campo, verifiquei a utilização de instrumentos musicais (pandeiro, percussão) e

circenses: bolas de contato, diabolô, swings poi/bandeira, facões, pernas de pau e pirofagia, que envolve

swing de fogo corrente, bastões chineses e tochas de fogo.

4 Jeudy-Ballini (2002) investigou a percepção que os trabalhadores de uma fábrica de artigos de couro,

chamada sob o pseudônimo La Marque, têm sobre seu próprio trabalho. Essa etnografia mostrou que os

trabalhadores criam estratégias de resistência, embora não necessariamente identificadas como tais,

extremamente relevantes para o cotidiano de trabalho, pois são também formas de criticar o padrão de

produtividade da empresa (fazer rápido) que sufoca o savoir-faire dos trabalhadores (fazer bem).

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porque eu estou ganhando... Estou ganhando em treinamento (Entrevista

com Quino, em 21/01/15) [grifos meus].

[...] para mim, o semáforo é um treino também. Ainda que seja uma

pequena apresentação, é só um treino porque passo cada minuto

treinando, aperfeiçoando minha técnica (Entrevista com Elloy, em

05/02/15) [grifos meus].

Nos semáforos, com a expressão parcial dos sentimentos resultantes da

circulação, eles “treinam” e “complementam” a rotina dos transeuntes, pois o tempo

exíguo não os permite a completa expressão. Por isso, o que é revelado ali não se

constitui, primordialmente, como arte ou espetáculo. Malabares enquanto arte é “algo

mais trabalhado”, um “espetáculo” que o parco tempo dos semáforos impede, e só

viabiliza apresentações cujas sequências circenses sejam previamente memorizadas:

No semáforo é algo muito rápido, entendeu? Tu não tem o tempo pra tu

mostrar muito. Tu tem que sair com algo já na cabeça: “vou fazer isso

assim, assim”. E o outro lado [fora dos semáforos], tu pode formar uma

história de qualquer coisa, é um mundo muito maior que o sinal. O sinal

é como... pra mim foi a entrada, sabe? Como a porta de acesso ao que hoje

em dia eu conheço como circo (Entrevista com Quino, em 21/01/15) [grifos

meus].

[nos semáforos] não demonstro tudo o que posso fazer, hein?

Em que momento tu mostras tudo o que podes fazer?

Quando eu tô praticando sozinho por aí, em uma praia sozinho. No meio do

mato.

No semáforo tu não mostras tudo? Não.

Por que? Às vezes é pelo tempo muito curto. O primeiro passo é formar

uma rotina (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15) [grifos meus].

O tempo é uma variável importante no estilo de vida circulante. Enquanto

instituição, sua contagem é aprendida desde a infância a ponto de se tornar consciência

individual naturalizada (ELIAS, 1998). A posse e o controle do tempo são astúcias que

os malabaristas anseiam continuamente conquistar: equilibrando suas necessidades de

“viajeros” com o tempo dos transeuntes (tráfego), sem deixar de auto regular suas

jornadas de trabalho e serem, de fato, donos do seu tempo.

O “trabalho convencional”, típico do “sistema” capitalista, é criticado pelos

malabaristas que proclamam o “trabalhar para viver, e não viver para trabalhar”.

Malabarear é a forma mais preeminente que encontram de tecer essa crítica, conforme

assinalou Quino: “quer outra forma de criticar o trabalho que jogando enquanto tu

trabalhas?”. E isso é possível a partir de uma retroalimentação entre formalidades e

informalidades, ou seja, na medida em que pessoas estão inseridas no trabalho formal e,

por conseguinte, podem “colaborar” monetariamente com informalidades. Vivendo nas

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“margens” desse Estado, quer dizer nos espaços de criatividade5, conscientes de sua

posição, os malabaristas de rua acreditam estar mostrando às pessoas, através de suas

performances nos semáforos, o quanto conseguem driblar as imposições desse

“sistema”.

Como muitos trabalhos, malabarear requer preparativos. O tempo escasso dos

semáforos conduz os malabaristas à elaboração de padrões que cada profissional cria

consoante aos instrumentos circenses e locais (semáforos, praças etc.) onde trabalhará,

pois “cativar” o público exige “organização”. O interesse em satisfazê-lo é latente, caso

sintam-se tecnicamente “despreparados”, os malabaristas não vão aos semáforos antes

de “evoluir”, leia-se aprender/aprimorar técnicas circenses para “não passar vergonha”.

Nesta perspectiva, “trocar de semáforo” é uma estratégia para que as habilidades do

malabarista não se banalizem, logo, sejam extraordinárias aos olhos do público que,

muitas vezes, avalia a apresentação e, a partir disso, pode “colaborar”.

Malgrado os preparativos, nem sempre as ocasiões geram apenas comunhão,

como a dança da cerveja entre os Azande, no Sudão Anglo-Egípcio, que produz também

conflitos e disputas (EVANS-PRITCHARD, 2014). Nesse sentindo, quais são as

concepções dos transeuntes acerca das atividades circenses em semáforos? Um dos

limites desta etnografia é ser um trabalho somente a partir do ponto de vista dos

malabaristas. Não elaborei uma estratégia de abordagem dos transeuntes em semáforos,

mas considero algumas reações que ouvi e presenciei interessantes para que possamos

vislumbrar as sociabilidades nesses espaços. Ali as relações são fortemente

caracterizadas por conflitos de significados, e transitam numa linha tênue entre simpatia

e antipatia, engendrando complexidades.

Nem sempre o público se deixa “cativar”, afinal “sempre tem alguém que

pergunta: ‘o que fazes aí?’ é a rua!”. Em outras palavras, frequentemente as

apropriações do espaço público são questionadas. Muitos transeuntes “colaboram” com

o trabalho dos malabaristas. Acenando, gritando e sorrindo. Outros apenas olham

curiosamente, por vezes, viram o rosto.

Na opinião dos malabaristas, o estado de espírito do público, fortemente

influenciado por eventos festivos (Natal, Copa do Mundo etc.), reflete-se nas

5 Ao assegurarmos nossa sobrevivência ou buscarmos diariamente justiça, os limites do Estado são

estendidos e restabelecidos. A ideia de margens questiona a solidez atribuída ao Estado, pois “los

márgenes, como limites reales del estado, son también los espacios en los que se crean y se extienden los

limites conceptuales de la economía” (DAS; POOLE, 2008, p. 23).

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“colaborações”. É consenso entre os malabaristas que as “colaborações” independem

apenas dos seus esforços. Em grande medida, decorrem da predisposição dos

transeuntes a “colaborar”. Ao contrário do que Mauss (2003) dissera sobre as três

obrigações presentes numa relação de troca: nos semáforos, as pessoas não são

obrigadas a receber e, muito menos, retribuir.

Os malabaristas classificam as posturas do público em positivas —

“colaborações” com gestos, incentivos, avaliações críticas e/ou dinheiro —, e negativas

— críticas destrutivas, assédios, agressões físicas e verbais. Essas relações delineiam a

lista dos “bons semáforos” para trabalhar, ou seja, locais onde as pessoas “colaboram

com gratidão”, pois só a oferta monetária, para os malabaristas, é insuficiente. O que os

interessa é a forma como o dinheiro é oferecido, com “gratidão” ou como “esmola”.

Reiteradamente, nos semáforos, o dinheiro vem acompanhado de expressões

corporais que revelam sentimentos criticados pelos malabaristas, como pessoas que

oferecem dinheiro quando o malabarista erra, e dizem: “só porque caiu”. A meu ver, o

público por estar no lugar daquele que pode ou não oferecer dinheiro, em alguns casos,

acaba se sentindo um patrão e, muitas vezes, faz críticas destrutivas à apresentação: “ó

eu vou te dar esse dinheiro aqui, mas vê se na próxima vez tu faz algo melhorzinho,

tá?”. Havia ainda transeuntes que ofereciam cédulas por engano (dar cem reais em vez

de dois) e, ao perceber, retornavam ao semáforo para reivindicar junto ao malabarista

que, questionando se o trabalho não valia uma “colaboração” melhor, se recusava a

devolver.

O assédio sexual é outra constante no universo circense de rua. Quando havia

somente mulheres malabareando nos semáforos, muitos comportamentos do público

eram considerados insuportáveis, e provocavam reações diversas: algumas ignoravam

temporariamente e manifestavam sua indignação depois; outras reagiam no exato

momento. Creio que, majoritariamente, essas formas de conflito estavam associadas aos

múltiplos significados que os malabarismos adquirem nos semáforos. Diversos insultos

verbais desconsideravam a performance circense nas ruas como um trabalho:

[...] As pessoas gritam muito isso “Ah isso é coisa de vagabundo por que

vocês não procuram trabalhar?”; “Ah, tu fica aí, e tu podia tá numa sala de

aula”. Às vezes também eles falam: “podia ta numa sala de aula, né?

Estudando... Podia ta estudando, e tá aí nessa vida” (Entrevista com Alicia,

em 28/01/15) [grifos meus].

Manifestações mais extremas resultavam em agressões físicas: Já teve alguma experiência boa ou ruim que te marcou nos semáforos?

Várias vezes já me atropelaram.

Várias vezes?

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Com o carro assim...

Mas como assim?

Várias vezes. O cara ta aí [no semáforo] e não gostou, tem tempo de

atravessar e pum! (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15).

Se para alguns, os malabarismos em semáforos são vagabundagem, para os

malabaristas, é um trabalho fortemente valorizado, na medida em que “colabora” para

manter o estilo de vida circulante e, simultaneamente, oferece “ajuda” ao público sob a

forma de um “escape das rotinas estressantes”. Pantzike, um malabarista ludovicense,

ilustrou eminentemente esse conflito de significados: “tem gente que ainda diz ‘vai

trabalhar, vagabundo!’; respondo ‘vai lá, peão explorado’; ele [transeunte] trabalha o

dia todo pra ganhar mal, chega em casa não tem ânimo pra nada, só pra ver TV, e eu é

que sou o vagabundo!”.

As pessoas enquadram umas às outras em categorias (identidade social virtual),

nem sempre correspondentes ao que a pessoa é (identidade social real). Quando uma

pessoa corresponde às expectativas sociais, é considerada normal; por outro lado, se

ocorre um desencontro de categorizações, ela é estigmatizada porque possui uma

característica diferente da prevista socialmente (GOFFMAN, 2008). Essa pessoa pode

incorporar o estigma, mas este não é o caso dos malabaristas de rua que, apesar de

marginalizados, rejeitam e criticam os padrões sociais, supervalorizando seu trabalho e

modo de vida e, por isso, não tentam corrigir a característica que acreditam ser a razão

de sua não aceitação.

Ao contrário dos boxeadores em Chicago analisados por Wacquant (2000)6, os

malabaristas criticam ferozmente e não consentem com as explorações inerentes ao

mundo do trabalho. No ponto de vista de Pantzike, “vagabundo” é o transeunte que o

insultou, pois ele supervaloriza seu trabalho (malabares), já que é seu próprio patrão;

enquanto o transeunte é explorado por outrem e, na concepção do malabarista, parece

inconsciente disso.

Os malabaristas são rotulados em relação aos limites estabelecidos socialmente

por não atenderem algumas expectativas. Considero relevante pensarmos que a noção

6 A cumplicidade e o consentimento dos boxeadores com a exploração de seus corpos são expressos em

três vocabulários: (i) a exploração é um componente natural da vida, e entrar no mundo do boxe requer

aceitar posições subordinadas; (ii) crença na figura do indivíduo guerreiro, onde o boxe seria uma rota de

fuga de outras ocupações igualmente mal remuneradas; (iii) crença de que serão uma exceção à regra,

aqueles que darão a volta por cima através de seu esforço e dedicação.

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de desvio é circunstancial, ou seja, uma prática é condenada dentro de uma gama de

valores construídos e mutáveis (BECKER, 1977). Neste caso, os malabaristas são

rotulados de marginais e desviantes dentro do contexto de valorização do trabalho

formal e do compromisso de residência fixa.

Há, portanto, uma incompatibilidade entre os que estipulam e os que não seguem

as regras. Os malabaristas não cumprem essas regras porque não as consideram válidas,

nem aqueles que os julgam como legítimos para tal. Em nossas conversas, sempre

enfatizavam discursivamente as violências sofridas nos semáforos, e a recusa aos

estigmas que lhes atribuíam. Muitas vezes, aos olhos dos malabaristas, o público projeta

sobre eles a imagem de pessoas que “não tiveram oportunidades na vida”, e estão ali por

“necessidade”. Essas posturas, dentro de outro modo de vida com valores próprios

(circulação, trocas), são consideradas ilógicas: “não entendo um cara que, só por estar

num carro de luxo, se acha melhor que o malabarista”. Seja arte, trabalho ou

vagabundagem, significados variados giram em torno dos malabarismos em semáforos

e, geralmente conflituosos, expressam a diversidade de valores que as pessoas carregam.

Por um lado, as agressões verbais dos transeuntes expressam o valor do emprego

formal e inserções em instituições de ensino. Por outro, malabarear em semáforos,

representa as valorizações da circulação e das trocas que, na concepção desses

profissionais, produz seu aperfeiçoamento enquanto pessoas. No entanto, as ruas são

pontos de encontro, e os semáforos abrigam outras relações além daquelas entre os

malabaristas e seu público alvo.

Com a polícia e as leis

Os usos do espaço público são diversos e podem gerar diferentes formas de

controle, conflitos e estratégias de (sobre) vivência. Barroso (2008), por exemplo,

mostrou como os vendedores ambulantes de CDs e DVDs sem notas fiscais na rua

Voluntários da Pátria, em Porto Alegre (RS), faziam arranjos cotidianos para lidar com

as ações de poderes públicos municipais e com a polícia militar: estrategicamente,

utilizavam roupas semelhantes às dos pedestres com o intuito de se misturar e,

facilmente, passar despercebidos. Em Porto Alegre (RS), as investidas contra

ambulantes, auto identificados como pirateiros, aumentaram após a construção do

Centro Popular de Compras, destinado aos camelôs regularizados pela Secretaria

Municipal de Produção, Indústria e Comércio (SMIC). A autora mostrou ainda como os

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pirateiros entram em acordo quanto ao ponto da calçada próprio a cada um, forma

fluida de organização no espaço público que se confunde com uma imagem distorcida

sobre os ambulantes: os “responsáveis pela desorganização urbana”.

Outra etnografia interessante para pensarmos usos do espaço público foi

realizada por Cunegatto (2009) na Rua da Praia, atualmente chamada Rua dos

Andradas, primeiro espaço público e popular de Porto Alegre (RS). Localizada no

centro da cidade, esta rua abriga distintas artes de fazer, ou seja, intenso comércio e

trocas sociais. Nas narrativas dos interlocutores, a Rua da Praia foi um espaço

glamouroso, e agora está degradada repleta de pessoas de classe popular, que fazem

dela um centro de compra e venda de produtos expostos na vitrine popular. Essa nova

configuração é criticada por membros das classes sociais média e alta. Assim, os

comércios formal e informal são, simultaneamente, objeto de orgulho e desgosto.

Todavia, não é somente o ganho monetário que norteia os usos do espaço público. À

exemplo disso, Silva (2000) destacou a presença do Candomblé nas ruas de São Paulo.

Muitas vezes, essas situações ultrapassam o âmbito do conflito verbal e se

materializam em agressões físicas, pois as pessoas que ali trabalham ou executam outras

atividades realizam, na visão de muitos, um uso “distorcido” do espaço público. Neste

sentido, alguns estudos sobre malabaristas de rua também já foram realizados. Um deles

é o de Campos, Marques e Debortoli (2011) que se propuseram a pensar estratégias e

escolhas teórico-metodológicas de uma etnografia, realizada durante doze meses, junto

a crianças e jovens, com faixa etária entre nove e dezenove anos, que malabareavam nos

semáforos de Belo Horizonte (MG).

Os autores vincularam infância, trabalho e espaço urbano para criticar a ideia de

que todo trabalho infantil é explorado construindo, assim, um novo olhar sobre as ações

das crianças na cidade, onde a rua é o espaço do confronto com o diferente, mas

também o da sociabilidade. Apesar de muitos órgãos se incomodarem com a presença

de crianças malabareando nas ruas, pois parece ser antônimo de estudar, os autores

perceberam que as crianças estavam redesenhando suas participações na cidade através

do malabares. Elas iam aos semáforos nos fins de semana, justamente em dias que não

havia aulas, e por meio das técnicas circenses complementavam suas rendas familiares,

buscavam melhores condições de vida, criavam e mantinham vínculos de amizade.

Albino, Davies e Vaz (2012), por sua vez, focalizaram as relações ou ausência

de relações entre um grupo de malabaristas, com faixas etárias entre vinte e dois e trinta

e quatro anos, em Florianópolis (SC). Esta etnografia foi construída em um contexto

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proibição de trabalhos nos semáforos daquela cidade, mas apesar disso, os autores

verificaram a existência de fronteiras simbólicas entre: (i) artistas que participavam dos

encontros semanais na praça Bento Silvério; (ii) artistas que não participam desses

encontros circenses; (iii) micróbios, isto é, viajantes sem ambições, que não trabalham

muito, apenas o suficiente para sobreviver.

Entre eles não havia um consenso quanto ao que caracteriza um artista, mas

interagir com o público, o interesse em aprender algo novo e a busca da satisfação em

primeiro lugar ou a frequências nos encontros semanais na praça eram alguns aspectos

presentes na concepção que eles possuíam sobre ser artista. Diferentemente, o micróbio

é o estrangeiro, que não trabalha de maneira considerada “adequada” e, com isso, acaba

gerando disputas nos semáforos. Na concepção dos autodenominados artistas, os

micróbios não chegam cedo aos semáforos, são oportunistas e querem dividir os

semáforos. Assim, esta etnografia revela as clivagens e conflitos existentes não somente

entre artistas e pedintes ou limpadores de vidro, mas também entre os próprios

malabaristas. Esses artistas tentam se diferenciar dos micróbios, configurando redes de

não relações ou redes de diferenciação, a fim de ser bem recebidos pelo público (idem).

Desta forma, falar de espaço público consiste em fazermos reflexões que, de

uma forma ou de outra, perpassam as relações entre os diversos usuários destes espaços,

mas também suas relações com a força policial e as leis. No que tange aos malabaristas

de rua, as revistas policiais eram constantes dentro e fora do Brasil. Aqui no Brasil, os

malabaristas que, frequentemente, jogavam facões já tiveram seus objetos confiscados

pela polícia, como Julio e Pirmin. Ter os objetos confiscados gerava um sentimento de

revolta nos malabaristas que, depois, precisavam conseguir dinheiro (sem ter os

materiais necessários para tal) a fim de comprar novos materiais:

Assisti a um espetáculo doido [em Boa Vista/RR] com a polícia e um

amigo venezuelano, que jogava com facões no sinal. A polícia chegou

muito rápido assim e falavam “violência, violência”, sabe? Ele não podia

fazer malabarismo com facões ali porque incitava a violência. [Disseram]

que ele podia cortar um braço, uma perna, o pescoço. E ele [policial] pegou

os facões do malabarista (Entrevista com Quino, em 21/01/15).

A postura policial estava respaldada em leis? Em muitos contextos, devido à

multiplicidade de pessoas que utilizam o espaço público das ruas para ganhar dinheiro é

tamanha que a institucionalização de regras se faz “necessária”. Essas regras muitas

vezes não se sustentam apenas no consenso entre essas pessoas, trabalhadores ou

artistas, e passam a circular no âmbito legal. No caso de São Paulo, o prefeito Fernando

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Haddad assinou em 23/05/14 o decreto que regulamenta a lei 15.776/2013. Construída

junto aos representantes dos artistas de rua em São Paulo, a lei prevê que:

Art. 1º As apresentações de trabalho cultural por artistas de rua em vias,

cruzamentos, parques e praças públicas deverão observar as seguintes

condições:

I – permanência transitória no bem público, limitando-se a utilização ao

período de execução da manifestação artística;

II – gratuidade para os espectadores, permitidas doações espontâneas e

coleta mediante passagem de chapéu;

III – não impedir a livre fluência do trânsito;

IV – respeitar a integridade das áreas verdes e demais instalações do

logradouro, preservando-se os bens particulares e os de uso comum do

povo;

V – não impedir a passagem e circulação de pedestres, bem como o acesso

a instalações públicas ou privadas;

VI – não utilizar palco ou qualquer outra estrutura sem a prévia

comunicação ou autorização junto ao órgão competente do Poder

Executivo, conforme o caso;

VII – obedecer aos parâmetros de incomodidade e os níveis máximos de

ruído estabelecidos pela Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004;

VIII – estar concluídas até as 22:00 h (vinte e duas horas); e

IX – não ter patrocínio privado que as caracterize como evento de

marketing, salvo projetos apoiados por lei municipal, estadual ou federal de

incentivo à cultura.

Art. 2º Compreendem-se como atividades culturais de artistas de rua, dentre

outras, o teatro, a dança individual ou em grupo, a capoeira, a mímica, as

artes plásticas, o malabarismo ou outra atividade circense, a música, o

folclore, a literatura e a poesia declamada ou em exposição física das obras.

Art. 3º Durante a atividade ou evento, fica permitida a comercialização de

bens culturais duráveis como CDs, DVDs, livros, quadros e peças

artesanais, desde que sejam de autoria do artista ou grupo de artistas de rua

em apresentação e sejam observadas as normas que regem a matéria.

Art. 4º O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 60 (sessenta)

dias a partir de sua publicação.

Art. 5º As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de

dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 6º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as

disposições em contrário.

Os responsáveis pela fiscalização são a subprefeitura da área e a Guarda Civil

Municipal. Esta lei substituiu um decreto anterior que exigia um pré-cadastro dos

artistas para que eles pudessem exercer suas atividades por causa dos conflitos entre

comerciantes, artistas de rua e artesãos. O decreto prevê que a apresentação no espaço

público seja gratuita, porém, é permitida a “passagem do chapéu” para receber “doações

espontâneas” do público. Semelhantemente, no Rio de Janeiro, o vereador Reimont

decretou, no projeto de lei Nº 931/2011, que os artistas de rua podem se apresentar no

espaço público sem precisar pagar taxa desde que:

I - Sejam gratuitas para os espectadores, permitidas doações espontâneas;

II - Permitam a livre fluência do trânsito;

III - Permitam a passagem e circulação de pedestres, bem como o acesso a

instalações públicas ou privadas;

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IV - Prescindam de palco ou de qualquer outra estrutura de prévia

instalação no local;

V - utilizem fonte de energia para alimentação de som com potência

máxima de 30 (trinta) kVAs;

VI - tenham duração máxima de até 4 (quatro) horas e estejam concluídas

até as 22:00 (vinte e duas horas); e,

VII - Não tenham patrocínio privado que as caracterize como um evento de

marketing, salvo projetos apoiados por leis municipal, estadual ou federal

de incentivo à cultura.

Inspirado nesses casos, em Londrina (PR), a partir do Movimento dos Artistas

de Rua (MARL), a “taxa prevista no código tributário da cidade deixa de existir para

artistas que ocupam praças e ruas de Londrina”. Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte

(MG) são outras cidades que seguiram este exemplo. Existem ainda propostas

proibicionistas como, por exemplo, em Presidente Prudente (SP), o vereador Adilson

Silgueiro escreveu um projeto para “proibição da prática por parte de artistas,

profissionais ou não, que utilizem, portem ou manuseiem substâncias incandescentes”.

Portanto, várias cidades brasileiras têm decretado leis relacionadas às atividades dos

artistas de rua. O interessante é perceber que, na maioria das reportagens que li, as leis

surgiram a partir da demanda de grupos específicos que se reconheciam como artistas

de rua.

Quem são essas pessoas que estão demandando regulamentação? Porque, aos

olhos delas, a regulamentação é necessária? Como está sendo feita a fiscalização dessas

atividades? Entre os malabaristas que conheci somente duas pessoas, quando questionei

suas opiniões acerca das leis para regulamentar as atividades, afirmaram conhecer ou já

ter ouvido falar nessas leis. No entanto, era perceptível que eles não sabiam exatamente

as ordens do decreto:

Tem uma lei em São Paulo pra regulamentar a atividade de artistas de rua.

Não sei se tu já ouviu falar nisso...? Já.

O que tu acha das criações dessas leis? Olha tem o seu lado bom e o seu

lado ruim, né? Porque às vezes digamos que o tempo estipulado seja meia

hora pra cada pessoa ou uma hora. Uma hora tu pode ganhar muito ou

pouco dinheiro, entendeu? Aí às vezes a pessoa tá contando assim naquele

dia ganhar uma grana legal pra comprar comida, enfim N coisas. E tipo

numa hora tu não vai ganhar aquela grana. Até porque é um tipo de trabalho

que tu não sai de casa já sabendo que tu vai ganhar aquela grana. Aí é

difícil. Mas por outro lado, pelo menos ajuda... com essa lei, né? Que as

pessoas vejam que é um trabalho, porque às vezes é necessário ter algo

documentado pras pessoas terem essa noção (Entrevista com Alicia, em

28/01/15).

Outros malabaristas quando ouviam a palavra “regulamentar” as atividades de

artistas de rua, pensavam logo que o Estado brasileiro estava querendo retirá-los das

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ruas e criticavam o decreto, imaginando que se vão retirá-los das ruas, esse Estado

deveria propor alternativas:

O que tu acha das leis que regulamentam a atividade dos artistas de rua?

Não sei, acho que se vai fazer isso deveria criar mais espaços para esses

trabalhos que vai tirar da rua. Então, se você quer tirar malabarista da rua,

há de botar uma escola de malabares pro cara, que faz ensino de malabares

pro povo, pras escolas, mas se tu paga cada um salário, né? Sei lá, se você

vai tirar da rua tem que fornecer algo.

Mas e se não for pra tirar da rua necessariamente, se for só pra regular o

tempo que as pessoas trabalham num determinado local? Não sei, depende.

Pra mim pode ser boa ou ruim, depende do que estou necessitando, porque

se estou precisando de alguma grana e o tempo não dá, o tempo da

regulação não dá, ficou ruim. Mas se dá, ficou bom, então é muito variável.

Acho que o cara tem que jogar o que sente que precisa (Entrevista com

Elloy, em 05/02/15).

O que tu acha dessas leis que regulam a atividade de malabaristas no

semáforo? Não entendi, que não permitem?

Ou que regulam... Que querem regular o tempo... O que tu acha? Os caras

são fodas, né? Todo mundo tem direito de trabalhar. Eu acho que se a gente

quer trabalhar, ele pode trabalhar do jeito que ele sabe trabalhar, hein?

Tu não acha que em alguma medida as leis poderiam ajudar a evitar

conflitos? Claro, com certeza, mas... (Entrevista com Pirmin, em 05/02/15).

Percebi que esses malabaristas, desvinculados de associações de artistas de rua,

não tinham conhecimento concreto acerca das leis. Talvez porque circulassem bastante,

mas penso que isso também pode ser resultado de uma não fiscalização, pois

majoritariamente, já passaram por cidades que possuem decretos quanto às atividades

em espaços públicos.

De qualquer modo, a regulamentação da atividade não era uma demanda dessas

pessoas. Mesmo sem saber profundamente sobre essas regras, aos olhos dos

malabaristas, a ideia de criação de leis que interferem em seus trabalhos não era bem

vista, considerando que legislação e “trabalho marginal/livre” não parecem combinar

muito. Apesar de se apresentar como uma alternativa às disputas por espaço público, os

malabaristas acreditavam que o Estado, de algum modo, quer “tirar proveito disso”

porque “tem muita gente fazendo” arte nas ruas. Por outro lado, criticavam o tempo

máximo de quatro horas afirmando que “eu não passo quatro horas no sinal”, revelando

uma criação que é imposta de cima pra baixo e não alcança as demandas plurais dos

grupos alvo.

Esta situação de criação de leis que não alcançam as realidades permeia diversos

grupos sociais. Em São Paulo (SP), os Pankararu tiveram que estrategicamente

promover sua visibilidade e legitimidade étnica, apresentando em espaços públicos sua

performance política e ritual dos praiás, no intuito de ser reconhecidos como indígenas

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que vivem nas cidades e, assim, conseguirem alcançar seus direitos previstos na lei

(ALBUQUERQUE; NAKASHIMA, 2011). No Timor-Leste, as pessoas passaram a

fazer falsas acusações de estupro para garantir o dote da noiva, utilizando a ideia de

“violência doméstica” que acompanhava o novo sistema judiciário (SIMIÃO, 2006).

No Rio Grande do Sul, a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM),

através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), para lidar com a demanda

excessiva de atendimento começou a priorizar as “crianças indisciplinadas” ao invés das

“crianças necessitadas”. Estrategicamente, os pais das crianças passaram a justificar

como motivo de institucionalização dos filhos sua “insubmissão”, no intuito de

subverter as regras impostas pela instituição, e garantir a vaga para os filhos

(CARDARELLO; FONSECA, 1999). Essas três etnografias revelam a necessidade dos

dispositivos jurídicos serem pensados a partir de contextos concretos, a fim de serem

eficazes.

A legislação que visa os artistas de rua, evidentemente, não engloba somente

malabaristas. Mas, por meio da etnografia, pude verificar um pouco das disparidades

entre o dispositivo legal e a vida concreta dessas pessoas. Como pensar um decreto que

proíbe pessoas que trabalhar com determinados instrumentos (fogo, facões) sem

conhecer os materiais utilizados por elas? Como estabelecer uma lei que utiliza um

tempo (quatro horas) que nem de longe alcança o tempo real de trabalho (duas horas)

dessas pessoas?

Esses decretos nos ajudam a lidar com as inúmeras agressões verbais e físicas

que ocorrem diariamente nos espaços públicos? Ou apenas contribui à marginalização

de algumas atividades? A partir da pesquisa de campo, a postura policial pareceu-me

muito mais preocupada com o que os malabaristas pudessem fazer com os swings de

fogo ou com seus facões não amolados (“cegos”) do que com o que as pessoas

poderiam fazer de dentro dos seus automóveis. São leis criadas assim, de cima para

baixo, descoladas de contextos concretos, que forçam as pessoas a lançar mão de

estratégias criativas para conseguirem alcançar “seus” direitos e compartilhar o espaço

público.

Algumas considerações

As pessoas se apropriam do espaço urbano de múltiplas formas com objetivos

diversos. Neste artigo, mostrei que o fato dos semáforos tornarem-se lugares de

mercado (NEIBURG, 2010) pode provocar inúmeros conflitos entre malabaristas e o

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público alvo, ou entre malabaristas e outras instâncias. Hostilidades que, muitas vezes,

giram em torno dos significados controversos que malabarear em semáforos adquire,

transitando entre arte, trabalho e vagabundagem. Os valores característicos de um modo

de vida norteiam os significados, as construções da alteridade e, por conseguinte, os

comportamentos que as pessoas dirigem umas às outras. Sobretudo nas relações que

ocorrem nos semáforos, pois se tratam de contatos efêmeros e imagéticos. Não há

conversa ou convivência duradoura. Esta relação por imagem abriga uma série de

construções das figuras de alteridade, que norteiam as ações e reações das pessoas no

instante em que se cruzam.

Assim, um semáforo comporta muitas versões. Para o malabarista, movido pela

circulação e trocas como valores, sua atividade é um nobre “trabalho” que, além dos

ganhos individuais, “ajuda” outrem por meio das técnicas circenses que veiculam uma

“arte”, fruto do seu estilo de vida. Para alguns transeuntes, detentores do trabalho formal

como um valor, malabarear nos semáforos não é um trabalho, e sim “vagabundagem”

(antônimo de trabalho).

Essas construções da alteridade se traduzem em comportamentos. Se os

transeuntes oferecem dinheiro como “esmola” ou assediam malabaristas creio que é

porque, de alguma forma, eles os consideram vulneráveis por “estarem na rua”. O

interessante é que essa concepção de “necessidade” ligada às pessoas que utilizam o

espaço público nem sempre condiz com as realidades. Para os malabaristas, a relação

com o público é unicamente um meio de acessar elementos que garantirão a

manutenção da circulação, na medida em que os “ajudam”.

Neste sentido, o público alvo não é nem de longe considerado patrão. A

retribuição nos semáforos remete à ideia de pagamento do manakuni, onde pagar não é

terminar uma dívida, e sim a possibilidade de continuá-la, mantendo o fluxo de dons

(FLORIDO, 2013). Nas relações de trocas, as pessoas podem ser afins potenciais ou

reais (idem). Os “viajeros” entre si são afins reais, ao passo que o público pode ser um

afim potencial, que jamais se tornará real porque possui outro modo de viver.

Inicialmente, destaquei características gerais e particularidades nos perfis dos

malabaristas de rua estudados, para que pudéssemos perceber suas próprias concepções

acerca da atividade circense que desempenham. A partir disso, discuti suas relações com

a polícia e as leis. Os valores “viajeros” (circulação e trocas) são o que motivam essas

pessoas a viver viajando e, por conseguinte, estarem nos semáforos fazendo malabares.

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Assim, as sociabilidades nos semáforos são delineadas por identidades

imagéticas que as pessoas constroem umas sobre as outras com base nos seus padrões

valorativos. Conflitos ocorrem não apenas por causa do antagonismo de interesses, mas

também devido aos desencontros afetivos entre as pessoas, ou seja, uma pessoa pode

expressar um sentimento e ser mal interpretada. As interações sociais dependem de

compreensões básicas porque a vida social é um processo de negociação da realidade

que só acontece se houver negociação entre as pessoas (VELHO, 2008b).

Minha intenção aqui não foi apresentar uma visão maniqueísta do conflito.

Compartilho a noção de conflito como uma das formas de sociação que possibilitam a

vida em sociedade (SIMMEL, 1983). Por intermédio do conflito surgem hostilidades,

que preservam limites no interior dos grupos, dão agência às pessoas e garantem as

condições de sobrevivência ao proporcionarem posições recíprocas entre elas. O

conflito, assim, funciona como força integradora do grupo (idem). Nos semáforos,

servem para consolidar vínculos entre “viajeros” que, compartilhando um estilo de vida,

formam elos entre si. Os espaços urbanos proporcionam o surgimento de múltiplas

formas de viver. As valorizações da circulação contínua e do trabalho informal se

chocam com outros valores, como fixidez e formalidade. Desprezando-as, aos olhos do

público, os malabaristas parecem brincar enquanto outros trabalham.

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