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Page 1: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico

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As Regras tio Método Sociológico

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Page 2: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico

As Regras do Método Sociológico

Page 3: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico

Émile Dürkheim As Regras

do Método Sociológico

T r a d u ç ã o P A U L O NEVES

R e v i s ã o da t radução E D U A R D O B R A N D Ã O

Martins Fontes São Paulo 2007

Page 4: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico

Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título LES RÈGLES DE LA MÉTHODE SOCIOLOGIQUE.

Copyright © Flammarion, 1988, para o aparelho crítico. Copyright © 1995, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

São Paulo, para a presente edição.

1' edição 1995 31 edição 2007

Tradução PAULO NEVES

Revisão da tradução Eduardo Brandão Revisões gráficas

Luzia Aparecida dos Santos Maria Cecília Vannucchi

Dinarte Zorzanelli da Silva Produção gráfica

Geraldo Alves Composição

Renato C. Carbone

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Durkheim, Émile, 1858-1917. — — As regras do método sociológico / Émile Durkheim ; tradução

Paulo Neves; revisão da tradução Eduardo Brandão. - 3- ed. - São Paulo : Martins Fonles, 2007. - (Coleção tópicos)

Título original: Les régies de la méthode sociologique. I S B N 978-85-336-2364-4

I . Sociologia - Metodologia 1. Título. II. Série.

07-1664 CDD-301.018

índices para catálogo sistemático: 1. Metodologia : Sociologia 301.018

2. Métodos sociológicos 301.018

Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11)3105.6993

e-mail: [email protected] http://www.martinsfonteseditora.com.br

INDICE

Nota sobre esta edição Prefácio da primeira edição Prefácio da segunda edição. Introdução

V I I X I

XV X X X I I I

I . O que é u m fato social? 1 I I . Regras relativas à observação dos fatos sociais 15

I I I . Regras relativas à distinção entre n o r m a l e pato­lógico 49

IV. Regras relativas à constituição dos tipos sociais .... 77 V. Regras relativas à expl icação dos fatos sociais 91

V I . Regras relativas à administração da prova 127

Conclusão, Notas

145 153

Page 5: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico

NOTA SOBRE ESTA EDIÇÃO

A presente tradução fo i baseada na primeira edição, de 1895, considerada texto de referência para As regras do método sociológico. Esta primeira edição, no entanto, dife­re em alguns pontos da versão inicial publicada na Revue philosophique. As modificações que constituem acréscimos ou impl icam reformulações do texto estão assinaladas sis­tematicamente através de asteriscos que indicam e de l imi ­tam o texto corrigido, fornecendo-se em nota de rodapé a redação inicial . As duas notas acrescentadas à edição de 1901, a 2-, publicada ainda em vida de D u r k h e i m , foram também assinaladas.

O trabalho d o professor Jean-Michel Berthelot, da Universidade de Toulouse I I (Flammarion, 1988), serviu de base para o estabelecimento da presente edição.

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À memória de Raymond LEDRUT

Fundador d o Institut de sciences sociales e d o Centre de recherches sociologiques da Universidade de Toulouse.

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PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

É tão p o u c o habitual tratar os fatos sociais cientifica­mente que algumas das proposições contidas nesta obra correm o risco de surpreender o leitor. Entretanto, se exis­te uma ciência das sociedades, cabe esperar que ela n ã o consista e m uma simples paráfrase dos preconceitos tradi­cionais, mas nos mostre as coisas diferentemente de c o m o as vê o vulgo; pois o objeto de toda ciência é fazer desco­bertas, e toda descoberta desconcerta mais o u menos as opiniões aceitas. Portanto, a menos que se atribua ao sen­so c o m u m , e m sociologia, uma autoridade que há m u i t o ele não possui nas outras ciências - e não se percebe de onde lhe poder ia advir essa autor idade - , c u m p r e que o sociólogo tome decididamente o part ido de não se i n t i m i ­dar c o m os resultados de suas pesquisas, se estas f o r a m metodicamente conduzidas. Se buscar o paradoxo é pró­prio de u m sofista, fugir dele, quando imposto pelos fatos, denota u m espírito sem coragem o u sem fé na ciência.

Infel izmente, é mais fácil admit ir essa regra e m p r i n ­cípio e teoricamente d o que aplicá-la c o m perseverança.

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X I I AS KEGR.4S DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

A i n d a estamos p o r demais acostumados a resolver essas questões c o m base nas sugestões d o senso c o m u m para que possamos facilmente mantê-lo a distância das discus­sões sociológicas. Q u a n d o nos cremos livres dele, ele nos impõe seus julgamentos sem que o percebamos. Somente u m a prática longa e especial é capaz de preveni r seme­lhantes lapsos. Eis o que pedimos ao leitor para não per­der de vista. Que tenha sempre presente n o espírito que suas maneiras de pensar mais costumeiras são antes con­trárias d o que favoráveis ao estudo científico dos fenôme­nos sociais e, por conseguinte, que se acautele contra suas primeiras impressões. Se se entregar a elas sem resistên­cia, arrisca-se a julgar-nos sem nos haver c o m p r e e n d i d o . Assim, pode acontecer que nos acusem de ter quer ido ab­solver o cr ime, sob pretexto de fazermos dele u m fenô­m e n o de sociologia n o r m a l . N o entanto, a o b j e ç ã o seria p u e r i l . Pois, se é normal que e m toda sociedade haja cri ­mes, não é menos normal que eles sejam punidos . A insti­tu i ção de u m sistema repress ivo n ã o é u m fato m e n o s universal que a existência de uma cr iminal idade, n e m me­nos indispensável à saúde coletiva. Para que não houves­se crimes, seria preciso u m nivelamento das consciências i n d i v i d u a i s que, p o r razões q u e veremos mais adiante , não é possível n e m desejável; mas, para que não houves­se repressão, seria preciso uma ausência de h o m o g e n e i ­dade m o r a l que é inconciliável com a existência de uma sociedade. Todavia, par t indo d o fato de que o cr ime é de­testado e detestável, o senso c o m u m conclui erradamente que ele deveria desaparecer p o r completo . C o m seu sim­p l i s m o cos tumeiro , n ã o concebe que uma coisa que re­pugna possa ter uma razão de ser útil. N o entanto, não há nenhuma contradição nisso. Não há no organismo funções repugnantes cuja at iv idade regular é necessária à saúde i n d i v i d u a l ? Acaso n ã o detestamos o sofr imento? E, n ã o

l'h'1'l 'ÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO X I I I

obstante, u m ser que não o conhecesse seria u m monstro. ( ) caráter normal de uma coisa e os sentimentos de aver­são que ela inspira p o d e m inclusive ser solidários. A dor é um fato normal , contanto que não seja apreciada; o cr ime c normal , contanto que seja o d i a d o 1 . Nosso método, por-lanto, nada tem de revolucionário. N u m certo sentido, é até essencialmente conservador, pois considera os fatos sociais como coisas cuja natureza, ainda que dócil e maleá­vel, não é modificável à vontade. B e m mais perigosa é a doutr ina que vê neles apenas o p r o d u t o de combinações mentais, que u m simples artifício dialético pode, n u m ins­tante, subverter de cima a baixo!

D o mesmo m o d o , c o m o é habi tua l representar-se a vida social c o m o o desenvolv imento lógico de conceitos ideais, julgar-se-á talvez grosseiramente u m método que faz a evolução coletiva depender de condições objetivas, definidas no espaço, e não é impossível que nos acusem de materialista. Entretanto, poderíamos c o m maior justiça reivindicar a qualif icação contrária. C o m efeito, não está na essência d o espir i tual ismo a idéia de que os f enôme­nos ps íquicos n ã o p o d e m ser i m e d i a t a m e n t e der ivados tios fenômenos orgânicos? Ora, nosso método não é, e m parte, senão uma apl icação desse princípio aos fatos so­ciais. Assim c o m o os espiritualistas separam o reino psico­lógico d o reino biológico, separamos o pr imeiro d o reino social; da mesma forma que eles, recusamo-nos a explicar o mais c o m p l e x o p e l o mais s imples . Na v e r d a d e , n e m uma n e m outra denominação nos convém exatamente; a única que aceitamos é a de racionalista. Nosso p r i n c i p a l objetivo, c o m efeito, é estender à conduta humana o racio­nalismo científico, mostrando que, considerada no passa­do , ela é redutível a relações de causa e efeito que uma o p e r a ç ã o não menos racional p o d e transformar a seguir em regras de ação para o futuro. O que chamamos nosso

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X I V AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

pos i t iv i smo n ã o é s e n ã o uma c o n s e q ü ê n c i a desse racio­na l i smo 2 . Só podemos ser tentados a superar os fatos, seja para explicá-los, seja para dir ig ir seu curso, na medida e m que os julgarmos irracionais. Se forem inteiramente inte l i ­gíveis, eles bastam à c iênc ia e à prática: à c iência , pois não há m o t i v o para buscar fora deles suas razões de ser; à prática, pois seu valor útil é u m a dessas razões. Parece-nos portanto, sobretudo nesta época de misticismo renas-cente, que tal empreendimento pode e deve ser acolhido sem inquie tude e mesmo c o m simpatia p o r todos aqueles que, embora divir jam de nós e m certos pontos , par t i lham nossa fé n o f u t u r o da razão.

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Q u a n d o f o i p u b l i c a d o pela p r i m e i r a vez, este l i v r o suscitou controvérsias bastante fortes. As idéias correntes, c o m o que desconcertadas, resistiram a princípio c o m tal energia que, durante u m tempo, nos f o i quase impossível fazer-nos o u v i r . Até nos pontos e m que nos expressára­mos mais e x p l i c i t a m e n t e , atr ibuíram-nos gra tu i tamente idéias que nada t i n h a m e m c o m u m c o m as nossas, e acre­ditaram refutar-nos ao refutá-las. Embora tenhamos decla­r a d o vár ias vezes q u e a c o n s c i ê n c i a , t a n t o i n d i v i d u a l quanto social, não era para nós nada de substancial, mas apenas u m conjunto mais o u menos sistematizado de fe­nômenos suigeneris, tacharam-nos de realismo e de onto-logismo. Embora tenhamos di to expressamente e repet ido de todas as maneiras q u e a v ida social era inte i ramente feita de representações , acusaram-nos de e l iminar o ele­mento mental da sociologia. H o u v e até q u e m chegasse a restaurar contra nós procedimentos de discussão que p o ­d i a m se considerar def ini t ivamente desaparecidos. I m p u ­taram-nos, c o m efeito, certas opiniões que não havíamos

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X V I AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

sustentado, sob pretexto de que elas estavam "de acordo c o m nossos princípios". A experiência já havia mostrado, porém, todos os per igos desse m é t o d o que , p e r m i t i n d o construir arbitrariamente os sistemas em questão, permite também triunfar deles sem esforço.

Não acredi tamos nos enganar ao d i z e r q u e , desde então, as resistências progressivamente diminuíram. Claro que mais de uma proposição nos é ainda contestada. Mas não poderíamos nos surpreender n e m nos queixar dessas c o n t e s t a ç õ e s salutares; n ã o resta dúvida de que nossas fórmulas estão destinadas a ser reformadas n o futuro . Re­sumo de uma prática pessoal e forçosamente restrita, elas deverão necessariamente evoluir á medida que se adquira uma experiência mais ampla e aprofundada da realidade social. Em matéria de método, aliás, jamais se pode fazer s e n ã o o provisór io , po i s os m é t o d o s m u d a m à m e d i d a que a ciência avança. Apesar disso, nestes últimos anos, e a despeito das oposições , a causa da sociologia objetiva, específica e metódica ganhou terreno sem interrupção. A fundação da revista Année sociologique certamente contr i ­b u i u e m m u i t o para esse resultado. Por abarcar a uma só vez t o d o o domínio da ciência, a Année pôde, melhor d o que qualquer obra especial, dar uma idéia d o que a socio­logia p o d e e deve se tornar. Deste m o d o f o i possível ver que ela não estava condenada a permanecer u m ramo da filosofia geral, sendo capaz, por outro lado, de entrar e m contato c o m o detalhe dos fatos sem degenerar em pura erudição. Por isso, nunca seria demais homenagear o ar­d o r e a dedicação de nossos colaboradores; f o i graças a eles que essa d e m o n s t r a ç ã o p ô d e de fato ser tentada e pode prosseguir.

N o entanto, p o r reais que sejam tais progressos, é i n ­contestável que os enganos e as confusões passadas a in­da não se dissiparam completamente. Eis p o r que gostaría-

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO X V I I

mos de aprovei tar esta segunda edição para acrescentar algumas expl i cações a todas aquelas que já demos, res­ponder a certas críticas e fazer sobre alguns pontos novos esclarecimentos.

I

A proposição segundo a qual os fatos sociais devem ser tratados c o m o coisas - propos ição q u e está na base de nosso método - é das que mais têm provocado contra­dições . Consideraram paradoxal e escandaloso que assi­milássemos às realidades d o m u n d o exterior as d o m u n d o social. Era equivocar-se singularmente sobre o sentido e o alcance dessa assimilação, cujo objeto não é rebaixar as formas super iores d o ser às formas i n f e r i o r e s , mas, ao contrário, re ivindicar para as primeiras u m grau de real i ­dade pelo menos igual ao que todos reconhecem nas se­gundas. Não dizemos, c o m efeito, que os fatos sociais são coisas materiais, e s im que são coisas tanto quanto as coi­sas materiais, embora de outra maneira.

O que v e m a ser uma coisa? A coisa se o p õ e à idéia assim como o que se conhece a partir de fora se opõe ao que se conhece a partir de dentro. É coisa t o d o objeto d o conhecimento que não é naturalmente penetrável à inte l i ­gência , t u d o a q u i l o de que não p o d e m o s fazer u m a n o ­ç ã o adequada por u m simples p r o c e d i m e n t o de análise m e n t a l , t u d o o que o espírito n ã o p o d e chegar a c o m ­preender a menos que saia de si mesmo, por meio de ob­servações e experimentações, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente aces­síveis aos menos visíveis e aos mais profundos . Tratar os fatos de u m a certa o r d e m c o m o coisas n ã o é, p o r t a n t o , classificá-los nesta o u naquela categoria d o real; é obser-

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X V I I I AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

var diante deles uma certa at i tude menta l . É abordar seu es t u do t o m a n d o p o r pr inc íp io q u e se i g n o r a absoluta­mente o que eles são e que suas propriedades característi­cas, b e m c o m o as causas desconhecidas de que estas de­p e n d e m , n ã o p o d e m ser descobertas pela introspecção , mesmo a mais atenta.

Assim def in idos os termos, nossa proposição , longe de ser u m p a r a d o x o , poder ia ser quase considerada u m truísmo, se ainda não fosse c o m muita freqüência desco­n h e c i d a nas c iênc ias que t ra tam d o h o m e m , s o b r e t u d o e m sociologia. C o m efeito, pode-se dizer, neste sentido, que t o d o objeto de ciência é u m a coisa, c o m e x c e ç ã o tal­vez dos objetos matemáticos; pois, quanto a estes, c o m o nós mesmos os construímos, dos mais s imples aos mais complexos , é suficiente, para saber o que são, olhar den­tro de nós e analisar inter iormente o processo mental de que resultam. Mas, quando se trata de fatos propriamente ditos, eles são para nós, no m o m e n t o e m que empreende­mos fazer-lhes a c iência , necessariamente coisas ignora­das, po i s as r e p r e s e n t a ç õ e s q u e f izemos eventua lmente deles ao l o n g o da v i d a , t e n d o s ido feitas sem m é t o d o e sem crítica, são desprovidas de va lor científ ico e d e v e m ser deixadas de lado. Os próprios fatos da psicologia i n d i ­v i d u a l apresentam esse caráter e devem ser considerados sob esse mesmo aspecto. C o m efeito, ainda que nos se­jam interiores p o r definição, a consciência que temos de­les não nos revela n e m sua natureza interna n e m sua gê­nese. Ela nos faz c o n h e c ê - l o s b e m até u m certo p o n t o , mas somente c o m o as s e n s a ç õ e s nos fazem conhecer o calor o u a luz , o s o m o u a e letr ic idade; ela nos oferece impressões confusas, passageiras, subjetivas, mas não n o ­ções claras e distintas, conceitos explicativos desses fatos. E é precisamente p o r essa razão que se f u n d o u neste sé­culo u m a psicologia objetiva, cuja regra fundamenta l é es-

1'REFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO X I X

tudar os fatos mentais a partir de fora, isto é, c o m o coisas. O mesmo deve ser d i t o dos fatos sociais, e c o m mais ra­zão ainda; pois a consciência não poder ia ser mais c o m ­petente para conhecê- los do que para conhecer sua v ida própria 3 . Objetar-se-á que, como eles são obra nossa, só precisamos tomar consciência de nós mesmos para saber o q u e neles p u s e m o s e de q u e m a n e i r a os f o r m a m o s . Mas, e m pr imei ro lugar, a maior parte das instituições so­ciais nos são legadas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; não t o m a m o s parte a lguma e m sua formação e, por conseqüência , não é nos interrogando que podere­mos descobr i r as causas que lhes d e r a m o r i g e m . Além disso, mesmo que tenhamos colaborado na gênese delas, só vis lumbramos da maneira mais confusa, e muitas vezes mais inexata, as verdadeiras razões que nos determinaram a agir e a natureza de nossa ação. Mesmo q u a n d o se trata s implesmente de nossas atitudes pr ivadas , conhecemos bastante mal as motivações relativamente simples que nos g u i a m ; cremo-nos desinteressados e na verdade agimos como egoístas, julgamos obedecer ao ódio q u a n d o cede­mos ao amor, à razão quando somos escravos de precon­ceitos irreflet idos, etc. Assim, c o m o teríamos a faculdade de d i s c e r n i r c o m m a i o r c lareza as causas, m u i t o mais complexas, de que procedem as atitudes da coletividade? Pois, de mais a mais, cada u m só participa dela numa ínfi­ma parte; temos u m a multidão de colaboradores e o que se passa nas outras consciências nos escapa.

Nossa regra n ã o impl ica por tanto n e n h u m a concep­ção metafísica, nenhuma especulação sobre o âmago dos seres. O que ela reclama é que o sociólogo se coloque n o mesmo estado de espírito dos físicos, químicos, fisiologis­tas, quando se lançam numa região ainda inexplorada de seu domínio científico. É preciso que, ao penetrar no m u n ­d o social, ele tenha consciência de que penetra no desço-

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XX AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

nhec ido ; é preciso que ele se sinta diante de fatos cujas leis s ã o tão insuspei tas q u a n t o p o d i a m ser as da v i d a , q u a n d o a b io log ia não estava constituída; é preciso que ele esteja pronto a fazer descobertas que o surpreenderão e o d e s c o n c e r t a r ã o . Ora , a soc io log ia está l o n g e de ter chegado a u m grau de maturidade intelectual. Enquanto o cientista q u e estuda a natureza física t e m o s e n t i m e n t o mui to v i v o das resistências que ela lhe opõe e que só são vencidas c o m dif iculdade, parece que o sociólogo se m o ­ve e m m e i o a coisas imediatamente transparentes para o espírito, tamanha a facil idade c o m que o vemos resolver as questões mais obscuras. No estado atual da ciência, não sabemos verdadeiramente o que são n e m sequer as pr inc i ­pais instituições sociais, como o Estado o u a família, o d i ­reito de propriedade o u o contrato, a pena o u a responsa­b i l i d a d e ; ignoramos quase c o m p l e t a m e n t e as causas de que d e p e n d e m , as funções que c u m p r e m , as leis de sua evolução; apenas começamos a vis lumbrar algumas luzes e m certos pontos. N o entanto, basta percorrer as obras de sociologia para ver como é raro o sentimento dessa igno­rância e dessas dif iculdades. Os sociólogos não somente se consideram como que obrigados a dogmatizar sobre to­dos os problemas ao mesmo tempo, mas acreditam poder, e m algumas páginas ou em algumas frases, atingir a essên­cia mesma dos f e n ô m e n o s mais c o m p l e x o s . Vale d izer que semelhantes teorias e x p r i m e m , não os fatos que não p o d e r i a m ser esgotados c o m tal rapidez, mas a prenoção que deles t inha o autor, anteriormente à pesquisa. Certa­mente a idéia que fazemos das práticas coletivas, d o que elas são ou d o que devem ser, é u m fator de seu desenvol­v i m e n t o . Mas essa idéia mesma é u m fato que , para ser convenientemente determinado, deve igualmente ser estu­dado desde fora. Pois o que importa saber não é a manei­ra como tal pensador individualmente concebe tal institui-

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO X X I

ção, mas a concepção que dela tem o grupo; somente essa concepção é socialmente eficaz. Ora, ela não pode ser co­nhecida por simples observação interior, uma vez que não está inteira em n e n h u m de nós; é preciso, pois, encontrar alguns sinais exteriores que a t o r n e m sensível . Além d o mais, ela não surgiu d o nada; ela própria é u m efeito de causas externas que é preciso conhecer, para poder apre­ciar seu papel no futuro. Seja como for, é sempre ao mes­mo método que é necessário voltar.

I I

Outra proposição não fo i menos vivamente discutida que a precedente: a que apresenta os f e n ô m e n o s sociais c o m o exteriores aos indivíduos. Concedem-nos de b o m grado, atualmente, que os fatos da vida i n d i v i d u a l e os da vida coletiva são heterogêneos e m certo grau; pode-se até dizer que u m entendimento, se não unânime, pelo menos m u i t o geral , está e m via de se formar sobre esse p o n t o . Quase não há mais sociólogos que n e g u e m à sociologia toda e q u a l q u e r especi f ic idade. Mas, c o m o a sociedade não é composta senão de indivíduos 1 , o senso c o m u m j u l ­ga que a v ida social n ã o pode ter o u t r o substrato que a consciência i n d i v i d u a l ; sem isso, ela parece solta no ar e pairando no vazio.

Entretanto, o que se julga tão facilmente inadmissível q uando se trata dos fatos sociais é normalmente admit ido nos outros reinos da natureza. Toda vez q u e e lementos quaisquer, ao se combinarem, produzem, p o r sua c o m b i ­nação, fenômenos novos, cumpre conceber que esses fe­nômenos estão situados, não nos elementos, mas no todo lormado por sua união. A célula viva nada contém senão partículas minera is , assim c o m o a sociedade nada mais

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X X I I AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

contém além dos indivíduos; n o entanto, é evidentemente impossível que os fenômenos característicos da v ida resi­d a m e m átomos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e de azoto. Pois de que maneira os movimentos vitais pode­r iam se produzir n o seio de elementos não vivos? De que maneira, além disso, as propriedades biológicas se reparti­r iam entre esses elementos? Elas não poder iam se verificar igualmente e m todos, já que eles não são da mesma natu­reza; o carbono não é o azoto, portanto não pode adquir ir as mesmas propriedades n e m desempenhar o mesmo pa­pel . T a m b é m não é admissível que cada aspecto da vida, cada u m de seus caracteres p r i n c i p a i s , se encarne n u m g r u p o diferente de átomos. A vida nãõ poderia se decom­p o r desta forma; ela é una e, e m conseqüênc ia , só p o d e ter p o r sede a substância viva e m sua totalidade. Ela está n o t o d o , n ã o nas partes. Não são as partículas não vivas da célula que se al imentam, se reproduzem, e m suma, que v i v e m ; é a própria célula, e somente ela. O que dizemos da v ida poder ia ser d i t o de todas as sínteses possíveis. A dureza d o bronze n ã o está n e m n o cobre, n e m n o esta­n h o , n e m n o c h u m b o que serviram para formá-lo e que são corpos brandos o u flexíveis; está na mistura deles. A f l u i d e z da água, suas propr iedades al imentares e outras não estão nos dois gases que a compõem, mas na substân­cia complexa que f o r m a m por sua associação.

A p l i q u e m o s esse princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese sui generis que constitui toda socie­dade p r o d u z f e n ô m e n o s n o v o s , d i fe rentes dos q u e se passam nas c o n s c i ê n c i a s solitárias, c u m p r e a d m i t i r que esses fatos específ icos res idem na sociedade mesma que os p r o d u z , e n ã o e m suas partes, isto é, e m seus m e m ­bros. Neste sentido, portanto, eles são exteriores às cons­ciências individuais , consideradas c o m o tais, assim c o m o os caracteres distintivos da vida são exteriores às substân-

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO X X I I I

cias minerais que c o m p õ e m o ser v i v o . Não se pode reab­sorvê-los nos e lementos sem que haja contradição, u m a vez que, p o r definição, eles supõem algo mais d o que es­ses elementos contêm. Assim se acha justificada, p o r u m a razão nova, a separação que estabelecemos mais adiante entre a psicologia propriamente dita, o u ciência d o indiví­d u o menta l , e a sociologia . Os fatos sociais n ã o d i f e r e m apenas e m qual idade dos fatos psíquicos; eles têm outro substrato, não e v o l u e m n o mesmo meio , não d e p e n d e m das mesmas condições . O que não quer dizer que não se­jam, também eles, psíquicos de certa maneira, já que to ­dos consistem e m modos de pensar o u de agir. Mas os es­tados da c o n s c i ê n c i a co le t iva são de natureza d i ferente dos estados da consciência indiv idual ; são representações de uma outra espécie . A mentalidade dos grupos não é a dos particulares; t em suas próprias leis. Portanto as duas c iênc ias são tão c laramente distintas q u a n t o p o d e m ser duas ciências, não i m p o r t a m as relações que possam exis­tir entre elas.

Todavia , convém fazer sobre esse p o n t o uma dis t in­ção que talvez lance alguma luz sobre o debate.

Q u e a matéria da v i d a social n ã o possa se expl icar por fatores puramente psicológicos, o u seja, p o r estados da consciência ind iv idua l , é o que nos parece de todo evi­dente. C o m efeito, o que as representações coletivas tradu­zem é o m o d o c o m o o g r u p o se pensa e m suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituí­d o da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não ex­p r i m e m n e m os mesmos sujeitos, n e m os mesmos objetos, não p o d e r i a m d e p e n d e r das mesmas causas. Para c o m ­preender a maneira c o m o a sociedade representa a si mes­ma e o m u n d o que a cerca, é a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que se deve considerar. Os símbo-

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los com os quais ela se pensa m u d a m conforme o que ela é. Se, por exemplo , ela se concebe c o m o originada de u m animal epônimo, é que consti tui u m desses grupos espe­ciais chamados clãs. Se o animal é substituído por u m an­tepassado h u m a n o , mas igua lmente mít ico, é que o clã m u d o u de natureza. Se, acima das divindades locais ou fa­mil iares , ela imagina outras das quais julga depender , é que os grupos locais e familiares que a c o m p õ e m tendem a se concentrar e a se unif icar , e o grau de unidade que apresenta u m panteão re l igioso corresponde ao grau de unidade at ingido no mesmo m o m e n t o pela sociedade. Se ela condena certos m o d o s de conduta , é q u e eles o fen­d e m alguns de seus sent imentos f u n d a m e n t a i s ; e esses sentimentos estão ligados à sua constituição, assim c o m o os d o indivíduo a seu temperamento físico e à sua organi­zação mental . Deste m o d o , mesmo que a psicologia i n d i ­v idua l não tivesse mais segredos para nós, ela não poderia nos dar a so lução de n e n h u m desses prob lemas , já que eles se relacionam a ordens de fatos que ela ignora.

Mas, uma vez reconhecida essa heterogeneidade, po­de-se perguntar se as representações indiv iduais e as re­p r e s e n t a ç õ e s colet ivas não se assemelham p e l o fato de ambas serem igualmente representações, e se, devido a es­sas semelhanças , certas leis abstratas não seriam comuns aos dois reinos. Os mitos, as lendas populares, as concep­ções religiosas de toda espécie, as crenças morais, etc. ex­p r i m e m u m a realidade diferente da realidade i n d i v i d u a l ; mas poderia acontecer que a maneira como essas realida­des se atraem o u se repelem, se agregam o u se desagre­gam, fosse i n d e p e n d e n t e de seu c o n t e ú d o e se devesse unicamente à sua qualidade geral de representações. Em­bora feitas de uma matéria diferente, elas se comportar iam e m suas r e l a ç õ e s mútuas c o m o fazem as s e n s a ç õ e s , as imagens o u as idéias n o indivíduo. Acaso n ã o se p o d e

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pensar, p o r exemplo, que a contigüidade e a semelhança, os contrastes e os antagonismos lógicos atuam da mesma forma, quaisquer que sejam as coisas representadas? Che­ga-se assim a conceber a possibilidade de uma psicologia inteiramente formal , que seria uma espécie de terreno co­m u m à psicologia indiv idual e à sociologia; e talvez esteja aí a causa d o escrúpulo que sentem certos espíritos e m distinguir com demasiada nitidez essas duas ciências.

N o estado atual de nossos conhecimentos, a questão assim colocada não poderia , a rigor, encontrar solução ca­tegórica. C o m efeito, t u d o o que sabemos, p o r u m lado, sobre a maneira c o m o se c o m b i n a m as idéias individuais se reduz a algumas proposições, m u i t o gerais e m u i t o va­gas, q u e c h a m a m o s c o m u m e n t e leis de a s s o c i a ç ã o de idéias. E, quanto às leis da ideação coletiva, elas são ain­da mais c o m p l e t a m e n t e ignoradas . A p s i c o l o g i a social , que deveria ter por tarefa determiná-las, não é mais d o que uma palavra que designa t o d o t i p o de generalidades, var i ­adas e imprecisas, sem objeto d e f i n i d o . Seria preciso i n ­vestigar, pela comparação dos temas míticos, das lendas e tradições populares , das línguas, de que forma as repre­s e n t a ç õ e s sociais se a t raem o u se e x c l u e m , se f u n d e m umas nas outras o u se dis t inguem, etc. Ora, se o p r o b l e ­ma merece tentar a curiosidade dos pesquisadores, mal se pode dizer que ele f o i abordado; e enquanto não se tiver encontrado algumas dessas leis, será ev identemente i m ­possível saber c o m certeza se elas repetem o u não as da psicologia i n d i v i d u a l .

Entretanto, na falta de certeza, é pe lo menos prová­vel que, se semelhanças existem entre essas duas e s p é c i e s . de leis, as diferenças n ã o d e v e m ser menos acentuadas. Parece inadmissível, com efeito, que a matéria de que são leitas as representações n ã o in f luenc ie a maneira c o m o elas se c o m b i n a m . É verdade que os psicólogos falam às

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vezes das leis de assoc iação de idéias c o m o se elas fos­sem as mesmas para todos os t ipos de representações i n ­d i v i d u a i s . Mas nada é mais inverossímil d o que isso; as imagens n ã o se c o m p õ e m entre si c o m o as s e n s a ç õ e s , n e m os conceitos como as imagens. Se a psicologia fosse mais avançada, ela certamente constataria que cada cate­goria de estados mentais possui leis formais que lhe são próprias. Sendo assim, deve-se afortiori esperar que as leis correspondentes d o pensamento social sejam tão es­pecíficas c o m o esse pensamento mesmo. Na verdade, p o r p o u c o que se tenha praticado tal o r d e m de fatos, é difícil não ter o sentimento dessa especificidade. É ela, c o m efei­to, que nos faz parecer estranha a maneira tão especial co­m o as c o n c e p ç õ e s religiosas (que são coletivas por exce­lência) se misturam, o u se separam, se transformam umas nas outras, dando or igem a compostos contraditórios que contrastam c o m os produtos ordinários de nosso pensa­m e n t o p r i v a d o . Se, p o r t a n t o , c o m o é presumível , certas leis da mental idade social l e m b r a m efetivamente algumas daquelas estabelecidas pelos psicólogos, não é que as p r i ­meiras são u m simples caso particular das segundas, mas que entre ambas, ao lado de diferenças certamente i m p o r ­tantes, há s i m i l i t u d e s que a abs t ração p o d e r á extrair , e que são ainda ignoradas. Vale dizer que e m caso n e n h u m a sociologia poder ia tomar pura e s implesmente de e m ­préstimo à psicologia esta o u aquela de suas proposições, para aplicá-la tal e q u a l aos fatos sociais. O pensamento colet ivo inteiro, e m sua forma e e m sua matéria, deve ser estudado e m si mesmo, por si mesmo, c o m o sentimento d o que ele t em de específico, e cabe deixar ao futuro a ta­refa de saber e m que medida ele se assemelha ao pensa­m e n t o i n d i v i d u a l . Esse é inclusive u m p r o b l e m a relacio­nado antes à f i losofia geral e à lógica abstrata d o que ao estudo científico dos fatos sociais 5.

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Resta-nos d izer a lgumas palavras da def in ição q u e demos dos fatos sociais e m nosso p r i m e i r o capítulo. Dis­semos que consistem e m maneiras de fazer o u de pensar, reconhec íve is pela par t icular idade de serem capazes de exercer sobre as consciências particulares uma influência coerc i t iva . Sobre esse p o n t o p r o d u z i u - s e u m a c o n f u s ã o que merece ser assinalada.

E tão habitual aplicar às coisas sociológicas as formas d o pensamento filosófico, que muitos v i r a m nessa d e f i n i ­ç ã o p r e l i m i n a r u m a e s p é c i e de f i l o s o f i a d o fato social . Disseram q u e e x p l i c á v a m o s os f e n ô m e n o s sociais pe la c o e r ç ã o , d o m e s m o m o d o que Gabr ie l Tarde os expl ica pela imitação. Não t ínhamos uma tal ambição e não nos o c o r r e u sequer q u e p u d e s s e m atribuí-la a n ó s , p o r ser contrária a t o d o m é t o d o . O que p r o p ú n h a m o s era, n ã o antecipar p o r uma visão filosófica as conclusões da ciên­cia, mas simplesmente indicar e m que sinais exteriores é possível reconhecer os fatos que ela deve examinar, a f i m de que o cientista saiba percebê-los onde se encontram e n ã o os c o n f u n d a c o m outros . Tratava-se de d e l i m i t a r o c a m p o da pesquisa tanto quanto possível, não de se en­volver n u m a espécie de intuição exaustiva. Assim aceita­mos de m u i t o b o m grado a censura feita a essa definição, de n ã o e x p r i m i r todos os caracteres d o fato social e, p o r conseguinte, de não ser a única possível. Não há nada de inconcebível , c o m efeito, e m que o fato social possa ser caracterizado de várias maneiras diferentes; não há razão para que ele tenha apenas u m a p r o p r i e d a d e d i s t i n t i v a 6 . T u d o o que importa é escolher a que parece a melhor pa- * ra o objet ivo proposto . É b e m possível, até, empregar si­multaneamente vários critérios, conforme as circunstâncias. Nós mesmos reconhecemos ser às vezes necessár io isso

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e m sociologia, pois há casos e m que o caráter de coerção não é facilmente reconhecível. O que é preciso, já que se trata de uma definição inicial , é que as características u t i l i ­zadas sejam imediatamente discerníveis e possam ser per­cebidas antes da pesquisa. Ora, é essa condição que não c u m p r e m as definições que às vezes opusemos à nossa. Foi d i to , por exemplo , que o fato social é " tudo o que se produz na e pela sociedade", o u ainda "aquilo que interes­sa e afeta o grupo de alguma forma". Mas só é possível sa­ber se a sociedade é o u não a causa de u m fato o u se esse fato t e m efeitos sociais q u a n d o a ciência já avançou. Tais definições não poder iam, pois, determinar o objeto da i n ­vestigação que começa. Para que se possa utilizá-las, é pre­ciso que o estudo dos fatos sociais já tenha avançado bas­tante e, portanto, que tenha sido descoberto a lgum outro meio preliminar de reconhecê-los lá onde se encontram.

A o mesmo t e m p o que consideraram nossa definição demasiado estreita, acusaram-na de ser demasiado vasta e de compreender quase todo o real. C o m efeito, disseram, t o d o m e i o físico exerce uma c o e r ç ã o sobre os seres que sofrem sua ação, pois estes são obrigados, numa certa me­d i d a , a adaptar-se a ele. Mas entre esses dois m o d o s de coerção existe toda a diferença que separa u m meio físico de u m m e i o mora l . A pressão exercida p o r u m o u vários corpos sobre outros corpos, o u mesmo sobre vontades, n ã o p o d e r i a ser c o n f u n d i d a c o m aque la q u e exerce a c o n s c i ê n c i a de u m g r u p o sobre a c o n s c i ê n c i a de seus membros. O que a coerção social tem de inteiramente es­pecial é que ela se deve, não à rigidez de certos arranjos moleculares, mas ao prestígio de que seriam investidas al­gumas representações . E verdade que os hábitos, i n d i v i ­duais o u hereditários, têm, sob certos aspectos, a mesma propr iedade . Eles nos d o m i n a m , nos impõem crenças o u práticas. Só que nos d o m i n a m desde dentro, pois estão i n -

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teiros e m cada u m de nós . A o contrário, as crenças e as práticas sociais agem sobre nós desde fora ; assim, a i n ­fluência exercida por uns e por outras é, no f u n d o , m u i t o diferente.

Aliás, n ã o devemos nos surpreender de que os de ­mais f enômenos da natureza apresentem, sob outras for­mas, o mesmo caráter pe lo qual def inimos os fenômenos sociais. Essa s i m i l i t u d e decorre s implesmente de ambos serem coisas reais. Pois t u d o o que é real t em uma nature­za d e f i n i d a que se i m p õ e , c o m a q u a l se deve contar e que, mesmo q u a n d o se consegue neutralizá-la, jamais é completamente vencida. E, no f u n d o , aí está o que há de mais essencial na n o ç ã o de c o e r ç ã o social . Pois t u d o o que ela impl ica é que as maneiras coletivas de agir e de pensar têm u m a realidade exterior aos indivíduos que, a cada m o m e n t o d o t e m p o , conformam-se a elas. São c o i ­sas que têm sua existência própria. O indivíduo as encon­tra inteiramente formadas e não p o d e fazer que elas não existam o u que sejam diferentes d o que são; assim, ele é obr igado a levá-las e m conta, sendo mais difícil (não dize­mos impossível) modificá-las na medida e m que elas par­t ic ipam, e m graus diversos, da supremacia material e m o ­ral que a sociedade exerce sobre seus m e m b r o s . Certa­mente o indivíduo desempenha u m papel na gênese delas. Mas, para que haja fato social, é preciso que vários indiví­duos , p e l o menos, t e n h a m j u n t a d o sua a ç ã o e que essa combinação tenha p r o d u z i d o algo novo . E, como essa sín­tese ocorre fora de cada u m de nós (já que envolve u m a plural idade de consciências) , ela necessariamente tem por efeito fixar, instituir fora de nós certas maneiras de agir e certos ju lgamentos que n ã o d e p e n d e m de cada v o n t a d e particular isoladamente. Tal como f o i assinalado 7 , há uma palavra q u e e x p r i m e bastante b e m essa manei ra de ser m u i t o especial ( contanto que se estenda u m p o u c o sua

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a c e p ç ã o ordinária) : é a palavra insti tuição. C o m efe i to , sem alterar o sent ido dessa e x p r e s s ã o , pode-se chamar instituição todas as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela colet ividade; a sociologia p o d e então ser def inida c o m o a ciência das instituições, de sua gênese e de seu func ionamento 8 .

Sobre as outras controvérsias que este l i v r o suscitou, parece-nos inútil voltar a falar, pois não se referem a nada de essencial. A orientação geral d o método não depende dos p r o c e d i m e n t o s q u e se p r e f i r a e m p r e g a r , seja para classificar os tipos sociais, seja para dist inguir o normal d o patológico. Aliás, essas contestações c o m m u i t a freqüên­cia resultaram da recusa e m admitir , o u de não se admit ir sem reservas, nosso princípio f u n d a m e n t a l : a real idade objetiva dos fatos sociais. É nesse princípio, afinal , que t u ­d o repousa e se resume. Por isso nos pareceu útil colocá-lo u m a vez mais e m evidência, separando-o de toda ques­tão secundária. E estamos seguros de que, ao atr ibuir- lhe tal preponderância, permanecemos fiéis à tradição socio­lógica, pois, n o f u n d o , é dessa c o n c e p ç ã o que a sociolo­gia inteira emergiu. C o m efeito, essa ciência só podia nas­cer n o dia e m que se pressentisse que os f e n ô m e n o s so­ciais, embora não sejam materiais, não de ixam de ser coi ­sas reais que c o m p o r t a m o estudo. Para se chegar a pen­sar que havia motivos de pesquisar o que são, era preciso ter c o m p r e e n d i d o que eles existem de uma forma d e f i n i ­da, que têm uma maneira de ser constante, uma natureza que não depende d o arbítrio i n d i v i d u a l e da qual der ivam relações necessárias. Assim a história da sociologia é ape­nas u m l o n g o esforço para precisar esse sentimento, apro­fundá-lo, desenvolver todas as conseqüências que ele i m ­plica. Mas, apesar dos grandes progressos que foram fe i ­tos neste sentido, veremos pela cont inuação deste traba­lho que ainda restam numerosas sobrevivências d o postu-

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lado antropocêntrico, o qual , aqui c o m o alhures, barra o c a m i n h o à c iênc ia . Desagrada ao h o m e m r e n u n c i a r ao poder i l imi tado que por m u i t o t e m p o ele se atr ibuiu sobre a o r d e m social, e, por outro lado, parece-lhe que, se exis­tem realmente forças coletivas, ele estaria necessariamen­te c o n d e n a d o a sofrê-las sem p o d e r modif icá- las . É isso que o leva a negá-las. E m vão, experiências repetidas lhe ensinaram que essa onipotência , e m cuja ilusão se m a n ­tém complacentemente, sempre fo i para ele uma causa de fraqueza; que seu domínio sobre as coisas realmente só c o m e ç o u a part i r d o m o m e n t o e m que reconheceu q u e elas têm uma natureza própria, e se resignou a aprender c o m elas o que elas são. Expulso de todas as outras ciên­cias, esse deplorável preconce i to se mantém obst inada­mente e m sociologia. Portanto, não há nada mais urgente d o que buscar libertar nossa ciência def init ivamente dele. É esse o pr inc ipal objet ivo de nossos esforços.

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INTRODUÇÃO

Até o presente, os sociólogos p o u c o se preocuparam e m caracterizar e def inir o método que apl icam ao estudo dos fatos sociais. É assim que, e m toda a obra de Spencer, o problema metodológico não ocupa n e n h u m lugar; pois a Introdução â ciência social, cujo título poderia dar essa ilusão, destina-se a demonstrar as dif iculdades e a possibi­l idade da sociologia, não a expor os procedimentos que ela deve util izar. Stuart M i l l , é verdade, ocupou-se longa­mente da q u e s t ã o 1 ; mas ele não fez s e n ã o passar sob o cr ivo de sua dialética o que Comte havia di to , sem acres­centar nada de verdadeiramente pessoal. U m capítulo d o Curso de filosofia positiva, eis praticamente o único estu­d o or ig inal e importante que possuímos sobre o assunto 2 .

Essa d e s p r e o c u p a ç ã o aparente , aliás, nada t e m de surpreendente . De fato, os grandes soc ió logos cujos no­mes acabamos de mencionar raramente saíram das gene­ralidades sobre a natureza das sociedades, sobre as rela­ções d o reino social e d o reino biológico, sobre a marcha g e r a l d o p r o g r e s s o ; m e s m o a v o l u m o s a s o c i o l o g i a de

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Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar c o m o a lei da evolução universal se aplica às sociedades. Ora, para tratar essas questões filosóficas, não são necessários procedimentos especiais e complexos. Era suficiente, por­tanto, pesar os méritos comparados da dedução e da i n ­d u ç ã o e fazer uma i n s p e ç ã o sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a invest igação soc io lógica . Mas as p r e c a u ç õ e s a t o m a r na o b s e r v a ç ã o dos fatos, a maneira c o m o os p r i n c i p a i s p r o b l e m a s d e v e m ser co locados , o sentido n o qual as pesquisas devem ser dirigidas, as práti­cas especiais que p o d e m permit i r chegar aos fatos, as re­gras que d e v e m presidir a administração das provas, t u d o isso permanecia indeterminado.

Uma série de circunstâncias felizes, entre as quais é justo destacar a in ic ia t iva que c r i o u e m nosso favor u m curso r e g u l a r de s o c i o l o g i a na Faculdade de Letras de Bordéus, o qual possibi l i tou que nos dedicássemos desde cedo ao es tudo da c iência social e inc lus ive f izéssemos dele o objeto de nossas ocupações profissionais, nos fez sair dessas questões demasiado gerais e abordar u m certo número de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela força mesma das coisas, a elaborar u m método que julgamos mais de f in ido , mais exatamente adaptado à na­tureza particular dos fenômenos sociais. São esses resulta­dos de nossa prática que gostaríamos de e x p o r a q u i e m conjunto e de submeter à discussão. Claro que eles estão implic i tamente contidos no l ivro que publ icamos recente­mente sobre A divisão do trabalho social. Mas nos parece interessante destacá-los, formulá-los à parte, acompanha­dos de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tan­t o dessa o b r a c o m o de trabalhos a inda inéditos . A s s i m p o d e r ã o julgar m e l h o r a or ientação q u e gostar íamos de tentar dar aos estudos de sociologia.

CAPÍTULO I

O QUE É UM FATO SOCIAL?

Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim.

A questão é ainda mais necessária p o r q u e se ut i l iza essa qual i f i cação sem m u i t a prec i são . Ela é empregada correntemente para designar mais o u menos todos os fe­n ô m e n o s que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, c o m uma certa generalidade, a lgum inte­resse social. Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais. T o d o indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade t e m t o d o o interesse e m que essas funções se exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem so­ciais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio se confundir ia c o m o da biologia e da psicologia.

Mas, na real idade, há e m toda sociedade u m g r u p o d e t e r m i n a d o de f e n ô m e n o s q u e se d i s t i n g u e m p o r ca­racteres def in idos daqueles que as outras c iências da na­tureza estudam.

Q u a n d o desempenho minha tarefa de irmão, de ma­r i d o o u de c idadão , q u a n d o e x e c u t o os c o m p r o m i s s o s

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que assumi, eu c u m p r o deveres que estão definidos, fora de m i m e de meus atos, no direi to e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo c o m meus sent imentos pró­prios e que eu sinta inter iormente a realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não f u i eu que os fiz, mas os receb i pe la e d u c a ç ã o . Aliás, quantas vezes n ã o nos ocorre ignorarmos o detalhe das obr igações que nos i n ­c u m b e m e precisarmos, para conhecê-las , consultar o Có­d i g o e seus intérpretes autorizados! D o mesmo m o d o , as crenças e as práticas de sua vida religiosa, o f ie l as encon­trou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me s i rvo para e x p r i m i r m e u p e n s a m e n t o , o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os ins­t rumentos de crédito que ut i l izo e m minhas relações co­merciais, as práticas observadas e m m i n h a profissão, etc. func ionam independentemente d o uso que faço deles. Que se t o m e m u m a u m todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósi­to de cada u m deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável proprieda­de de existirem fora das consciências individuais.

Esses t ipos de conduta o u de pensamento n ã o ape­nas são exteriores ao indivíduo, c o m o também são dota­dos de u m a força impera t iva e coerci t iva e m v i r t u d e da q u a l se i m p õ e m a ele, quer ele queira , quer não . Certa­mente, q u a n d o me c o n f o r m o voluntar iamente a ela, essa c o e r ç ã o n ã o se faz o u p o u c o se faz sentir, sendo inútil. N e m p o r isso ela deixa de ser u m caráter intrínseco des­ses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo ten­to resistir. Se tento violar as regras d o direito, elas reagem contra m i m para i m p e d i r m e u ato, se estiver e m t e m p o , o u para anulá-lo e restabelecê-lo e m sua forma normal , se tiver sido efetuado e for reparável, o u para fazer c o m que

O QUE É UM FATO SOCIAL? 3

eu o expie, se não puder ser reparado de outro m o d o . E m se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime t o d o ato que as ofenda através da vigilân­cia que exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de q u e d i s p õ e . Em o u t r o s casos, a c o e r ç ã o é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me sub­meto às convenções d o m u n d o , se, ao vestir-me, não levo e m conta os costumes observados e m m e u país e e m m i ­nha classe, o riso que provoco , o afastamento em relação a m i m p r o d u z e m , embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos q u e u m a pena p r o p r i a m e n t e d i ta . A d e ­mais, a coerção , mesmo sendo apenas indireta , cont inua sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês c o m meus compatr iotas , n e m a empregar as moedas legais; mas é impossível agir de o u t r o m o d o . Se eu quisesse escapar a essa necessidade, m i n h a tentativa fracassaria miseravel ­mente. Industr ia l , nada me proíbe de trabalhar c o m p r o ­cedimentos e métodos d o século passado; mas, se o fizer, é certo que me arruinarei . Ainda que, de fato, eu possa l i ­bertar-me dessas regras e violá-las c o m sucesso, isso ja­mais ocorre sem que eu seja obr igado a lutar contra elas. E ainda que elas sejam f inalmente vencidas, demonstram sufic ientemente sua força coercit iva pela resistência que o p õ e m . Não há inovador , mesmo afor tunado, cujos e m ­p r e e n d i m e n t o s n ã o v e n h a m a d e p a r a r c o m o p o s i ç õ e s desse t ipo .

Eis portanto u m a ordem de fatos que apresentam ca­racterísticas m u i t o especiais: consis tem e m maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de u m poder de coerção e m vir tude d o qual esses fatos se i m p õ e m a ele. Por conseguinte , eles n ã o p o d e r i a m se c o n f u n d i r c o m os f e n ô m e n o s orgânicos , já que consistem e m representações e e m ações ; n e m c o m os f e n ô m e n o s ps íquicos , os quais só têm ex is tênc ia na

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consc iênc ia i n d i v i d u a l e através dela. Esses fatos const i ­t u e m portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualif ica­ção lhes convém; pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não p o d e m ter outro senão a socieda­de, seja a sociedade política e m seu conjunto, seja u m dos grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, es­colas polít icas, literárias, c o r p o r a ç õ e s prof iss ionais , etc. Por outro lado, é a eles só que ela convém; pois a palavra social só t e m sentido d e f i n i d o c o m a condição de desig­nar u n i c a m e n t e f e n ô m e n o s que n ã o se i n c l u e m e m ne­n h u m a das categorias de fatos já constituídos e d e n o m i ­nados. Eles são portanto o domínio próprio da sociologia. E verdade que a palavra coerção, pela qual os def inimos, pode vir a assustar os zelosos defensores de u m indiv idua­l i smo absoluto. C o m o estes professam que o indivíduo é perfei tamente autônomo, ju lgam que o diminuímos sem­pre q u e m o s t r a m o s q u e ele n ã o d e p e n d e apenas de si m e s m o . Sendo hoje incontes tável , p o r é m , q u e a m a i o r parte de nossas idéias e de nossas tendências n ã o é ela­borada p o r nós, mas nos v e m de fora, elas só p o d e m pe­netrar e m nós impondo-se ; eis t u d o o que significa nossa definição. Sabe-se, aliás, que n e m toda coerção social ex­c lu i necessariamente a personalidade i n d i v i d u a l 1 .

Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas f inan­ceiros , etc . ) cons i s tem todos e m c r e n ç a s e e m prát icas constituídas, poder-se-ia supor, c o m base no que precede, que só há fato social onde há organização def in ida . Mas existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cris­talizadas, têm a mesma objetividade e a mesma ascendên­cia sobre o indivíduo. É o que chamamos de correntes so­ciais. Assim, numa assembléia, os grandes movimentos de entusiasmo o u de devoção que se p r o d u z e m não têm por

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lugar de or igem nenhuma consciência particular. Eles nos vêm, a cada u m de nós, de fora e são capazes de nos arre­batar contra a nossa v o n t a d e . Certamente p o d e ocorrer que , e n t r e g a n d o - m e a eles sem reserva, eu n ã o sinta a pressão que exercem sobre m i m . Mas ela se acusa tão lo ­go p r o c u r o lutar contra eles. Q u e u m indivíduo tente se opor a uma dessas manifestações coletivas: os sentimentos que ele nega se voltarão contra ele. Ora, se essa força de coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de re­sistência, é porque ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrários. Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que elaboramos, nós mesmos, o que se impôs a nós de fora. Mas, se a complacência c o m que nos entre­gamos a essa força encobre a pressão sofrida, ela não a s u p r i m e . Ass im, t a m b é m o ar n ã o de ixa de ser pesado, embora não sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nos­sa parte, tenhamos co laborado espontaneamente para a e m o ç ã o c o m u m , a impressão que sentimos é m u i t o d i fe ­rente da que teríamos sentido se est ivéssemos sozinhos. Assim, a part ir d o m o m e n t o e m que a assembléia se dis­solve, e m que essas influências cessam de agir sobre nós e nos vemos de n o v o a sós, os sentimentos vividos nos dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reco­nhecemos. Então nos damos conta de que sofremos esses sentimentos b e m mais d o que os produzimos. Pode acon­tecer até que nos causem horror , tanto eram contrários à nossa natureza. É assim que indivíduos perfeitamente ino­fensivos na m a i o r parte d o t e m p o p o d e m ser levados a atos de atrocidade q u a n d o reunidos e m multidão. Ora, o que dizemos dessas explosões passageiras aplica-se ident i ­camente aos m o v i m e n t o s de opinião, mais duráveis, que se p r o d u z e m a t o d o instante a nosso redor, seja e m toda a extensão da sociedade, seja em círculos mais restritos, so­bre assuntos religiosos, políticos, literários, artísticos, etc.

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Aliás, pode-se conf irmar p o r uma experiência carac­terística essa definição d o fato social: basta observar a ma­neira c o m o são educadas as crianças. Q u a n d o se obser­v a m os fatos tais c o m o são e tais como sempre foram, sal­ta aos o l h o s q u e t o d a e d u c a ç ã o consiste n u m e s f o r ç o cont ínuo para i m p o r à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamen­te. Desde os pr imei ros m o m e n t o s de sua v ida , forçamo-las a comer, a beber, a d o r m i r e m horários regulares, for­ç a m o - l a s à l i m p e z a , à calma, à o b e d i ê n c i a ; mais tarde, forçamo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes, as conveniências, forçamo-las ao trabalho, e t c , etc. Se, c o m o tempo, essa coerção cessa de ser sentida, é que p o u c o a pouco ela dá or igem a hábitos, a tendências internas q u e a t o r n a m inútil, mas q u e só a subs t i tuem p e l o fato de der ivarem dela. É verdade que, segundo Spencer, u m a educação racional deveria r e p r o ­var tais p r o c e d i m e n t o s e deixar a criança proceder c o m toda a l iberdade; mas como essa teoria pedagógica jamais f o i praticada p o r qua lquer p o v o conhec ido , ela const i tui apenas u m desideratum pessoal, não u m fato que se pos­sa o p o r aos fatos q u e precedem. Ora, o que torna estes últimos part icularmente instrutivos é que a educação tem justamente por objeto p r o d u z i r o ser social; pode-se por­tanto ver nela, c o m o que resumidamente, de que maneira esse ser constituiu-se na história. Essa pressão de todos os instantes que sofre a criança é a pressão mesma d o meio social que tende a modelá-la à sua i m a g e m e d o qual os pais e os mestres não são senão os representantes e os i n ­termediários.

Assim, não é sua general idade que p o d e servir para caracterizar os f e n ô m e n o s sociológicos . U m pensamento que se encontra e m todas as consciências particulares, u m m o v i m e n t o que todos os indivíduos repetem n e m por isso

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são fatos sociais. *Se se contentaram c o m esse caráter para defini-los, é que os confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas encarnações individuais . O que os constitui são as crenças, as tendências e as práticas d o g r u p o tomado coletivamente; quanto às formas que assu­m e m os estados coletivos ao se refratarem nos indivíduos, são coisas de outra espécie.* O que demonstra categorica­mente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. C o m efei­to, algumas dessas maneiras de agir o u de pensar a d q u i ­rem, por causa da repetição, uma espécie de consistência que as precipita, p o r assim dizer, e as isola dos aconteci­mentos particulares **que as refletem**. Elas assumem as­s im u m corpo , u m a f o r m a sensível que lhes é própria, e const i tuem u m a real idade sui generis, m u i t o dist inta dos fatos individuais que a manifestam. O hábito coletivo não existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas, por u m privilégio cujo exemplo não encontramos no reino biológico, numa fórmula que se repete de boca e m boca, que se transmite pela educação, que se fixa através da es­crita. Tais são a o r i g e m e a natureza das regras jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares , dos artigos de fé e m que as seitas religiosas o u políticas condensam suas crenças, dos códigos de gosto que as escolas literárias estabelecem, etc. ***Nenhuma dessas maneiras de agir o u de pensar se acha por inteiro nas aplicações que os part i -

* " T a n t o n ã o é a r e p e t i ç ã o que os c o n s t i t u i , q u e eles e x i s t e m fora i los casos par t i culares nos quais se rea l izam. Cada fato social consiste o u n u m a c r e n ç a , o u n u m a t e n d ê n c i a , o u n u m a prát ica , q u e é a d o g r u p o t o m a d o c o l e t i v a m e n t e e q u e é m u i t o d is t inta das f o r m a s e m q u e ela se re t ra ta n o s i n d i v í d u o s . " ( Kevue philosophique, t o m o X X X V I I , lan./jun. 1894, p . 470.)

** " e m q u e elas se e n c a r n a m t o d o d i a " . (R.P., p . 470.) *** Frases q u e n ã o f i g u r a m n o t e x t o i n i c i a l .

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culares fazem delas, já que elas p o d e m inc lus ive exist ir sem serem atualmente aplicadas.***

Claro que essa dissociação n e m sempre se apresenta com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma ma­neira incontestável nos casos importantes e numerosos que acabamos de mencionar , para provar que o fato social é distinto de suas repercussões individuais. Aliás, mesmo que ela n ã o seja imediatamente dada à observação , pode-se c o m freqüência realizá-la com o auxílio de certos artifícios de método*; é inclusive indispensável proceder a essa ope­ração se quisermos separar o fato social de toda mistura para observá-lo no estado de pureza*. Assim, há certas cor­rentes de opinião que nos impelem, c o m desigual intensi­dade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamen­to , p o r e x e m p l o , outra ao suicídio o u a uma natal idade mais o u menos acentuada, etc. Trata-se , evidentemente , de fatos sociais.* À pr imeira vista, eles parecem insepará­veis das formas que assumem nos casos particulares. Mas a estatística nos fornece o meio de isolá-los. C o m efeito, eles são representados, não sem exatidão, pelas taxas de natali­dade, de nupcial idade, de suicídios, o u seja, pelo número que se obtém ao div idir a média anual total dos nascimen­tos, dos casamentos e das mortes voluntárias pe lo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar 2 . Pois, c o m o cada u m a dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distinção, as circunstâncias i n d i v i ­duais que p o d e m ter alguma participação na produção d o f e n ô m e n o neutra l izam-se m u t u a m e n t e e, p o r t a n t o , n ã o contr ibuem para determiná-lo. * 0 que esse fato exprime é u m certo estado da alma coletiva.

Eis o que são os fenômenos sociais, desembaraçados de todo elemento estranho.* Quanto às suas manifestações

* Frases q u e n ã o f i g u r a m n o t e x t o i n i c i a l .

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privadas, elas têm claramente algo de social, já que repro­d u z e m em parte u m m o d e l o coletivo; mas cada uma delas depende também, e em larga medida, da constituição or-gânico-psíquica d o indivíduo, das circunstâncias par t icu­lares nas quais ele está situado. Portanto elas não são fe­n ô m e n o s propr iamente sociológicos . Pertencem simulta­neamente a dois reinos; poderíamos chamá-las sociopsí-quicas. Essas mani fes tações interessam o soc ió logo sem constituírem a matéria imediata da sociologia. N o interior do organismo encontram-se igualmente fenômenos de na­tureza mista que ciências mistas, como a química biológica, estudam.

Mas, dirão, u m fenômeno só p o d e ser colet ivo se for c o m u m a todos os m e m b r o s da sociedade o u , pe lo m e ­nos, à maior parte deles, portanto, se for geral. Certamen­te, mas, se ele é geral, é porque é colet ivo (isto é. mais o u menos obrigatório), o que é bem diferente de ser colet ivo por ser geral. Esse fenômeno é u m estado d o grupo, que se repete nos indivíduos porque se impõe a eles. Ele está e m cada parte p o r q u e está no todo , o que é diferente de estar no t o d o p o r estar nas partes. Isso é sobretudo e v i ­dente nas crenças e práticas que nos são transmitidas i n ­teiramente prontas pelas gerações anteriores; recebemo-las e adotamo-las p o r q u e , sendo ao m e s m o t e m p o u m a obra coletiva e uma obra secular, elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a r e c o n h e c e r e a respei tar . Ora , c u m p r e assinalar q u e a imensa maior ia dos f e n ô m e n o s sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte, à nossa colabo­ração direta, o fato social é da mesma natureza. U m senti­mento colet ivo que i r r o m p e n u m a assembléia não e x p r i ­me s implesmente o que havia de c o m u m entre todos os sentimentos individuais . Ele é algo completamente dist in­to , c o n f o r m e m o s t r a m o s . É u m a resul tante da v i d a co-

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m u m , das a ç õ e s e r e a ç õ e s que se estabelecem entre as consciências individuais ; e, se repercute e m cada uma de­las, é e m v i r tude da energia social que ele deve precisa­mente à sua or igem coletiva. Se todos os corações v ibram e m uníssono, n ã o é p o r causa de u m a concordânc ia es­pontânea e preestabelecida; é que u m a mesma força os m o v e no mesmo sentido. Cada u m é arrastado p o r todos.

Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domínio da sociologia. Ele compreende apenas u m g r u ­p o d e t e r m i n a d o de f e n ô m e n o s . U m fato social se reco­nhece pelo poder de coerção externa que exerce o u é ca­paz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, p o r sua vez, seja pela existência de a lguma s a n ç ã o determinada , seja pela resistência que o fato o p õ e a toda tentativa i n d i v i d u a l de fazer-lhe violên­cia. *Contudo, pode-se def ini - lo também pela difusão que apresenta n o inter ior d o g r u p o , contanto que, c o n f o r m e as observações precedentes, tenha-se o cuidado de acres­centar c o m o segunda e essencial característ ica q u e ele existe independentemente das formas individuais que as­sume ao difundir-se .* Este último critério, e m certos casos, é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente. De fa­to, a coerção é fácil de constatar quando se traduz exterior­mente p o r alguma reação direta da sociedade, c o m o é o caso e m relação ao direi to , à moral , às crenças, aos costu­mes, inclusive às modas. Mas, q u a n d o é apenas indireta, como a que exerce uma organização econômica, ela n e m sempre se deixa perceber tão bem. A generalidade c o m ­binada c o m a ob je t iv idade p o d e m então ser mais fáceis de estabelecer. Aliás, essa segunda definição não é senão

* "Pode-se d e f i n i - l o i g u a l m e n t e : u m a m a n e i r a d e pensar o u de agir q u e é gera l na e x t e n s ã o d o g r u p o , mas q u e existe i n d e p e n d e n t e ­m e n t e de suas e x p r e s s õ e s i n d i v i d u a i s . " (R.P., p . 472.)

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outra forma da primeira ; pois, se uma maneira de se con­d u z i r , q u e existe e x t e r i o r m e n t e às c o n s c i ê n c i a s i n d i v i ­duais, se generaliza, ela só pode fazê-lo impondo-se 3 .

Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definição é completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram sua ba­se são, todos eles, maneiras de fazer; são de o r d e m fisio­lógica. Ora, há também maneiras de ser coletivas, isto é, fatos sociais de o r d e m anatômica o u morfológica. A socio­logia n ã o p o d e desinteressar-se d o que d iz respei to ao substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a natu­reza das partes elementares de que se compete a socieda­de, a maneira como elas estão dispostas, o grau de coales­cência a que chegaram, a distribuição da população pela superfície d o território, o número e a natureza das vias de c o m u n i c a ç ã o , a f o r m a das habi tações , etc. não parecem capazes, n u m p r i m e i r o exame, de se reduzir a modos de agir, de sentir o u de pensar.

Mas, e m p r i m e i r o lugar, esses diversos f e n ô m e n o s apresentam a mesma característica que nos a judou a def i ­nir os outros. Essas maneiras de ser se impõem ao indiví­d u o tanto q u a n t o as maneiras de fazer de que falamos. De fato, quando se quer conhecer a forma como uma so­ciedade se d i v i d e po l i t i camente , c o m o essas divisões se c o m p õ e m , a fusão mais o u menos c o m p l e t a q u e existe entre elas, n ã o é p o r m e i o de u m a i n s p e ç ã o mater ia l e por observações geográf icas que se p o d e chegar a isso; pois essas divisões são morais, ainda que tenham alguma base na natureza física. É somente através d o dire i to pú­bl ico que se p o d e estudar essa organização, pois é esse direi to que a determina, assim como determina nossas re­lações domést i cas e c ívicas . Por tanto , ela n ã o é m e n o s obrigatória. Se a p o p u l a ç ã o se amontoa nas cidades e m vez de se dispersar nos campos, é que há u m a corrente de opinião, u m m o v i m e n t o colet ivo que impõe aos indiví-

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duos essa concentração . Não p o d e m o s escolher a forma de nossas casas, c o m o tampouco a de nossas roupas; pe­lo menos, uma é obrigatória na mesma medida que a o u ­tra. As vias de comunicação d e t e r m i n a m de maneira i m ­periosa o sentido n o qual se fazem as migrações inter io­res e as trocas, e m e s m o a i n t e n s i d a d e dessas trocas e dessas migrações, e t c , etc. E m conseqüência , seria, quan­d o m u i t o , o caso de acrescentar à lista dos f e n ô m e n o s que enumeramos c o m o possuidores d o sinal dist int ivo d o fato social u m a categoria a mais; e, c o m o essa enumera­ção não t inha nada de rigorosamente exaustivo, a adição não seria indispensável.

Mas ela não seria sequer proveitosa ; pois essas ma­neiras de ser não são senão maneiras de fazer consolida­das. A estrutura política de u m a sociedade não é senão a maneira c o m o os diferentes segmentos que a c o m p õ e m se habituaram a viver uns c o m os outros. Se suas relações são tradicionalmente próximas, os segmentos tendem a se c o n f u n d i r ; caso contrário, t e n d e m a se dis t inguir . O t i p o de habitação que se impõe a nós não é senão a maneira c o m o todos ao nosso redor e, e m parte, as gerações ante­riores se acostumaram a construir suas casas. As vias de comunicação não são senão o leito escavado pela própria c o r r e n t e r e g u l a r das trocas e das m i g r a ç õ e s , c o r r e n d o sempre n o m e s m o sentido, etc. Certamente, se os fenô­menos de o r d e m morfológica fossem os únicos a apresen­tar essa f ix idez , poder íamos pensar que eles cons t i tuem uma espécie à parte. Mas uma regra jurídica é u m arranjo não menos permanente que u m m o d e l o arquitetônico, e n o entanto é u m fato f is io lógico . U m a s imples máxima m o r a l é, seguramente, mais maleável ; p o r é m ela possui formas b e m mais rígidas que u m simples costume prof is­s iona l o u q u e u m a m o d a . Há assim toda u m a gama de nuances que, sem solução de cont inuidade , l iga os fatos

O QUE É UM FATO SOCIAL? 13

estruturais mais caracterizados às correntes livres da vida social ainda não submetidas a n e n h u m m o l d e def in ido . É que entre os pr imeiros e as segundas apenas há di feren­ças n o grau de consol idação que apresentam. Uns e o u ­tras s ã o apenas v i d a mais o u m e n o s cr is ta l izada. Claro que pode haver interesse e m reservar o n o m e de morfoló­gicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas c o m a condição de não perder de vista que eles são da mesma natureza que os outros. Nossa definição c o m ­preenderá por tanto t o d o o d e f i n i d o se dissermos: Éfato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; o u ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma so­ciedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais^.

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CAPÍTULO I I

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

A pr imeira regra e a mais fundamenta l é considerar os fatos sociais como coisas.

I

N o m o m e n t o e m que uma nova o r d e m de f e n ô m e ­nos torna-se objeto de ciência, eles já se acham represen­tados no espírito, não apenas por imagens sensíveis, mas por espécies de conceitos grosseiramente formados. Antes dos pr imeiros r u d i m e n t o s da física e da química, os h o ­mens já possuíam sobre os fenômenos físico-químicos no­ções que ultrapassavam a pura percepção, c o m o aquelas, por exemplo , que encontramos mescladas a todas as re l i ­giões. É eme, de fato, a reflexão é anterior à ciência, que apenas se serve dela c o m mais m é t o d o . O h o m e m n ã o pode viver e m meio às coisas sem formar a respeito delas idéias, de acordo c o m as quais regula sua conduta. A c o n ­tece que, c o m o essas noções estão mais próximas de nós

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e mais ao nosso alcance do que as realidades a que cor­respondem, tendemos naturalmente a substituir estas últi­mas p o r elas e a fazer delas a matéria mesma de nossas especulações . E m vez de observar as coisas, de descrevê-las, de c o m p a r á - l a s , c o n t e n t a m o - n o s e n t ã o e m t o m a r consciência de nossas idéias, em analisá-las, e m combiná-las. E m vez de u m a c iência de realidades, n ã o fazemos mais d o que uma análise ideológica. Por certo, essa análi­se não exc lu i necessariamente toda observação . Pode-se recorrer aos fatos para confirmar as noções o u as conclu­sões que se t i ram. Mas os fatos só intervêm então secun­dariamente, a título de exemplos o u de provas conf i rma­tórias; eles não são o objeto da ciência. Esta vai das idéias às coisas, não das coisas às idéias.

E claro que esse método não poderia dar resultados objetivos. C o m efeito, essas noções , o u conceitos, não i m ­porta o n o m e que se queira dar-lhes, não são os substitu­tos legítimos das coisas. Produtos da experiência vulgar , eles têm p o r objeto, antes de t u d o , colocar nossas ações e m harmonia c o m o m u n d o que nos cerca; são formados pela prática e para ela. Ora, uma representação pode ser capaz de desempenhar ut i lmente esse papel mesmo sen­d o t e o r i c a m e n t e falsa. "Copérn ico* , há m u i t o s s é c u l o s , dissipou as ilusões de nossos sentidos referentes aos m o ­vimentos dos astros; no entanto, é ainda c o m base nessas i lusões q u e regulamos correntemente a distr ibuição de nosso t e m p o . Para que u m a idéia suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama, não é necessário que ela expr ima f ielmente essa natureza; basta q u e nos faça perceber o que a coisa t e m de útil o u de desvantajoso, de que m o d o pode nos servir, de que m o d o nos contrariar. Mas as noções assim formadas só apresen-

* " G a l i l e u " (R.P., p . 476.)

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tam essa justeza prática de uma maneira aproximada e so­mente na generalidade dos casos. Quantas vezes elas são tão perigosas c o m o inadequadas! Não é p o r t a n t o elabo-rando-as, p o u c o impor ta de que maneira o façamos, que chegaremos a descobrir as leis da realidade. Tais noções , ao contrário, são c o m o u m véu que se interpõe entre as coisas e nós , e q u e as encobre tanto mais q u a n t o mais transparente julgamos esse véu.

Tal ciência não é apenas truncada; falta-lhe também matéria de que se al imentar . Mal ela existe, desaparece, por assim dizer, transformando-se e m arte. De fato, supõe-se que essas noções contenham t u d o o que há de essenci­al n o real , já q u e s ã o c o n f u n d i d a s c o m o própr io real . C o m isso, parecem ter tudo o que é preciso para que seja­mos capazes n ã o s ó de c o m p r e e n d e r o q u e é, mas de prescrever o que deve ser e os meios de executá-lo. Pois é b o m o que está de acordo c o m a natureza das coisas; o que é contrário a elas é mau, e os meios para alcançar u m e evitar o outro der ivam dessa mesma natureza. Portanto, se a dominamos de saída, o estudo da realidade presente não tem mais interesse prático, e, c o m o esse interesse é a razão de ser de tal estudo, este se vê desde então sem f i ­nalidade. A reflexão é, assim, incitada a afastar-se d o que é < > objeto mesmo da ciência, a saber, o presente e o passa­do, para lançar-se n u m único salto e m direção ao fu turo . Em vez de buscar compreender os fatos adquiridos e reali­zados, ela empreende imediatamente realizar novos, mais conformes aos fins perseguidos pelos homens. Q u a n d o se crê saber e m que consiste a essência da matéria, parte-se logo e m busca da pedra filosofal. Essa intromissão da arte na ciência, que impede que esta se desenvolva, é aliás faci-liiada pelas circunstâncias mesmas que determinam o des­pertar da reflexão científica. Pois, como esta só surge para satisfazer necessidades vitais, é natural que se oriente para

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a prática. As necessidades que ela é chamada a socorrer sào sempre prementes, portanto a pressionam para obter resultados; elas reclamam, não explicações, mas remédios.

Essa maneira de proceder é tão conforme à tendência natural de nosso espírito que a encontramos inclusive na or igem das ciências físicas. É ela que diferencia a alquimia da química, b e m c o m o a astrologia da astronomia. É por ela que Bacon caracteriza o método que os sábios de seu t e m p o seguiam e que ele combate. As noções que acaba­mos de mencionar são aquelas notiones vulgares ou prae-notiones1 que ele assinala na base de todas as c iênc ias 2 , nas quais elas t o m a m o lugar dos fatos 3 . São os idola, fan­tasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das co i ­sas e que, no entanto, tomamos como as coisas mesmas. E é p o r esse m e i o imaginário n ã o oferecer ao espírito ne­n h u m a resistência que este, não se sent indo cont ido p o r nada, entrega-se a a m b i ç õ e s sem l i m i t e e julga possível construir, ou melhor, reconstruir o m u n d o c o m suas forças apenas e ao sabor de seus desejos.

Se f o i assim c o m as ciências naturais, com mais forte razão tinha de ser c o m a sociologia. Os homens não espe­raram o advento da ciência social para formar idéias sobre o dire i to , a mora l , a família, o Estado, a própria socieda­de; pois não p o d i a m privar-se delas para viver. Ora, é so­bretudo e m sociologia que essas prenoções , para retomar a expressão de Bacon, estão e m situação de d o m i n a r os espíritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coi­sas sociais só se rea l izam através dos h o m e n s ; elas são u m p r o d u t o da atividade humana. Portanto, parecem não ser outra coisa senão a realização de idéias, inatas o u não, que trazemos em nós, senão a aplicação dessas idéias às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização da família, d o contrato, da repressão , d o Estado, da sociedade é vista assim c o m o

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 19

u m simples desenvolvimento das idéias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justiça, etc. E m conseqüência , es­ses fatos e outros análogos só parecem ter realidade nas e pelas idéias que são seu germe e que se tornam, c o m is­so, a matéria própria da sociologia.

O que reforça essa maneira de ver é que , c o m o os deta lhes da vicia soc ia l e x c e d e m p o r t o d o s os lados a consciência, esta não tem uma percepção suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade. Não tendo e m nós l igações bastante sólidas n e m bastante próximas, tudo isso nos dá faci lmente a impressão de não se p r e n ­der a nada e de f lutuar n o vazio, matéria e m parte irreal e indef in idamente plástica. Eis por que tantos pensadores não v i r a m nos arranjos sociais senão c o m b i n a ç õ e s ar t i f i ­ciais e mais o u menos arbitrárias. Mas, se os detalhes, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo me­nos nos representamos os aspectos mais gerais da exis­tência coletiva de maneira genérica e aproximada, e são precisamente essas representações esquemáticas e sumá­rias q u e c o n s t i t u e m as p r e n o ç õ e s de q u e nos servimos para as práticas correntes da vida. Não podemos portanto pensar e m pôr e m dúvida a existência delas, uma vez que a percebemos ao m e s m o t e m p o q u e a nossa. Elas n ã o apenas estão e m nós, c o m o também, sendo u m p r o d u t o de experiências repetidas, obtêm da repetição - e d o há­bito resultante - u m a espécie de ascendência e de autori ­dade. Sentimos sua resistência q u a n d o buscamos libertar-nos delas. Ora, não podemos deixar de considerar c o m o real o que se o p õ e a nós. T u d o contr ibu i , portanto, para que vejamos nelas a verdadeira realidade social.

E, de fato, até o presente, a sociologia tratou mais ou menos exclusivamente n ã o de coisas, mas de conceitos. Comte, é verdade, p r o c l a m o u que os f e n ô m e n o s sociais

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20 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

são fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste m o d o , ele implic i tamente reconheceu seu caráter de coisas, pois na natureza só existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosóficas, ele tenta aplicar seu princípio e extrair a ciência nele contida, são idéias que ele toma p o r objeto de estudo. C o m efeito, o que faz a matéria p r i n c i ­p a l de sua soc io log ia é o progresso da h u m a n i d a d e n o tempo. Ele parte da idéia de que há uma evolução contí­n u a d o g ê n e r o h u m a n o q u e consiste n u m a r e a l i z a ç ã o sempre mais completa da natureza humana, e o problema que ele trata é descobrir a o r d e m dessa evolução. Ora, su­p o n d o que essa evo lução exista, sua real idade só p o d e ser estabelecida u m a vez feita a c iência ; p o r t a n t o , só se p o d e fazer dessa evolução o objeto m e s m o da pesquisa se ela for colocada c o m o uma c o n c e p ç ã o d o espírito, não c o m o u m a coisa. E, de fato, é tão c laro q u e se trata de uma representação inteiramente subjetiva que, na prática, esse progresso da humanidade não existe. O que existe, a única coisa dada à observação, são sociedades part icula­res que nascem, se desenvolvem e m o r r e m i n d e p e n d e n ­temente umas das outras. Se pelo menos as mais recentes cont inuassem as que as precederam, cada t i p o super ior poderia ser considerado como a simples repetição d o t i p o imediatamente inferior , c o m alguma coisa a mais; poder-se-ia, pois, alinhá-las umas depois das outras, por assim d i ­zer, c o n f u n d i n d o as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada poderia ser vis­ta c o m o representativa da humanidade . Mas os fatos não se apresentam c o m essa extrema s impl ic idade. U m p o v o que substitui outro não é simplesmente u m pro longamen­to deste último c o m algumas características novas; ele é outro , t e m algumas propriedades a mais, outras a menos; const i tui u m a indiv idua l idade nova, e todas essas i n d i v i ­dual idades distintas, sendo heterogêneas , n ã o p o d e m se

REGRAS RELATIVAS Ã OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 21

fundir numa mesma série contínua, n e m , sobretudo, n u ­ma série única. Pois a seqüência das sociedades não p o ­deria ser f igurada p o r u m a l inha geométrica; ela asseme­lha-se antes a u m a árvore cujos ramos se o r i e n t a m e m sentidos divergentes. E m suma, Comte t o m o u por desen­volv imento histórico a n o ç ã o que dele possuía e que não difere m u i t o da que faz o vulgo . Vista de longe, de fato, a história adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivíduos que se sucedem uns aos outros e m a r c h a m todos n u m a mesma direção, p o r q u e têm u m a m e s m a natureza . Aliás, c o m o n ã o se concebe que a evolução social possa ser outra coisa que não o desenvolvimento de uma idéia humana, parece na­tural def ini- la pela idéia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, n ã o apenas se permanece na i d e o l o ­gia, mas se dá c o m o objeto à sociologia u m conceito que nada tem de propriamente sociológico.

Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substituí-lo p o r o u t r o que n ã o é f o r m a d o de o u t r o m o d o . Ele faz das sociedades, e não da humanidade, o objeto da ciência; só que ele dá e m seguida, das pr imeiras , u m a def inição que faz desaparecer a coisa de que fala para colocar no l u ­gar a prenoção que possui dela. Com efeito, ele estabelece c o m o u m a p r o p o s i ç ã o evidente q u e " u m a sociedade só existe quando à justaposição acrescenta-se a cooperação" , sendo somente então que a união dos indivíduos se torna uma sociedade p r o p r i a m e n t e d i t a 4 . Depois , p a r t i n d o d o princípio de que a cooperação é a essência da vida social, ele dist ingue as sociedades em duas classes, c o n f o r m e a natureza da c o o p e r a ç ã o q u e nelas p r e d o m i n a . "Há, d iz ele, uma c o o p e r a ç ã o espontânea que se efetua sem pre-" meditação durante a perseguição de fins de caráter priva­do; há também uma cooperação conscientemente instituí­da que supõe f ins de interesse públ ico claramente reco-

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22 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

nhecidos." 5 Às primeiras, ele dá o n o m e de sociedades i n ­dustriais; às segundas, de militares, e pode-se dizer dessa distinção que ela é a idéia-mãe de sua sociologia.

Mas essa definição inicial enuncia c o m o coisa o que é tão-só uma n o ç ã o d o espírito. C o m efeito, ela se apre­senta c o m o a expressão de u m fato imediatamente visível e q u e basta à o b s e r v a ç ã o constatar, já que é f o r m u l a d a desde o início da ciência como axioma. N o entanto, é i m ­possível saber p o r uma simples inspeção se realmente a c o o p e r a ç ã o é a essência da vida social. Tal afirmação só é c i ent i f i camente legít ima se p r i m e i r a m e n t e passarmos e m revista as mani fes tações da ex is tênc ia co le t iva e se mostrarmos q u e todas são formas diversas da coopera ­ção . Portanto, é ainda certa maneira de conceber a reali­dade social que subst i tui essa real idade 6 . O que é assim d e f i n i d o não é a sociedade, mas a idéia que dela faz o sr. Spencer. E, se ele não tem o menor escrúpulo em proce­der deste m o d o , é q u e , t a m b é m para ele, a soc iedade não é e não p o d e ser senão a realização de uma idéia, is­to é, dessa idéia mesma de cooperação pela qua l a def i ­n e 7 . Seria fácil mostrar que, e m cada u m dos problemas particulares q u e aborda, seu m é t o d o permanece o mes­m o . Assim, e m b o r a dê a impressão de proceder e m p i r i ­camente , c o m o os fatos a c u m u l a d o s e m sua soc io log ia são e m p r e g a d o s para i lustrar anál ises de n o ç õ e s e n ã o para descrever e expl i car coisas, eles p a r e c e m estar a l i apenas para f igurar c o m o argumentos . E m realidade, t u ­d o o que há de essencial na d o u t r i n a de Spencer p o d e ser imediatamente d e d u z i d o de sua definição da socieda­de e das diferentes formas de cooperação . Pois. se só p u ­d e r m o s o p t a r entre u m a c o o p e r a ç ã o t i ran icamente i m ­posta e u m a c o o p e r a ç ã o l i v r e e e s p o n t â n e a , e v i d e n t e ­mente esta última é que será o ideal para o qual a h u m a ­nidade tende e deve tender.

REGRAS RELA TLVAS À OBSER \ A ÇÀ O DOS FA TOS SOCIAIS 23

Não é somente na base da ciência que se encontram essas noções vulgares; vemo-las a t o d o instante na trama dos raciocínios. N o estado atual de nossos conhec imen­tos, não sabemos c o m certeza o que é o Estado, a sobera­nia, a l iberdade política, a democracia, o socialismo, o co­m u n i s m o , etc.; o m é t o d o aconselharia , p o r t a n t o , a que nos p r o i b í s s e m o s t o d o uso desses concei tos , e n q u a n t o eles não estivessem cientificamente constituídos. Entretan­to, as palavras que os e x p r i m e m retornam a todo m o m e n ­to nas d iscussões dos s o c i ó l o g o s . Elas são empregadas correntemente e c o m segurança c o m o se correspondes­sem a coisas b e m conhecidas e definidas, quando apenas despertam e m nós n o ç õ e s confusas, misturas indist intas de impressões vagas, de preconceitos e de paixões. Z o m ­bamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da Idade Média construíam c o m as n o ç õ e s de calor, de fr io , de úmido, de seco, e t c , e não nos apercebemos de que c o n t i n u a m o s a apl icar esse mesmo m é t o d o à o r d e m de f e n ô m e n o s que o c o m p o r t a menos que q u a l q u e r o u t r o , por causa de sua extrema complexidade.

Nos ramos especiais da sociologia, esse caráter ideo­lógico é ainda mais pronunciado .

É o caso sobretudo da moral . De fato, pode-se dizer que não há u m único sistema em que ela não seja repre­sentada c o m o o s imples d e s e n v o l v i m e n t o de uma idéia inicial que a conteria por inteiro e m potência. Essa idéia, uns crêem que o h o m e m a encontra inteiramente pronta d e n t r o dele desde seu nascimento; outros , ao contrário, que ela se forma mais o u menos lentamente ao longo da história. Mas, tanto para uns como para outros, tanto para os empiristas c o m o para os racionalistas, ela é tudo o que há de verdadeiramente real em m o r a l . N o que concerne ao detalhe das regras jurídicas e morais, elas não teriam, p o r assim dizer , e x i s t ê n c i a p o r si mesmas, mas ser iam

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24 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

apenas essa n o ç ã o fundamental aplicada às circunstâncias part iculares da v i d a e d ivers i f i cada c o n f o r m e os casos. Portanto, o objeto da mora l não poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade, mas a idéia da qual decorrem e da q u a l n ã o são mais que apl i cações variadas. Ass im, todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem, não a coisas, mas a idéias; o que se trata de sa­ber é e m que consiste a idéia d o direito, a idéia da moral , e não qual a natureza da moral e d o direi to considerados e m si mesmos. Os moralistas ainda não chegaram à con­c e p ç ã o m u i t o s imples de que , assim c o m o nossa repre­sentação das coisas sensíveis provém dessas coisas mes­mas e as e x p r i m e mais o u menos exatamente, nossa re­presentação da m o r a l provém d o próprio espetáculo das regras que f u n c i o n a m sob nossos olhos e as figura esque­mat icamente ; de q u e , c o n s e q ü e n t e m e n t e , são essas re­gras, e não a n o ç ã o sumária que temos delas, que f o r m a m a matéria da ciência, da mesma forma que a física t em co­m o objeto os corpos tais como existem, e não a idéia que deles faz o v u l g o . Disso resulta que se toma c o m o base da m o r a l o que n ã o é s e n ã o o t o p o , a saber, a maneira c o m o ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute. E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido: ele permanece o mes­m o nas questões especiais. Das idéias essenciais que estu­da n o início, o moralista passa às idéias secundárias de fa­mília, de pátria, de responsabilidade, de caridade, de justi­ça; mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão.

Não é diferente c o m a economia política. Ela tem p o r objeto , d iz Stuart M i l l , os fatos sociais que se p r o d u z e m p r i n c i p a l m e n t e o u exclusivamente e m vista da aquisição de r iquezas 8 . Mas, para que os fatos assim def in idos p u ­dessem ser designados, enquanto coisas, à observação d o cientista, seria preciso pelo menos que se pudesse indicar

REGRAS REI A TIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 25

p o r qua l sinal é possível reconhecer aqueles que satisfa­zem essa condição. Ora, no início da ciência, não se tem sequer o dire i to de af irmar que existe a l g u m , m u i t o me­nos a inda se p o d e saber quais são . E m t o d a o r d e m de pesquisas, c o m efe i to , é somente q u a n d o a e x p l i c a ç ã o dos fatos está suf i c ientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm u m objetivo e qual é esse objeti­vo . Não há problema mais complexo n e m menos suscetí­vel d e ser resolvido de saída. Portanto, nada nos garante de antemão que haja u m a esfera da at iv idade social e m que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse pa­pel preponderante . E m conseqüênc ia , a matéria da eco­nomia política, assim compreendida , é feita não de reali­dades q u e p o d e m ser indicadas , mas de s imples possí ­veis, de puras c o n c e p ç õ e s d o espírito; a saber, fatos que o economista concebe c o m o relacionados ao f i m conside­rado, e tais c o m o ele os concebe. Digamos, p o r exemplo , que ele queira estudar o que chama a produção. De saí­da, acredita poder enumerar os principais agentes c o m o auxílio dos quais ela ocorre e passá- los e m revista. Por­tanto, ele não reconheceu a existência desses agentes ob­servando de quais condições dependia a coisa que ele es­tuda; pois então teria começado por expor as experiências de que t i r o u essa conclusão. Se, desde o início da pesqui­sa e e m poucas palavras, ele procede a essa classificação, é que a obteve p o r u m a simples análise lógica. Parte da idéia da produção; decompondo-a , descobre que ela i m ­pl ica log icamente as de forças naturais , de t rabalho , de instrumento o u de capital, e trata a seguir da mesma ma­neira essas idéias derivadas 9 .

A mais fundamenta l de todas as teorias econômicas , • a d o valor, é manifestamente construída segundo o mes­mo método. Se o valor fosse estudado c o m o uma realida­de deve sê-lo, veríamos pr imeiro o economista indicar e m

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26 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

que se pode reconhecer a coisa chamada c o m esse nome, depois classificar suas espécies, buscar p o r induções me­tódicas as causas e m função das quais elas var iam, c o m ­parar e n f i m os diversos resultados para obter uma fórmu­la geral. A teoria portanto só poderia surgir quando a ciên­cia tivesse avançado bastante. Em vez disso, encontramo-la desde o início. E que, para fazê-la, o economista con­tenta-se e m recolher, e m tomar consciência da idéia que ele t e m d o valor, o u seja, de u m objeto suscetível de ser trocado; descobre que ela impl ica a idéia d o útil, d o raro, e t c , e é c o m esses produtos de sua análise que constrói sua d e f i n i ç ã o . C e r t a m e n t e ele a c o n f i r m a p o r a l g u n s exemplos . Mas, q u a n d o se pensa nos inumeráveis fatos que semelhante teoria deve explicar, c o m o atribuir o me­nor valor demonstrat ivo aos fatos, necessariamente m u i t o raros, que são assim citados ao acaso da sugestão?

Por isso, tanto e m economia política como e m moral , a parte da investigação científica é m u i t o restrita; a da ar­te, preponderante . Em moral , a parte teórica se reduz a al­gumas discussões sobre a idéia d o dever, d o b e m e d o d i ­reito. Mesmo essas especulações abstratas não const i tuem uma ciência, para falar exatamente, já que têm por objeto determinar não o que é, de fato, a regra suprema da m o ­ralidade, mas o que ela deve ser. D o mesmo m o d o , o que mais preocupa os economistas é a questão de saber, p o r e x e m p l o , se a sociedade deve ser organizada segundo as c o n c e p ç õ e s dos individualistas o u segundo as dos socia­listas; se é melhor o Estado in terv i r nas re lações i n d u s t r i ­ais e comerciais o u abandoná-las inteiramente à iniciativa pr ivada; se o sistema monetário deve ser o monometal i s -m o o u o bimetal ismo, e tc , etc. As leis propriamente ditas são p o u c o numerosas nessas pesquisas; m e s m o as q u e nos habituamos a chamar assim geralmente não merecem essa qualificação, não passando de máximas de ação, pre-

REGRAS RELATIVAS Â OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 27

ceitos práticos disfarçados. Eis, por exemplo , a famosa le i da oferta e da procura. Ela jamais f o i estabelecida i n d u t i ­vamente, c o m o expressão da realidade econômica . Jamais uma experiência, uma comparação metódica f o i instituída para estabelecer, de fato, que é segundo essa lei que p r o ­cedem as relações econômicas . T u d o o eme se pôde fazer e t u d o o que se fez f o i demonstrar dialeticamente que os indivíduos d e v e m p r o c e d e r assim, caso e n t e n d a m b e m seus interesses; é que qualquer outra maneira de proce­der lhes seria pre judicial e implicaria, da parte dos que se entregassem a isso, u m a verdadeira aberração lógica. E lóg ico q u e as indústrias mais p r o d u t i v a s sejam as mais procuradas; que os detentores dos produtos de maior de­manda e mais raros os v e n d a m ao mais al to preço . Mas essa necessidade inteiramente lógica e m nada se asseme­lha àquela que apresentam as verdadeiras leis da nature­za. Estas e x p r i m e m as relações segundo as quais os fatos se encade iam rea lmente , e não a manei ra c o m o é b o m que eles se encadeiem.

O que d izemos dessa le i p o d e ser d i t o de todas as eme a escola e c o n ô m i c a o r t o d o x a qua l i f i ca de naturais e que , p o r sinal, não são m u i t o mais d o que casos part i ­culares da precedente. Elas são naturais, se quiserem, n o sent ido de que e n u n c i a m os meios que é o u que p o d e parecer natural empregar para atingir determinado f i m su­posto; mas elas não d e v e m ser chamadas p o r esse nome, se, p o r lei natural, se entender toda maneira de ser da na­tureza, i n d u t i v a m e n t e constatada. Elas n ã o passam, e m suma, de conselhos de sabedoria prática, e, se f o i possí­vel, mais o u menos especiosamente, apresentá-las c o m o a expressão mesma da realidade, é que, c o m o u sem razão, ' acreditou-se poder supor que tais conselhos eram efetiva­mente seguidos pela generalidade dos homens e na gene­ralidade dos casos.

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28 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

N o entanto, os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados c o m o coisas. Para demonstrar essa p r o p o s i ­ção, não é necessário filosofar sobre sua natureza, discutir as analogias que apresentam c o m os fenômenos dos re i ­nos infer iores . Basta constatar q u e eles são o único da¬tum o ferec ido ao soc ió logo . É coisa, c o m efeito, t u d o o que é dado, tudo o que se oferece o u , melhor, se impõe à observação. Tratar f enômenos c o m o coisas é tratá-los na qual idade de data que const i tuem o p o n t o de partida da ciência. Os f e n ô m e n o s sociais apresentam incontestavel­mente esse caráter. O que nos é dado não é a idéia que os homens fazem d o valor, pois ela é inacessível; são os va lores q u e se t r o c a m r e a l m e n t e n o curso de r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s . Não é esta o u aquela c o n c e p ç ã o da idéia m o r a l ; é o c o n j u n t o das regras que d e t e r m i n a m efet iva­mente a conduta . Não é a idéia d o útil o u da r iqueza; é toda a particularidade da organização econômica . É possí­v e l que a v ida social n ã o seja s e n ã o o d e s e n v o l v i m e n t o de certas noções ; mas, supondo que seja assim, essas n o ­ções não são dadas imediatamente. Não se pode portanto atingi-las diretamente, mas apenas através da realidade fe-nomênica que as exprime. Não sabemos a priori que idéias estão na o r i g e m das diversas correntes entre as quais se d iv ide a vida social, n e m se existe alguma; é somente de­pois de tê-las remontado até suas origens que saberemos de onde elas provêm.

E preciso p o r t a n t o considerar os f e n ô m e n o s sociais e m si mesmos, separados dos sujeitos conscientes que os concebem; é preciso estudá-los de fora, como coisas exte­riores, pois é nessa qua l idade que eles se apresentam a nós. Se essa exterioridade for apenas aparente, a ilusão se dissipará à medida que a ciência avançar e veremos, p o r assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a solução não p o d e ser preconcebida e, mesmo que eles não tives-

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 29

sem afinal todos os caracteres intrínsecos da coisa, deve-se pr imeiro tratá-los como se os tivessem. Essa regra aplica-se portanto à realidade social inteira, sem que haja mot ivos para q u a l q u e r e x c e ç ã o . M e s m o os f e n ô m e n o s que mais parecem consistir e m arranjos artificiais d e v e m ser consi­derados desse p o n t o de vista. O caráter convencional de uma prática ou de uma instituição jamais deve ser presu­mido. Aliás, se nos for p e r m i t i d o invocar nossa experiên­cia pessoal, acreditamos poder assegurar que, procedendo dessa maneira, c o m freqüência se terá a satisfação de ver os fatos a p a r e n t e m e n t e mais arbitrários apresentarem, após uma observação mais atenta dos caracteres de cons­tância e de regularidade, sintomas de sua objetividade.

De resto, e de uma maneira geral, o que f o i di to an­teriormente sobre os caracteres distintivos d o fato social é suficiente para nos certificar sobre a natureza dessa objeti­vidade e para provar que ela não é ilusória. C o m efeito, reconhece-se pr incipalmente uma coisa pelo sinal de que não pode ser modif icada por u m simples decreto da v o n ­tade. Não que ela seja refratária a qualquer modif icação. Mas, para produzi r uma mudança nela, não basta querer, é preciso além disso u m esforço mais o u menos labor io­so, devido à resistência que ela nos o p õ e e que n e m sem­pre, aliás, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais têm essa p r o p r i e d a d e . Longe de serem u m p r o d u t o de nossa vontade, eles a determinam de fora; são c o m o m o l ­des nos quais somos obrigados a vazar nossas ações . C o m freqüência até, essa necessidade é tal que não podemos escapar a ela. Mas a i n d a q u e c o n s i g a m o s superá - la , a opos ição que encontramos é suficiente para nos advertir cie que estamos e m presença de algo que n ã o d e p e n d e de nós. Portanto, considerando os f enômenos sociais co­mo coisas, apenas nos conformaremos à sua natureza.

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30 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

E m suma, a reforma que se trata de introduzir e m so­ciologia é e m todos os pontos idêntica à que transformou a p s i c o l o g i a nos úl t imos t r i n t a anos. D o m e s m o m o d o que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são fatos de natureza, sem no entanto tratá-los c o m o coisas, as diferentes escolas empíricas há m u i t o haviam reconhe­c ido o caráter natural dos f e n ô m e n o s psicológicos , "em­bora continuassem a aplicar-lhes u m m é t o d o puramente ideológico* . C o m efeito, os empiristas, **não menos que seus adversários, p r o c e d i a m exc lus ivamente p o r in t ros ­pecção** . Ora, os fatos que só observamos e m nós mes­mos são demasiado raros, demasiado fugazes, " ' d e m a s i a ­d o maleáveis para p o d e r e m se i m p o r às n o ç õ e s corres­pondentes que o hábito f i x o u e m nós e estabelecer-lhes a lei . Q u a n d o estas últimas não são submetidas a outro con­trole, nada lhes faz contrapeso; p o r conseguinte, elas to­m a m o lugar dos fatos*** e const i tuem a matéria da ciên­cia. Assim, n e m Locke, n e m Condillac consideraram os fe­n ô m e n o s psíquicos objetivamente. Não é a sensação que eles estudam, mas u m a certa idéia da sensação. Por isso, a inda que sob certos aspectos eles t e n h a m p r e p a r a d o o advento da psicologia científica, esta só surgiu realmente b e m mais tarde, q u a n d o se chegou f inalmente à concep­ção de que os estados de consciência p o d e m e devem ser considerados de fora , e não d o p o n t o de vista da cons­c iênc ia que os e x p e r i m e n t a . Ta l f o i a grande revolução

* "e d e c l a r a d o q u e eles d e v i a m ser es tudados s e g u n d o o m é t o d o das c i ê n c i a s f ís icas . E n t r e t a n t o , na r e a l i d a d e , t o d o s os t r a b a l h o s q u e lhes d e v e m o s r e d u z e m - s e a puras anál ises ideo lóg icas , n ã o m e n o s q u e os da escola metaf ís ica" . (R.P., p . 486.)

** " t a m b é m s ó e m p r e g a v a m o m é t o d o i n t r o s p e c t i v o " . (R.P., p . 486.)

*** "para c o n t r o l a r e f i cazmente as n o ç õ e s c o r r e s p o n d e n t e s q u e o h á b i t o f i x o u e m n ó s . Estas p e r m a n e c e m p o r t a n t o sem contrapeso ; e m c o n s e q ü ê n c i a , elas se i n t e r p õ e m entre os fatos e n ó s " (R.P., p . 487.)

REGRAS RELATIVASÀ OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 31

que se efetuou nesse t i p o de estudos. Todos os procedi ­mentos part iculares , t o d o s os m é t o d o s n o v o s que e n r i ­queceram essa ciência, não são mais que meios diversos de realizar mais completamente essa idéia fundamental . E o mesmo progresso que resta fazer e m sociologia. E pre­ciso que ela passe d o estágio subjetivo, raramente ultra­passado até agora, à fase objetiva.

Essa passagem, aliás, é menos difícil de efetuar d o que e m psicologia. C o m efeito, os fatos psíquicos são na­tura lmente dados c o m o estados d o sujeito, d o qual eles não parecem sequer separáveis. Interiores p o r definição, parece que só se p o d e tratá-los c o m o exteriores v i o l e n ­tando sua natureza. É preciso não apenas u m esforço de abstração, mas t o d o u m conjunto de procedimentos e de artifícios para chegar a considerá-los desse viés. A o con­trário, os fatos sociais têm mais naturalmente e mais ime­d i a t a m e n t e todas as carac ter í s t i cas da coisa. O d i r e i t o existe nos códigos , os m o v i m e n t o s da v i d a cot id iana se inscrevem nos dados estatísticos, nos monumentos da his­tória, as modas nas roupas, os gostos nas obras de arte. E m vir tude de sua natureza mesma eles tendem a se cons­t i tuir fora das consciências individuais , visto que as d o m i ­nam. Para vê-los sob seu aspecto de coisas, não é preciso, portanto, torturá-los c o m engenhosidade. Desse p o n t o de vista, a sociologia tem sobre a psicologia uma séria vanta­g e m que não f o i percebida até agora e que deve apressar seu desenvolv imento . Os fatos talvez sejam mais difíceis de interpretar p o r serem mais complexos , mas são mais fáceis de atinar. A ps i co log ia , ao contrár io , n ã o apenas t e m di f i cu ldade de elaborá-los , c o m o t a m b é m de perce­bê-los. E m conseqüência , é lícito imaginar que, no dia e m q u e esse princípio d o m é t o d o soc io lóg ico for u n a n i m e ­mente reconhecido e praticado, veremos a sociologia p r o ­gredir c o m u m a rapidez que a lentidão atual de seu de-

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senvolvimento não faria supor, e inclusive reconquistar a dianteira que a psicologia deve unicamente à sua anterio­ridade histórica 1 0 .

I I

Mas a experiência de nossos predecessores nos mos­t r o u que, para assegurar a real ização prática da verdade que acaba de ser estabelecida, não basta oferecer uma de­monstração teórica n e m mesmo compenetrar-se dela. O espírito tende tão naturalmente a d e s c o n h e c ê - l a que re­cairemos inev i tave lmente nos antigos erros, se n ã o nos submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras p r i n ­cipais, corolários da precedente, iremos formular .

D O p r i m e i r o desses corolários é que: É preciso des­cartar sistematicamente todas as prenoções. Uma demons­tração especial dessa regra não é necessária; ela resulta de t u d o o que dissemos anteriormente. Aliás, ela é a base de t o d o método científico. A dúvida metódica de Descartes, n o f u n d o , não é s e n ã o uma apl icação disso. Se, n o m o ­m e n t o e m q u e va i f u n d a r a c iência , Descartes impõe-se c o m o lei pôr e m dúvida todas as idéias que recebeu ante­riormente, é que ele quer empregar apenas conceitos cien­tificamente elaborados, isto é, construídos de acordo c o m o método que ele inst i tui ; todos os que ele obtém de u m a outra o r i g e m d e v e m ser, por tanto , rejeitados, ao menos provisoriamente. J á v imos que a teoria dos ídolos, e m Ba­c o n , n ã o t e m o u t r o sent ido . As duas grandes d o u t r i n a s que freqüentemente f o r a m opostas uma à outra, concor­d a m nesse p o n t o essencial. É preciso, portanto, que o so­ciólogo, tanto no m o m e n t o em que determina o objeto de suas pesquisas, c o m o n o curso de suas d e m o n s t r a ç õ e s , proíba-se resolutamente o e m p r e g o daqueles concei tos

REGRAS RELA 'UVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 33

que se formaram fora da ciência e p o r necessidades que nada têm de científico. É preciso que ele se liberte dessas falsas evidências que d o m i n a m o espírito d o v u l g o , que se l ivre , de uma vez por todas, d o jugo dessas categorias empíricas que u m l o n g o costume acaba geralmente p o r tornar tirânicas. Se a necessidade o obr iga às vezes a re­correr a elas, pe lo menos que o faça tendo consciência de seu p o u c o valor, a f i m de não as chamar a desempenhar na doutr ina u m papel de que não são dignas.

O que torna essa libertaçào particularmente difícil em sociologia é que o sentimento c o m freqüência se introme­te. Apaixonamo-nos , c o m efeito, p o r nossas crenças polí­ticas e religiosas, por nossas práticas morais , m u i t o mais d o que pelas coisas d o m u n d o físico; e m conseqüênc ia , esse caráter passional transmite-se à maneira como conce­bemos e como nos explicamos as primeiras. As idéias que fazemos a seu respeito nos são m u i t o caras, assim c o m o seus objetos, e adquirem tamanha autoridade que não su­por tam a contradição. Toda opinião que as perturba é tra­tada como inimiga. Por exemplo , uma proposição não es­tá de acordo c o m a idéia que se faz d o patriot ismo, o u da d ign idade individual? Então ela é negada, não i m p o r t a m as provas sobre as quais repousa. Não se p o d e a d m i t i r que seja verdadeira; ela é rejeitada categoricamente, e a paixão, para justificar-se, não t e m d i f i cu ldade de sugerir razões que são consideradas fac i lmente decisivas. Essas n o ç õ e s p o d e m m e s m o ter tal prestígio q u e n ã o t o l e r a m sequer u m exame científico. O simples fato de submetê-las, assim c o m o os fenômenos que elas e x p r i m e m , a uma análise fr ia e seca, revolta certos espíritos. Q u e m decide estudar a mora l a partir de fora e c o m o u m a realidade ex ­ter ior é v i s t o p o r esses de l i cados c o m o d e s p r o v i d o de senso mora l , da mesma forma que o vivissecionista pare­ce ao v u l g o desprovido da sensibilidade c o m u m . Em vez

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*de admit i r que esses sentimentos são d o domínio a* da ciência, é a eles que se julga dever apelar para lazer a ciên­cia das coisas às quais se referem. "Infel iz o sábio", escre­ve u m eloqüente historiador das religiões, "que aborda as coisas de Deus sem ter no f u n d o de sua consciência , n o f u n d o indestrutível de seu ser, lá onde dorme a alma dos antepassados, u m santuário desconhecido d o qual se ele­va p o r instantes u m p e r f u m e de incenso, uma l i n h a de salmo, u m gri to doloroso ou tr iunfa l que, criança, lançou ao c é u j u n t o c o m seus irmãos e q u e o r e p õ e e m súbita comunhão c o m os profetas de o u t r o r a ! 1 1 "

Nunca nos ergueremos c o m demasiada força contra essa doutr ina mística que - como t o d o misticismo, aliás -não é, no f u n d o , senão u m e m p i r i s m o disfarçado, nega-dor de toda ciência. Os sentimentos que têm c o m o obje­tos as coisas sociais não têm privilégio sobre os demais, pois não é outra sua or igem. T a m b é m eles são formados historicamente; são u m p r o d u t o da experiência humana, mas de uma experiência confusa e inorganizada. Eles não se devem a não sei que antecipação transcendental da rea­lidade, mas são a resultante de t o d o t i p o de impressões e de e m o ç õ e s a c u m u l a d a s sem o r d e m , ao acaso das c ir ­cunstâncias , sem interpretação metódica . Longe de nos p r o p o r c i o n a r e m luzes superiores às luzes racionais, eles são feitos exc lus ivamente de estados fortes , é verdade , mas confusos. Atribuir- lhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia so­bre as mais elevadas, é condenar-se a uma l o g o m a q u i a mais o u menos oratória. Uma ciência feita assim só pode satisfazer os espíritos que gostam de pensar c o m sua sen­sibi l idade e não c o m seu entendimento, que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pa-

* "de s u b m e t e r esses sent imentos ao c o n t r o l e " (R.P., p . 489.)

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 35

cientes e luminosas da razão. O sent imento é objeto de ciência, nào o critério da verdade científica. De resto, não há ciência que, e m seus começos , não tenha encontrado resistências análogas. H o u v e u m t e m p o e m que os senti­mentos re lat ivos às coisas d o m u n d o f ís ico, t e n d o eles próprios u m caráter religioso ou moral , opunham-se c o m não menos força ao estabelecimento das ciências físicas. Pode-se portanto supor que, expulso de ciência em ciên­cia, esse preconceito acabará por desaparecer da própria sociologia, seu último refúgio, para deixar o terreno l ivre ao cientista.

2) Mas a regra precedente é in te i ramente negativa. Ela ensina o soc ió logo a escapar ao domínio das n o ç õ e s vulgares, para d i r i g i r sua atenção aos fatos; mas não diz c o m o deve se apoderar desses últimos para empreender u m estudo objetivo deles.

Toda investigação científica tem por objeto u m g r u p o d e t e r m i n a d o de f e n ô m e n o s q u e c o r r e s p o n d e m a u m a mesma definição. O p r i m e i r o procedimento d o sociólogo deve ser, portanto, def inir as coisas de que ele trata, a f i m de q u e se saiba e de q u e ele saiba b e m o que está e m questão. Essa é a pr imeira e a mais indispensável c o n d i ­ção de toda prova e de toda verificação; uma teoria, c o m efeito, só p o d e ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve explicar. 'Além d o mais, visto ser por essa definição que é constituído* o objeto mesmo da ciên­cia, este será uma coisa o u não, conforme a maneira pela qual essa definição for feita.

Para que ela seja objet iva, é preciso ev identemente que exprima os fenômenos , não em função de uma idéia d o espírito, mas de propriedades que lhe são inerentes. É

* "Concebe-se f a c i l m e n t e a importânc ia dessa d e f i n i ç ã o i n i c i a l já <|ue é ela q u e c o n s t i t u i " (R.P., p . 490.)

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preciso que ela os caracterize p o r u m elemento integrante da natureza deles, n ã o pela c o n f o r m i d a d e deles a u m a n o ç ã o mais o u menos ideal . Ora, no m o m e n t o e m que a pesquisa va i apenas começar , q u a n d o os fatos não estão ainda submetidos a n e n h u m a elaboração, os únicos des­ses caracteres q u e p o d e m ser a t i n g i d o s s ã o os q u e se mostram suficientemente exteriores para serem imediata­mente visíveis. Os que estão situados mais p r o f u n d a m e n ­te são, p o r certo, mais essenciais; seu valor expl icat ivo é maior, mas nessa fase da ciência eles são desconhecidos e só p o d e m ser antec ipados se s u b s t i t u i r m o s a rea l idade p o r alguma c o n c e p ç ã o d o espírito. Assim, é entre os p r i ­mei ros que deve ser buscada a matéria dessa def in ição f u n d a m e n t a l . Por o u t r o lado, é c laro que essa def inição deverá compreender , sem e x c e ç ã o n e m distinção, todos os fenômenos que apresentam igualmente esses mesmos caracteres; p o i s n ã o temos n e n h u m a r a z ã o e n e n h u m m e i o de escolher entre eles. Essas propriedades são, en­tão, t u d o o que sabemos d o real; e m conseqüência , elas d e v e m determinar soberanamente a maneira c o m o os fa­tos d e v e m ser agrupados. Não possuímos n e n h u m o u t r o cri tério q u e possa, m e s m o p a r c i a l m e n t e , suspender os efeitos d o precedente. D o n d e a regra seguinte: Jamais to­mar por objeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definição. Por exemplo , cons­tatamos a existência de certo número de atos que apre­sentam, todos, o caráter exterior de, u m a vez efetuados, determinarem de parte da sociedade essa reação part icu­lar que é chamada pena. Fazemos deles u m g r u p o sui ge¬neris, ao qua l i m p o m o s uma rubrica c o m u m ; chamamos crime todo ato p u n i d o e fazemos d o crime assim def in ido o objeto de uma ciência especial, a cr iminologia . D o mes-

RliGRAS REI A TIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 37

mo m o d o , observamos, no interior de todas as sociedades conhecidas, a existência de uma sociedade parcial , reco­nhecível pelo sinal exterior de ser formada de indivíduos consangüíneos uns dos outros, e m sua maior parte, e que estão unidos entre si p o r laços jurídicos. Fazemos dos fa­tos que se re lac ionam a ela u m g r u p o part icular ; são os f e n ô m e n o s da v i d a domést ica . C h a m a m o s família t o d o agregado desse t i p o e fazemos da família assim definida o objeto de uma investigação especial que ainda não rece­beu denominação determinada na terminologia sociológi­ca. Q u a n d o , mais tarde, passarmos da família e m geral aos diferentes t ipos familiares, apl icaremos a mesma re­gra. Q u a n d o abordarmos, por exemplo , o estudo d o clã, o u da família maternal, o u da família patriarcal, começare­mos por defini- los, e de acordo c o m o mesmo método. O objeto de cada problema, geral c o m o particular, deve ser constituído segundo o mesmo princípio.

A o proceder dessa maneira, o soc ió logo , desde seu pr imei ro passo, toma imediatamente contato c o m a reali­dade. C o m efeito, o m o d o como os fatos são assim classi­ficados não depende dele, da propensão particular de seu espírito, mas da natureza das coisas. O sinal que possibi l i ­ta serem colocados nesta o u naquela categoria p o d e ser mostrado a t o d o o m u n d o , reconhecido por todo o m u n ­do, e as afirmações de u m observador p o d e m ser contro­ladas pelos outros. É verdade que a n o ç ã o assim constituí­da n e m sempre se ajusta, o u , até mesmo, e m geral não se ajusta, à n o ç ã o c o m u m . Por exemplo, é evidente que, pa­ra o senso c o m u m , os casos de l ivre pensamento o u as faltas à etiqueta, tão regularmente e tão severamente p u ­nidos numa série de sociedades, não são vistos c o m o cr i ­mes, inclusive e m relação a essas sociedades. Assim tam­bém, u m clã não é uma família, n o sentido usual da pala­vra. Mas não impor ta ; pois não se trata s implesmente de

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descobrir u m meio que nos permita verificar com suficien­te certeza os fatos a que se apl icam as palavras da língua corrente e as idéias que estas traduzem. O que é preciso é const i tu i r in te i ramente conceitos novos , a p r o p r i a d o s às necessidades da c iênc ia e expressos c o m o auxí l io de u m a t e r m i n o l o g i a especial. Não, certamente, que o con­ceito vulgar seja inútil ao cientista; ele serve de indicador. Por ele, somos informados de que existe em alguma parte u m conjunto de fenômenos reunidos sob uma mesma de­nominação e que, portanto, devem provavelmente ter ca­racterísticas comuns; inclusive, como o conceito vulgar ja­mais deixa de ter a l g u m contato c o m os f e n ô m e n o s , ele nos indica às vezes, mas de maneira geral , em que dire­ção estes devem ser buscados. Mas, c o m o ele é grosseira­mente f o r m a d o , é natural que n ã o co inc ida exatamente c o m o conceito científico, instituído em seu lugar 1 2 .

Por mais evidente e impor tante que seja essa regra, ela n ã o é m u i t o observada e m sociologia . Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre falan­do, c o m o a família, a propriedade, o crime, e t c , na maio­ria das vezes parece inútil ao sociólogo dar-lhes uma def i ­nição pre l iminar e rigorosa. Estamos tão habituados a ser­v i r - n o s dessas palavras , q u e v o l t a m a t o d o instante n o curso das conversações, que parece inútil precisar o senti­d o n o qual as empregamos . As pessoas se re ferem s i m ­plesmente à n o ç ã o c o m u m . Ora, esta é m u i t o freqüente­mente ambígua. Essa ambigüidade faz que se reúnam sob u m m e s m o n o m e e n u m a mesma e x p l i c a ç ã o coisas, e m realidade, m u i t o diferentes. Daí provêm inextricáveis con­fusões. Assim, existem duas espécies de uniões monogâ-micas: umas o são de fato, outras de dire i to . Nas p r i m e i ­ras, o mar ido só tem uma mulher, embora, juridicamente, possa ter várias; nas segundas ele é legalmente p r o i b i d o de ser polígamo. A monogamia de fato verifica-se e m vá-

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rias espéc ies animais e e m certas sociedades infer iores , não de forma esporádica, mas c o m a mesma generalidade como se fosse imposta por lei. Q u a n d o a população está dispersa numa vasta superfície, a trama social é mais f r o u ­xa, portanto os indivíduos v i v e m isolados uns dos outros. Por isso, cada h o m e m busca naturalmente obter uma m u ­lher e uma só, porque , nesse estado de isolamento, lhe é difícil ter várias. A m o n o g a m i a obrigatória, ao contrário, só se observa nas sociedades mais elevadas. Essas duas espécies de sociedades conjugais têm portanto uma signi­ficação m u i t o diferente, n o entanto a mesma palavra ser­ve para designá-las; pois é c o m u m dizer de certos animais eme eles são monógamos , embora nada exista entre eles q u e se assemelhe a u m a o b r i g a ç ã o jurídica. O r a , o sr. Spencer, a b o r d a n d o o estudo d o casamento, emprega a palavra monogamia , sem defini- la, c o m seu sentido usual e equívoco . Disso resulta que a evo lução d o casamento lhe parece apresentar u m a incompreensível anomalia , já que ele crê observar a forma superior da união sexual já nas primeiras fases d o desenvolvimento histórico, ao pas­so que ela parece desaparecer n o per íodo intermediário para retornar a seguir. Ele conclui daí que não há relação regular entre o progresso social em geral e o avanço pro­gressivo em direção a u m t i p o per fe i to de v ida famil iar . Uma definição opor tuna teria evitado esse e r r o 1 3 .

Em outros casos, toma-se o cuidado de def inir o ob­jeto sobre o q u a l incidirá a pesquisa ; mas, e m vez de abranger na definição e de agrupar sob a mesma rubrica todos os fenômenos que têm as mesmas propriedades ex­teriores, faz-se u m a t r iagem entre eles. Escolhem-se a l ­guns, espécie de elite, que são vistos c o m o os únicos c o m o d i r e i t o a ter esses caracteres. Q u a n t o aos demais , sào considerados c o m o t e n d o usurpado esses sinais d i s t i n t i ­vos e não são levados e m conta. Mas é fácil prever que

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dessa manei ra só se p o d e obter u m a n o ç ã o subjet iva e t runcada. Essa e l iminação, c o m efei to, só p o d e ser feita c o m base numa idéia preconcebida, uma vez que, no co­m e ç o da ciência, nenhuma pesquisa pôde ainda estabele­cer a realidade dessa usurpação, supondo-se que ela seja possível . Os f e n ô m e n o s escolhidos só o p o d e m ter sido p o r q u e estavam, mais d o que os outros, de acordo c o m a c o n c e p ç ã o ideal que se fazia desse t i p o de realidade. Por exemplo , o sr. Garofalo, n o c o m e ç o de sua Criminologie, demonstra m u i t o b e m que o p o n t o de partida dessa ciên­cia deve ser "a noção sociológica d o c r i m e " 1 4 . Só que, pa­ra constituir essa noção , ele não compara indistintamente todos os atos que, nos diferentes t ipos sociais, f o r a m re­p r i m i d o s p o r penas regulares, mas apenas alguns dentre eles, a saber, os q u e o f e n d e m a parte média e imutável d o senso mora l . Q u a n t o aos sentimentos morais que de­sapareceram d u r a n t e a e v o l u ç ã o , eles n ã o lhe parecem fundados na natureza das coisas, p o r não terem consegui­d o se manter; p o r conseguinte, os atos que f o r a m consi­derados criminosos p o r q u e os v io lavam, lhe parecem de­ver essa denominação apenas a circunstâncias acidentais e mais o u menos patológicas . Mas é e m v i r t u d e de uma c o n c e p ç ã o i n t e i ramente pessoal da m o r a l i d a d e que ele p r o c e d e a essa e l i m i n a ç ã o . Ele parte da idéia de q u e a evolução moral , tomada e m sua fonte mesma o u nos arre­dores, arrasta t o d o t i p o de escórias e de impurezas , que ela e l imina a seguir progressivamente, e de que somente hoje ela conseguiu desembaraçar-se de todos os elemen­tos adventíc ios que, p r i m i t i v a m e n t e , p e r t u r b a v a m - l h e o curso. Mas esse princípio não é n e m u m axioma evidente n e m uma verdade demonstrada; é apenas uma hipótese, que nada inclusive justifica. As partes variáveis d o senso m o r a l não são menos fundadas na natureza das coisas do q u e as partes imutáveis; as var iações pelas quais as p r i -

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meiras passaram t e s t e m u n h a m apenas q u e as próprias coisas variaram. Em zoologia, as formas específicas às es­pécies inferiores n ã o são vistas c o m o menos naturais d o que as que se repetem em todos os graus da escala ani ­mal . D o mesmo m o d o , os atos tachados de crimes pelas sociedades pr imit ivas , e que p e r d e r a m essa qualif icação, são rea lmente c r i m i n o s o s para essas sociedades, t a n t o q u a n t o os q u e c o n t i n u a m o s a r e p r i m i r hoje e m dia . Os p r i m e i r o s c o r r e s p o n d e m às c o n d i ç õ e s mutáveis da v i d a social, os segundos às condições constantes; mas uns não são mais artificiais que os outros.

E t e m mais: ainda que esses atos tivessem a d q u i r i d o indevidamente o caráter criminológico, n e m por isso deve­riam ser separados radicalmente dos outros; pois a nature­za das formas mórbidas de u m f e n ô m e n o não é diferente da natureza das formas normais e, por conseqüência, é ne­cessário observar tanto as pr imeiras q u a n t o as segundas para determinar essa natureza. A d o e n ç a n ã o se o p õ e à saúde; trata-se de duas variedades d o m e s m o g ê n e r o e que se esclarecem mutuamente. Essa é uma regra há m u i ­to reconhecida e praticada, tanto e m b i o l o g i a c o m o e m psicologia, e que o sociólogo não é menos obrigado a res­peitar. A menos que se admita que u m mesmo fenômeno possa ser d e v i d o ora a causa, ora a u m a outra , isto é, a menos que se negue o princípio de causalidade, as causas que i m p r i m e m n u m ato, mas de maneira anormal, o sinal d is t in t ivo d o cr ime não p o d e r i a m di fer i r e m espéc ie das que p r o d u z e m normalmente o mesmo efeito; elas d is t in -guem-se apenas e m grau o u porque não agem no mesmo conjunto de circunstâncias. O crime anormal ainda é, por­tanto, u m crime e deve, por conseguinte, entrar na d e f i n i ' cao d o cr ime. Assim, o que ocorre? O sr. Garofalo toma por gênero o que n ã o é senão a espéc ie o u mesmo u m a simples variedade. Os fatos aos quais se aplica sua fórmu-

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la da criminalidade não representam senão uma ínfima m i ­noria entre os que ela deveria compreender; pois ela não convém n e m aos crimes religiosos, n e m aos crimes contra a etiqueta, o cerimonial , a tradição, e tc , que, se desapare­ceram de nossos códigos modernos, preenchem, ao contrá­rio, quase todo o direito penal das sociedades anteriores.

E a mesma falta de método que faz que certos obser­vadores recusem aos selvagens qualquer espécie de m o ­r a l i d a d e 1 5 . Eles p a r t e m da idéia de q u e nossa m o r a l é a moral ; ora, é evidente que ela é desconhecida dos povos p r i m i t i v o s o u que só existe neles e m estado rudimentar . Mas essa definição é arbitrária. A p l i q u e m o s nossa regra e t u d o se modif ica . Para decidir se u m preceito é mora l o u não , devemos examinar se ele apresenta o u não o sinal exter ior da mora l idade ; esse sinal consiste n u m a sanção repressiva di fusa , o u seja, n u m a reprovação da opinião pública que vinga toda violação d o preceito. Sempre que est ivermos em presença de u m fato q u e apresenta esse caráter, não temos o direi to de negar-lhe a qualificação de moral ; pois essa é a prova de que ele é da mesma nature­za que os outros fatos morais . Ora, regras desse gênero não só se ver i f i cam nas sociedades inferiores , c o m o são mais numerosas aí d o que entre os civil izados. Uma quan­t idade de atos a tua lmente entregues à l i v r e a p r e c i a ç ã o dos indivíduos s ã o , e n t ã o , i m p o s t o s o b r i g a t o r i a m e n t e . Percebe-se a que erros somos levados q u a n d o não def in i ­mos, o u quando def inimos mal .

Mas, dirão, def in ir os fenômenos por seus caracteres aparentes n ã o será a t r i b u i r às p r o p r i e d a d e s superf ic iais uma espécie de preponderância sobre os atributos funda­mentais? Não será, p o r uma verdadeira inversão da ordem lógica, fazer repousar as coisas sobre seus topos , e não sobre suas bases? É assim que, quando se define o crime pela pena, corre-se quase inevi tavelmente o risco de ser

REGRAS RELA TIVAS Ã OBSER VAÇÂO DOS FATOS SOCIAIS 43

acusado de querer derivar o crime da pena o u . conforme u m a c i tação b e m conhec ida , de ver no patíbulo a fonte da vergonha, não no ato expiado. Mas a ob jeção repousa sobre uma confusão. C o m o a definição cuja regra acaba­mos de dar está si tuada n o c o m e ç o da c iênc ia , ela n ã o poder ia ter por ob jeto e x p r i m i r a essência da realidade; ela deve apenas nos pôr e m condições de chegar a isso u l ter iormente . Ela t e m p o r única função fazer-nos entrar e m contato c o m as coisas e, c o m o estas n ã o p o d e m ser atingidas pelo espírito a não ser de fora, é por seus exterio­res q u e ela as e x p r i m e . Mas isso não quer dizer que as e x p l i q u e ; ela apenas fornece o p r i m e i r o p o n t o de apoio necessário às nossas explicações. Claro, não é a pena que faz o crime, mas é por ela que ele se revela exteriormente a nós, e é dela portanto que devemos partir se quisermos chegar a compreendê- lo .

A ob jeção só seria fundada se esses caracteres exte­riores fossem ao mesmo t e m p o acidentais, isto é, se não estivessem ligados às propriedades fundamentais. De fato, nessas c o n d i ç õ e s , a c iência , após tê- los assinalado, não teria meio a lgum de ir mais adiante; não poderia aprofun­dar-se mais na realidade, já que não haveria nenhuma re­lação entre a superf íc ie e o f u n d o . Mas, a menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vã, quando ca­racteres determinados se encontram identicamente e sem n e n h u m a e x c e ç ã o e m todos os f e n ô m e n o s de certa or­dem, pode-se estar certo de que eles se l igam int imamen­te à natureza destes últimos e que são solidários c o m eles. Se u m g r u p o dado de atos apresenta igualmente a par t i ­cularidade de uma sanção penal estar a eles associada, é que existe uma ligação íntima entre a pena e os atr ibutos. constitutivos desses atos. E m conseqüência , por mais su­perficiais que sejam, essas propriedades, contanto que te­n h a m s ido m e t o d i c a m e n t e observadas, m o s t r a m clara-

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44 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

mente ao cientista o c a m i n h o q u e ele deve seguir para penetrar mais f u n d o nas coisas; elas são o pr imei ro e i n ­dispensável elo da cadeia que a ciência irá desenrolar a seguir no curso de suas explicações.

Visto ser pela sensação que o exterior das coisas nos é dado, pode-se portanto dizer, e m resumo: a ciência, pa­ra ser objetiva, deve partir , não de conceitos que se for­m a r a m sem ela, mas da sensação . É dos dados sensíveis que ela deve tomar diretamente emprestados os elemen­tos de suas definições iniciais. E, de fato, basta pensar em que consiste a obra da ciência para compreender que ela n ã o p o d e proceder de o u t r o m o d o . Ela t e m necessidade de conceitos que e x p r i m a m adequadamente as coisas tais c o m o elas são, não tais c o m o é útil à prática concebê-las . Ora , aqueles concei tos q u e se consti tuíram fora de sua ação não preenchem essa condição. É preciso, pois, que ela crie novos e que, para tanto, afastando as noções co­m u n s e as palavras que as e x p r i m e m , v o l t e à s e n s a ç ã o , matéria-prima necessária de todos os conceitos. É da sen­sação que emanam todas as idéias gerais, verdadeiras o u falsas, científicas o u não. Portanto, o p o n t o de partida da c iênc ia o u c o n h e c i m e n t o especu la t ivo n ã o p o d e r i a ser outro que o d o conhecimento vulgar o u prático. É somen­te além dele, na maneira pela qual essa matéria c o m u m é elaborada, que as divergências começam.

3) Mas a sensação é facilmente subjetiva. Assim é de regra, nas ciências naturais, afastar os dados sensíveis que correm o risco de ser demasiado pessoais ao observador, para reter exclusivamente os que apresentam u m suficien­te grau de objet ividade. Eis o que leva o físico a substituir as vagas impressões que a temperatura o u a eletricidade p r o d u z e m pela representação visual das osci lações d o ter­mômetro o u d o eletrômetro. O soc ió logo deve tomar as mesmas precauções . Os caracteres exteriores em função

REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 45

dos quais ele define o objeto de suas pesquisas elevem ser tão objetivos quanto possível.

Pode-se estabelecer c o m o princípio que os fatos so­ciais são tanto mais suscetíveis de ser ob je t ivamente re­presentados "quanto mais completamente separados dos fatos individuais que os manifestam*.

De fato, u m a sensação é tanto mais objetiva quanto maior a f ix idez d o objeto ao qual ela se relaciona; pois a condição de toda objetividade é a existência de u m p o n t o de referência, constante e idêntico, ao qual a representa­ç ã o p o d e ser relacionada e que permi te e l iminar t u d o o que ela tem de variável, portanto, de subjetivo. Se os úni­cos pontos de referência dados f o r e m eles próprios variá­veis , se f o r e m p e r p e t u a m e n t e d iversos e m re lação a si mesmos, faltará uma medida c o m u m e não teremos meio a l g u m de dist inguir e m nossas impressões o que depende de fora e o que lhes v e m de nós. " O r a , a vida social, en­quanto não chegou a isolar-se dos acontecimentos par t i ­culares que a encarnam para constituir-se à parte, t em jus­tamente essa propriedade, pois, c o m o esses acontecimen­tos n ã o têm a mesma f i s ionomia de u m a vez a outra, de u m instante a outro , e c o m o ela é inseparável deles, estes transmitem-lhe sua m o b i l i d a d e . Ela consiste então e m l i ­vres correntes** que estão perpetuamente e m via de trans­formação e que o o lhar d o observador não consegue f i ­xar. Vale dizer que não é por esse lado que o cientista p o ­de a b o r d a r o es tudo da rea l idade socia l . Mas sabemos que esta apresenta a particularidade de, sem deixar de ser ela mesma, ser capaz de cristalizar-se. Fora dos atos i n d i -

• " q u a n t o mais e s t i v e r e m c o n s o l i d a d o s " . (R.P., p . 497.) " " O r a , a v i d a soc ia l , n o es tado d e l i b e r d a d e , é i n f i n i t a m e n t e

móvel e fugaz . Ela n ã o está isolada, p e l o m e n o s i m e d i a t a m e n t e , d o s f e n ô m e n o s part iculares nos quais se encarna , e estes d i f e r e m de u m a vez a o u t r a , de u m caso a o u t r o . S ã o correntes" (R.P., p . 497.)

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46 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

vidua is q u e suscitam, os hábitos colet ivos expr imem-se sob formas definidas, regras jurídicas, morais, ditos p o p u ­lares, fatos de es trutura social , etc. C o m o essas formas existem de uma maneira permanente, ' c o m o não m u d a m c o m as diversas a p l i c a ç õ e s q u e delas s ã o feitas ,* elas const i tuem u m objeto f ixo , u m padrão constante que está sempre ao alcance d o observador e que não dá margem às impressões subjetivas e às observações pessoais. Uma regra de direi to é o que ela é, e não há duas maneiras de percebê- la . Por o u t r o lado, visto que essas práticas nada mais são que vida social consolidada, é legítimo, salvo i n ­dicações contrárias 1 6 , estudar esta através daquelas.

Quando, portanto, o sociólogo empreende a explora­ção uma ordem qualquer de fatos sociais, ele deve esforçar-se em considerá-los por um lado em que estes **se apresen­tem isolados de suas manifestações individuais**. É em vir­tude desse princípio que estudamos a solidariedade social, suas formas diversas e sua evolução através d o sistema das regras jurídicas que as e x p r i m e m 1 7 . D o mesmo m o d o , se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familia­res c o m base nas descrições literárias que deles nos ofere­cem os viajantes e, às vezes, os historiadores, corre-se o risco de confundir as espécies mais diferentes, de aproxi ­mar os tipos mais afastados. Se, ao contrário, tomar-se por base dessa classificação a constituição jurídica da família e, mais especificamente, o direi to sucessório, ter-se-á u m cri­tério objetivo que, sem ser infalível, evitará no entanto m u i ­tos erros 1 8 . Queremos classificar os diferentes tipos de cri­mes? Então nos esforçaremos por reconstituir as maneiras de viver, os costumes profissionais praticados nos diferen­tes m u n d o s d o crime, e reconheceremos tantos tipos cri -

* E l e m e n t o q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l . ** "apresentam um grau suficiente de consolidação"'. (R.P., p . 497.)

REGRAS REI ATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

minológicos quantas forem as formas diferentes que essa organização apresenta. Para ident i f i car os costumes, as crenças populares, recorreremos aos provérbios, aos dita­dos que os e x p r i m e m . Certamente, ao proceder assim, de i ­xamos provisoriamente fora da ciência a matéria concreta da vida coletiva, e no entanto, por mais mutável que esta seja, não temos o direito de postular a priori sua inintel igi -bil idade. Mas, se quisermos seguir uma via metódica, pre­cisaremos estabelecer os primeiros alicerces da ciência so­bre u m terreno firme e não sobre areia movediça. É preci­so a b o r d a r o re ino social pelos lados o n d e ele mais se abre à investigação científica. Somente a seguir será possí­vel levar mais adiante a pesquisa e, por trabalhos de apro­ximação progressivos, cingir pouco a pouco essa realidade fugidia, da qual o espírito h u m a n o talvez jamais possa se apoderar completamente.

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CAPÍTULO I I I

REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO

A observação, conduzida de acordo c o m as regras que precedem, confunde duas ordens de fatos, mui to desseme­lhantes sob certos aspectos: os que são o que devem ser e os q u e dever iam ser de o u t r o m o d o , os f e n ô m e n o s nor ­mais e os fenômenos patológicos. Vimos inclusive que era necessário abrangê-los igualmente na definição pela qua l deve se iniciar toda pesquisa. Mas, se eles, em certa medi­da, são da mesma natureza, não deixam de constituir duas variedades diferentes, que é importante distinguir. A ciên­cia dispõe de meios que permitem fazer essa distinção?

A ques tão é da m a i o r importância ; pois da so lução que se der a ela depende a idéia que se faz d o papel que c o m p e t e à c iênc ia , s o b r e t u d o à c iênc ia d o h o m e m . D e acordo c o m uma teoria cujos partidários se recrutam nas escolas mais diversas, a ciência nada nos ensinaria sobre aqui lo que devemos querer. Ela só conhece, dizem, fatos que têm o mesmo valor e o mesmo interesse; ela os o b ­serva, os explica, mas não os julga; para ela, os fatos nada l e r i a m de censurável . O b e m e o m a l n ã o exis tem para

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50 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

ela. A ciência p o d e perfe i tamente nos dizer de que ma­neira as causas p r o d u z e m seus efeitos, não que f inal ida­des d e v e m ser buscadas. Para saber, não o que é, mas o que é desejável, deve-se recorrer às sugestões d o incons­ciente, não importa o n o m e que se dê a ele: sentimento, instinto, impulso vi ta l , etc. A ciência, diz u m escritor já ci­tado, pode m u i t o b e m i luminar o m u n d o , mas ela deixa a noite nos corações; compete ao coração mesmo fazer sua própria luz. A ciência se vê assim destituída, o u quase, de toda eficácia prática, não tendo portanto grande razão de ser; pois, de que serve trabalhar para conhecer o real, se o conhecimento que dele adquir imos não nos pode servir na vida? Acaso dirão que ela, ao nos revelar as causas dos fenômenos , nos fornece os meios de produzi - los a nosso gosto e, p o r t a n t o , de realizar os f ins que nossa v o n t a d e persegue por razões supracientíficas? Mas t o d o meio é ele própr io u m f i m , p o r u m lado ; po is , para empregá- lo , é preciso querê-lo tanto c o m o o f i m cuja realização ele pre­para. Há sempre vários caminhos que levam a u m objeti­v o dado; é preciso, portanto, escolher entre eles. Ora, se a ciência não pode nos ajudar na escolha d o objetivo me­lhor , c o m o é que ela poder ia nos ensinar qua l o m e l h o r caminho para chegar a ele? Por que ela nos recomendaria o mais rápido de preferência ao mais econômico , o mais seguro e m vez d o mais simples, o u vice-versa? Se não é capaz de nos guiar na determinação dos f ins superiores, ela não é menos impotente quando se trata desses fins se­cundários e subordinados que chamamos meios.

O m é t o d o ideológico permite , é verdade, escapar a esse misticismo, e f o i aliás o desejo de escapar a ele o res­ponsável , e m parte, pela persistência desse método . Os que o praticaram eram, c o m efeito, demasiadamente racio­nalistas para a d m i t i r que a conduta h u m a n a n ã o tivesse necessidade de ser dir ig ida pela reflexão; no entanto, eles

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 51

não v iam nos fenômenos , tomados e m si mesmos e inde­pendentemente de t o d o dado subjetivo, nada que p e r m i ­tisse classificá-los segundo seu valor prático. Parecia por­tanto que o único m e i o de julgá-los seria relacioná-los a a l g u m conceito que os dominasse; c o m isso, o emprego de n o ç õ e s q u e p r e s i d i r a m à c o m p a r a ç ã o dos fatos, e m vez de derivar deles, tornava-se indispensável em toda so­c iologia racional . Mas sabemos que, se nessas condições a prática se torna refletida, a reflexão, assim empregada, não é científica.

O prob lema que acabamos de colocar nos permitirá reivindicar os direitos da razão sem cair de n o v o na ideo­logia. C o m efeito, tanto para as sociedades c o m o para os indivíduos, a saúde é boa e desejável, enquanto a doença é algo r u i m e que deve ser evitado. Se encontrarmos por­tanto u m critério objet ivo, inerente aos fatos mesmos, que nos permita dist inguir cientif icamente a saúde da doença nas diversas ordens de fenômenos sociais, a ciência será capaz de esclarecer a prática, sem deixar de ser f iel a seu próprio método. É verdade que, como não consegue pre­sentemente at ingir o indivíduo, ela só é capaz de f o r n e ­cer-nos indicações gerais que não p o d e m ser convenien­temente diversificadas, a não ser que se entre diretamente em contato c o m o particular através da sensação. O esta­d o de saúde, tal c o m o ela o def ine , n ã o p o d e r i a c o n v i r exatamente a n e n h u m sujeito i n d i v i d u a l , já que só p o d e ser es tabelec ido e m r e l a ç ã o às c i rcunstânc ias mais co­muns, das quais cada u m se afasta e m m a i o r o u m e n o r grau; ainda assim, esse é u m p o n t o de referência precioso para orientar a conduta. D o fato de ser preciso ajustá-lo a seguir a cada caso especial, não se c o n c l u i que não haja n e n h u m interesse e m c o n h e c ê - l o . M u i t o p e l o contrário, ele é a norma que deve servir de base a todos os nossos raciocínios práticos. Nessas condições, não se tem mais o

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54 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

redução das chances de morte . É legítimo supor, ao con­trário, que certas d i spos i ções anatômicas o u func iona is não servem diretamente para nada, mas simplesmente são p o r q u e são, p o r q u e n ã o p o d e m deixar de ser, ciadas as condições gerais da vida. Não se poderia no entanto qua­lificá-las de mórbidas; pois a doença é, antes de tudo, al­go evitável que não está impl icado na constituição regular d o ser v i v o . Ora, pode acontecer que, e m vez de fortale­cer o organismo, tais disposições d i m i n u a m sua força de res i s tênc ia e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , a u m e n t e m os riscos mortais.

Por o u t r o l a d o , n ã o é seguro q u e a d o e n ç a t enha sempre o resultado e m função d o qual se quer def ini - la . Acaso não há uma série de afecções demasiado leves para que possamos atribuir- lhes uma influência sensível sobre as bases vitais d o organismo? Mesmo entre as mais graves, há algumas cujas conseqüências nada têm de deplorável, se soubermos lutar contra elas c o m as armas de que dis­p o m o s . Q u e m sofre de p r o b l e m a s gástr icos, mas segue uma boa dieta, p o d e viver tanto quanto o h o m e m sadio. Claro que é obrigado a ter cuidados; mas não somos todos obrigados a isso, e acaso pode a vida manter-se de outro modo? Cada u m de nós tem sua higiene; a d o doente não se assemelha àquela praticada pela média dos homens de seu t e m p o e de seu m e i o ; mas essa é a única diferença que existe entre eles desse ponto cie vista. A doença nem sempre nos deixa desamparados, n u m estado de inadapta­ção irremediável; ela apenas nos obriga a adaptar-nos de m o d o diferente d o da maior parte de nossos semelhantes. Q u e m nos diz , inc lus ive , que não ex i s tem d o e n ç a s que acabam p o r se mostrar úteis? A varíola que nos inocula­mos através da vacina é uma verdadeira doença que nos damos v o l u n t a r i a m e n t e ; n o entanto ela aumenta nossas chances de sobrevivência. Talvez haja muitos outros casos

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO

em que o problema causado pela doença é insignificante comparado c o m as imunidades que ela confere.

Enfim, e sobretudo, esse critério é na maioria das ve­zes inaplicável . Pode-se m u i t o b e m estabelecer, a r igor , que a mortalidade mais baixa que se conhece encontra-se c m d e t e r m i n a d o g r u p o de indivíduos; mas n â o se p o d e d e m o n s t r a r q u e n ã o p o d e r i a h a v e r o u t r a mais b a i x a . Q u e m nos diz que n ã o são possíveis outras disposições que teriam por efeito diminuí-la ainda mais? Esse mínimo de fato nâo é portanto prova de uma perfeita adaptação, nem, por conseguinte, u m indicador seguro d o estado de saúde, se nos basearmos na definição precedente . Além disso, u m g r u p o dessa natureza é m u i t o difícil de se cons­tituir e de se isolar de todos os outros, como seria necessá­rio, para que se pudesse observar a constituição orgânica de que ele tem o privilégio e que é a suposta causa dessa superioridade. Inversamente, se é óbvio, q u a n d o se trata de L i m a doença cujo desdobramento é geralmente mortal , que as probabi l idades de sobrevivência d o indivíduo são diminuídas, a prova é singularmente difícil quando a afec­ção não é de natureza a ocasionar dire tamente a morte . ( :t >m efeito, só há uma maneira objetiva de provar que i n ­divíduos s i tuados e m c o n d i ç õ e s d e f i n i d a s t ê m m e n o s i hances de sobreviver que outros: é demonstrar que, de lalo, a maior parte deles v ive menos t e m p o . Ora, se essa d e m o n s t r a ç ã o é f r e q ü e n t e m e n t e poss ível nos casos de doenças puramente individuais , ela é inteiramente imprat i -i . i v c l em sociologia. Pois aqui não temos o p o n t o de refe-lencia de q u e d i s p õ e o b i ó l o g o , a saber, o n ú m e r o da morta l idade média . Não sabemos sequer d i s t ingui r c o m exatidão simplesmente aproximada e m que m o m e n t o nas-i e uma sociedade e e m que m o m e n t o ela morre . Todos e s s e s problemas que, mesmo em biologia, estão longe de esi.ir claramente resolvidos, permanecem ainda, para o so-

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56 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

c ió logo , envol tos e m mistério. Aliás, os acontec imentos que se p r o d u z e m no curso da vida social e que se repetem mais o u menos identicamente e m todas as sociedades d o mesmo t i p o são demasiadamente variados para que seja possível d e t e r m i n a r e m q u e m e d i d a u m deles p o d e ter contr ibuído para apressar o desenlace f i n a l . Q u a n d o se trata de indivíduos, c o m o eles são m u i t o numerosos, p o ­de-se escolher aqueles que são comparados de maneira a que tenham e m c o m u m apenas uma única e mesma 'ano­malia*; "esta é assim isolada de todos os fenômenos con­comitantes e, portanto, pode-se estudar a natureza de sua influência sobre o o r g a n i s m o " . Se, por exemplo , u m g r u ­p o de m i l reumáticos, tomados ao acaso, apresenta u m a mortalidade sensivelmente superior à média, há boas razões para atr ibuir esse resultado à diátese reumática. Mas, e m sociologia, como cada espécie social conta apenas u m pe­queno número de indivíduos, o campo das comparações é demasiado restrito para ' " q u e agrupamentos desse gênero possam ser demonstrat ivos*" .

Ora, na falta dessa prova de fato, nada mais é possí­ve l s e n ã o raciocínios dedut ivos cujas c o n c l u s õ e s só p o ­d e m ter o valor de conjeturas subjetivas. Demonstrar-se-á, não que tal acontecimento enfraquece efetivamente o or­ganismo social, mas que ele deve ter esse efeito. Para is­so, mostrar-se-á que ele não pode deixar de ocasionar es­ta o u aquela conseqüência que se julga nociva à socieda­de e, p o r esse m o t i v o , ele será declarado mórbido . Mas m e s m o s u p o n d o q u e ele engendre de fa to essa conse­q ü ê n c i a , p o d e o c o r r e r q u e os i n c o n v e n i e n t e s q u e esta apresente sejam compensados , e até mais d o q u e isso,

• " d o e n ç a " (R.P., p . 582.) ** Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l . *** " q u e se possa p r o c e d e r a a g m p a m e n t o s desse g ê n e r o " . (RI',,

p . 582.)

/ )ISIINÇÃO ENTRE NORMAL E PA TOLÔGICO 57

por vantagens que n ã o se percebem. Além d o mais, há apenas uma razão que permit ir ia chamá-la de funesta: ela perturbar o desempenho n o r m a l das funções. Mas tal p r o ­va supõe o prob lema já resolvido; pois ela só é possível se determinarmos previamente e m que consiste o estado normal e, portanto, se soubermos sob que sinal ele pode ser reconhecido. Tentar-se-á construí-lo integralmente e a /iriori? N ã o é n e c e s s á r i o most rar o q u e p o d e va ler ta l construção. Eis como, tanto e m sociologia c o m o e m histó­ria, os mesmos acontecimentos p o d e m vir a ser qualif ica­dos, c o n f o r m e os sentimentos pessoais d o estudioso, de salutares o u de desastrosos. Assim, acontece a t o d o m o ­mento que u m teórico incrédulo assinale, nos restos de fé que sobrev ivem e m m e i o ao desmoronamento geral das crenças religiosas, u m f e n ô m e n o mórbido, enquanto, para i ) crente, é a i n c r e d u l i d a d e mesma que é hoje a grande doença social. Do mesmo m o d o , para o socialista, a orga­nização e c o n ô m i c a atual é u m fato de teratologia social, ao passo que, para o economista or todoxo , as tendências M icialistas é que são, p o r excelência , patológicas. E cada u m e n c o n t r a e m a p o i o de sua o p i n i ã o s i l o g i s m o s q u e considera b e m construídos.

O erro c o m u m dessas definições é querer atingir pre­maturamente a essência dos fenômenos. Elas supõem co­mo admit idas p r o p o s i ç õ e s que , verdadeiras o u não , só podem ser provadas se a ciência já estiver suficientemen­te avançada. É o caso, porém, de nos conformarmos à re-u.i.i estabelecida anteriormente. E m vez de pretendermos de terminar de saída as r e l a ç õ e s d o estado n o r m a l e de •.eu contrár io c o m as forças vi ta is , b u s q u e m o s s imples-t i icnle a l g u m sinal ex ter ior , i m e d i a t a m e n t e percept ível , mas objet ivo, que nos permita dist inguir u m a da outra es­sas duas ordens de fatos.

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58 AS NEGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

T o d o f e n ô m e n o soc io lóg ico , assim c o m o , de resto, t o d o fenômeno biológico, é suscetível de assumir formas diferentes conforme os casos, embora permaneça essen­c i a l m e n t e ele própr io . Ora , essas formas p o d e m ser de duas espécies. Umas são gerais e m toda a extensão da es­péc ie ; elas se ver i f i cam , se não e m todos os indivíduos, p e l o m e n o s na m a i o r parte deles e, se não se r e p e t e m identicamente em todos os casos nos quais se observam, mas var iam de u m sujeito a o u t r o , essas variações estão compreendidas entre l imites m u i t o próximos . Há outras, ao contrário , que são excepcionais ; elas n ã o apenas se v e r i f i c a m só na m i n o r i a , mas t a m b é m acontece q u e , lá m e s m o o n d e elas se p r o d u z e m , m u i t o f r e q ü e n t e m e n t e não d u r a m toda a vida d o indivíduo. Elas são uma exce­ção tanto no t e m p o c o m o n o e s p a ç o 1 . Estamos, pois, em presença de duas variedades distintas de fenômenos que devem ser designadas p o r termos diferentes. Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos o u patológicos. Se concordarmos em chamar t i p o médio o ser esquemáti­co que constituiríamos ao reunir n u m mesmo todo, numa e s p é c i e de i n d i v i d u a l i d a d e abstrata, os caracteres mais freqüentes na espéc ie c o m suas formas mais freqüentes, poderemos dizer que o t i p o normal se confunde c o m o t i ­p o médio e que t o d o desvio e m relação a esse padrão da s a ú d e é u m f e n ô m e n o m ó r b i d o . É v e r d a d e q u e o t i p o médio não poderia ser determinado c o m a mesma clareza que u m t i p o i n d i v i d u a l , já que seus atributos constitutivos n ã o estão absolutamente f ixados, mas são suscetíveis de variar. Todavia o que não se p o d e pôr e m dúvida é que ele possa ser constituído, já que é a matéria imediata da ciência; pois ele se confunde c o m o t i p o genérico. O que o fisiologista estuda são as funções d o organismo médio, e c o m o sociólogo não é diferente. Uma vez que se sabe

/ IISTINÇÀ O ENTRE NORMAL E PA '1 OI. ÓGICO 59

dist inguir as espéc ies sociais umas das outras - tratamos mais adiante a q u e s t ã o - , é sempre poss íve l descobr i r qual a forma mais geral que apresenta u m fenômeno n u ­ma espécie determinada.

Vê-se que u m fato só pode ser qual i f icado de patoló­g ico e m r e l a ç ã o a u m a e s p é c i e dada . As c o n d i ç õ e s da saúde e da doença não p o d e m ser definidas in abstracto e de maneira absoluta. A regra não é contestada em bio­logia; jamais ocorreu a alguém que o que é n o r m a l para um molusco o é também para u m vertebrado. Cada espé­cie t em sua saúde, p o r q u e tem seu t i p o médio que lhe é próprio, e a saúde das espécies mais baixas não é menor que a das mais elevadas. O mesmo princípio aplica-se à sociologia, embora freqüentemente ele seja ignorado aí. E preciso renunciar a esse hábito, ainda m u i t o d i f u n d i d o , de julgar uma instituição, u m a prática, uma máxima m o r a l , < •( uno se elas fossem boas o u más e m si mesmas e por si mesmas, para todos os t ipos sociais indist intamente.

Visto que o p o n t o de referência e m relação ao qual se pode julgar o estado de saúde o u de doença varia com .is e s p é c i e s , ele p o d e var iar t a m b é m para u m a única e mesma e s p é c i e , se esta v i e r a m u d a r . É assim q u e , d o ponto de vista puramente biológico, o que é normal para () selvagem n e m sempre o é para o civi l izado, e vice-ver­sa'. Há sobretudo uma o r d e m de variações que é i m p o r -i . inle levar em conta, p o r q u e elas se p r o d u z e m regular­mente e m todas as espéc ies : são aquelas relacionadas à idade. A saúde d o v e l h o não é a d o adul to , assim c o m o esla não é a da criança; e o mesmo ocorre c o m as socie­dades^. U m fato social não pode portanto ser d i to normal para uma espécie social determinada, a não ser e m rela-i . i o a uma fase, igua lmente determinada, de seu desen­volvimento; e m conseqüência , para saber se ele t em dire i -lo a essa denominação, não basta observar sob que forma

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60 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

ele se apresenta na generalidade das sociedades que per­tencem a essa espécie; é preciso também ter o cuidado de considerá-las na fase correspondente de sua evolução.

Parece que acabamos de p r o c e d e r s implesmente a uma definição de palavras; pois nada mais fizemos senão agrupar fenômenos segundo suas semelhanças e suas d i ­ferenças e i m p o r nomes aos grupos assim formados. Mas, e m real idade, os conceitos que consti tuímos, ao mesmo t e m p o que têm a grande vantagem de ser reconhecíveis por caracteres objetivos e faci lmente perceptíveis, não se afastam da n o ç ã o que se t e m c o m u m e n t e da saúde e da doença. C o m efeito, não é a doença concebida por t o d o o m u n d o c o m o u m ac idente , q u e a natureza d o ser v i v o certamente c o m p o r t a , mas n ã o costuma engendrar? É o que os antigos fi lósofos e x p r i m i a m ao dizer que ela não d e r i v a da natureza das coisas, q u e ela é o p r o d u t o de u m a e s p é c i e de cont ingênc ia imanente aos organismos. Tal c o n c e p ç ã o , seguramente, é a negação de toda ciência; p o i s a d o e n ç a n ã o p o s s u i nada mais m i r a c u l o s o q u e a saúde; ela está igualmente fundada na natureza dos seres. Só que não está fundada na natureza normal ; não está i m ­plicada n o temperamento ordinário dos seres, n e m ligada às condições de existência das quais eles geralmente de­p e n d e m . I n v e r s a m e n t e , para t o d o o m u n d o , o t i p o d a saúde se confunde c o m o da espécie . Inclusive não se p o ­de, sem contradição , conceber u m a e s p é c i e que, p o r s i mesma e e m vir tude de sua constituição fundamental , fos­se irremediavelmente doente. Ela é a norma p o r excelên­cia e, portanto, nada de anormal poderia conter.

E verdade que , correntemente , entende-se também p o r saúde u m estado geralmente preferível à doença. M a s essa definição está cont ida na precedente. D e fato, se ou caracteres cuja reunião f o r m a o t i p o n o r m a l p u d e r a m s e general izar n u m a e s p é c i e , há u m a razão para isso. K.SNU

/ IISTINÇÀ O ENTRE NORMAL E PA TOLÓGICO 61

generalidade é ela mesma u m fato que t e m necessidade de ser e x p l i c a d o e que , para tanto , reclama u m a causa. < )ra, ela seria inexpl icável se as formas de organização mais d i fundidas não fossem também, pelo menos em seu conjunto, as mais vantajosas. Como ter iam elas p o d i d o se manter n u m a tão grande variedade de circunstâncias, se nao capacitassem os indivíduos a resistir melhor às causas (le destruição? A o contrário, se as outras são mais raras, é ev identemente porque, na média dos casos, os indivíduos que as representam têm mais dif iculdade de sobreviver. A maior freqüência das primeiras é portanto a prova de sua superioridade 4 .

I I

Essa última observação fornece inclusive u m meio de i ontrolar os resultados d o precedente método.

Uma vez que a generalidade, que caracteriza exterior-inenle os fenômenos normais, é ela própria u m fenômeno explicável, compete, depois que ela f o i diretamente esta­belecida pela observação, procurar explicá-la. Certamente podemos estar seguros de antemão de que ela t e m u m a i .iiisa, mas o melhor é saber c o m precisão qual é essa cau­sa C o m efeito, o caráter n o r m a l d o f e n ô m e n o será mais Incontestável se demonstrarmos que o sinal exterior que o Ii,ivia revelado a princípio não é puramente aparente, mas Mm fundado na natureza das coisas; e m uma palavra, se pui lermos erigir essa normalidade de fato e m normalidade de direito. Essa demonstração, de resto, n e m sempre con-Mslira e m mostrar que o f e n ô m e n o é útil ao organismo, iilnria que este seja o caso mais f reqüente , pelas razões que acabamos de mencionar; mas pode ocorrer também,

i i imo assinalamos mais acima, que u m a disposição seja

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62 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

n o r m a l sem servir a nada, s implesmente p o r q u e está ne­cessariamente implicada na natureza d o ser. Assim, talvez fosse útil que o parto não causasse problemas tão v io len­tos ao o r g a n i s m o f e m i n i n o ; mas isso é imposs íve l . Em conseqüência, a normalidade d o fenômeno será explicada pelo simples fato de estar ligada às condições de existên­cia da espécie considerada, seja como u m efeito mecanica­mente necessár io dessas condições , seja c o m o u m m e i o que permite aos organismos adaptarem-se a elas''.

Essa prova n ã o é s implesmente útil a título de c o n ­trole. Convém não esquecer, c o m efeito, que, se há inte­resse e m d i s t i n g u i r o n o r m a l d o a n o r m a l , é s o b r e t u d o c o m vistas a esclarecer a prática. Ora, para agir c o m co­n h e c i m e n t o de causa n ã o basta saber o q u e d e v e m o s querer, mas p o r que o devemos. As proposições científi­cas, relativas ao estado normal , serão mais imediatamente aplicáveis aos casos particulares q u a n d o estiverem acom­panhadas de suas razões; pois então saberemos reconhe­cer melhor em que casos convém modificá-las, ao aplicá-las, e em que sentido.

Há inclusive circunstâncias e m que essa verificação é r igorosamente necessária, p o r q u e o p r i m e i r o método, se fosse empregado sozinho, poderia induzir a erro. É o que acontece nos períodos de transição em que a espécie i n ­teira está e m via de e v o l u i r , sem estar a inda d e f i n i t i v a ­mente f ixada e m uma forma nova. Nesse caso, o único t i ­p o normal que se encontra desde já realizado e dado nos fatos é o d o passado; n o entanto ele n à o está mais e m harmonia c o m as novas condições de existência. U m fato p o d e assim persistir e m toda a extensão de uma espécie, embora não mais corresponda às exigências da situação. Nesse caso, portanto, ele só tem as aparências da normal i ­dade; a generalidade que apresenta não é senão u m rótu­lo ment iroso , posto que, mantendo-se apenas pela força

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 63

cega d o hábito, ela não é mais o indicador de que o fenô­m e n o observado está i n t i m a m e n t e l i g a d o às c o n d i ç õ e s gerais da existência coletiva. Essa di f iculdade, aliás, é es­pecífica à sociologia. Ela não existe; p o r assim dizer, para 0 biólogo. C o m efeito, é m u i t o raro que as espécies ani ­mais sejam obrigadas a tomar formas imprevistas. As úni­cas m o d i f i c a ç õ e s n o r m a i s pelas quais elas passam são aquelas que se r e p r o d u z e m regularmente e m cada indiví­d u o , p r i n c i p a l m e n t e sob a influência da idade. Portanto elas são conhecidas o u p o d e m sê-lo, já que se realizaram numa grande quantidade de casos; em vista disso se pode saber, a cada m o m e n t o d o desenvolvimento d o animal, e mesmo nos períodos de crise, e m que consiste o estado normal . O mesmo acontece em sociologia e m relação às sociedades que p e r t e n c e m às espéc ies infer iores . C o m o muitas delas já c u m p r i r a m toda a sua carreira, a lei de sua evolução normal está o u pelo menos pode ser estabeleci­da. Mas, q u a n d o se trata das sociedades mais elevadas e mais recentes, essa le i é desconhecida p o r def inição, já que elas ainda nào percorreram toda a sua história. O so­ciólogo pode, assim, ter dificuldades para saber se u m fe­n ô m e n o é n o r m a l o u não , estando p r i v a d o de qua lquer ponto de referência.

Ele sairá da di f iculdade procedendo c o m o acabamos d i ' dizer. Após ter estabelecido pela observação que o fa­lo é geral, ele remontará às condições que determinaram essa generalidade no passado e procurará saber, a seguir, '.<• lais c o n d i ç õ e s a inda se v e r i f i c a m n o presente o u , ao contrário, se alteraram. N o pr imei ro caso, ele terá o d i re i -lo de qualificar o f e n ô m e n o de normal e, n o segundo, de leeusar-lhe esse caráter. Por exemplo , para saber se o es­tado econômico atual dos povos europeus, c o m a ausên-1 i.i de o r g a n i z a ç ã o 6 que é a sua característica, é n o r m a l m i nao, investigar-se-á a q u i l o que, n o passado, deu o r i -

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g e m a ele. Se essas condições são ainda aquelas nas quais se encontram atualmente nossas sociedades, é p o r q u e a situação é normal , a despeito dos protestos que provoca. Se, ao contrário, verificar-se que ela está ligada a essa ve­lha estrutura social que qual i f icamos alhures de segmen­tar 7 e que, após ter sido a ossatura essencial das socieda­des, vai-se apagando cada vez mais, deveremos concluir que ela consti tui presentemente u m estado mórbido, p o r mais universal que seja. É de acordo c o m o mesmo méto­d o que deverão ser resolvidas todas as questões contro ­versas desse g ê n e r o , c o m o as de saber se o enfraqueci ­m e n t o das c r e n ç a s rel igiosas o u se o d e s e n v o l v i m e n t o dos poderes d o Estado são fenômenos normais o u n ã o 8 .

Contudo, esse método não poderia, e m caso n e n h u m , substi tuir o precedente, n e m mesmo ser empregado p r i ­m e i r o . A c o m e ç a r p o r q u e ele levanta questões que tere­mos de examinar adiante e que só p o d e m ser abordadas quando a ciência já avançou suficientemente; pois ele i m ­plica, e m suma, uma explicação quase completa dos fenô­menos, na medida e m que supõe sejam determinadas suas causas o u suas funções . Ora, é impor tante que , desde o início da pesquisa, se possam classificar os fatos em nor­mais e anormais , ressalvando-se alguns casos excepcio­nais, a f i m de p o d e r a t r ibuir à f is iologia e à patologia os respectivos domínios . E m seguida, é e m re lação ao t i p o normal que u m fato deve ser considerado útil ou necessá­r io para poder ele próprio ser qualif icado de normal . Caso contrário, poder-se-ia demonstrar que a doença se confun­de c o m a saúde, já que ela deriva necessariamente d o or­ganismo afetado; é apenas c o m o organismo médio que ela n ã o m a n t é m a mesma r e l a ç ã o . D o m e s m o m o d o , a apl icação de u m remédio , sendo útil ao doente , poder ia ser vista como u m fenômeno normal , quando é evidente­mente anormal , pois só e m circunstâncias anormais t e m

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essa uti l idade. Portanto só podemos servir-nos desse mé­todo se o t ipo normal estiver constituído, e isso somente é possível por outro procedimento. Enf im, e sobretudo, se é verdade que t u d o o que é n o r m a l é útil, c o m a condição de ser necessário, é falso que t u d o o que é útil seja nor­mal . Podemos ter certeza de que os estados que se gene­ralizaram na espécie são mais úteis d o que os que perma­neceram excepcionais , mas n ã o de q u e os mais úteis é que existem o u que p o d e m existir. Não temos n e n h u m a razão para acreditar que todas as c o m b i n a ç õ e s possíveis foram tentadas no curso da experiência e, entre aquelas ja­mais realizadas, mas concebíveis , talvez muitas sejam mais vantajosas que as que conhecemos. A n o ç ã o de útil exce­de a de normal ; ela está para esta assim c o m o o gênero es­tá para a espécie. Ora, é impossível deduzir o mais d o me­nos, a espécie d o gênero. Mas pode-se encontrar o gênero na espécie, já que esta o contém. Por isso, uma vez cons­tatada a generalidade d o fenômeno , podem-se conf irmar os resultados d o p r i m e i r o m é t o d o , m o s t r a n d o c o m o ele serve 9 . Podemos assim formular as três regras seguintes:

1) Um feito social é normal para um tipo social deter­minado, considerado numa fase determinada de seu de­senvolvimento, quando ele se produz na média das socie­dades dessa espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução.

2) Os resultados do método precedente podem ser veri­ficados mostrando-se que a generalidade do fenômeno se deve ãs condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado.

3) Essa verificação ê necessária quando esse fato se relaciona a uma espécie social que ainda não consumou sua evolução integral.

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I I I

Estamos tão habituados a resolver c o m u m a palavra essas questões difíceis e a decidir rapidamente, a partir de observações sumárias e à base de silogismos, se u m fato social é normal o u não, que esse procedimento talvez vá ser considerado inut i lmente compl icado. Não parece pre­ciso dar-se tanto trabalho para dist inguir a doença da saú­de. Acaso não fazemos diariamente distinções desse tipo? É verdade; mas resta saber se as fazemos devidamente. O que nos mascara as dif iculdades desses problemas é que vemos o b iólogo resolvê-los c o m relativa faci l idade. Mas esquecemos que é m u i t o mais fácil para ele d o que para o soc ió logo perceber c o m o cada f e n ô m e n o afeta a força de resistência d o organismo e c o m isso determinar seu ca­ráter normal o u anormal c o m uma exatidão praticamente suficiente. Em sociologia, a complexidade e a mobi l idade maiores dos fatos o b r i g a m a mui tas p r e c a u ç õ e s , c o m o p r o v a m os julgamentos contraditórios feitos sobre o mes­m o f e n ô m e n o por diferentes partidos. Para mostrar b e m o quanto essa cautela é necessária, façamos ver, por alguns exemplos, em que erros se incorre q u a n d o ela não é res­peitada e sob que luz nova os fenômenos mais essenciais aparecem quando são tratados metodicamente.

Se há u m fato cujo caráter patológico parece i n c o n ­tes táve l , é o c r i m e . T o d o s os c r i m i n o l o g i s t a s e s t ã o de acordo nesse p o n t o . Ainda que e x p l i q u e m essa morbidez de maneiras diferentes, eles são unânimes e m reconhecê-la. O p r o b l e m a , porém, deveria ser t ratado c o m menos presteza.

Apl iquemos , c o m efeito, as regras precedentes. O cri­me não se observa apenas na maior parte das sociedades desta o u daquela espécie, mas e m todas as sociedades de todos os tipos. Não há nenhuma onde não exista uma cri-

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minal idade. Esta m u d a de forma, os atos assim qualif ica­dos não são os mesmos e m toda parte; mas, sempre e e m toda parte, houve homens que se conduziram de maneira a atrair sobre si a repressão penal. Se, pe lo menos, â medi ­da que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais elevados, o índice de criminalidade - isto é, a relação en­tre o número anual dos crimes e o da população - tendes­se a d i m i n u i r , poder-se-ia supor que, embora permaneça u m fenômeno normal , o crime tende, n o entanto, a perder esse caráter. Mas não temos razão nenhuma que nos per­mita acreditar na real idade dessa regressão. Mui tos fatos parecer iam antes d e m o n s t r a r a ex i s tênc ia de u m m o v i ­mento n o sentido inverso. Desde o c o m e ç o d o século, a estatística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da criminalidade; ora, p o r toda parte ela aumentou. Na Fran­ça, o aumento é de cerca de 300 p o r cento. Não há por­tanto f e n ô m e n o que apresente da maneira mais irrecusá­vel todos os sintomas da normalidade, já que ele se mostra intimamente l igado às condições de toda vida coletiva. Fa­zer d o crime uma doença social seria admitir que a doença não é algo acidental, mas, ao contrário, deriva, e m certos casos, da constituição fundamental d o ser v ivo ; seria apa­gar toda distinção entre o fisiológico e o patológico. Certa­mente p o d e o c o r r e r q u e o própr io c r i m e tenha formas anormais ; é o q u e acontece q u a n d o , p o r e x e m p l o , ele atinge u m índice exagerado. Não é duvidoso , c o m efeito, que esse excesso seja de natureza mórbida. O que é nor­mal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto que esta atinja e não ultrapasse, para cada t i p o social, cer­to nível q u e talvez n ã o seja impossível f i xar de a c o r d o com as regras precedentes 1 0 .

Eis-nos e m p r e s e n ç a de u m a c o n c l u s ã o , aparente­mente, bastante paradoxa l . Pois n ã o devemos i l u d i r - n o s quanto a ela. Classificar o cr ime entre os f e n ô m e n o s de

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sociologia normal é não apenas dizer que ele é u m fenô­m e n o inevitável ainda que lastimável, d e v i d o à incorrigí­ve l maldade dos homens; é afirmar que ele é u m fator da saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade sa­dia. Esse resultado, à pr imeira vista, é bastante surpreen­dente para que tenha desconcertado a nós próprios e p o r m u i t o tempo. Entretanto, uma vez dominada essa p r i m e i ­ra impressão de surpresa, não é difícil encontrar as razões q u e e x p l i c a m essa n o r m a l i d a d e e, ao m e s m o t e m p o , a conf i rmam.

E m pr imei ro lugar, o crime é normal p o r q u e uma so­ciedade que dele estivesse isenta seria in te i ramente i m ­possível.

O crime, conforme mostramos alhures consiste n u m ato q u e o fende certos sent imentos colet ivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa sociedade dada, os atos reputados cr iminosos pudessem deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências i n ­div iduais sem e x c e ç ã o e c o m o grau de força necessário para conter os sentimentos contrários. Ora, s u p o n d o que essa condição pudesse efetivamente ser realizada, n e m por isso o cr ime desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas.

C o m efeito, para que os sentimentos coletivos prote­gidos pe lo dire i to penal de u m p o v o , n u m m o m e n t o de­terminado de sua história, consigam penetrar nas consciên­cias que lhes eram então fechadas o u ter mais influência lá onde não t inham bastante, é preciso que eles adquiram u m a i n t e n s i d a d e s u p e r i o r à q u e p o s s u í a m até e n t ã o . É prec iso que a c o m u n i d a d e c o m o u m t o d o os sinta c o m mais ardor; pois eles n ã o p o d e m obter de outra fonte a força maior que lhes permite impor-se aos indivíduos que

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até então lhes eram mais refratários. Para que os assassi­nos desapareçam, é preciso que o horror d o sangue der­ramado torne-se maior naquelas camadas sociais e m que se recrutam os assassinos; mas, para tanto, é preciso que ele se torne maior e m toda a extensão da sociedade. Aliás, a ausência mesma d o crime contr ibuir ia diretamente para p r o d u z i r esse resul tado; po i s u m s e n t i m e n t o mostra-se m u i t o mais respeitável q u a n d o ele é sempre e u n i f o r m e ­mente respeitado. Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência c o m u m não p o d e m ser assim refor­çados sem que os estados mais fracos, cuja violação dava antes o r i g e m apenas a faltas p u r a m e n t e m o r a i s , sejam i g u a l m e n t e re forçados ; pois os segundos são apenas o prolongamento , a forma atenuada dos primeiros . Assim, o r o u b o e a s imples indel icadeza n ã o o f e n d e m s e n ã o u m único e mesmo sentimento altruísta: o respeito à propr ie ­dade de outrem. Só que esse mesmo sentimento é o fendi ­d o de m o d o mais fraco p o r u m desses atos d o que pe lo o u t r o ; e c o m o , a l é m disso , ele n ã o t e m na m é d i a das consciências uma intensidade suficiente para sentir v i v a ­mente a mais leve dessas duas ofensas, esta será ob jeto de uma maior tolerância. Eis por que se censura simples­mente o indelicado, ao passo que o ladrão é p u n i d o . Mas se o mesmo sent imento tornar-se mais forte , a p o n t o de fazer calar e m todas as consciências aqui lo que incl ina o h o m e m ao r o u b o , ele se tornará mais sensível às lesões que, até então, apenas o tocavam levemente; ele reagirá por tanto c o m mais f i rmeza contra elas; tais lesões serão objeto de u m a reprovação mais enérgica que fará passar algumas delas, de simples faltas morais que eram, ao esta­d o de crimes. Por e x e m p l o , os contratos indel icados o u indel icadamente executados, que i m p l i c a m apenas u m a reprovação pública o u reparações civis, se tornarão d e l i -los . I m a g i n e m u m a s o c i e d a d e de santos , u m c l a u s t r o

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70 AS REGI-LAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

e x e m p l a r e per fe i to . Os crimes p r o p r i a m e n t e ditos nela serão desconhecidos; mas as faltas que parecem veniais ao v u l g o causarão o mesmo escândalo que p r o d u z o del i ­to ordinário nas consciências ordinárias. Portanto, se essa sociedade estiver armada d o poder de julgar e de p u n i r , ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará como tais. É pela mesma razão que o h o m e m honesto julga suas m e n o r e s f raquezas m o r a i s c o m u m a s e v e r i d a d e q u e a mult idão reserva aos atos v e r d a d e i r a m e n t e d e l i t u o s o s . O u t r o r a , as violências contra as pessoas eram mais fre­qüentes d o que hoje, p o r q u e o respeito pela d i g n i d a d e i n d i v i d u a l era menor. C o m o este aumentou , esses crimes tornaram-se mais raros; e m c o m p e n s a ç ã o , m u i t o s atos que lesavam esse sent imento entraram n o di re i to penal , n o qual pr imit ivamente não constavam 1 1 .

Talvez se pergunte , para esgotar todas as hipóteses logicamente possíveis, p o r que essa unanimidade não se estenderia a todos os sentimentos coletivos sem exceção ; por que mesmo os mais fracos não adquir i r iam suficiente energia para prevenir qualquer dissidência. A consciência m o r a l da sociedade se manifestaria p o r inte i ro e m todos os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impe­d i r t o d o ato que a ofendesse, tanto as faltas p u r a m e n t e morais c o m o os crimes. Mas uma u n i f o r m i d a d e tão u n i ­versal e tão absoluta é rad ica lmente imposs ível ; pois o meio físico imediato no qual cada u m de nós se encontra, os antecendentes hereditár ios , as inf luências sociais de que dependemos var iam de u m indivíduo a o u t r o e, p o r •conseguinte, diversi f icam as consciências. Não é possível que todos se assemelhem nesse ponto , pela simples razão de que cada u m tem seu organismo próprio, e esses orga­nismos o c u p a m p o r ç õ e s diferentes d o e s p a ç o . Por isso, mesmo nos povos inferiores, nos quais a original idade i n ­d i v i d u a l é m u i t o p o u c o desenvolvida, ela não chega a ser

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 71

nula . Assim, c o m o não pode haver sociedade e m que os indivíduos não div i r jam e m maior o u menor grau do t i p o coletivo, é também inevitável que, entre essas divergências, haja algumas que apresentem u m caráter cr iminoso. Pois o que confere a elas esse caráter n ã o é sua importância intrínseca, mas a que lhes a t r i b u i a consc iênc ia c o m u m . Se esta é mais forte, se t em suficiente autoridade para tor­nar essas divergências m u i t o fracas e m valor absoluto, ela será t a m b é m mais sens íve l , mais ex igente , e, r e a g i n d o contra os menores desvios c o m a energia que manifesta alhures apenas contra dissidências mais consideráveis, irá atribuir-lhes a mesma gravidade, ou seja, irá marcá-los co­m o criminosos.

O crime é portanto necessário; ele está l igado às con­dições fundamentais de toda vida social e, p o r isso mes­m o , é útil; pois as c o n d i ç õ e s de que ele é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e d o dire i to .

D e fato, não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral variam de u m t i p o social a o u ­tro, c o m o também m u d a m em relação a u m mesmo t ipo , se as condições da existência coletiva se modi f i cam. Mas, para que essas transformações sejam possíveis, é preciso eme os sentimentos coletivos que estão na base da mora l não sejam refratários à mudança, que tenham, por tanto , apenas uma energia moderada. Se fossem demasiado for­tes, deixariam de ser plásticos. T o d o arranjo, com efeito, é u m obstáculo a u m n o v o arranjo, e isso tanto mais quanto mais sólido for o arranjo p r i m i t i v o . Quanto mais fortemen­te pronunciada for uma estrutura, mais resistência ela o p o ­rá a qualquer modificação, e isso vale tanto para os arran­jos funcionais como para os anatômicos. Ora, se não h o u ­vesse crimes, essa condição não seria preenchida; pois tal hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chega-

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72 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

d o a u m grau de intensidade sem exemplo na história. Na­da é b o m indefinidamente e sem medida. É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja exces­siva; caso contrário, ninguém ousaria contestá-la e m u i t o faci lmente ela se cristalizaria n u m a forma imutável. Para que ela possa evoluir, é preciso que a originalidade i n d i v i ­dual possa vir à luz; ora, para que a d o idealista que sonha superar seu século possa se manifestar, é preciso que a d o c r i m i n o s o , que está aba ixo de seu t e m p o , seja possível. Uma não existe sem a outra.

E não é tudo. Além dessa uti l idade indireta, o próprio cr ime p o d e desempenhar u m pape l útil nessa evolução . Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto às mudanças necessárias, como também, e m certos casos, prepara diretamente essas mudanças. Não apenas, lá o n ­de ele existe, os sent imentos colet ivos encontram-se no estado de maleabil idade necessário para adquir i r uma for­ma nova, c o m o ele também c o n t r i b u i às vezes para pre ­d e t e r m i n a r a f o r m a q u e esses s e n t i m e n t o s irão t o m a r . Quantas vezes, c o m efeito, o cr ime não é senão uma an­tecipação da moral p o r vir , u m encaminhamento e m dire­ção ao que será! D e acordo c o m o dire i to ateniense, Só­crates era u m cr iminoso e sua condenação simplesmente justa. N o entanto seu cr ime, a saber, a independência de seu p e n s a m e n t o , era útil, n ã o somente à h u m a n i d a d e , mas à sua pátria. Pois ele servia para preparar uma mora l e uma fé novas, das quais os atenienses t i n h a m então ne­cessidade, p o r q u e as tradições segundo as quais t i n h a m v i v i d o até então não mais estavam em harmonia c o m suas c o n d i ç õ e s de ex is tênc ia . Ora , o caso de Sócrates n ã o é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A l i ­b e r d a d e de pensar q u e des f rutamos a tua lme nt e jamais poder ia ter s ido proclamada se as regras que a p r o i b i a m n ã o t ivessem sido violadas antes de serem solenemente

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 73

abolidas. Entretanto, naquele momento , essa violação era u m crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda m u i ­to fortes na general idade das consciências . Todavia esse c r i m e era útil, pois p r e l u d i a v a t rans formações que , dia após d ia , tornavam-se mais necessár ias . A l ivre f i losof ia teve por precursores os heréticos de t o d o t i p o que o bra­ço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Mé­dia, até as vésperas dos tempos contemporâneos .

Desse p o n t o de vista, os fatos fundamentais da cr imi­nologia apresentam-se a nós sob u m aspecto de todo n o ­vo . Contrar iamente às idéias correntes, o c r i m i n o s o não mais aparece como u m ser radicalmente insociável, como u m a e s p é c i e de e l e m e n t o parasitário, c o r p o estranho e inassimilável, in t roduzido no seio da sociedade 1 2 ; ele é u m agente regular da v i d a social. O cr ime, p o r sua vez, não deve mais ser concebido como u m mal que não possa ser cont ido dentro de limites demasiado estreitos; mas, longe de haver m o t i v o para nos felicitarmos q u a n d o lhe ocorre descer m u i t o sensivelmente abaixo d o nível ordinário, p o ­demos estar certos de que esse progresso aparente é ao mesmo t e m p o contemporâneo e solidário de alguma per­turbação social. Assim, o número de agressões e de fer i ­mentos jamais cai tanto como e m tempos de penúr ia" . A o mesmo t e m p o e por via indireta, a teoria da pena se mos­tra renovada, o u melhor, por renovar. Com efeito, se o cri ­me é u m a doença, a pena é seu remédio e não p o d e ser concebida de outro m o d o ; assim, todas as discussões que ela suscita têm p o r objeto saber o que ela deve ser para c u m p r i r seu papel de remédio. Mas, se o cr ime nada tem de mórbido, a pena não poderia ter p o r objeto curá-lo e sua verdadeira função deve ser buscada e m outra parte.

Portanto as regras precedentemente enunciadas estão longe de te rem c o m o única razão de ser a satisfação de u m formal ismo lógico sem grande ut i l idade, uma vez que,

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74 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

ao contrário, conforme as apliquemos o u não, os fatos so­ciais mais essenciais m u d a m totalmente de caráter. Se es­se e x e m p l o , aliás, é p a r t i c u l a r m e n t e d e m o n s t r a t i v o - e p o r isso julgamos que era preciso nos determos nele - , há m u i t o s outros que p o d e r i a m ser u t i l m e n t e citados. Não existe sociedade na qual não seja de regra que a pena de­ve ser p r o p o r c i o n a l ao d e l i t o ; entretanto , para a escola italiana, esse princípio não passa de uma invenção de j u ­ristas, desprov ida de q u a l q u e r s o l i d e z 1 4 . Inc lus ive , para esses criminologistas, é a instituição penal inteira, tal co­m o f u n c i o n o u até o presente e m todos os povos conheci­dos, que é u m f e n ô m e n o antinatural . J á v imos que, para o sr. Garofalo, a cr iminal idade específica às sociedades infe­riores nada tem de natural. Para os socialistas, é a organi­zação capitalista, apesar de sua generalidade, que consti­t u i u m desvio d o estado normal , p r o d u z i d o pela violência e o artifício. Para Spencer, ao contrário, é nossa centrali­zação administrat iva, é a ex tensão dos poderes governa­mentais o vício radical de nossas sociedades, e isso apesar de ambas progredi rem de maneira mais regular e univer­sal à medida que avançamos na história. Não cremos que e m n e n h u m desses casos se aceite c o m o critério sistemáti­co decidir d o caráter normal o u anormal dos fatos sociais c o m base no grau de generalidade deles. É sempre à for­ça de muita dialética que essas questões são decididas.

Entre tanto , n ã o respei tado esse critério, incorre-se não somente e m confusões e e m erros parciais, c o m o os que acabamos de lembrar, mas a ciência mesma torna-se impossível. Com efeito, esta tem p o r objeto imediato o es­t u d o d o t i p o n o r m a l ; ora, se os fatos mais gerais p o d e m ser mórbidos, é possível que o t i p o n o r m a l jamais tenha exist ido nos fatos. Sendo assim, de que serve estudá-los? Eles p o d e m apenas conf i rmar nossos preconceitos e en­raizar nossos erros, já que deles resultam. Se a pena, se a

DISTINÇÃO ENTRE NORMAL EPATOLÓGICO 75

responsabil idade, tais c o m o existem na história, não são s e n ã o u m p r o d u t o da ignorância e da barbár ie , de que adianta dedicar-se a conhecê- las para determinar suas for­mas normais? Ass im, o espírito é l e v a d o a afastar-se de uma realidade desde então sem interesse, voltando-se so­bre si mesmo e buscando dentro de si os materiais neces­sários para reconstruí-la. Para que a sociologia trate os fa­tos como coisas, é preciso que o sociólogo sinta a neces­sidade de aprender c o m eles. Ora, c o m o o objeto p r i n c i ­pal de toda ciência da vida, tanto i n d i v i d u a l c o m o social, é, e m suma, de f in i r o estado n o r m a l , expl icá- lo e d is t in ­g u i - l o de seu contrário, se a n o r m a l i d a d e n ã o acontecer nas coisas mesmas, se, ao contrár io , ela for u m caráter que i m p r i m i m o s desde fora nestas o u que lhes recusamos por razões quaisquer, acaba-se essa salutar dependência . ( ) espírito se acha à vontade diante d o real, que nada de muito importante tem a lhe ensinar; ele não mais é cont i ­d o pela matéria à q u a l se aplica, uma vez que é ele, de certo m o d o , que a determina. As diferentes regras que es­tabelecemos até o presente são portanto int imamente sol i ­dárias. Para que a sociologia seja realmente u m a ciência de coisas, é preciso q u e a general idade dos f e n ô m e n o s seja tomada como critério de sua normal idade.

Nosso m é t o d o , al iás, t e m a v a n t a g e m de regular a ação ao mesmo t e m p o que o pensamento. Se o desejável não é objeto de observação, mas pode e deve ser determi­nado p o r uma espécie de cálculo mental , n e n h u m l imite , por assim dizer, p o d e ser imposto às livres invenções da imaginação em busca d o melhor. Pois, como atribuir à per­feição u m termo que ela não pode ultrapassar? Ela escapa, por definição, a qualquer l imite. O objetivo da humanidade recua p o r t a n t o ao i n f i n i t o , desencora jando uns p o r seu afastamento mesmo, es t imulando e a p a i x o n a n d o outros que, para dele se aproximar u m pouco, aceleram o passo e

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76 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

se precipitam nas revoluções. Escapamos desse dilema prá­tico se o desejável for a saúde, e se a saúde for algo de de­f in ido e de dado nas coisas, pois o termo d o esforço é da­d o e def in ido ao mesmo tempo. Nâo se trata mais de per­seguir desesperadamente u m f i m que se afasta à medida que avançamos, mas de trabalhar c o m uma regular perse­verança para manter o estado normal , para restabelecê-lo se for perturbado, para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar. O dever d o h o m e m de Estado não é mais impel ir violentamente as sociedades para u m ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel é o d o médico: ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quan­d o estas se manifestam, procura curá-las 1 5 .

CAPÍTULO IV

REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS

Visto que u m fato social só p o d e ser qual i f i cado de n o r m a l o u cie a n o r m a l e m re lação a u m a e s p é c i e social determinada, o que precede implica que u m ramo da so­ciologia é dedicado à constituição dessas espécies e à sua classificação.

Essa noção de espécie social tem, aliás, a grande v a n ­tagem de nos fornecer u m meio- termo entre as duas con­c e p ç õ e s contrárias da v ida coletiva que p o r m u i t o t e m p o d i v i d i r a m os espíritos: ref iro-me ao nomina l i smo dos his­t o r i a d o r e s 1 e ao rea l i smo e x t r e m o dos f i lósofos . Para o historiador, as sociedades consti tuem individual idades he­terogêneas, incomparáveis entre si. Cada p o v o tem sua f i ­s ionomia, sua constituição específica, seu direito, sua m o ­ral, sua organização e c o n ô m i c a que c o n v ê m só a ele, e toda generalização é praticamente impossível. Para o filó­sofo, ao contrário, todos esses agrupamentos particulares,, que chamamos tribos, cidades, nações , não são mais que c o m b i n a ç õ e s cont ingentes e provisórias sem rea l idade própria. Apenas a humanidade é real e é dos atributos ge-

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78 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

rais da natureza humana que decorre toda a evolução so­cial . Para os p r i m e i r o s , p o r t a n t o , a história n ã o é s e n ã o uma seqüência de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzir ; para os segundos, esses mesmos aconteci­mentos só têm valor e interesse c o m o ilustração das leis gerais que estão inscritas na constituição d o h o m e m e que d o m i n a m todo o desenvolvimento histórico. Para aqueles, o que é b o m para uma sociedade não poder ia aplicar-se às outras. As condições d o estado de saúde variam de u m p o v o a outro e não p o d e m ser determinadas teoricamen­te; é uma questão de prática, de exper iência , de tentat i ­vas. Para os outros, essas condições p o d e m ser calculadas de uma vez p o r todas e para o g ê n e r o h u m a n o in te i ro . Parecia, portanto, que a realidade social o u seria o objeto de uma filosofia abstrata e vaga, o u de monografias pura­mente descritivas. Mas escapamos a essa alternativa tão logo reconhecemos que, entre a multidão confusa das so­ciedades históricas e o conceito único, mas ideal, da h u ­manidade, existem intermediários: são as espécies sociais. Na idéia de espécie , c o m efeito, acham-se reunidas tanto a u n i d a d e que toda pesquisa verdadeiramente científica exige, c o m o a diversidade que é dada nos fatos, já que a espéc ie é a mesma e m todos os indivíduos que *dela fa­zem parte* e, por outro lado, as espécies d i ferem entre si. Continua sendo verdade que as instituições morais, jurídi­cas, econômicas , etc. são inf ini tamente variáveis, mas es­sas variações não são de natureza a não permi t i r n e n h u ­ma apreensão pelo pensamento científico.

Foi por ter desconhecido a existência de espécies so­ciais que Comte ju lgou poder representar o progresso das sociedades humanas c o m o idêntico ao de u m p o v o único "ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações

* "a e n c a r n a m " (R.R, p . 599.)

REGRAS RELATIVASÀ CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 79

consecutivas observadas nas populações distintas" 2 . É que, de fato, se existe apenas uma única espécie social, as socie­dades particulares não p o d e m di fer i r entre si a não ser em graus, c o n f o r m e apresentem m a i s o u m e n o s c o m p l e t a ­mente os traços constitutivos dessa espécie única, confor­me ' e x p r i m a m * mais o u menos perfei tamente a humanida­de. Se, ao contrário, existem t ipos sociais qualitativamente distintos uns dos outros, não se poderá fazer que eles se unam exatamente como as seções homogêneas de uma re­la geométrica, por mais que os aprox imemos . O desenvol­vimento histórico perde deste m o d o a unidade ideal e sim­plista que lhe atribuíam; ele se fragmenta, por assim dizer, numa infinidade de pedaços que, p o r di fer i rem especifica­mente uns dos outros, não p o d e r i a m ligar-se de maneira contínua. A famosa metáfora de Pascal, retomada depois por Comte, mostra-se assim desprovida de verdade.

Mas como fazer para const i tuir tais espécies?

I

À p r i m e i r a vista, p o d e p a r e c e r q u e n ã o haja outra maneira de proceder s e n ã o es tudar cada sociedade e m p a r t i c u l a r , fazer de la u m a m o n o g r a f i a t ão exata e tão completa quanto possível, a seguir comparar todas essas monografias entre si, ver e m que p o n t o elas concordam e em que p o n t o divergem e, então , conforme a importância relativa dessas s imil i tudes e dessas divergências, classifi­car os p o v o s e m gr upo s semelhantes o u diferentes . E m apoio a esse método, faz-se notar que ele só é admissível numa ciência de observação . A e s p é c i e , c o m efeito, é o resumo dos indivíduos; portanto , c o m o constituí-la se não

* " e n c a r n e m " (R.P., p . 599.)

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80 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

se começa por descrever cada u m deles e por descrevê-lo inteiramente? Acaso não é uma regra a de somente elevar-se ao geral após se ter observado o p a r t i c u l a r e t o d o o particular? Foi por essa razão que se quis às vezes adiar a sociologia até uma época indefinidamente remota, em que a história, no estudo que realiza das sociedades particula­res, terá chegado a resultados suficientemente objetivos e definidos para p o d e r e m ser proveitosamente comparados.

Mas, e m realidade, essa cautela só aparentemente é científica. E inexato, c o m efeito, que a ciência só possa ins­t i tu ir leis após ter passado e m revista todos os fatos que elas expr imem, o u só formar gêneros após ter descrito, em sua integralidade, os indivíduos que eles compreendem. O verdadeiro método experimental tende, antes, a substituir os fatos vulgares - que só são demonstrativos c o m a condi ­ção de serem numerosos e que, portanto, permitem apenas conclusões sempre suspeitas - por fatos decisivos o u cru­ciais, c o m o dizia Bacon 3 , que, por si mesmos e indepen­dentemente de seu número, têm u m valor e u m interesse científicos. É sobretudo necessário proceder deste m o d o quando se trata de constituir gêneros e espécies. Pois fazer o inventário de todas as características de u m indivíduo é u m problema insolúvel. T o d o indivíduo é u m inf in i to e o inf ini to não pode ser esgotado. Iremos nos ater às proprie­dades mais essenciais? Mas c o m base e m que princípio fa­remos a triagem? Para isso é preciso u m critério que supere o indivíduo e que as monografias mais bem-feitas não p o ­deriam, portanto, nos fornecer. Mesmo sem levar as coisas a esse rigor, pode-se prever que, quanto mais numerosos os caracteres que servirão de base à c lass i f icação, tanto mais difícil será q u e as diversas maneiras c o m o eles se c o m b i n a m nos casos particulares apresentem semelhanças bastante claras e diferenças bastante nítidas para permitir a constituição de grupos e subgnipos definidos.

REGRAS REIAIIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 81

Mas ainda que uma classif icação fosse possível c o m base nesse método, ela teria o grande defeito de não pres­tar os serviços que são sua razão de ser. C o m efeito, ela deve, antes de tudo, ter por objeto abreviar o trabalho cien­tífico ao substituir a m u l t i p l i c i d a d e indef in ida dos indiví­duos por u m número restrito de tipos. Mas ela perde essa vantagem se esses t ipos só f o r e m constituídos após todos os indivíduos terem sido passados e m revista e analisados inte iramente . Uma tal classif icação não facilitará m u i t o a pesquisa, se não fizer mais que resumir as pesquisas já fei­tas. Ela só será verdadeiramente útil se nos permit ir classi­ficar outros caracteres que não aqueles que lhe servem de base, se nos p r o p o r c i o n a r quadros para os fatos futuros . Seu pape l é o de nos m u n i r de pontos de referência aos quais possamos re lac ionar outras o b s e r v a ç õ e s q u e n ã o aquelas que nos forneceram esses próprios pontos de re­ferência. Mas, para isso, é preciso que ela seja feita, não a partir de u m inventário c o m p l e t o de todos os caracteres i n d i v i d u a i s , mas a part i r de u m p e q u e n o número deles, cu id a d o sa m e nt e esco lh idos . Nessas c o n d i ç õ e s , ela não servirá apenas para pôr u m pouco de o r d e m nos conheci­mentos já obtidos; servirá para produzir outros. Ela poupa­rá muitos passos ao observador, porque irá guiá-lo. Assim, uma vez estabelecida a classificação sobre esse princípio, para saber se u m fato é geral numa espécie , não será ne­cessário ter observado todas as sociedades dessa espécie; algumas serão suficientes. Inclusive, e m muitos casos, bas­tará somente uma observação bem-feita, assim como uma experiência b e m conduzida é suficiente, muitas vezes, pa­ra o estabelecimento de uma lei .

Devemos por tanto escolher para nossa classif icação caracteres particularmente essenciais. É verdade que não se pode conhecê-los a não ser que a explicação dos fatos es­teja suficientemente avançada. Essas duas partes da ciência

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82 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

são solidárias e progr idem uma através da outra. N o entan­to, mesmo sem avançar m u i t o no estudo dos fatos, não é difícil conjeturar onde é preciso buscar as propriedades ca­racterísticas dos tipos sociais. Sabemos, c o m efeito, que as sociedades são compostas de partes reunidas umas às o u ­tras. Já que a natureza de toda resultante depende necessa­riamente da natureza, d o número dos elementos c o m p o ­nentes e de seu m o d o de combinação, esses caracteres são evidentemente aqueles que devemos tomar por base, e ve­remos a seguir, c o m efeito, que é deles que dependem os fatos gerais da vida social. Por outro lado, c o m o eles sào de ordem morfológica, poderíamos chamar Morfologia so­cial a parte da sociologia que tem p o r tarefa const i tuir e classificar os tipos sociais.

Pode-se i n c l u s i v e prec isar a i n d a mais o p r i n c í p i o dessa c l a s s i f i c a ç ã o . Sabe-se, c o m e fe i to , q u e as partes constitutivas de que é formada toda sociedade são socie­dades mais simples d o que ela. U m p o v o é formado pela reunião de dois o u vários povos que o precederam. Por­tanto , se c o n h e c ê s s e m o s a sociedade mais s imples q u e até hoje ex is t iu , prec isar íamos apenas, para fazer nossa c lass i f i cação , seguir a manei ra c o m o essa sociedade se c o m p õ e consigo mesma e c o m o seus compostos se com­p õ e m entre si.

I I

Spencer compreendeu m u i t o b e m que a classificação metódica dos tipos sociais não podia ter outro fundamento.

" V i m o s , diz ele, que a e v o l u ç ã o social c o m e ç a p o r pequenos agregados simples; que ela progr ide pela união de alguns desses agregados e m agregados maiores e que, após se consol idarem, esses grupos se u n e m c o m outros

I;I:GRAS REIATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 83

semelhantes a eles para formar agregados ainda maiores. Nossa classificação deve portanto começar por sociedades da primeira ordem, isto é, da mais s imples . " 4

Infelizmente, para pôr esse princípio e m prática, seria preciso começar por def inir c o m precisão o que se enten­de por sociedade simples. Ora, essa definição, não apenas Spencer não a dá, como também a considera mais ou me­nos impossível 5 . É que a s implic idade, tal c o m o ele a en-lende, consiste essencialmente n u m a certa rudeza de orga­nização. Ora, não é fácil dizer c o m exatidão e m que m o ­mento a organização social é suficientemente rudimentar para ser qualificada de simples; é uma questão de aprecia­ção. Assim, a fórmula que ele oferece é tão vaga que con­vém a todo t ipo de sociedades. "Nada de melhor temos a fazer, diz ele, d o que considerar c o m o sociedade simples aquela que forma u m todo não subordinado a outro e cu­jas partes cooperam c o m o u sem centro regulador, tendo cm vista certos fins de interesse p ú b l i c o . " 6 Mas há muitos povos eme satisfazem a essa condição . Disso resulta que ele confunde, u m pouco ao acaso, sob essa mesma r u b r i ­ca, todas as sociedades menos c ivi l izadas . Imagine-se o que pode ser, c o m semelhante p o n t o de part ida, o resto de sua classificação. Vemos aproximadas nela, na mais es­pantosa confusão, as sociedades mais diversas: os gregos homéricos postos ao lado dos feudos d o século X e abaixo ilos bechuanas, dos zulus e dos fi j ianos, a confederação ateniense ao lado dos feudos da França d o século X I I I e abaixo dos iroqueses e dos araucanos.

A pa lavra s i m p l i c i d a d e só t e m s e n t i d o d e f i n i d o se significar uma ausência completa de partes. Por sociedade simples, por tanto , deve-se entender toda sociedade que não encerra outras , mais s i m p l e s d o q u e ela; q u e n ã o apenas está atualmente reduz ida a u m segmento único , mas t a m b é m q u e n ã o apresenta n e n h u m traço de u m a

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84 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

s e g m e n t a ç ã o a n t e r i o r . A borda, ta l c o m o a d e f i n i m o s alhures 7 , corresponde exatamente a essa definição. Trata-se de u m agregado que não c o m p r e e n d e e jamais c o m ­preendeu e m seu seio n e n h u m o u t r o agregado mais ele­mentar, mas que se d e c o m p õ e imediatamente e m indiví­duos. Estes não f o r m a m , n o inter ior d o g r u p o total , g r u ­pos especiais e diferentes d o precedente; eles se justapõem à manei ra de á tomos . Concebe-se que não possa haver sociedade mais s imples ; esse é o p r o t o p l a s m a d o r e i n o social e, conseqüentemente , a base natural de toda classi­f icação.

É verdade que talvez não exista sociedade histórica que corresponda exatamente a essa identificação; mas, tal c o m o m o s t r a m o s n o l i v r o já c i t a d o , c o n h e c e m o s u m a quantidade delas que são formadas, imediatamente e sem outro intermediário, por uma repetição de hordas. Quan­d o a h o r d a se torna , assim, u m segmento social e m vez de ser a sociedade inteira, ela chama-se clã; mas conserva os mesmos traços const i tut ivos . O clã, c o m efeito, é u m agregado social que não se d e c o m p õ e e m n e n h u m outro , mais restrito. Poderão talvez assinalar que, geralmente, lá onde o observamos hoje, ele encerra u m a plural idade de famílias particulares. Mas, e m p r i m e i r o lugar, p o r razões que não podemos desenvolver aqui , cremos que a forma­ção desses pequenos grupos familiares é posterior ao clã; além disso, essas famílias não consti tuem, para falar c o m exatidão, segmentos sociais p o r q u e elas não são divisões políticas. O n d e quer que o encontremos, o clã consti tui a última divisão desse gênero . E m conseqüência , ainda que não tivéssemos outros fatos para postular a existência da horda - e eles existem, c o m o teremos a ocasião de expor u m dia - , a existência d o clã, isto é, de sociedades forma­das p o r uma reunião de hordas, nos autoriza a supor que h o u v e pr imeiramente sociedades mais simples que se re-

KEGRAS RELATIVAS Â CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 85

duziam à horda propriamente dita e a fazer desta o t ronco de onde saíram todas as espécies sociais.

Uma vez estabelecida essa n o ç ã o de horda o u socie­dade de segmento único - seja ela concebida como uma realidade histórica o u c o m o u m p o s t u l a d o da c iência - , lem-se o p o n t o de apoio necessário para construir a esca­la completa dos t ipos sociais. Iremos dis t inguir tantos t i ­pos fundamentais quantas maneiras houver, para a horda, de se combinar consigo mesma dando o r i g e m a socieda­des novas, e, para estas, de se c o m b i n a r e m entre si. En­contraremos primeiramente agregados formados por uma simples repetição de hordas o u de clãs (para dar-lhes seu novo n o m e ) , sem que esses clãs estejam associados entre si de maneira a formar grupos intermediários entre o g r u ­po total que co m pr e e nd e a todos e cada u m deles. Eles es tão s implesmente justapostos c o m o os indivíduos da horda . Encontram-se e x e m p l o s dessas sociedades, q u e poderiam ser chamadas polissegmentares simples, e m cer-las tribos iroquesas e australianas. O arch, o u t r ibo da Ca-bília, t e m o m e s m o caráter; trata-se de u m a reunião de clãs f ixados e m f o r m a de aldeias. M u i t o p r o v a v e l m e n t e , houve u m m o m e n t o na história e m que a cúria romana e :\ fratria ateniense eram sociedades desse gênero . Acima vir iam as sociedades formadas por uma reunião de socie­dades da espéc ie precedente, isto é, as sociedades polis­segmentares simplesmente compostas. Ta l é o caráter da confederação iroquesa, daquela formada pela reunião das iribos cabilas; o mesmo aconteceu, na or igem, c o m cada uma das três tribos primit ivas cuja associação deu or igem, mais tarde, à cidade romana. Encontraríamos a seguir as sociedades polissegmentares duplamente compostas, que lesultam da justaposição o u da fusão de várias sociedades polissegmentares s implesmente compostas. É o caso da cidade, agregado de tribos, que são elas próprias agrega-

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86 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

dos de cúrias, que, p o r sua vez, se d e c o m p õ e m e m gentes ou clãs, e da t r ibo germânica, c o m seus condados, que se s u b d i v i d e m em centenas, os quais, p o r sua vez, têm p o r unidade última o clã transformado e m aldeia.

Não precisamos desenvolver n e m levar mais adiante essas poucas indicações , já que não é o caso de efetuar aqui uma classificação das sociedades. Esse é u m proble ­ma demasiado c o m p l e x o para poder ser tratado assim, de passagem; ele supõe, ao contrário, t o d o u m conjunto de longas e especiais pesquisas. Quisemos apenas, p o r a l ­guns exemplos , precisar as idéias e mostrar c o m o deve ser apl icado o princípio d o método. Inclusive não se de­veria considerar o que precede c o m o sendo uma classifi­c a ç ã o completa das sociedades inferiores. S impli f icamos u m p o u c o as coisas para maior clareza. Supusemos, c o m efeito, que cada t i p o superior era formado p o r uma repe­tição de sociedades de u m mesmo t i p o , a saber, d o t i p o imediatamente infer ior . Ora, não é impossível que socie­dades de espéc ies diferentes, situadas e m diferentes ní­veis da árvore genealógica dos tipos sociais, se reúnam de maneira a formar uma espécie nova. Sabe-se de pelo me­nos u m caso: o Impér io r o m a n o , q u e c o m p r e e n d i a e m seu interior povos das mais diversas naturezas".

Mas, uma vez const i tuídos esses t ipos , será preciso distinguir e m cada u m deles variedades diferentes, confor­me as sociedades segmentares, que servem para formar a sociedade resultante, conservem uma certa indiv idual ida­de, o u então, ao contrário, sejam absorvidas na massa to­tal. Compreende-se, c o m efeito, que os fenômenos sociais devem variar, não apenas segundo a natureza dos elemen­tos componentes, mas segundo seu m o d o de composição; eles devem sobretudo ser m u i t o diferentes, conforme cada u m dos grupos parciais conserve sua vida local o u sejam todos arrastados na v ida geral , isto é, c o n f o r m e estejam

REGRAS REIATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 87

mais o u menos estreitamente concentrados . Deveremos portanto investigar se, n u m m o m e n t o qualquer, se produz uma coalescência completa desses segmentos. Reconhece­remos que ela ocorre se a composição original da socieda­de não mais afetar sua organização administrativa e políti­ca. Desse ponto de vista, a cidade distingue-se nitidamente das tribos germânicas. Nestas últimas, a organização à ba­se de clãs se manteve, embora apagada, até o término de sua história, ao passo que, em Roma, em Atenas, as gentes e as YÉVTl d e i x a r a m m u i t o cedo de ser divisões políticas para se tornarem agrupamentos privados.

N o in ter ior dos l ineamentos assim constituídos, p o -der-se-á buscar introduzir novas distinções a partir dos ca­racteres morfológicos secundários. Entretanto, por razões que daremos mais adiante, n ã o julgamos m u i t o possível superar c o m p r o v e i t o as divisões gerais q u e acabam de ser indicadas. Além disso, não precisamos entrar nesses detalhes, bas tando-nos ter es tabelec ido o pr inc íp io de classificação que pode ser assim enunciado: Começar-se-á por classificar as sociedades de acordo com o grau de composição que elas apresentam, tomando por base a so­ciedade perfeitamente simples ou de segmento único; no interior dessas classes, distinguir-se-âo variedades diferen­tes conforme se produza ou não uma coalescência com­pleta dos segmentos iniciais.

I I I

Essas regras respondem implicitamente a uma questão que o leitor talvez se tenha colocado ao nos ver falar de es­pécies sociais como se elas existissem, sem termos direta­mente estabelecido sua existência. Essa prova está contida no princípio mesmo d o método que acaba de ser exposto.

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88 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

Acabamos de ver, c o m efeito, que as sociedades não eram mais que c o m b i n a ç õ e s diferentes de uma mesma e única sociedade o r i g i n a l . Ora , u m m e s m o e l e m e n t o só p o d e compor-se consigo mesmo, e os compostos que de­le resultam só p o d e m , por sua vez, compor-se entre si, se­g u n d o u m número de modos l imi tado, sobretudo quando os elementos componentes são p o u c o numerosos, c o m o é o caso dos segmentos sociais. A gama de combinações poss íve is é p o r t a n t o f i n i t a e, p o r c o n s e g u i n t e , a m a i o r parte delas, pe lo menos, deve se repetir. D o que se con­clui que há espécies sociais. É possível, aliás, que algumas dessas c o m b i n a ç õ e s se p r o d u z a m apenas u m a vez. Isso não i m p e d e que haja espécies . Apenas se dirá, nesse ca­so, que a espécie tem somente u m indivíduo 9 .

Há por tanto espéc ies sociais pela mesma razão que existem espécies e m biologia . Estas, c o m efeito, devem-se ao fato de os organismos não serem senão combinações variadas de uma mesma unidade anatômica. Há todavia, desse p o n t o de vista, uma grande diferença entre os dois reinos. Pois, entre os animais , u m fator especial confere aos caracteres específicos uma força de resistência que os outros não têm: é a geração. Os primeiros, p o r serem co­muns a toda a l inhagem dos ascendentes, estão b e m mais fortemente enraizados n o organismo. Portanto eles não se de ixam facilmente afetar pela ação dos meios individuais , mas se mantêm idênticos a si mesmos, apesar da diversi­dade das circunstâncias exteriores. Há u m a força interna que os f ixa a despeito das solicitações para variar que po­d e m vi r de fora: a força dos hábitos hereditários. Por isso eles são claramente def in idos e p o d e m ser determinados c o m precisão. N o re ino social, falta-lhes essa causa inter­na. Os caracteres não p o d e m ser reforçados pela geração, p o r q u e d u r a m apenas u m a geração. É de regra, c o m efei­to , que as sociedades engendradas sejam de outra espécie

REGRAS RELATIVAS Ã CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS 89

que as sociedades geradoras, p o r q u e estas últimas, ao se c o m b i n a r e m , dão o r i g e m a arranjos inte iramente novos. Somente a c o l o n i z a ç ã o p o d e r i a ser c o m p a r a d a a u m a geração por germinação; mesmo assim, para que a c o m ­paração seja exata, é preciso que o g r u p o de colonos não se mis ture c o m u m a sociedade de outra e s p é c i e o u de outra var iedade. Os atr ibutos dis t int ivos da espéc ie não recebem p o r t a n t o da heredi tar iedade u m a c r é s c i m o de força q u e lhe p e r m i t a resist ir às v a r i a ç õ e s i n d i v i d u a i s . Eles se m o d i f i c a m e se m a t i z a m ao i n f i n i t o sob a a ç ã o ilas circunstâncias; assim, q u a n d o se quer at ingi- los , de­pois de afastadas todas as var iantes q u e os e n c o b r e m , c o m freqüência se obtém apenas u m resíduo bastante i n ­d e t e r m i n a d o . Essa indeterminação cresce n a t u r a l m e n t e lanto mais quanto maior for a complex idade dos caracte­res; pois, quanto mais complexa uma coisa, mais as partes que a c o m p õ e m p o d e m formar c o m b i n a ç õ e s diferentes. Disso resulta que o t i p o social específ ico, para além dos caracteres mais gerais e mais simples, não apresenta con-lornos tão def inidos c o m o e m b i o l o g i a 1 0 .

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CAPÍTULO V

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

Mas a constituição das espéc ies é antes de t u d o u m meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação; a morfologia social é u m encaminhamento para a parte real­mente explicativa da ciência. Qual o método próprio des­ta última?

I

A maior parte dos sociólogos acredita ter expl icado os fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e que papel desempenham. Raciocina-se como se tais fenô­menos só existissem e m função desse pape l e não tives­sem outra causa determinante além d o sentimento, claro ou confuso, dos serviços que são chamados a prestar. Por isso julga-se ter dito tudo o que é necessário para torná-los inteligíveis, quando se estabeleceu a realidade desses ser­viços e se mos t rou a que necessidade social eles satisfa­zem. Assim Comte reduz toda a força progressiva da espé-

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92 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

cie humana à tendência fundamenta l "que impele direta­mente o h o m e m a melhorar sempre e sob todos os aspectos sua condição, seja ela qual for 1 " , e Spencer, à necessidade de uma maior felicidade. É em vir tude desse princípio que ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que resultam da cooperação, a instituição d o governo pela u t i ­l i d a d e q u e há e m regular izar a c o o p e r a ç ã o m i l i t a r 2 , as transformações pelas quais passou a família pela necessi­dade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interes­ses dos pais, dos fi lhos e da sociedade.

Mas esse método confunde duas questões m u i t o dife­rentes. Mostrar em que u m fato é útil não é explicar c o m o ele surg iu n e m c o m o ele é o que é. Pois os usos a que serve supõem as propriedades específicas que o caracteri­zam, mas não o criam. A necessidade que temos das coi ­sas não p o d e fazer que elas sejam deste o u daquele jeito e. c o n s e q ü e n t e m e n t e , n ã o é essa necessidade que p o d e tirá-las d o nada e confer i r - lhes o ser. É a causas de u m outro gênero que elas d e v e m sua existência. O sentimen­to que temos da ut i l idade que elas apresentam pode m u i ­to b e m nos incitar a pôr e m ação essas causas e a obter os efeitos que elas implicam, não a suscitar do nada esses efei­tos. Essa p r o p o s i ç ã o é ev idente q u a n d o se trata apenas dos f e n ô m e n o s mater ia i s o u m e s m o p s i c o l ó g i c o s . Ela t a m p o u c o seria contestada e m sociologia se os fatos so­ciais, p o r causa de sua extrema imater ia l idade , n ã o nos parecessem, erradamente , destituídos de toda real idade intrínseca. ' C o m o neles se vêem apenas combinações p u ­ramente mentais, parece que devem se produzi r esponta­neamente tão logo os concebemos, desde que os consi­d e r e m o s úte is . " Mas, v i s to q u e cada u m desses fatos é uma força e essa força d o m i n a a nossa, visto que cada u m

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 93

lem uma natureza que lhe é própria, ter desejo o u vonta­de deles não poderia ser suficiente para conferir-lhes exis­tência. É preciso também que forças capazes de produzi r essa força determinada, que naturezas capazes de p r o d u ­zir essa natureza especial , sejam dadas. Somente e m tal condição o fato social será possível. Para reanimar o espí­rito da família onde ele se acha enfraquec ido , não basta que todos compreendam as vantagens disso; é preciso fa­zer agir diretamente as causas que são as únicas capazes de engendrá-lo. Para devolver a u m governo a autoridade que lhe é necessária, não basta sentir a necessidade disso; é preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda au­toridade, o u seja, constituir tradições, u m espírito c o m u m , e tc , e t c ; para tanto, é preciso também remontar mais aci­ma na cadeia das causas e dos efeitos, até se encontrar u m p o n t o e m que a ação d o h o m e m possa se inserir efi­cazmente.

O q u e mostra b e m a dua l idade dessas duas ordens de pesquisas é que u m fato pode existir sem servir a na­da, seja porque jamais esteve ajustado a a l g u m f i m vi ta l , seja p o r q u e , a p ó s ter s ido útil, p e r d e u t o d a u t i l i d a d e e c o n t i n u o u a exis t i r pe la s imples força d o h á b i t o . C o m efeito, há b e m mais sobrevivências na sociedade d o que no organismo. Há casos, inc lus ive , e m que u m a prática o u u m a instituição social m u d a m de funções sem por is­so m u d a r de natureza . A regra is pater est quem justae nuptiae declarant [é pa i aquele que as núpcias indicam] permaneceu mater ia lmente e m nosso Código, tal c o m o existia n o ve lho dire i to romano . Mas, se essa regra t inha então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade d o pai sobre os f i lhos provenientes da esposa legítima, é antes o d i r e i t o dos f i l h o s q u e ela protege ho je . O jura­mento c o m e ç o u por ser u m a espécie de prova judiciária, para tornar-se apenas uma forma solene e i m p o n e n t e d o

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94 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

testemunho. Os dogmas religiosos d o crist ianismo cont i ­n u a m os mesmos há séculos; mas o papel que desempe­n h a m e m nossas sociedades modernas não é mais o mes­m o que na Idade Média. É assim, ainda, que as palavras servem para e x p r i m i r idéias novas sem que sua contextu­ra se m o d i f i q u e . De resto, é uma propos ição verdadeira tanto e m sociologia c o m o e m biologia que o órgão é i n ­dependente da função, o u seja, que pode servir a fins d i ­ferentes embora p e r m a n e ç a o mesmo. Portanto, as cau­sas q u e o fazem exist ir são independentes cios fins aos quais ele serve.

Não queremos dizer, aliás, que as tendências, as ne­cessidades, os desejos dos homens jamais i n t e r v e n h a m , de maneira ativa, na evolução social. *Ao contrário, certa­mente lhes é possível , c o n f o r m e a maneira c o m o agem sobre as condições de que depende u m fato, acelerar ou conter o desenvolvimento deste. Só que, além de não po­derem, e m caso n e n h u m , tirar alguma coisa d o nada, sua própria intervenção, sejam quais forem os efeitos dela, só p o d e ocorrer e m v i r t u d e de causas eficientes.* D e fato, m e s m o nessa m e d i d a restr i ta , u m a t e n d ê n c i a só p o d e concorrer para a produção de u m f e n ô m e n o n o v o se ela própria for nova, quer se tenha constituído a partir de ze­ro , quer seja devida a alguma transformação de uma ten­dência anterior. Pois, a menos que se postule uma harmo­nia preestabelecida verdadeiramente providencia l , não se poderia admitir que, desde a or igem, o h o m e m trouxesse e m si, e m estado v i r t u a l , mas inte i ramente prontas para desper tar c o m o c o n c u r s o das c i rcunstânc ias , Ridas as

* "Se eles n ã o p o d e m t irar a l g u m a coisa d o nada, lhes 6 possivi'1, ao a g i r e m s o b r e as c o n d i ç õ e s de q u e d e p e n d e u m fa to , acelerar ou c o n t e r o d e s e n v o l v i m e n t o de le . Só q u e essa própria i n t e r v e n ç ã o ocoriv e m v i r t u d e de causas ef ic ientes . " (Revuephilosophique, t o m o X X X V I I I , j u l h o a d e z e m b r o de 1894, p . 16.)

REGRAS RELATIVASÀ EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 95

tendências cuja opor tunidade haveria de se fazer sentir na s e q ü ê n c i a da e v o l u ç ã o . O r a , u m a t e n d ê n c i a é t a m b é m uma coisa; ela n ã o p o d e p o r t a n t o se c o n s t i t u i r n e m se modif icar pelo simples fato de a julgarmos útil. É uma for­ça que t e m sua natureza própria; para que essa natureza seja suscitada o u alterada, não basta que nela encontre­mos alguma vantagem. *Para determinar tais mudanças, é preciso que atuem causas que as i m p l i q u e m fisicamente.*

Por exemplo, explicamos os progressos constantes da divisão cio trabalho social ao mostrar que eles são necessá­rios para que o h o m e m possa se manter nas condições no­vas de existência nas quais se vê colocado à medida que avança na história; atribuímos portanto a essa tendência, c [cie mui to impropriamente é chamada de instinto de con­servação, u m papel importante em nossa explicação. Mas, em pr imeiro lugar, ela não poderia por si só explicar a es­pecialização, mesmo a mais rudimentar. Pois ela nada po­de, se as condições de que depende esse f e n ô m e n o não estiverem já realizadas, isto é, se as diferenças individuais não t iverem aumentado suficientemente e m conseqüência da indeterminação progressiva da consc iênc ia c o m u m e das influências hereditárias 3 . Inclusive f o i preciso que a d i ­visão d o trabalho já tivesse c o m e ç a d o a existir para que sua uti l idade fosse percebida e sua necessidade se fizesse sentir; e somente o desenvolvimento das divergências i n ­dividuais , ao impl icar uma maior diversidade de gostos e ile aptidões, haveria necessariamente de produzi r esse p r i ­meiro resultado. Além disso, não f o i p o r si mesmo e sem causa que o ins t in to de c o n s e r v a ç ã o ve io fecundar esse primeiro germe de especialização. Se ele se or ientou e nos

* " M a s é p r e c i s o a l g o b e m d i f e r e n t e d a r e p r e s e n t a ç ã o d o s ••cívicos q u e elas p o d e m prestar para d e t e r m i n a r tais m u d a n ç a s . " (R.P., p l<>.)

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96 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

or ientou nesse n o v o caminho, f o i em p r i m e i r o lugar por­que o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anterior­mente se v i u como que barrado, pois a intensidade maior da luta, devida à maior condensação das sociedades, tor­n o u cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos que c o n t i n u a v a m a se dedicar a tarefas gerais. Foi assim necessário mudar de direção. Por outro lado, se esse ins­t into faz uma volta e v i r o u principalmente nossa atividade, n o sent ido de uma divisão d o trabalho sempre mais de­senvolvida, é porque esse era também o sentido da menor resistência. As outras soluções possíveis eram a emigração, o suicídio, o crime. Ora, na média dos casos, os laços que nos l igam a nosso país, à vida, a simpatia que temos p o r nossos semelhantes, são sentimentos mais fortes e mais re­sistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma es­pecialização mais estreita. São esses últimos portanto que haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremeti­da. Assim, não se cai, n e m mesmo parcialmente, no fina-l ismo pelo fato de se aceitar dar u m lugar às necessidades humanas nas expl i cações sociológicas . Pois estas só p o ­d e m ter influência sobre a evolução social se elas próprias evoluírem, e as mudanças que elas atravessam só p o d e m ser explicadas por causas que nada têm de f inal .

Mas o que é mais convincente ainda que as conside­rações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais. Lá onde reina o f inal ismo, reina também uma contingên­cia maior o u menor; pois não existem fins, e m u i t o menos meios, que se i m p o n h a m necessariamente a todos os ho­mens, ainda que os suponhamos situados nas mesmas cir­cunstâncias. Sendo dado u m mesmo ambiente, cada i n d i ­víduo, conforme seu humor , adapta-se a ele à sua manei­ra, que ele prefere a qualquer outra. U m procurará m o d i ­ficá-lo para co locá- lo e m h a r m o n i a c o m suas necessida­des; out ro preferirá modif icar a si mesmo e moderar s e u s

REGRAS RELATIVAS Â EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 97

desejos. Para chegar a u m mesmo objet ivo, quantos cami­nhos p o d e m ser e são efetivamente seguidos! Portanto, se fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez e m vista de fins claramente o u obscuramente sentidos, os fa­tos sociais dever iam apresentar a mais inf in i ta diversida­de, e qualquer comparação haveria de ser quase impossí­v e l . O r a , o c o n t r á r i o é q u e é a v e r d a d e . C l a r o q u e os acontecimentos exteriores, cuja trama constitui a parte su­perficial da vida social, var iam de u m p o v o a outro . Mas é assim que cada indivíduo tem sua história, embora as ba­ses da organização física e moral sejam as mesmas em to­dos. Na verdade, q u a n d o entramos u m p o u c o e m contato c o m os fenômenos sociais, surpreendemo-nos, ao contrá­rio, c o m a espantosa regularidade c o m que estes se repro­d u z e m nas mesmas c i r c u n s t â n c i a s . M e s m o as prát icas mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetem-se c o m a mais espantosa uni formidade . Uma cerimônia n u p ­cial q u e parece p u r a m e n t e s imból ica , c o m o o r a p t o da no iva , verif ica-se exatamente e m toda parte e m que há certo t i p o familiar, l igado ele próprio a toda uma organi ­zação política. Os costumes mais bizarros, c o m o a couva-de, o levirato , a exogamia , e t c , observam-se nos povos mais diversos e são sintomáticos de certo estado social. O direi to de testar aparece numa fase determinada da histó­ria e, a partir das restrições mais o u menos consideráveis que o l imi tam, pode-se dizer em que m o m e n t o da e v o l u ­ç ã o soc ia l nos e n c o n t r a m o s . Seria fáci l m u l t i p l i c a r os exemplos. Ora, essa generalidade das formas coletivas se­ria inexplicável se as causas finais tivessem e m sociologia a preponderância que se atr ibui a elas.

Portanto, quando se procura explicar um fenômeno-social, é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente que o produz e a função que ele cumpre. Servimo-nos da palavra função de preferência às palavras f i m ou objetivo,

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precisamente p o r q u e os f e n ô m e n o s sociais não existem, de m o d o geral, tendo e m vista os resultados úteis que p r o ­duzem. O que é preciso determinar é se há correspondên­cia entre o fato considerado e as necessidades gerais cio organismo social, e e m que consiste essa correspondência, sem se preocupar e m saber se ela f o i intencional ou não. Todas as questões de intenção, aliás, são demasiado subje­tivas para poderem ser tratadas cientificamente.

Essas duas ordens de problemas não apenas d e v e m ser separadas, mas convém, em geral, tratar a primeira an­tes da segunda. Esta ordem, c o m efeito, corresponde à dos fatos. É natural investigar a causa de u m f e n ô m e n o antes de tentar d e t e r m i n a r seus efeitos. Esse m é t o d o é a inda mais lógico porquanto a primeira questão, uma vez resol­vida, ajudará a resolver a segunda. De fato, o laço de soli­dariedade que une a causa ao efeito tem u m caráter de re­ciprocidade que não fo i suficientemente reconhecido. Cer­tamente o efeito não pode existir sem sua causa, mas esta, p o r sua vez, t em necessidade de seu efeito. É dela que o efeito tira sua energia, mas ele também lha restitui eventual­mente e, e m vista disso, n ã o p o d e desaparecer sem que ela disso se ressinta 4 . Por e x e m p l o , a r e a ç ã o social q u e const i tu i a pena é devida à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende; mas, por outro lado, ela tem p o r função útil manter esses sentimentos n o mesmo grau de intensidade, pois estes não tardariam a se debilitar se as ofensas q u e so f rem n ã o fossem castigadas 5 . D o m e s m o m o d o , à medida que o meio social torna-se mais comple­x o e mais móvel , as tradições e as crenças estabelecidas são abaladas, a d q u i r e m u m caráter mais indeterminado e mais flexível, e as faculdades de reflexão se desenvolvem; mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para as sociedades e os indivíduos se adaptarem a u m meio mais móvel e mais c o m p l e x o 6 . À m e d i d a que os homens são

REGRAS RELATIVAS Ã EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 99

obrigados a fornecer u m trabalho mais intenso, os p r o d u ­tos desse trabalho tornam-se mais numerosos e de melhor qualidade; mas esses produtos mais abundantes e melho­res são necessár ios para reparar o desgaste ocas ionado por esse t rabalho mais cons ideráve l 7 . Ass im, l o n g e de a causa dos f e n ô m e n o s sociais consistir n u m a antec ipação mental da função que eles são chamados a desempenhar, essa função consiste, ao contrário, pe lo menos n u m b o m número de casos, em manter a causa preexistente da qual eles der ivam; "portanto, descobriremos mais faci lmente a primeira se a segunda já for conhecida*.

Mas, ainda que só e m segundo lugar devamos proce­der á determinação da função, ela não deixa de ser neces­sária para que a expl icação d o f e n ô m e n o seja completa . Com efeito, se a ut i l idade d o fato não é aqui lo que o faz existir, em geral é preciso que ele seja útil para poder se manter. Pois, para ser pre judicial , é suficiente que ele não lenha serventia, u m a vez que, nesse caso, ele custa sem produzir benefíc io a lgum. Portanto, se a generalidade dos fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário, o orça­mento d o organismo estaria e m déficit, a vida social seria impossível . E m c o n s e q ü ê n c i a , para p r o p o r c i o n a r desta uma compreensão satisfatória, é necessário mostrar c o m o os fenômenos que f o r m a m sua substância concorrem en¬tre s i , de m a n e i r a a c o l o c a r a soc iedade e m h a r m o n i a consigo mesma e c o m o exterior. Certamente, a fórmula usual, que define a vida c o m o uma correspondência entre o meio in terno e o m e i o externo, é apenas aprox imada ; no entanto , ela é verdadeira e m geral , e p o r t a n t o , para explicar u m fato de o r d e m vita l , não basta explicar a cau­sa da qual ele depende, é preciso também, ao menos na maior parte dos casos, encontrar a parte que lhe cabe n o estabelecimento dessa harmonia geral.

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

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100 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

I I

Dist inguidas essas duas questões , devemos determi­nar o método pelo qual elas devem ser resolvidas.

A o mesmo t e m p o que é finalista, o método seguido geralmente pelos soc ió logos é essencialmente psicológi­co. Essas duas tendências são solidárias uma da outra. De fato, se a sociedade não é senão u m sistema de meios ins­tituídos pelos h o m e n s t e n d o e m vista certos f ins , esses fins só p o d e m ser i n d i v i d u a i s ; pois , antes da sociedade, não podia haver senão indivíduos. E por tanto d o indiví­d u o que e m a n a m as idéias e as necessidades que deter­m i n a r a m a formação das sociedades, e, se é dele que t u ­d o procede, é necessariamente p o r ele que t u d o deve se explicar. Aliás, não há nada na sociedade senão consciên­cias particulares; é nestas últimas portanto que se acha a fonte de toda a evolução social. Por conseguinte, as leis sociológicas só poderão ser u m corolário das leis mais ge­rais da psicologia; a expl icação suprema da v ida coletiva consistirá e m mostrar c o m o ela decorre da natureza h u ­mana e m geral, seja por dedução direta e sem observação prévia, seja p o r associação à natureza humana depois de feita a observação.

Esses termos são mais o u menos textualmente os que Augusto Comte util iza para caracterizar seu método. "Uma vez, diz ele, que o f e n ô m e n o social, concebido e m totali­dade, não é, no f u n d o , senão um simples desenvolvimento da humanidade, sem nenhuma criação de faculdades quaisquer, tal c o m o estabeleci a n t e r i o r m e n t e , todas as disposições efetivas que a observação sociológica puder sucessivamente revelar deverão portanto se verificar, pelo menos e m germe, nesse t i p o p r i m o r d i a l q u e a b i o l o g i a c o n s t r u i u de a n t e m ã o para a s o c i o l o g i a . " 8 É que o fato d o m i n a n t e da v ida social, segundo ele, é o progresso e,

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por outro lado, o progresso depende de u m fator exclusi­vamente psíquico, a saber, a tendência que leva o h o m e m a desenvolver cada vez mais sua natureza. Os fatos sociais d e r i v a r i a m inc lus ive tão imediatamente da natureza h u ­mana que, nas pr imeiras fases da história, p o d e r i a m ser diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer à ob­servação 9 . É verdade que, c o m o Comte reconhece, é i m ­possível aplicar esse método dedut ivo aos períodos mais avançados da evolução. Mas essa impossibi l idade é pura­mente prática. Deve-se ao fato de a distância entre o p o n ­to de partida e o p o n t o de chegada ser m u i t o grande para q u e o espír i to h u m a n o , se resolvesse p e r c o r r ê - l a sem guia, não corresse o risco de se extraviar 1 0 . Mas a relação entre as leis fundamentais da natureza humana e os resul­tados últimos d o progresso não deixa de ser analítica. As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica desenvolvida. Assim, ainda que as teorias da psi­cologia não sejam suficientes c o m o premissas ao raciocí­nio sociológico, elas são a pedra de toque capaz de p r o ­var sozinha a validade das proposições indut ivamente es­tabelecidas. "Nenhuma le i de sucessão social, diz Comte, indicada pelo método histórico, mesmo c o m toda a auto­r i d a d e poss íve l , deverá ser f i n a l m e n t e a d m i t i d a s e n ã o após ter sido racionalmente ligada, de uma maneira direta ou indireta, mas sempre incontestável, à teoria positiva da natureza h u m a n a . " 1 1 Portanto é sempre a psicologia que terá a última palavra.

Tal é igualmente o método seguido p o r Spencer. Se­gundo ele, os dois fatores primários dos fenômenos sociais são o meio cósmico e a constituição física e moral d o i n d i ­v íduo 1 2 . Ora, o p r i m e i r o não p o d e ter influência sobre a sociedade a não ser através d o segundo, que acaba sendo assim o motor essencial da evolução social. Se a sociedade se forma, é para permit ir ao indivíduo realizar sua nature-

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za, e todas as transformações pelas quais ela passou não têm c o m o único objeto tornar essa realização mais fácil e mais completa. É em vir tude desse princípio que, antes de proceder a a lguma pesquisa sobre a organização social , Spencer acreditou dever dedicar todo o p r i m e i r o t o m o de seus Princípios de sociologia ao estudo d o h o m e m pr imi t i ­vo físico, emocional e intelectual. "A ciência da sociologia, diz ele, parte das unidades sociais, submetidas às condições que vimos, constituídas física, emocional e intelectualmen­te, e de posse de certas idéias cedo adquiridas e dos senti­mentos correspondentes." 1 3 E é nestes dois sentimentos, o temor dos vivos e o temor dos mortos, que ele encontra a o r i g e m d o governo político e d o g o v e r n o re l ig ioso 1 4 . Ele admite, é verdade, que, uma vez formada, a sociedade re­age sobre os indivíduos 1 5 . Mas disso não se segue que ela tenha o poder de engendrar diretamente o menor fato so­cial ; ela n ã o t e m eficácia causal desse p o n t o de vista, a não ser p o r intermédio das mudanças q u e determina no indivíduo. Portanto é sempre da natureza h u m a n a , seja p r i m i t i v a , seja der ivada, que t u d o decorre . Aliás, a a ç ã o que o corpo social exerce sobre seus membros nada pode ter de especí f ico , já que os f ins polít icos nada são e m si mesmos, sendo uma simples expressão resumida dos fins i n d i v i d u a i s 1 6 . Ela só pode ser portanto uma espécie de r e ­torno da atividade privada a si própria. Sobretudo, não s e percebe e m que pode consistir tal ação nas sociedades i n ­dustriais, que têm precisamente por objeto restituir o i n d i ­víduo a si mesmo e a seus impulsos naturais, desembara-çando-o de toda coerção social.

Tal princípio não está apenas na base dessas grandes doutr inas de sociologia geral ; ele inspira igualmente u m número m u i t o grande de teorias particulares. É assim q u e se e x p l i c a a o r g a n i z a ç ã o d o m é s t i c a pe los s e n t i m e n t o s q u e os pais têm e m relação aos f i lhos e os segundos a o s

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primeiros; a instituição d o casamento, pelas vantagens que apresenta para os esposos e sua descendência; a pena, pe­la cólera provocada n o indivíduo p o r toda lesào grave a seus interesses. Toda a vida econômica, tal como a conce­b e m e a expl icam os economistas, sobretudo os da escola or todoxa, depende, e m última instância, deste fator pura­mente individual : o desejo de riqueza. Trata-se de explicar a moral? Faz-se dos deveres d o indivíduo para cons igo mesmo a base da ética. A religião? Vê-se nela u m produto das impressões que as grandes forças da natureza ou certas personalidades eminentes despertam no homem, etc., etc.

Mas tal método só é aplicável aos fenômenos socioló­gicos desnaturando-os. Para ter a prova disso, basta repor­tar-se à definição que demos desses fenômenos. Visto que sua característica essencial consiste no poder que eles têm de exercer, de fora, uma pressão sobre as consciências i n ­d iv iduais , conclui-se que eles não d e r i v a m destas e, p o r conseguinte, a sociologia não é u m corolário da ps icolo­gia. Esse poder coercitivo testemunha *que eles e x p r i m e m uma natureza diferente da nossa, uma vez que só pene­tram e m nós pela força ou , pelo menos, pesando mais o u menos sobre nós*. Se a vida social fosse apenas u m p r o ­l o n g a m e n t o d o ser i n d i v i d u a l , não a ver íamos remontar deste m o d o à sua fonte e invadi- la impetuosamente. Se a autoridade diante da qual se incl ina o indivíduo, q u a n d o este age, sente o u pensa socialmente, o domina a tal p o n ­to, conclui-se que ela **é u m p r o d u t o de forças que o su­peram e que ele n ã o poder ia , c o n s e q ü e n t e m e n t e , e x p l i ­car**. Não é dele que p o d e p r o v i r essa pressão exter ior

* " q u e eles p r o v ê m de a l g o q u e n ã o apenas está fora de nós , mas I , u n h e m é d e u m a natureza d i f e r e n t e d a nossa, já q u e lhe é s u p e r i o r " . I III'., p . 23.)

** " n ã o e m a n a dele , mas é u m p r o d u t o de forças q u e o s u p e r a m e que, p o r t a n t o , n ã o p o d e m ser d e d u z i d a s de le" . (R.P., p . 23.)

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que ele sofre, ' p o r t a n t o n ã o é o que se passa dentro de­le que pode explicá-la*. É verdade que não somos incapa­zes de coagir a nós mesmos; podemos conter nossas ten­dências, nossos hábitos, até mesmo nossos instintos, e de­ter seu desenvolv imento p o r u m ato de inibição. Mas os m o v i m e n t o s i n i b i d o r e s n ã o p o d e r i a m ser c o n f u n d i d o s c o m aqueles que const i tuem a coerção social. O processo dos p r i m e i r o s é centr í fugo; o dos segundos, centr ípeto . Uns são elaborados na consc iênc ia i n d i v i d u a l e t e n d e m e m seguida a exteriorizar-se; outros são primeiramente ex­teriores ao indivíduo e t e n d e m e m seguida a modelá - lo desde fora à sua i m a g e m . A in ib ição , se q u i s e r e m , é o m e i o pe lo qual a c o e r ç ã o social p r o d u z seus efeitos psí­quicos; ela não é essa coerção.

Ora, descartado o indivíduo, resta apenas a socieda­de; é p o r t a n t o na natureza da própria sociedade que se deve buscar a expl icação da vida social. C o m o ela supera inf ini tamente o indivíduo tanto n o t e m p o c o m o no espa­ço , concebe-se, c o m efeito, que seja capaz de i m p o r - l h e as maneiras de agir e de pensar que consagrou p o r sua autoridade. Essa pressão, sinal dist int ivo dos fatos sociais, é aquela que todos exercem sobre cada u m .

Mas, dirão, visto que os únicos e lementos de que é f o r m a d a a sociedade são indivíduos, a o r i g e m p r i m e i r a dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica. Racio­cinando deste m o d o , pode-se também facilmente estabele­cer q u e os f e n ô m e n o s b io lóg icos se e x p l i c a m anali t ica­mente pelos fenômenos inorgânicos. C o m efeito, é bastan­te certo que na célula viva há apenas moléculas de matéria bruta. Só que estas se encontram ali associadas, e essa as­sociação é que é a causa dos fenômenos novos que carac­t e r i z a m a v i d a e cu jo g e r m e é imposs ível descobr i r e m

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 105

q u a l q u e r u m dos e lementos associados. U m t o d o n ã o é idêntico à soma de suas partes, ele é a lguma outra coisa cujas propr iedades d i f e r e m daquelas q u e apresentam as partes de q u e é f o r m a d o . A a s s o c i a ç ã o n ã o é, c o m o se acreditou algumas vezes, u m f e n ô m e n o p o r si mesmo es­téril, que consiste s implesmente e m colocar e m relações exter iores fatos real izados e p r o p r i e d a d e s const i tuídas . Não é ela, ao contrário, a fonte de todas as novidades que se produziram sucessivamente n o curso da evolução geral das coisas? Que diferenças existem entre os organismos i n ­feriores e os demais, entre o ser v i v o organizado e o sim­ples plastídio, entre este e as moléculas inorgânicas que o c o m p õ e m , senão diferenças de associação? T o d o s esses seres, e m última análise, decompõem-se e m elementos da mesma natureza; mas esses elementos são, aqui , justapos­tos, a l i , associados; aqui , associados de u m a maneira, ali , de outra. É lícito inclusive perguntar se essa lei não pene­tra até o m u n d o minera l , e se as diferenças que separam os corpos inorganizados não têm a mesma or igem.

E m v i r t u d e desse princípio, a sociedade n ã o é u m a simples soma de indivíduos, mas o sistema f o r m a d o pela associação deles representa uma realidade específica que tem seus caracteres próprios. Certamente, nada de coletivo pode se produzir se consciências particulares não são da­das; mas essa condição necessária não é suficiente. E pre­ciso t a m b é m que essas consc iênc ias estejam associadas, combinadas, e combinadas de certa maneira; é dessa com­binação que resulta a vida social e, p o r conseguinte, é essa combinação que a explica. A o se agregarem, ao se pene­trarem, ao se fundi rem, as almas individuais dão or igem a u m ser, psíquico se quiserem, mas que constitui uma i n d i ­vidualidade psíquica de u m gênero n o v o 1 7 . Portanto, é na natureza dessa individual idade, não na das unidades com­ponentes, que se devem buscar as causas próximas e de-

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t e r m i n a n t e s dos fatos q u e nela se p r o d u z e m . O g r u p o pensa, sente e age de maneira bem diferente d o que o fa­riam seus membros, se estivessem isolados. Assim, se par­t i rmos desses últimos, nada poderemos compreender d o que se passa no grupo. Em uma palavra, há entre a psico­logia e a sociologia a mesma solução de cont inuidade que entre a b io log ia e as c iências f ís ico-químicas. E m conse­qüência, toda vez que u m fenômeno social é diretamente expl icado por u m fenômeno psíquico, pode-se ter a certe­za de que a explicação é falsa.

Responderão talvez que, se a sociedade, uma vez for­mada, é de fato a causa próxima dos f e n ô m e n o s sociais, as causas que determinaram sua formação são de nature­za psicológica. Concedem que, q u a n d o os indivíduos es­tão associados, sua associação pode dar o r i g e m a uma v i ­da nova, mas dirão que ela só pode ocorrer por razões i n ­div iduais . Todavia , e m realidade, p o r mais longe que se remonte na história, o fato da associação é o mais obriga­tório de todos; pois ele é a fonte de todas as outras o b r i ­gações . Por m e u nascimento, estou obrigatoriamente liga­d o a u m p o v o d e t e r m i n a d o . Diz-se que, daí p o r diante , uma vez adulto, d o u minha aquiescência a essa obrigação pe lo simples fato de cont inuar a viver e m m e u país. Mas que importa? Essa aquiescência não retira ao fato seu ca­ráter imperat ivo . Uma pressão aceita e suportada de boa vontade n ã o deixa de ser u m a pressão. Aliás, qua l p o d e ser a importância de tal adesão? Em p r i m e i r o lugar, ela é forçada, pois, na imensa maioria dos casos, nos é material e moralmente impossível despojar-nos de nossa nacionali­dade; *tal mudança é inclusive considerada, geralmente, uma apostasia*. Em segundo lugar, ela não p o d e concer­n i r ao passado que n ã o p ô d e ser c o n s e n t i d o e que , n o

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

REGRAS RELA TIVAS À EXPLICA ÇÃO DOS PA TOS SOCIAIS 107

entanto , d e t e r m i n a o presente: eu não quis a e d u c a ç ã o que recebi ; ora, é ela que , mais d o que q u a l q u e r outra causa, me f ixa ao solo natal . E n f i m , ela n ã o poder ia ter valor moral em relação ao futuro , na medida e m que este é desconhecido. N e m sequer c o n h e ç o todos os deveres que p o d e m me i n c u m b i r u m dia o u outro e m minha qua­l idade de cidadão; c o m o poder ia eu aquiescer a eles de antemão? Ora , t u d o o q u e é obr igatór io , c o n f o r m e de­monstramos, t em sua fonte fora d o indivíduo. Assim, en­quanto não sairmos da história, o fato da associação apre­sentará o mesmo caráter que os demais e, c o n s e q ü e n t e ­mente, explica-se da mesma maneira. Por outro lado, co­m o todas as sociedades nasceram de outras sociedades sem s o l u ç ã o de c o n t i n u i d a d e , p o d e m o s estar certos de que, n o curso de toda a evolução social, não h o u v e u m m o m e n t o e m que os indivíduos tenham realmente neces­sitado del iberar para saber se ent rar iam o u n ã o na v ida coletiva, e se nesta e não naquela. Para que a questão p u ­desse se colocar, seria preciso remontar até as origens p r i ­meiras de toda sociedade. Mas as soluções, sempre d u v i ­dosas, que p o d e m ser dadas a tais problemas , de m o d o n e n h u m p o d e r i a m afetar o m é t o d o segundo o q u a l de­v e m ser tratados os fatos dados na história. Não precisa­mos portanto discuti-las.

Mas seria u m estranho equívoco sobre nosso pensa­mento se, d o que precede, tirassem a conclusão de que a sociologia, para nós, deve o u mesmo p o d e fazer abstra­ção d o h o m e m e de suas faculdades. A o contrário, não há dúvida de que os caracteres gerais da natureza h u m a n a e n t r a m n o t rabalho de e laboração de que resulta a v ida social. Só que não são eles que a suscitam n e m que lhe dão sua forma especial; eles apenas a tornam possível. As representações , as e m o ç õ e s , as tendências coletivas não têm p o r causas geradoras certos estados da consc iênc ia

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dos indivíduos, mas sim as condições e m que se encontra o corpo social e m seu conjunto. Certamente, estas só p o ­d e m se realizar se as naturezas indiv iduais não f o r e m re-fratárias a elas; mas as naturezas individuais são apenas a matér ia i n d e t e r m i n a d a q u e o f a t o r s o c i a l d e t e r m i n a e transforma. Sua contribuição consiste exclusivamente e m estados m u i t o gerais, e m predisposições vagas e, por con­seguinte, plásticas que, por si mesmas, n ã o p o d e r i a m ad­q u i r i r as formas def inidas e complexas q u e caracterizam os fenômenos sociais, se outros agentes não interviessem.

Que abismo, p o r exemplo , entre os sentimentos que o h o m e m experimenta diante de forças superiores à sua e a instituição religiosa, c o m suas crenças, suas práticas tão variadas e complicadas, sua organização material e moral ; entre as c o n d i ç õ e s psíquicas da s impatia que dois seres d o mesmo sangue sentem u m pelo o u t r o 1 8 e esse emara­nhado de regras jurídicas e morais que d e t e r m i n a m a es­t rutura da família, as re lações das pessoas entre si, das coisas c o m as pessoas, e tc ! Vimos que, mesmo quando a sociedade se reduz a u m a mult idão n ã o organizada, os sent imentos co le t ivos q u e nela se f o r m a m p o d e m , n ã o apenas não se assemelhar, mas ser opostos à média dos sent imentos i n d i v i d u a i s . Q u ã o mais cons ideráve l ainda deve ser a distância q u a n d o a pressão que o indivíduo so­fre é a de uma sociedade regular, na qual se acrescenta, á ação dos contemporâneos , a das gerações anteriores e d a tradição! Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais só p o d e por tanto deixar escapar t u d o o que e l e s têm de específico, isto é, de social.

O que mascarou aos olhos de tantos sociólogos a in­suficiência desse métod, é que freqüentemente, tomando o efeito pela causa, lhes ocorreu atribuir c o m o condições d e ­terminantes dos f enômenos sociais certos estados psíqui­cos, relativamente definidos e especiais, mas que, na v e r d a -

REGRAS REI ATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FA TOS SOCIAIS 109

de, são a conseqüência deles. Assim, considerou-se inato no h o m e m certo sentimento de religiosidade, u m certo mí­nimo de ciúme sexual, de piedade f i l ial , de amor paterno, e tc , e deste m o d o se quis explicar a religião, o casamento, a família. Mas a história mostra que essas inclinações, longe de serem inerentes à natureza humana, o u estão totalmente ausentes em certas circunstâncias sociais, o u , de uma socie­dade a outra, apresentam tais variações que o resíduo obt i ­d o ao se e l iminarem todas essas diferenças, o único a po­der ser considerado como de or igem psicológica, se reduz a algo vago e esquemático que deixa a uma distância inf i ­nita os fatos a serem explicados. É que esses sentimentos, longe de serem a base da organização colet iva, resultam dela. Inclusive não está de todo provado que a tendência à sociabilidade tenha sido, desde a origem, u m instinto con­gênito ao gênero h u m a n o . É m u i t o mais natural ver nele u m p r o d u t o da v ida social, que lentamente se organizou em nós; pois é u m fato de observação que os animais são sociáveis o u não conforme as disposições de seus hábitats os obr iguem à vida em c o m u m ou dela os afastem. E cabe ainda acrescentar que, mesmo entre essas inclinações mais determinadas e a realidade social, a distância permanece considerável.

Existe aliás u m m e i o de isolar mais o u menos c o m ­pletamente o fator psicológico, de maneira a poder preci­sar a ex tensão de sua ação : é saber de que forma a raça afeta a evolução social. C o m efeito, os caracteres étnicos são de orciem orgânico-psíquica. A vida social deve por­ia nto variar quando eles variam, se os fenômenos psicoló­gicos t iverem sobre a sociedade a eficácia causal que lhes atribuem. Ora, não conhecemos n e n h u m fenômeno social que esteja colocado sob a dependência inconteste da raça. (lertamente, não poderíamos atr ibuir a essa proposição o valor de uma lei ; mas podemos pe lo menos afirmá-la co-

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m o u m fato constante de nossa prática. Formas de organi­zação as mais diversas verificam-se em sociedades da mes­ma raça, enquanto similitudes impressionantes observam-se entre sociedades de raças diferentes. A cidade exist iu tanto entre os fenícios c o m o entre os romanos e os gregos; vemo-la e m via de formação entre os cabilas. A família pa­triarcal era quase tão desenvolvida entre os judeus quanto entre os h indus , mas ela não se verif ica entre os eslavos, que, não obstante, são de raça ariana. E m compensação, o t i p o f a m i l i a r que aí se encontra t a m b é m existe entre os árabes . A família materna e o clã se o b s e r v a m e m toda parte. Certos detalhes das provas judiciárias, das cerimônias nupciais são os mesmos nos povos mais dessemelhantes d o p o n t o de vista étnico. Se isso ocorre, é porque a contr i ­buição psíquica é demasiado geral para predeterminar o curso dos fenômenos sociais. Como essa contribuição não implica que haja uma forma social e não outra, ela não p o ­de explicar nenhuma. É verdade que há u m certo número de fatos que se costuma atribuir à influência da raça. É as­s im que se expl ica , p o r e x e m p l o , p o r que o desenvolv i ­m e n t o das letras e das artes f o i tão rápido e intenso e m Atenas, e tão lento e medíocre e m Roma. Mas essa inter­pretação dos fatos, apesar de clássica, jamais f o i metodica­mente demonstrada; ela parece tirar quase toda a sua au­toridade da mera tradição. Não se examinou sequer se se­ria possível uma explicação sociológica dos mesmos fenô­menos , e estamos c o n v e n c i d o s de q u e esta poder ia ser tentada c o m sucesso. Em suma, quando se relaciona com tal rapidez o caráter artístico da civilização ateniense a fa­culdades estéticas congênitas, procede-se mais o u menos c o m o fazia a Idade Média q u a n d o explicava o fogo pelo flogisto e os efeitos d o ópio p o r sua vir tude dormit iva .

Enf im, se realmente a evolução social tivesse sua o r i ­g e m na constituição psicológica d o h o m e m , não se perce-

REGRAS REIATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 111

be c o m o ela ter ia p o d i d o se p r o d u z i r . Pois e n t ã o seria preciso admitir que ela t e m por m o t o r a lgum impulso i n ­terior à natureza humana . Mas qual poder ia ser esse i m ­pulso? Seria aquela espécie de instinto de que fala Comte e que leva o h o m e m a realizar cada vez mais sua nature­za? Mas isso é responder à pergunta c o m a pergunta e ex­plicar o progresso por uma tendência inata ao progresso, verdadeira ent idade metafísica cuja existência , de resto, nada demonst ra ; po i s as e s p é c i e s animais , inc lus ive as mais elevadas, de maneira nenhuma são movidas pela ne­cessidade de progredir , e, mesmo entre as sociedades h u ­manas, há muitas que se c o m p r a z e m e m permanecer i n ­def inidamente estacionárias. Seria esse impulso , como pa­rece acreditar Spencer, a necessidade de uma maior fel ici­dade, que as formas cada vez mais complexas da civil iza­ção estariam destinadas a realizar sempre mais completa­mente? Seria preciso e n t ã o estabelecer que a fe l i c idade aumenta c o m a civilização, e expusemos alhures todas as dificuldades que essa hipótese levanta 1?. Não é tudo . A i n ­da que u m o u o u t r o desses dois postulados devesse ser a d m i t i d o , n e m p o r isso o d e s e n v o l v i m e n t o histórico se tornaria inteligível; pois a explicação resultante seria pura­mente finalista, e mostramos mais acima que os fatos so­ciais, assim c o m o todos os f e n ô m e n o s naturais, não são explicados pe lo simples fato de se mostrar que eles ser­vem a a lgum f i m . Q u a n d o se p r o v o u que as organizações sociais cada vez mais e laboradas q u e se sucederam ao longo da história t iveram p o r efeito satisfazer sempre mais esta o u aquela de nossas incl inações fundamentais , n e m por isso se fez compreender c o m o elas se produzi ram. O lato de serem úteis n ã o nos ensina o q u e as fez existir . Ainda q u e se explicasse c o m o chegamos a imaginá-las , traçando c o m o que o p lano antecipado capaz de nos re­presentar os serviços que poderíamos esperar delas - e o

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112 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

problema já é difícil - , o desejo d o qual elas seriam assim o objeto não teria a v i r tude de tirá-las d o nada. E m uma palavra, admit indo-se que essas incl inações são os meios necessários para atingir o objet ivo perseguido, a questão permanece inteira: como, isto é, de que e através de que esses meios f o r a m constituídos?

Chegamos por tanto à regra seguinte: A causa deter­minante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais antecedentes, e não entre os estados da consciência individual. Por outro lado, concebe-se faci lmente que t u ­d o o que precede se aplica tanto à determinação da f u n ­ç ã o q u a n t o à da causa. A f u n ç ã o de u m fato social n ã o pode ser senão social, isto é, ela consiste na produção de e fe i tos s o c i a l m e n t e úte is . C e r t a m e n t e p o d e o c o r r e r , e acontece de fato, que, p o r via indireta, o fato social sirva também ao indivíduo. Mas esse resultado fel iz não é sua razão de ser imediata. Podemos portanto completar a p r o ­posição precedente, d izendo: A função de um fato social deve sempre ser buscada na relação que ele mantém com algum fim social.

Foi por terem os sociólogos ignorado freqüentente es­sa regra e considerado os fenômenos sociais de u m ponto de vista demasiado psicológico, que suas teorias afiguram-se a numerosos espíritos excessivamente vagas, vacilantes e distantes da natureza especial das coisas que eles crêem explicar. O historiador, e m particular, que vive na i n t i m i ­dade da realidade social, não pode deixar de sentir forte­mente o quanto essas interpretações demasiado gerais são incapazes de coincidir c o m os fatos; e certamente fo i i s s o que p r o d u z i u , em parte, a desconfiança que a história s e ­guidamente demonstra e m relação à sociologia. O que não quer dizer, por certo, que o estudo dos fatos psíquicos não seja indispensável ao sociólogo. Se a vida coletiva não d e ­riva da vida indiv idual , uma e outra estão intimamente re-

REGRAS RELATIVASÃ EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 113

lacionadas; se a segunda não pode explicar a primeira, ela pode, pe lo menos, facilitar sua explicação. Conforme mos­tramos, é incontestável , e m p r i m e i r o lugar, que os fatos sociais são produzidos por uma elaboração sui generis de fatos psíquicos. Além disso, essa própria e laboração não deixa de ter analogia c o m a que se p r o d u z e m cada cons­ciência i n d i v i d u a l e que transforma progressivamente os elementos primários (sensações, reflexos, instintos) de que ela é or ig ina lmente constituída. Não é sem razão que se pôde dizer d o eu que ele próprio constituía uma socieda­de, tanto quanto o organismo, ainda que de outra manei­ra, e os ps icólogos há m u i t o já mostraram a importância d o fator associação para a explicação da vida d o espírito. Uma cultura psicológica, mais ainda que uma cultura bio­lógica, constitui portanto para o sociólogo uma propedêu­tica necessária ; mas ela só lhe será útil se ele libertar-se dela após tê-la recebido e a superar, completando-a p o r uma cultura especialmente sociológica. É preciso que ele renuncie a fazer da psicologia, de certo m o d o , o centro de suas operações , o p o n t o de partida e de chegada de suas incursões no m u n d o social, e que se estabeleça no núcleo mesmo dos fatos sociais, a f i m de observá-los de frente e sem intermediário, solicitando à ciência d o indivíduo ape­nas uma preparação geral e, se preciso, úteis sugestões 2 0 .

I I I

U m a vez q u e os fatos de m o r f o l o g i a social são da mesma natureza que os f e n ô m e n o s fisiológicos, eles de­vem se explicar segundo a mesma regra que acabamos de enunciar. Todavia, de t u d o o que precede resulta que eles desempenham u m papel preponderante na v ida coletiva e, por conseguinte, nas explicações sociológicas.

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C o m efeito, se a condição determinante dos fenôme­nos sociais consiste, c o m o mostramos, n o fato mesmo da associação, eles devem variar com as formas dessa associa­ção, isto é, conforme as maneiras como são agrupadas as partes constituintes da sociedade. Por outro lado, já que o conjunto determinado, que os elementos de toda natureza q u e e n t r a m na c o m p o s i ç ã o de u m a soc iedade f o r m a m por sua reunião, consti tui o meio interno dessa sociedade, assim c o m o o con junto dos elementos anatômicos , pela m a n e i r a c o m o e s t ã o d i s p o s t o s n o e s p a ç o , c o n s t i t u i o meio interno dos organismos, poderemos dizer: A origem primeira de todo processo social de alguma importância deve ser buscada na constituição do meio social interno.

E possível até precisar a inda mais . D e fato , os ele­m e n t o s q u e c o m p õ e m esse m e i o s ã o de dois t i p o s : há coisas e pessoas. Entre as coisas, é preciso inc lu i r , além dos objetos materiais que são incorporados à sociedade, os produtos da atividade social anterior, o direito constituí­do, os costumes estabelecidos, os m o n u m e n t o s literários, artísticos, etc. Mas é claro que não é n e m de uns n e m de outros que pode provi r o impulso que determina as trans­formações sociais; pois eles não contêm nenhuma capaci­dade motora . Seguramente, há que levá-los e m considera­ção nas expl icações que tentarmos. C o m efeito, eles pe­sam de alguma forma sobre a evolução social, cuja veloci­dade e m e s m o a direção var iam c o n f o r m e o que forem; mas eles não possuem nada daqui lo que é necessário pa­ra c o l o c á - l a e m m o v i m e n t o . Eles são a matéria sobre a qual se apl icam as forças vivas da sociedade, mas, p o r si mesmos, não l iberam nenhuma força viva. Resta portanto, c o m o fator ativo, o meio propr iamente h u m a n o .

O esforço p r i n c i p a l d o soc ió logo será por tanto pro­curar d e s c o b r i r as d i ferentes p r o p r i e d a d e s desse m e i o suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenô-

REGRAS RELATIVASÀ EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 115

menos sociais. Até o presente, encontramos duas séries de caracteres que correspondem de uma maneira eminen­te a essa condição: o número das unidades sociais o u , co­m o dissemos também, o v o l u m e da sociedade, e o grau de concentração da massa, o u o que denominamos a den­sidade dinâmica. Por esta última palavra, convém enten­der não o estreitamento puramente material d o agregado que não p o d e ter efei to se os indivíduos, o u melhor , os grupos de indivíduos, permanecem separados por vazios morais , mas o estreitamento m o r a l d o qual o precedente não é senão o auxiliar e, de maneira gastante geral, a con­seqüência. A densidade dinâmica pode ser definida, para u m v o l u m e i g u a l , e m f u n ç ã o d o n ú m e r o de indivíduos que estão efetivamente em relações não apenas comerciais, mas morais; o u seja, que não apenas t rocam serviços o u se fazem concorrência, mas que v i v e m uma vida c o m u m . Pois, c o m o as relações puramente econômicas de ixam os homens exteriores uns aos outros, essas relações p o d e m ser m u i t o freqüentes sem com isso part ic iparem da mes­ma existência coletiva. Os negócios contratados por cima das fronteiras que separam os povos não fazem c o m que essas fronteiras não existam. Ora, a vida c o m u m só pode ser afetada pelo número dos que nela co laboram eficaz­mente. Por isso, o que exprime melhor a densidade dinâ­mica de u m p o v o é o grau de coalescência dos segmentos sociais. Pois, se cada agregado parc ia l f o r m a u m t o d o , uma individual idade distinta, separada das outras por uma barre i ra , é p o r q u e a a ç ã o de seus m e m b r o s , e m gera l , permanece aí localizada; se, ao contrário, essas socieda­des parciais se c o n f u n d e m todas no seio da sociedade to­tal o u t e n d e m a nela se c o n f u n d i r , é p o r q u e , na mesma medida, *o círculo da vida social se ampl iou* .

* "a v i d a social se g e n e r a l i z o u " . (R.P., p . 32.)

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Q u a n t o à densidade mater ia l - se entendermos p o r isso n ã o apenas o número de habitantes p o r unidade de superfície, mas o desenvolvimento das vias de comunica­ç ã o e de transmissão - , ela marcha ordinariamente n o mesmo passo que a densidade dinâmica e, em geral, p o ­de servir para medi- la . Pois, se as diferentes partes da p o ­p u l a ç ã o t e n d e m a se a p r o x i m a r , é inevi táve l q u e elas abram caminhos que p e r m i t a m essa aproximação, e, p o r outro lado, só p o d e m se estabelecer relações entre pontos distantes da massa socia l se essa dis tância n ã o for u m obstáculo, isto é, se ela de fato for supr imida . Há n o en­tanto e x c e ç õ e s 2 1 , e incorreríamos e m sérios erros se j u l ­gássemos sempre a concentração mora l de uma socieda­de c o m base n o grau de c o n c e n t r a ç ã o mater ia l que ela apresenta. As estradas, as vias férreas, e t c , p o d e m servir mais ao m o v i m e n t o dos negócios d o que à fusão das p o ­pulações , que elas então só e x p r i m e m m u i t o imperfe i ta­mente . É o caso da Inglaterra, cuja densidade material é superior à da França, e onde, não obstante, a coalescência dos segmentos é m u i t o menos avançada, *como demons­tra a persistência d o espírito local e da v ida regional*.

Mostramos alhures c o m o t o d o aumento no v o l u m e e na densidade dinâmica das sociedades, ao tornar a vida so­cial mais intensa, ao estender o horizonte que cada indiví­duo abarca com seu pensamento e preenche com sua ação, m o d i f i c a p r o f u n d a m e n t e as c o n d i ç õ e s f u n d a m e n t a i s da existência coletiva. Não precisamos falar de novo da aplica­ção que fizemos então desse princípio. Acrescentemos ape­nas que ele nos serviu para tratar não somente a questão ainda m u i t o geral que era o ob jeto daquele estudo, mas muitos outros problemas mais específicos, e que pudemos assim verificar sua exatidão por u m número já respeitável de experiências. Todavia, estamos longe de pensar ter des-

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

REGRAS RELATIVASÀ EXPLICAÇÃO DOS PATOS SOCIAIS 117

coberto todas as particularidades do meio social suscetíveis de desempenhar u m papel na explicação dos fatos sociais. T u d o o que podemos dizer é que essas são as únicas que percebemos e que não fomos levados a buscar outras.

Mas essa espécie de preponderância que atribuímos ao m e i o social e, mais particularmente, ao meio humano , não impl ica que se deva ver aí algo como u m fato último e absoluto para além d o qual não é preciso remontar . É evidente, ao contrário, que o estado n o qual se encontra esse m e i o a cada m o m e n t o da história depende ele pró­p r i o de causas sociais, algumas inerentes à própria socie­dade, enquanto outras se devem às ações e reações entre essa sociedade e suas v iz inhas . Aliás, a c iênc ia n ã o co­nhece causas pr imeiras , n o sent ido absoluto da palavra. Para ela, u m fato é primário simplesmente q u a n d o for su­f ic ientemente geral para expl icar u m grande número de o u t r o s fatos. Ora , o m e i o social é cer tamente u m fator desse gênero ; pois as mudanças que nele se p r o d u z e m , sejam quais f o r e m suas causas, r e p e r c u t e m e m todas as direções d o organismo social e não p o d e m deixar de afe­tar e m maior ou menor grau todas as suas funções.

O que acabamos de dizer d o meio geral da socieda­de p o d e ser d i t o dos m e i o s e s p e c í f i c o s a cada u m dos grupos particulares que ela encerra. Por exemplo , confor­me a família for mais o u menos volumosa, mais o u menos voltada para si mesma, m u i t o diferente será a vida domés­tica. D o mesmo m o d o , se as corporações profissionais se organizarem de maneira a que cada uma delas se r a m i f i ­que e m toda a extensão d o território, e m vez de permane­cer encerrada, c o m o outrora, nos limites de uma cidade, a ação que irão exercer será m u i t o diferente da que exerce­ram outrora. De uma maneira mais geral, a vida profissio­nal será completamente diferente se o meio próprio a ca­da prof issão for for temente consti tuído o u se sua trama

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for f r o u x a , c o m o é ho je . T o d a v i a , a a ç ã o desses meios particulares não poderia ter a importância d o meio geral; pois eles próprios submetem-se à influência deste último. É sempre a este que se deve voltar . E a pressão que ele exerce sobre os grupos parciais que faz variar a constitui­ção destes.

Ta l c o n c e p ç ã o d o m e i o social c o m o fator d e t e r m i ­nante da e v o l u ç ã o co le t iva é da mais alta importância . Pois, se a rejeitarmos, a sociologia será incapaz de estabe­lecer qualquer relação de causalidade.

De fato , descartada essa o r d e m de causas, n ã o há condições concomitantes das quais possam depender os fenômenos sociais; pois, se o meio social externo, isto é, aquele formado pelas sociedades ao redor, é suscetível de exercer a lguma ação , só a exerce sobre as f u n ç õ e s q u e têm por objeto o ataque e a defesa; além disso, ele só p o ­de fazer sentir sua influência por intermédio d o meio so­cial interno. As principais causas d o desenvolvimento his­tórico não estariam por tanto entre as coisas, circunfusas, mas estariam todas no passado. Elas próprias fariam parte desse d e s e n v o l v i m e n t o , d o q u a l c o n s t i t u i r i a m s imples­mente fases mais antigas. Os acontecimentos atuais da v i ­da social d e r i v a r i a m n ã o d o estado atual da sociedade, mas dos acontecimentos anteriores, dos precedentes his­tóricos, e as explicações sociológicas consistiriam exclusi­vamente e m ligar o presente ao passado.

Isso p o d e parecer, de fato, suficiente. Não se costu­ma dizer que a história tem precisamente por objeto enca­dear os acontecimentos segundo sua o r d e m de sucessão? *Mas é impossível conceber de que maneira o estado e m

* "Mas, se é cer to q u e t o d a m u d a n ç a , u m a vez real izada, d e v e ter r e p e r c u s s õ e s q u e ela e x p l i c a , o q u e n ã o se p e r c e b e , nessa c o n c e p ç ã o , é de q u e m a n e i r a a própria m u d a n ç a é poss íve l . " (R R, p . 34.)

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 119

que a civilização se encontra n u m m o m e n t o dado poderia ser a causa determinante d o estado seguinte. As etapas q u e a h u m a n i d a d e percorre sucessivamente não se en­g e n d r a m umas às outras .* C o m p r e e n d e - s e b e m q u e os progressos realizados numa época determinada na ordem jurídica, econômica , política, etc, t o r n e m possíveis novos progressos; mas e m que os pr imeiros p r e d e t e r m i n a m os segundos? Eles são u m p o n t o de part ida q u e p e r m i t e ir mais adiante; mas o que é que nos incita a ir mais adian­te? Seria preciso admitir então uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resul­tados adquiridos, seja para se realizar completamente, se­ja para aumentar sua fel icidade, e o objeto da sociologia seria descobrir a o r d e m segundo a qua l se desenvolveu essa tendência. Mas, " s e m voltar às di f iculdades que se­melhante hipótese impl ica** , a le i que e x p r i m e esse de­senvolvimento nada teria de causal. Uma relação de cau­salidade, c o m efeito, só pode se estabelecer entre dois fa­tos dados ; ora, tal t endênc ia , que se s u p õ e ser a causa desse desenvolvimento, não é dada; é apenas postulada e construída pelo espírito c o m base nos efeitos que se atri­b u e m a ela. Trata-se de uma espécie de faculdade motora que imaginamos sob o m o v i m e n t o , a f i m de expl icá- lo ; mas a causa eficiente de u m m o v i m e n t o só pode ser u m o u t r o m o v i m e n t o , n ã o u m a v i r t u a l i d a d e desse g ê n e r o . Portanto, t u d o o que obtemos experimentalmente, aqui , é u m a série de mudanças entre as quais não existe vínculo causal. O estado antecendente não p r o d u z o conseqüen­te, mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica. Assim, nessas condições, toda previsão científica é impos­sível. Podemos perfeitamente dizer c o m o as coisas se su­cederam até o presente, não e m que o r d e m elas se suce-

** E l e m e n t o q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

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derão d a q u i p o r diante, p o r q u e a causa de que suposta­mente d e p e n d e m não é cientificamente determinada, n e m determináve l . G e r a l m e n t e , é v e r d a d e , admite-se q u e a evolução prosseguirá n o mesmo sentido d o passado, mas isso e m v i r t u d e de u m simples pos tu lado . Nada nos ga­rante que os fatos realizados e x p r i m a m de maneira bas­tante c o m p l e t a a natureza dessa t e n d ê n c i a para que se possa prejulgar o termo a que ela aspira c o m base naque­les pelos quais passou sucessivamente. Inclusive, por que seria retilínea a direção que ela segue e imprime?

Eis aí, de fato, a razão de o número das relações cau­sais, estabelecidas pelos sociólogos, ser tão restrito. C o m poucas e x c e ç õ e s , das quais Montesquieu é o mais ilustre e x e m p l o , a antiga f i losof ia da história l i m i t o u - s e unica­mente a descobrir o sentido geral em que se orienta a h u ­manidade, sem procurar ligar as fases dessa evolução a al­guma condição concomitante. Por mais que Comte tenha prestado alguns grandes serviços à f i losofia social, os ter­mos nos quais ele coloca o problema sociológico não dife­rem dos precedentes. Assim, sua famosa lei dos três esta­dos nada possui de uma relação de causalidade; ainda que fosse exata, ela não é e n ã o p o d e ser mais que empírica. Trata-se de uma visão sumária da história transcorrida d o gênero humano . É m u i t o arbitrariamente que Comte consi­dera o terceiro estado c o m o o estado def in i t ivo da huma­nidade. Q u e m nos diz que não surgirá outro no futuro? D o mesmo m o d o , a le i que d o m i n a a sociologia de Spencer não parece ser de outra natureza. Ainda que fosse verdade que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa civilização industr ial , nada assegura que, posteriormente, não venhamos a buscá-la e m outra parte. Ora, o que faz a generalidade e a persistência desse método é que na maio­ria das vezes se v i u n o m e i o social u m m e i o pe lo qual o progresso se realiza, não a causa que o determina.

REGRAS RELATIVASÀ EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 121

Por outro lado, é igualmente e m relação a esse mes­m o m e i o que se deve medir o valor útil o u , c o m o disse­mos, a função dos fenômenos sociais. Entre as mudanças de que é a causa, servem aquelas que estão e m relação c o m o estado no qual esse meio se encontra, já que ele é a condição essencial da existência coletiva. T a m b é m des­se p o n t o de vista, acreditamos, a c o n c e p ç ã o que acaba­mos de expor é fundamental ; pois só ela permite explicar c o m o o caráter útil dos f e n ô m e n o s sociais p o d e var iar sem n o entanto d e p e n d e r de arranjos arbitrários. Se, de fato, representa-se a evolução histórica c o m o movida por uma espécie de vis a tergo [força propulsora] que impele os homens para a frente, já que uma tendência motora só pode ter u m objet ivo e apenas u m , não pode haver senão u m p o n t o de referência e m relação ao q u a l se calcula a u t i l i d a d e o u a n o c i v i d a d e dos f e n ô m e n o s sociais. Disso resulta que só pode haver u m único t i p o de organização social perfeitamente adequado à humanidade e que as d i ­ferentes sociedades históricas são apenas aprox imações sucessivas desse m o d e l o único. Não é necessário mostrar o quanto semelhante s impl ismo é hoje inconciliável c o m a var iedade e a c o m p l e x i d a d e reconhecidas das formas sociais. Se, ao contrário, a conveniência o u não das insti­tuições só p u d e r ser estabelecida e m relação a u m m e i o dado, e c o m o esses meios são diversos, haverá então uma divers idade de pontos de referência e, p o r conseguinte , de t ipos que, embora qual i tat ivamente dist intos uns dos outros, estão todos igualmente fundados na natureza dos meios sociais.

A questão que acabamos de tratar está assim estreita­mente v inculada à que diz respeito à constituição dos t i ­pos sociais. Se há espécies sociais, é porque a vida coleti­va d e p e n d e antes de t u d o de c o n d i ç õ e s concomitantes que apresentam u m a certa diversidade. Se, ao contrário,

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as pr inc ipa i s causas dos acontec imentos sociais estives­sem todas n o passado, cada p o v o n ã o seria mais que o p r o l o n g a m e n t o daquele que o precedeu, e as diferentes sociedades perder iam sua i n d i v i d u a l i d a d e para se torna­r e m apenas m o m e n t o s diversos de u m m e s m o e único desenvolvimento. Uma vez que, por o u t r o lado, a consti­tuição d o meio social resulta cio m o d o de composição dos agregados sociais e que essas duas e x p r e s s õ e s são, elas próprias , n o f u n d o , s inônimas , temos agora a p r o v a de que não há caracteres mais essenciais d o que aqueles que atribuímos c o m o base para a classificação sociológica.

E n f i m , deve-se c o m p r e e n d e r agora, m e l h o r d o que antes, o quanto seria injusto apoiar-se nas palavras "condi­ções exteriores" e "meio" para acusar nosso método e bus­car as fontes da vida fora d o que é vivo. Mui to pelo contrá­rio, as considerações que acabam de ser lidas resumem-se na idéia de que as causas dos fenômenos sociais são inter­nas à sociedade. É antes a teoria que deriva a sociedade d o indivíduo que se poderia justamente recriminar por querer tirar o inter ior d o exterior, já que ela expl ica o ser social p o r outra coisa que não ele mesmo, e p o r querer tirar o mais d o menos, já que ela empreende deduzir o t o d o da parte. Os princípios que precedem i g n o r a m tão p o u c o o caráter espontâneo de todo vivente que, se aplicados à bio­logia e à psicologia, dever-se-á admitir que também a vida individual se elabora por inteiro n o interior d o indivíduo.

I V

D o grupo de regras que acabam de ser estabelecidas re­sulta certa concepção da sociedade e da vida coletiva.

Sobre esse p o n t o , duas teorias contrárias d i v i d e m o s espíritos.

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FA TOS SOCIAIS 123

Para uns, c o m o H o b b e s e Rousseau, há so lução de cont inuidade entre o indivíduo e a sociedade. O h o m e m é portanto naturalmente refratário à v ida c o m u m , somente f o r ç a d o p o d e resignar-se a ela. Os f ins sociais não são s implesmente o p o n t o de encontro dos f ins i n d i v i d u a i s ; são antes contrários a eles. Assim, para fazer o indivíduo buscar esses fins, é necessário exercer sobre ele uma coer­ção, e é na instituição e na organização dessa coerção que consiste, por excelência, a obra social. Só que, como o i n ­divíduo é visto como a única e exclusiva realidade d o rei­no h u m a n o , essa organização, que t e m p o r objeto cons­trangê-lo e contê-lo, não pode ser concebida senão c o m o art i f ic ial . Ela não está fundada na natureza, uma vez que se destina a fazer-lhe violência i m p e d i n d o - a de p r o d u z i r suas conseqüências anti-sociais. Trata-se de uma obra de arte, de uma máquina construída inte iramente pela m ã o dos homens e que, c o m o todos os produtos desse gêne­ro, é o que é apenas porque os homens a quiseram assim; u m decreto da v o n t a d e a c r i o u , u m o u t r o decreto p o d e transformá-la. N e m H o b b e s n e m Rousseau parecem ter percebido tudo o que há de contraditório e m admitir que o indiv íduo seja ele p r ó p r i o o a u t o r de u m a m á q u i n a que t e m p o r tarefa essencial dominá- lo e constrangê- lo , o u pelo menos lhes pareceu que, para fazer desaparecer essa contradição, bastava dissimulá-la, aos olhos daqueles que são suas vítimas, pe lo hábil artifício d o pacto social.

Foi na idéia contrária que se inspiraram tanto os teó­ricos d o direi to natural quanto os economistas e, mais re­centemente, Spencer 2 2 . Para eles, a vida social é essencial­mente espontânea e a sociedade uma coisa natural. Mas, se conferem a ela esse caráter, não é porque lhe reconhe­çam u m a natureza específica; é p o r q u e encontram sua ba­se na natureza d o indivíduo. D o m e s m o m o d o q u e os precedentes pensadores, eles não vêem na sociedade u m

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124 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

sistema de coisas que exista por si mesmo, e m vir tude de causas que lhe sejam específ icas. Mas, enquanto aqueles a concebiam apenas c o m o u m arranjo convenc ional que n e n h u m vínculo prende à realidade e que se sustenta, p o r assim dizer, no ar, estes lhe dão p o r base os instintos f u n ­damentais d o coração h u m a n o . O h o m e m tende natural­mente à vida política, doméstica, religiosa, às trocas, e t c , e é dessas incl inações naturais que der iva a organização social. Em conseqüência , sempre que for normal , esta não tem necessidade de impor-se. Q u a n d o ela recorre à coer­ção, é porque não é o que deve ser o u p o r q u e as circuns­tâncias são anormais. E m princípio, basta deixar as forças individuais desenvolverem-se e m l iberdade para que elas se organizem socialmente.

Nenhuma dessas duas doutrinas é a nossa. Certamente, fazemos da c o e r ç ã o a característica de

t o d o fato social. Só que essa coerção n ã o resulta de uma maquinar ia mais o u menos engenhosa, destinada a mas­carar aos homens as armadilhas nas quais eles próprios se pegaram. Ela s implesmente se deve ao fato de o h o m e m estar e m presença de uma força que o d o m i n a e diante da qual se curva; mas essa força é natural. Ela não deriva de u m arranjo c o n v e n c i o n a l q u e a v o n t a d e h u m a n a acres­centou completamente ao real; ela provém das entranhas mesmas da real idade; é o p r o d u t o necessár io de causas dadas. Assim, para fazer o indivíduo submeter-se a ela de boa vontade , n ã o é preciso recorrer a n e n h u m artifício; basta fazê-lo tomar consciência de seu estado de depen­dência e de i n f e r i o r i d a d e naturais - q u e r ele faça disso uma representação sensível e simbólica pela religião, quer chegue a formar uma noção adequada e definida pela ciên­cia. C o m o a superioridade que a sociedade tem sobre ele não é simplesmente física, mas intelectual e mora l , ela n a ­da tem a temer d o l ivre exame, contanto que deste se faça

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 125

u m justo e m p r e g o . A re f lexão , fazendo o h o m e m c o m ­preender o quanto o ser social é mais rico, mais comple­x o e mais duradouro que o ser i n d i v i d u a l , não pode dei­xar de revelar-lhe as razões inteligíveis da subordinação que dele é exigida e dos sentimentos de apego e de res­peito que o hábito f i x o u e m seu c o r a ç ã o 2 3 .

Portanto, somente uma crítica singularmente superfi ­cial poderia acusar nossa c o n c e p ç ã o da coerção social de reeditar as teorias de H o b b e s e de M a q u i a v e l . Mas, se, contrariamente a esses filósofos, dizemos que a vida social é natural , não é p o r encontrarmos sua fonte na natureza d o indivíduo; é p o r q u e ela deriva diretamente d o ser co­let ivo, que é, por si mesmo, uma natureza sui generis; é porque ela resulta dessa elaboração especial à qual estão submetidas as consciências particulares d e v i d o à sua as­sociação e da qual se desprende uma nova forma de exis­t ê n c i a 2 4 . Portanto, se reconhecemos c o m uns que a v ida social apresenta-se ao indivíduo sob o aspecto da coer­ção, admi t imos c o m os outros que ela é u m p r o d u t o es­p o n t â n e o da rea l idade ; e o q u e l iga l o g i c a m e n t e esses dois elementos, aparentemente contraditórios, é que a rea­l idade da qual ela emana supera o indivíduo. Vale dizer que as palavras c o e r ç ã o e espontaneidade n ã o têm, e m nossa terminologia , o sentido que Hobbes confere à p r i ­meira e Spencer à segunda.

E m resumo, à m a i o r parte das tentativas que f o r a m feitas para explicar racionalmente os fatos sociais, pôde-se objetar o u que elas faz iam desaparecer toda idéia de disciplina social, o u que só conseguiam manter essa idéia c o m o auxílio de subterfúgios mentirosos. As regras que acabamos de expor p e r m i t i r i a m , ao contrário, fazer u m a sociologia que visse n o espírito de discipl ina a condição essencial de toda vida e m c o m u m , embora fundando-o na razão e na verdade.

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CAPÍTULO V I

REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA

i

Temos apenas u m meio de demonstrar que u m fenô­meno é causa de outro: comparar os casos e m que eles es­tão simultaneamente presentes o u ausentes e examinar se as variações que apresentam nessas diferentes combinações de circunstâncias testemunham que u m depende d o outro. Q u a n d o eles p o d e m ser ar t i f ic ia lmente p r o d u z i d o s p e l o observador, o método é a exper imentação propr iamente dita. Quando, ao contrário, a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos aproximá-los tais como se p r o d u z i r a m espontaneamente, o m é t o d o empregado é o da experimentação indireta o u método comparativo.

V imos que a expl icação sociológica consiste exclusi­vamente e m estabelecer relações de causalidade, quer se trate de ligar u m f e n ô m e n o à sua causa, quer, ao contrá­rio, u m a causa a seus efeitos úteis. Uma vez que, por o u ­tro lado, os fenômenos sociais escapam evidentemente à ação d o operador, o m é t o d o comparat ivo é o único que

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128 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

c o n v é m à sociologia. É verdade que Comte não o consi­d e r o u suficiente; ju lgou necessário completá-lo p o r aqui lo que ele chama o método histórico; mas isso se deve à sua c o n c e p ç ã o particular das leis sociológicas. Segundo Com­te, estas d e v e m principalmente expr imir , não relações de­finidas de causalidade, mas o sentido e m que se dir ige a e v o l u ç ã o h u m a n a e m gera l ; assim elas n ã o p o d e m ser descobertas c o m o auxílio da comparação, *pois, para po­der comparar as diferentes formas que u m f e n ô m e n o so­cial assume e m diferentes povos, é preciso tê-lo separado das séries temporais a que pertence. Ora , se se c o m e ç a p o r fragmentar deste m o d o o desenvolv imento h u m a n o , surge a impossibi l idade de reencontrar sua seqüência. Pa­ra chegar a ela, não é por análises, mas p o r largas sínteses que c o n v é m proceder. O que é preciso é aproximar uns dos outros, e reunir n u m a mesma intuição, de certo m o ­do* , os estados sucessivos da h u m a n i d a d e de maneira a perceber "o crescimento contínuo de cada disposição físi­ca, in te lec tua l , m o r a l e pol í t i ca" 1 . " T a l é a razão de ser desse m é t o d o q u e C o m t e chama his tór ico e** q u e , p o r conseguinte, é desprovido de qualquer objeto, tão logo se rejeitou a c o n c e p ç ã o fundamental da sociologia comtiana.

T a m b é m é verdade que M i l l declara a exper imenta­ção, mesmo indireta, inaplicável à sociologia. Mas o que já é suf ic iente para ret irar de sua a r g u m e n t a ç ã o grande parte de sua autor idade é que ele a aplicava igualmente aos f e n ô m e n o s biológicos , e mesmo aos fatos físico-quí-micos mais complexos 2 ; ora, hoje não é mais preciso de-

* "já q u e estas têm p o r o b j e t o cons iderar i s o l a d a m e n t e os pares f o r m a d o s p o r cada f e n ô m e n o social c o m o g r u p o de suas c o n d i ç õ e s . É prec i so , ao contrár io , a p r o x i m a r uns dos o u t r o s e r e u n i r n u m a m e s m a s í n t e s e " (R.P., p . 169.)

** " T a l é o p a p e l desse m é t o d o h is tór ico" (R.P., p . 169.)

REGRAS REI ATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA 129

monstrar que a química e a biologia só p o d e m ser ciências experimentais . Portanto não há razão para que suas críti­cas sejam mais b e m fundamentadas n o q u e concerne à sociologia; pois os f e n ô m e n o s sociais dist inguem-se dos precedentes apenas p o r u m a m a i o r c o m p l e x i d a d e . Kssa diferença pode de fato impl icar que o emprego d o racio­cínio exper imenta l e m sociologia ofereça mais d i f i c u l d a ­des a inda q u e nas outras c iênc ias ; mas n ã o se percebe por que ele seria radicalmente impossível nesse caso.

De resto, toda a teoria de M i l l repousa sobre u m pos­tulado que, sem dúvida, está l igado aos princípios funda­mentais de sua lógica, mas que está e m contradição c o m todos os resultados da ciência. C o m efeito, ele admite que n e m sempre u m mesmo conseqüente resulta de u m mes­m o antecedente, mas que pode ser d e v i d o ora a uma cau­sa, ora a outra. Essa c o n c e p ç ã o d o vínculo causal, retiran-do- lhe toda determinação, torna-o praticamente inacessí­vel à análise científica; pois i n t r o d u z tal c o m p l i c a ç ã o na trama das causas e dos efeitos que o espírito nela se per­de sem retorno. Se u m efeito pode derivar de causas di fe­rentes, para saber o que o d e t e r m i n a n u m c o n j u n t o de circunstâncias dadas, a exper iênc ia teria de ser feita e m condições de isolamento praticamente impossíveis, sobre­t u d o em sociologia.

Mas esse pretenso axioma da plura l idade das causas é uma negação d o princípio de causalidade. Certamente, se supusermos c o m M i l l que a causa e o efeito são abso­lutamente heterogêneos , que não há entre eles nenhuma re lação lógica, n ã o há nada de contraditório e m a d m i t i r que u m efeito possa acompanhar ora uma causa, ora o u ­tra. Se a relação que une C a A é puramente cronológica, ela n ã o e x c l u i u m a outra relação d o m e s m o gênero que unir ia C a B, p o r exemplo . Mas, se, ao contrário, o víncu­lo causal t em algo de inteligível, ele não poderia ser inde-

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130 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

terminado a esse p o n t o . Se ele consiste numa relação que resulta da natureza das coisas, u m mesmo efeito só pode manter essa relação c o m uma única causa, pois não pode expr imir mais que uma só natureza. Ora, somente os filó­sofos p u s e r a m e m dúvida a i n t e l i g i b i l i d a d e da r e l a ç ã o causal. Para o cientista, ela não se questiona; ela é supos­ta pe lo método da ciência. Como explicar de outro m o d o o papel tão importante da dedução no raciocínio exper i ­mental, assim como o princípio fundamental da proporc io­nal idade entre a causa e o efeito? Q u a n t o aos casos que são citados e nos quais se pretende observar uma p l u r a l i ­dade de causas, para que eles fossem demonstrativos, se­ria preciso ter estabelecido pre l iminarmente o u que essa p lura l idade não é s implesmente aparente, o u que a u n i ­dade exterior d o efeito não recobre u m a real plural idade. Quantas vezes aconteceu ã ciência reduzir à unidade cau­sas cuja diversidade, à pr imei ra vista, parecia irredutível! O própr io Stuart M i l l dá u m e x e m p l o disso ao l e m b r a r que, segundo as teorias modernas , a p r o d u ç ã o de calor pe lo atrito, pela percussão, pela ação química, etc. deriva de u m a mesma e única causa. Inversamente , q u a n d o se trata d o efeito, o cientista distingue c o m freqüência o que o v u l g o c o n f u n d e . Para o senso c o m u m , a palavra febre designa uma mesma e única entidade mórbida; para a ciên­cia, há uma q u a n t i d a d e de febres especi f icamente d i fe ­rentes e a p lura l idade das causas está e m relação c o m a dos efeitos; e, se entre todas essas e s p é c i e s nosológicas há n ã o obs tante a l g o e m c o m u m , é q u e essas causas, igualmente, se c o n f u n d e m p o r alguns de seus caracteres.

É i mp o r t ante exorcizar esse princípio da sociologia, sobretudo porque muitos sociólogos sofrem ainda sua i n ­f luência, e isso apesar de não fazerem o b j e ç ã o contra o emprego d o método comparat ivo . Assim, costuma-se d i ­zer q u e o c r i m e p o d e ser i g u a l m e n t e p r o d u z i d o pelas

REGRAS RELATIVAS Ã ADMINISTRAÇÃO DA PROVA 131

mais diversas causas; que o mesmo acontece c o m o suicí­d io , com a pena, etc. Praticando-se c o m esse espírito o ra­ciocínio experimental , por mais que se reúna u m número considerável de fatos, jamais se poderão obter leis preci ­sas, r e l a ç õ e s de terminadas de causal idades. Apenas se poderá atr ibuir vagamente u m conseqüente mal d e f i n i d o a u m g r u p o confuso e indef in ido de antecedentes. Portan­to, se quisermos empregar o método comparat ivo de ma­neira científica, o u seja, conformando-se ao princípio de causalidade tal c o m o ele se depreende da própria ciência, deveremos tomar c o m o base das comparações que insti­tuímos a proposição seguinte: A um mesmo efeito corres­ponde sempre uma mesma causa. Assim, para retomar os exemplos citados mais acima, *se o suicídio depende de mais de uma causa, é porque , e m realidade, há várias es­pécies de suicídios. O mesmo acontece c o m o crime. E m re lação à pena, ao contrário , se se acredi tou que ela se expl icava da mesma f o r m a p o r causas diferentes, é p o r ­que não se percebeu o e lemento c o m u m q u e se verif ica e m todos esses antecedentes e e m v i r t u d e d o qual eles* p r o d u z e m seu efeito c o m u m \

I I

C o n t u d o , se os diversos p r o c e d i m e n t o s d o m é t o d o comparat ivo não são inaplicáveis à sociologia, n e m todos têm, nela, uma força igualmente demonstrativa.

* "se o c r i m e , se o suic ídio a d m i t e m causas di ferentes , é q u e , e m r e a l i d a d e , há e s p é c i e s m u i t o d i ferentes de c r imes e d e suic ídios . E m r e l a ç ã o à p e n a , ao contrár io , é e m v i r t u d e de u m e l e m e n t o c o m u m a t o d a s as causas a p a r e n t e m e n t e d i f e r e n t e s q u e l h e a t r i b u e m " (R.P., p . 171.)

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132 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

O m é t o d o d i t o dos resíduos, se é q u e ele c o n s t i t u i u m a f o r m a de raciocínio e x p e r i m e n t a l , n ã o tem, p o r as­s im dizer, n e n h u m a ut i l idade n o estudo dos f e n ô m e n o s sociais. Além de só poder servir às ciências bastante avan­çadas, u m a vez que ele supõe já conhecidas u m número impor tante de leis, os f e n ô m e n o s sociais são demasiado complexos para que, n u m caso dado, se possa exatamen­te supr imir o efeito de todas as causas menos uma.

A mesma razão torna di f i c i lmente utilizáveis tanto o m é t o d o de c o n c o r d â n c i a c o m o o de di ferença . Eles su­p õ e m , c o m efeito, que os casos comparados o u concor­d a m só n u m ponto , o u di ferem n u m só. Sem dúvida, não há ciência que alguma vez tenha p o d i d o instituir experiên­cias e m que o caráter r igorosamente ú n i c o de uma con­cordância o u de uma diferença fosse estabelecido de ma­neira irrefutável. Jamais estamos seguros de não ter deixa­d o escapar a l g u m antecedente que c o n c o r d a o u d i fere c o m o o conseqüente , ao mesmo t e m p o e da mesma ma­neira que o único antecedente conhecido. Entretanto, e m ­bora a e l iminação absoluta de t o d o e lemento adventício seja u m l imite ideal que não pode ser realmente at ingido, as ciências físico-químicas e mesmo as ciências biológicas aproximam-se bastante dele para que, n u m grande núme­ro de casos, a demonstração possa ser vista c o m o pratica­mente suficiente. Mas isso já não ocorre e m sociologia de­v i d o à c o m p l e x i d a d e demasiado grande dos f e n ô m e n o s , acrescida da impossibi l idade de qualquer experiência art i ­f i c i a l . C o m o n ã o se p o d e r i a fazer u m inventár io , a inda que só aproximadamente completo , de todos os fatos que coexistem n o interior de uma mesma sociedade o u que se sucederam ao l o n g o de sua história, jamais se pode estar seguro, mesmo de maneira aproximada, de que dois p o ­vos concordam o u di ferem sob todos os aspectos, exceto u m . As chances de deixar u m f e n ô m e n o escapar são b e m

REGRAS RELATIVAS Ã ADMINISTRAÇÃO DA L}ROVA 133

super iores às de n ã o n e g l i g e n c i a r n e n h u m . E m conse­qüência, tal método de demonstração só pode dar or igem a conjeturas que, reduzidas a elas só, são quase desprovi­das de t o d o caráter científico.

M u i t o diferente é o que acontece c o m o método das var iações concomi tantes . C o m efe i to , para que ele seja demonst ra t ivo , n ã o é necessár io que todas as variações diferentes daquelas que se comparam tenham sido r igoro­samente excluídas. O simples paralelismo dos valores pe­los quais passam os dois fenômenos , contanto que tenha sido estabelecido n u m número suficiente de casos suficien­temente variados, é a prova de que existe entre eles uma relação. Esse método deve esse privilégio ao fato de atin­gir a relação causal, não a partir de fora c o m o os prece­dentes, mas a part i r de d e n t r o . Ele não nos mostra s i m ­plesmente dois fatos que se a c o m p a n h a m o u que se ex­c l u e m e x t e r i o r m e n t e 4 , de sorte q u e nada p r o v a d i re ta ­m e n t e q u e este jam u n i d o s p o r u m v í n c u l o i n t e r n o ; ao contrário, tais fatos nos são mostrados p a r t i c i p a n d o u m d o o u t r o e de maneira contínua, pe lo menos no que diz respeito à sua quant idade . Ora, essa part icipação, p o r si só, é suficiente para demonstrar que eles n ã o são estra­nhos u m ao outro . A maneira como u m f e n ô m e n o se de­senvolve expr ime sua natureza; para que dois desenvolvi­mentos se correspondam, é preciso que haja também uma c o r r e s p o n d ê n c i a nas naturezas q u e eles m a n i f e s t a m . A concomitânc ia constante é por tanto , p o r si mesma, u m a lei , seja qual for o estado dos fenômenos que permanece­r a m fora da comparação. Assim, para invalidá-la, não bas­ta mostrar que ela é posta e m xeque por algumas aplica­ções particulares d o método de concordância o u de dife­rença; seria atribuir a esse t i p o de provas uma autoridade que ele não p o d e ter e m sociologia . Q u a n d o dois f enô­m e n o s v a r i a m r e g u l a r m e n t e tanto u m c o m o o o u t r o , é

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134 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

preciso manter essa relação ainda que, e m alguns casos, u m desses f e n ô m e n o s se apresentasse sem o outro . Pois p o d e ocorrer , o u q u e a causa tenha s i d o i m p e d i d a de p r o d u z i r seu efeito pela ação de a lguma causa contrária, o u que ela se encontre presente, mas sob uma forma dife­rente daquela anter iormente observada. Sem dúvida, é o caso de confer i r , c o m o se d iz , de e x a m i n a r os fatos de n o v o , mas não de abandonar de vez os resultados de uma demonstração regularmente conduzida.

É verdade que as leis estabelecidas p o r esse procedi ­mento n e m sempre se apresentam de imediato sob a for­ma de relações de causalidade. A concomitância pode ser devida, não a u m f e n ô m e n o ser a causa d o outro , mas a serem ambos efeitos de uma mesma causa, o u então por existir entre eles u m terceiro f e n ô m e n o , intercalado, mas despercebido, que é o efeito d o p r i m e i r o e a causa d o se­g u n d o . Os resultados a que esse método conduz têm por­tanto necessidade de ser interpretados. Mas qual o méto­d o exper imenta l eme p e r m i t e obter mecanicamente uma relação de causalidade sem que os fatos que ele estabele­ce precisem ser elaborados pelo espírito? T u d o o que i m ­porta é que essa e laboração seja metodicamente conduzi ­da, e eis aqui de que maneira se poderá proceder a isso. Em p r i m e i r o lugar procuraremos saber, c o m o auxílio da dedução, c o m o u m dos dois termos f o i capaz de produzir o outro ; a seguir, nos esforçaremos por verificar o resulta­d o dessa dedução c o m o auxílio de exper iências , isto é, de novas comparações . Se *a dedução é possível e a ver i ­f icação bem-sucedida, poderemos considerar a prova co­m o feita. Se, ao contrário*, não percebemos entre esses fatos n e n h u m vínculo direto , sobretudo se a hipótese de semelhante vínculo contradiz leis já demonstradas, saire-

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

REGRAS REI A TIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA 135

mos e m busca de u m terceiro f e n ô m e n o dos quais os dois outros dependam igualmente o u que tenha p o d i d o servir de intermediário entre eles. Por exemplo , pode-se estabe­lecer da maneira mais certa que a tendência ao suicídio varia de acordo c o m a tendência à instrução. Mas é i m ­possível compreender c o m o a instrução pode conduzir ao suicídio; tal explicação está e m contradição c o m as leis da psicologia. A instrução, sobretudo reduzida aos conheci ­mentos elementares, não atinge senão as regiões mais su­perficiais da consciência ; ao contrário, o inst into de con­servação é uma de nossas tendências fundamentais . Por­tanto, este não poderia ser sensivelmente afetado por u m f e n ô m e n o tão distante e de tão fraca repercussão. Assim somos levados a perguntar se u m e outro fato não seriam a conseqüência de u m mesmo estado. Essa causa c o m u m é o enfraquecimento d o tradic ional ismo rel igioso que re­força ao m e s m o t e m p o a necessidade de saber e a ten­dência ao suicídio.

Mas há outra razão que faz d o método das variações concomitantes o instrumento por excelência das pesquisas sociológicas. C o m efeito, mesmo quando as circunstâncias lhes são mais favoráveis, os outros métodos só p o d e m ser empregados proveitosamente se o número de fatos c o m ­parados for m u i t o considerável. Se não é possível encon­trar duas sociedades que d i f e r e m o u que se assemelham apenas n u m p o n t o , pode-se p e l o menos constatar q u e dois fatos o u se acompanham, o u se exc luem de maneira m u i t o geral. Mas, para que essa constatação tenha u m va­lor científico, é preciso que tenha sido feita u m grande nú­mero de vezes; seria preciso estar quase seguro de que to­dos os fatos f o r a m passados e m revista. Ora, não apenas u m inventário tão completo é impossível, mas também os fatos assim acumulados jamais p o d e m ser estabelecidos c o m u m a precisão suficiente, justamente p o r serem dema-

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siado numerosos. Não apenas se corre o risco de omit ir al­guns essenciais e que contradizem os que são conhecidos, mas também não se tem certeza de conhecer b e m estes úl­timos. Na verdade, o que muitas vezes desacreditou os ra­ciocínios dos sociólogos é que, p o r terem empregado de preferência o método de concordância o u o de diferença, sobretudo o pr imeiro , eles se preocuparam mais e m acu­mular documentos d o que e m criticá-los e escolhê- los . E assim que lhes acontece a todo m o m e n t o colocar no mes­m o plano as observações confusas e rápidas dos viajantes e os textos precisos da história. Diante de tais demonstra­ções , não apenas somos levados a af irmar que u m único fato poderia ser suficiente para invalidá-las, mas também q u e os própr ios fatos sobre os quais s ã o estabelecidas n e m sempre inspiram confiança.

O método das variações concomitantes não nos o b r i ­ga n e m a essas enumerações incompletas, n e m a essas ob­servações superficiais. Para que ele dê resultados, poucos fatos são suficientes. Tão logo se prova que, e m u m certo número de casos, dois f e n ô m e n o s v a r i a m u m de acordo c o m o outro , podemos ter a certeza de estar em presença de u m a le i . Não tendo necessidade de ser numerosos, os documentos p o d e m ser escolhidos e, mais d o que isso, es­tudados de perto pelo sociólogo que os emprega. Portanto ele não só poderá c o m o deverá tomar p o r objeto pr inc ipal de suas induções as sociedades cujas crenças , tradições, costumes e direi to se materializaram e m monumentos es­critos e autênticos. Certamente, ele não desdenhará as i n ­formações da etnografia (não há fatos que possam ser des­denhados pelo cientista), mas irá colocá-las e m seu verda­deiro lugar. E m vez de fazer delas o centro de gravidade de suas pesquisas, só as utilizará e m geral c o m o comple­mento daquelas que deve à história, o u pelo menos se es­forçará p o r confirmá-las através destas últimas. Assim ele

REGRAS RELATIVASÀ ADMINISTRAÇÃO DA TROVA 137

não apenas circunscreverá, c o m mais discernimento, a ex­tensão de suas comparações , mas as conduzirá c o m mais crítica; pois, exatamente por se prender a uma ordem res­trita de fatos, poderá controlá-los c o m maior cuidado. Cla­ro q u e ele n ã o precisa refazer a obra dos historiadores ; mas também não pode receber passivamente e indiscr imi­nadamente as informações de que se serve.

Mas não se deve pensar que a sociologia esteja n u m estado de sensível inferioridade em face das outras ciências p o r não poder utilizar m u i t o mais que u m único procedi ­m e n t o e x p e r i m e n t a l . Esse i n c o n v e n i e n t e , c o m efei to , é compensado pela riqueza das variações que se oferecem espontaneamente às comparações d o sociólogo e da qual n ã o se encontra n e n h u m e x e m p l o nos outros reinos da natureza. As mudanças que o c o r r e m n u m organismo ao longo de uma existência i n d i v i d u a l são p o u c o numerosas e m u i t o restritas; as que p o d e m ser provocadas artif icial­mente sem destruir a v i d a situam-se t a m b é m d e n t r o de estreitos limites. É verdade que outras mais importantes se p r o d u z i r a m na seqüência da evolução zoológica, mas elas só deixaram raros e obscuros vestígios, e é ainda mais d i ­fícil descobrir as condições que as determinaram. A o con­trário, a v ida social é u m a série i n i n t e r r u p t a de transfor­mações , paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva; e temos à nossa disposição não so­mente as q u e se r e l a c i o n a m a u m a é p o c a recente, pois u m grande número daquelas pelas quais passaram os p o ­vos desaparecidos também chegaram até nós . Apesar de suas lacunas, a história da humanidade é b e m mais clara e completa que a das espécies animais. Além disso, existe uma quant idade de f e n ô m e n o s sociais que se p r o d u z e m e m toda a extensão da sociedade, mas que assumem for­mas diversas conforme as regiões, as profissões, as confis­sões, etc. Tal é o caso, p o r exemplo , d o cr ime, d o suicí-

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dio , da natalidade, da nupcial idade, da poupança , etc. Da divers idade desses meios especiais resu l tam, para cada u m a dessas ordens de fatos, novas sér ies de var iações , além daquelas que a evolução histórica produz . Portanto, se o sociólogo não pode empregar c o m igual eficácia to­dos os procedimentos da pesquisa experimental , o único método que ele deve utilizar, quase c o m exclusão dos o u ­tros, p o d e , e m suas mãos, ser m u i t o f e c u n d o , pois, para fazê-lo funcionar, ele dispõe de recursos incomparáveis.

*Mas esse método só p r o d u z os resultados que c o m ­porta se for praticado c o m rigor. Nada se prova quando , c o m o acontece c o m f reqüênc ia , apenas se mostra , p o r exemplos mais o u menos numerosos , que , nesses casos esparsos, os fatos variaram c o m o previa a hipótese. Des­sas concordâncias esporádicas e fragmentárias não se p o ­de tirar nenhuma conc lusão geral. Ilustrar uma idéia não é demonstrá-la. O que é preciso é comparar, não variações isoladas, mas séries de variações, regularmente constituí­das, cujos termos se l igam uns aos outros p o r uma grada­ção tão contínua quanto possível e que, ademais, tenham uma extensão suficiente. Pois as variações de u m fenôme­n o só p e r m i t e m i n d u z i r sua le i se elas e x p r i m e m clara­mente a maneira como ele se desenvolve e m circunstâncias dadas. Ora , para t a n t o é p r e c i s o q u e haja ent re elas a mesma s e q ü ê n c i a q u e entre os m o m e n t o s d iversos de uma mesma evolução natural e, além disso, que essa evo­lução que elas representam seja sufic ientemente p r o l o n ­gada para que seu sentido não seja duvidoso . *

* Esse parágrafo , e m seu c o n j u n t o , está ausente d o t e x t o i n i c i a l .

, REGRAS REI ATIVAS Â ADMINISTRAÇÃO DA TROVA 139

I I I

Mas *a maneira como devem ser formadas essas séries* difere conforme os casos. Elas p o d e m compreender fatos tomados o u de uma única sociedade - o u de várias socieda­des da mesma espécie - , o u de várias espécies sociais dis­tintas.

O pr imeiro procedimento pode ser suficiente, a rigor, q u a n d o se trata de fatos de uma grande general idade e sobre os quais temos informações estatísticas bastante ex­tensas e variadas. Por e x e m p l o , aproximando-se a curva que exprime a evolução d o suicídio, durante u m período de t e m p o suficientemente longo, das variações que apre­senta o mesmo f e n ô m e n o segundo as províncias, as clas­ses, os hábitats rurais o u urbanos, os sexos, as idades, o estado c iv i l , e t c , pode-se chegar, mesmo sem estender a pesquisa para além de u m único país, a estabelecer ver­dadeiras leis, ainda que seja sempre preferível conf i rmar esses resultados através de outras observações , feitas so­bre outros p o v o s da mesma e s p é c i e . Mas só é possível contentar-se c o m c o m p a r a ç õ e s tão l imitadas q u a n d o se estuda uma dessas correntes sociais que se espalham e m toda a sociedade, e m b o r a v a r i e m de u m p o n t o a o u t r o . Q u a n d o , ao contrário, trata-se de u m a instituição, de uma regra jurídica o u m o r a l , de u m costume organizado, que são idênticos e f u n c i o n a m da mesma maneira em toda a e x t e n s ã o d o país e q u e só se m o d i f i c a m c o m o t e m p o , não é possível restringir-se ao estudo de u m único p o v o ; pois , nesse caso, ter-se-ia c o m o e lemento da prova ape­nas u m único par de curvas paralelas, a saber, as que ex­p r i m e m a marcha histórica d o f e n ô m e n o cons iderado e da causa conjeturada, mas nessa única e exclusiva spcie-

* "a natureza mesma das c o m p a r a ç õ e s s o c i o l ó g i c a s " (R.R, p . 175.)

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140 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

dade. Certamente, mesmo esse único parale l ismo, se for constante , já é u m fato cons iderável , mas n ã o p o d e r i a , por si só, constituir uma demonstração.

F a z e n d o ent rar e m c o n s i d e r a ç ã o v á r i o s p o v o s da mesma espéc ie , dispõe-se já de u m c a m p o de compara­ç ã o mais extenso. Pr imeiramente , pode-se c o n f r o n t a r a história de u m c o m a dos outros e ver se, e m cada u m de­les i so ladamente , o m e s m o f e n ô m e n o e v o l u i no t e m p o e m função das mesmas condições . A seguir, podem-se es­tabelecer c o m p a r a ç õ e s entre esses diversos d e s e n v o l v i ­mentos. Por exemplo , determinar-se-á a forma que o fato e s t u d a d o a d q u i r e nessas di ferentes sociedades n o m o ­mento e m que ele chega a seu apogeu. C o m o essas socie­dades, embora pertençam ao mesmo t i p o , são i n d i v i d u a ­lidades distintas, a forma e m questão não é e m toda parte a mesma*; ela é mais o u menos pronunciada conforme os casos*. Deste m o d o se terá uma nova série de variações que serão aproximadas daquelas que apresenta, no mes­m o m o m e n t o e e m cada u m desses pa í ses , a c o n d i ç ã o " p r e s u m i d a * * . Assim, após ter seguido a evolução da fa­mília patriarcal através da história de Roma, de Atenas, de Esparta, essas mesmas cidades serão classificadas confor­me o grau máximo de desenvolvimento que atinge em ca­da uma delas esse t i p o familiar, e a seguir se verá, e m re­lação ao estado d o m e i o social d o qual parece depender o t i p o famil iar de acordo c o m a pr imeira experiência , se elas se classificam ainda da mesma maneira.

Mas mesmo esse método não pode ainda ser suficien­te. Ele só se aplica, c o m efeito, aos f e n ô m e n o s q u e têm o r i g e m durante a v ida dos povos comparados . Ora, uma sociedade não cria completamente sua organização; ela a

* Frase q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l . ** " c o n j e t u r a d a . " (R.P., p . 176.)

REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA TROVA 141

recebe pronta , e m parte, das sociedades que a precede­r a m . O que lhe é assim t ransmi t ido , no decorrer de sua história, n ã o é o p r o d u t o de u m d e s e n v o l v i m e n t o seu, portanto não pode ser expl icado se não sairmos dos l i m i ­tes da espéc ie de que ela faz parte. Somente os acrésci­mos q u e se j u n t a m a esse f u n d o p r i m i t i v o e o transfor­m a m p o d e m ser tratados dessa maneira . Porém, quanto mais nos elevamos na escala social, tanto menor é a i m ­portância dos caracteres adquir idos p o r cada p o v o c o m ­parados aos caracteres transmitidos. Aliás, essa é a condi ­ção de todo progresso. Assim, elementos novos que intro­duzimos no direi to doméstico, n o direi to de propriedade, na moral , desde o c o m e ç o de nossa história, são relativa­mente p o u c o numerosos e p o u c o importantes , compara­dos aos que o passado nos l e g o u . As novidades que se p r o d u z e m não p o d e r i a m portanto ser compreendidas se p r i m e i r o não fossem estudados aqueles f e n ô m e n o s mais fundamentais que são suas raízes, *e estes só p o d e m ser estudados c o m o auxílio de comparações m u i t o mais ex­tensas. Para poder expl icar o estado atual da família, d o casamento, da p r o p r i e d a d e , e t c , seria preciso conhecer quais são suas origens, quais os e lementos s imples que c o m p õ e m essas instituições, e, sobre esses pontos, a his­tória c o m p a r a d a das grandes sociedades européias não nos daria grandes esc larec imentos . É prec i so r e m o n t a r mais acima.

Conseqüentemente , para explicar u m a instituição so­cial, pertencente a uma espécie determinada, iremos com­parar as formas diferentes que ela apresenta não apenas nos povos dessa espécie, mas e m todas as espécies anterio­res. Trata-se, p o r e x e m p l o , da o r g a n i z a ç ã o domést ica? Constituiremos primeiramente o t ipo mais rudimentar que

* E l e m e n t o q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l .

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142 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

possa ter exist ido, para e m seguida acompanhar passo a passo a maneira como ele progressivamente se compl icou. Esse método, que poderíamos chamar genét ico, efetuaria de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno. Pois, por u m lado, nos mostraria e m estado dissociado os elementos que o c o m p õ e m , p e l o simples fato de nos mostrar esses elementos acrescentando-se sucessivamente uns aos o u ­tros; ao mesmo tempo, graças ao extenso campo de com­paração, ele seria b e m mais capaz de determinar as condi ­ç õ e s de q u e d e p e n d e m a formação e a s s o c i a ç ã o desses mesmos elementos. Conseqüentemente, só se pode explicar um fato social de alguma complexidade se se acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies so­ciais. A sociologia comparada não é u m ramo particular da sociologia; é a sociologia mesma, na medida e m que ela deixa de ser p u r a m e n t e descrit iva e aspira a expl icar os fatos.

N o decorrer dessas comparações extensas, comete-se c o m freqüência u m erro que falseia os resultados. A l g u ­mas vezes, para julgar e m que sentido se desenvolvem os acontecimentos sociais, simplesmente se c o m p a r o u o que se passa n o declínio de cada espéc ie c o m o que se p r o ­d u z n o c o m e ç o da e s p é c i e seguinte . P r o c e d e n d o deste m o d o , acredi tou-se p o d e r af i rmar , p o r e x e m p l o , q u e o enfraquecimento das crenças religiosas e de t o d o tradicio­na l i smo nunca p o d i a ser mais que u m f e n ô m e n o passa­geiro da vida dos povos, p o r q u e ele só aparece no último período de sua existência para cessar assim que uma no­va e v o l u ç ã o r e c o m e ç a . Mas, c o m s e m e l h a n t e m é t o d o , corre-se o risco de tomar c o m o marcha regular e necessá­ria d o progresso o que é efeito de uma causa m u i t o dife­rente. De fato, o estado e m que se encontra uma socieda­de j o v e m não é simplesmente o pro longamento d o estado e m que haviam chegado n o f inal de sua carreira as socie-

REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA TROVA 143

dades que ela substitui, mas provém em parte dessa pró­pria juventude que impede que os produtos das experiên­cias feitas pelos p o v o s anteriores sejam lodos imediata­mente assimiláveis e utilizáveis. Assim, a criança recebe de seus pais faculdades e predispos ições que só tardia­mente entram e m jogo e m sua v ida . Portanto é possível, para retomar o mesmo exemplo, que o retorno do tradicio­nalismo observado no c o m e ç o de cada história seja dev i ­do, não ao fato de que u m recuo d o mesmo fenômeno só p o d e ser transitório, mas às condições especiais e m que se acha colocada toda sociedade que começa . A compara­ç ã o só pode ser demonstrat iva se e l i m i n a m o s esse fator da idade, que a per turba ; para tanto, bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de seu de­senvolvimento. Assim, para saber e m que sent ido e v o l u i u m fenômeno social, iremos comparar o que ele é na ju ­ventude de cada espécie c o m aqui lo e m que se transfor­ma na juventude da espéc ie seguinte, e, c o n f o r m e apre­sentar, de uma etapa a outra , maior , m e n o r ou igual i n ­tensidade, diremos que ele progride, recua ou se mantém.

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CONCLUSÃO

E m resumo, as característ icas desse m é t o d o são as seguintes.

E m p r i m e i r o lugar, ele é independente de toda f i l o ­sofia. Por ter nascido das grandes doutr inas filosóficas, a sociologia conservou o hábito de se apoiar e m a lgum sis­tema d o qual se acha, pois , solidária. Assim, ela fo i suces­sivamente positivista, evolucionista, espiritualista, q u a n d o deve contentar-se e m ser sociologia e nada mais. Inclusi ­ve hes i tar íamos e m qualif icá-la de natural is ta , a m e n o s que c o m isso se queira simplesmente indicar que ela con­sidera os fatos sociais c o m o e x p l i c á v e i s n a t u r a l m e n t e ; nesse caso, o epíteto é inútil, pois significa apenas que o sociólogo pratica a ciência e não é u m místico. Mas repe­l imos a palavra, se lhe quiserem dar u m sentido doutr ina l sobre a essência das coisas sociais, se, por exemplo , dis­serem que elas são redutíveis às outras forças cósmicas. A sociologia não tem de tomar part ido p o r uma das grandes hipóteses que d i v i d e m os metafísicos. Ela não precisa afir­mar a l iberdade n e m o determinismo. T u d o o que ela pe-

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de que lhe concedam é que o princípio de causalidade se apl ique aos fenômenos sociais. E, ainda assim, esse p r i n ­c ípio é p o r ela estabelecido não c o m o u m a necessidade racional, mas somente como u m postulado empírico, p r o ­duto de uma indução legítima. Visto que a lei da causali­dade f o i ver i f icada nos outros reinos da natureza e que progressivamente ela estendeu seu domínio d o m u n d o fí-sico-químico ao m u n d o biológico, e deste ao m u n d o psi­cológico, é lícito admit ir que ela igualmente seja verdadei­ra para o m u n d o social; e é possível af irmar hoje que as pesquisas e m p r e e n d i d a s sobre a base desse p o s t u l a d o tendem a confirmá-lo. Mas a questão de saber se a nature­za d o vínculo causal exc lui toda contingência n e m p o r is­so está resolvida.

De resto, a própria fi losofia tem t o d o o interesse nes­sa emancipação da sociologia. Pois, enquanto o sociólogo não se separou suficientemente d o filósofo, ele só consi­dera as coisas sociais p o r seu lado mais geral, aquele pelo qual elas mais se assemelham às outras coisas d o univer­so. Ora, se *a sociologia assim concebida p o d e servir para ilustrar com fatos curiosos uma fi losofia, ela não poderia enriquecê-la com idéias novas, uma vez que ela nada as­sinala de n o v o n o objeto que estuda. Mas, em realidade, se* os fatos fundamentais dos outros re inos se ver i f i cam n o reino social, é sob formas "especiais que fazem c o m ­preender m e l h o r sua natureza, p o r serem sua expressão mais elevada**. Só que, para percebê-los sob esse aspec­to , é prec iso sair das general idades e entrar n o detalhe dos fatos. É deste m o d o que a sociologia, à medida que se especializar, irá fornecer materiais mais originais para a

* D e s e n v o l v i m e n t o q u e n ã o f i g u r a n o t e x t o i n i c i a l . ** "novas e q u e p o r isso m e s m o f a z e m c o m p r e e n d e r m e l h o r sua

natureza" . (R.P., p . 179.)

CONCLUSÃO 147

re f lexão f i losófica. O q u e precede já fo i capaz de fazer entrever de que maneira n o ç õ e s essenciais, tais c o m o as de espéc ie , de órgão, de função, de saúde e de doença , de causa e de f i m , apresentam-se nela sob luzes inteira­mente novas. Aliás, será que a sociologia não estará desti­nada a realçar p lenamente uma idéia que poderia m u i t o b e m ser a base não apenas de uma psicologia, mas de to­da uma filosofia, a idéia de associação?

Em face das doutrinas práticas, nosso método permite e requer a mesma independência. A sociologia, assim en­tendida, não será n e m individualista, n e m comunista, n e m socialista, no sentido que se dá vulgarmente a essas pala­vras. Por princípio, irá ignorar essas teorias, às quais não poderia reconhecer valor científico, já que elas tendem d i ­retamente, não a expr imir os fatos, mas a reformá-los. Pelo menos, se se interessa por elas, é somente na medida em que as vê c o m o fatos sociais capazes de ajudá-la a c o m ­preender a realidade social, ao manifestarem as necessida­des que m o v e m a sociedade. Isso não quer dizer, porém, que a sociologia deva se desinteressar das questões práti­cas. P ô d e - s e ver, ao contrár io , q u e nossa p r e o c u p a ç ã o constante era orientá-la de maneira que pudesse alcançar resultados práticos. Ela depara necessariamente com esses problemas ao término de suas pesquisas. Mas, exatamente por só se apresentarem a ela nesse m o m e n t o e por decor­rerem portanto dos fatos e não das paixões, pode-se pre­ver que tais problemas devam se colocar para o sociólogo em termos mui to diferentes d o que para a multidão, e que as soluções, aliás parciais, que ele é capaz de propor não p o d e r i a m c o i n c i d i r exatamente c o m n e n h u m a daquelas nas quais se de têm os par t idos . O pape l da soc io logia , dessé p o n t o de vista, deve justamente consistir em nos l i ­bertar de todos os partidos, não tanto por opor uma d o u ­trina às doutrinas, e sim por fazer os. espíritos assumirem,

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148 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

diante de tais questões, u m a atitude especial que somente a c iência p o d e p r o p o r c i o n a r pe lo conta to d i re to c o m as coisas. C o m efeito, somente ela pode ensinar a tratar c o m respeito, mas sem fetichismo, as instituições históricas se­jam elas quais forem, fazendo-nos perceber o que elas têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório, sua força de resistência e sua infinita variabilidade.

E m segundo lugar, nosso método é objet ivo. Ele é i n ­teiramente d o m i n a d o pela idéia de que os fatos sociais são coisas e c o m o tais d e v e m ser tratados. Certamente, esse princípio se encontra, sob forma u m p o u c o diferente, na base das d o u t r i n a s de C o m t e e de Spencer. Mas esses grandes pensadores deram m u i t o mais sua fórmula teórica d o que o puseram e m prática. Para que ela não permane­cesse letra morta, não bastava promulgá-la; era preciso tor­ná-la a base de toda uma disciplina que se apoderasse d o cientista n o m o m e n t o e m que ele abordasse o objeto de suas pesquisas e que o acompanhasse e m todos os seus passos. Foi a inst i tuir essa discipl ina que nos dedicamos. Mostramos como o sociólogo deveria afastar as noções an­tecipadas que possuía dos fatos, a f i m de colocar-se diante dos fatos mesmos; como deveria atingi-los por seus carac­teres mais objetivos; c o m o deveria requerer deles próprios o meio de classificá-los e m saudáveis e e m mórbidos; co­m o , enf im, deveria seguir o mesmo princípio tanto nas ex­plicações que tentava quanto na maneira pela qual prova­va essas explicações. Pois, quando se tem o sentimento de estar e m presença de coisas, n e m sequer se pensa mais e m explicá-las por cálculos utilitários o u p o r raciocínios de qualquer espécie . Compreende-se m u i t o b e m a distância que há entre tais causas e tais efeitos. U m a coisa é u m a força que não pode ser engendrada senão p o r outra força. Buscam-se então, para expl icar os fatos sociais, energias capazes de p r o d u z i - l o s . As e x p l i c a ç õ e s n ã o apenas são

CONCLUSÃO 149

outras, c o m o são demonstradas de o t i t r o m o d o , o u me­lhor , é somente então que se sente a necessidade de de­monstrá-las. Se os fenômenos sociológicos forem apenas sistemas de idéias objetivas, explicá-los é repensá-los em sua o r d e m lógica e essa expl icação é sua própria prova; q u a n d o m u i t o será o caso de c o n f i r m á - l a p o r a l g u n s exemplos . A o contrário, somente experiências metódicas são capazes de arrancar das coisas seu segredo.

Mas, se consideramos os fatos sociais c o m o coisas, é c o m o coisas sociais. É u m terceiro traço característico de nosso método o de ser exclusivamente sociológico. M u i ­tas vezes se pensou que tais fenômenos , p o r causa de sua extrema complex idade , o u eram refratários à ciência, o u só p o d e r i a m entrar nela reduzidos a suas condições ele­mentares, sejam psíquicas, sejam orgânicas, isto é, despo­jados de sua natureza própria. Procuramos estabelecer, ao contrário, que era possível tratá-los c ient i f icamente sem nada retirar-lhes de seus caracteres específ icos . Inclusive recusamos reduzir a imaterialidade sui generis que os ca­racteriza àquela, não obstante já complexa , dos f enôme­nos psicológicos; c o m mais forte razão nos pro ib imos de absorvê-la, c o m o faz a escola ital iana, nas propr iedades gerais da matéria organizada 1 . Mostramos que u m fato so­c ia l só p o d e ser e x p l i c a d o p o r o u t r o f a t o soc ia l , e, ao m e s m o t e m p o , i n d i c a m o s de que manei ra esse t i p o de expl icação é possível ao assinalarmos *no meio social i n ­terno o m o t o r pr inc ipa l da evolução coletiva*. A sociolo­gia, por tanto , não é o anexo de n e n h u m a outra c iência ; ela própria é uma ciência distinta e autônoma, e o senti

* " u m a o r d e m de causas dotadas de s u f i c i c n l c eficiência p.n.i t o m a r inteligível a p r o d u ç ã o dos efeitos i|ue lhes a l i i U i m i o s , v l i . isl .mlr p r ó x i m a s desses efeitos para poder explicá-los sem se|.i necessário desnaturá - los p o r u m a simplificação artificial: Irala se das piopi lcdades d o m e i o socia l " . (R.L'., id. , p. 1H1.)

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150 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

m e n t o da especi f ic idade da real idade social é inc lus ive tão necessário ao sociólogo, que somente uma cultura es­pec i f i camente soc io lóg ica é capaz de prepará- lo para a compreensão dos fatos sociais.

Consideramos que esse progresso é o mais importan­te dos que restam a ser feitos em sociologia. Certamente, quando uma ciência está p o r nascer, somos obrigados, pa­ra formá-la, a nos referir aos únicos modelos existentes, o u seja, às ciências já constituídas. Existe aí u m tesouro de ex­periências prontas que seria insensato n ã o aproveitar. En­tretanto, uma ciência só pode considerar-se def init ivamen­te constituída quando conseguir formar-se uma personali­dade independente . Pois ela só terá razão de ser, se tiver por objeto uma o r d e m de fatos que as outras ciências não estudam. Ora, é impossível que as mesmas noções possam convir identicamente a coisas de natureza diferente.

Tais nos parecem ser os princípios d o método socio­lógico.

Esse con junto de regras talvez parecerá i n u t i l m e n t e c o m p l i c a d o , se o c o m p a r a r m o s aos p r o c e d i m e n t o s cor­rentemente ut i l izados . T o d o esse aparato de precauções pode parecer m u i t o trabalhoso *para uma ciência que, até a q u i , r e c l a m a v a dos q u e a ela se c o n s a g r a v a m p o u c o mais d o cjue uma cultura geral e filosófica,* e é certo que pôr e m prática tal método não poderia ter p o r efeito v u l ­garizar a curiosidade das coisas sociológicas . Q u a n d o se pede às pessoas, c o m o condição de iniciação prévia, para se desfazerem dos conceitos que têm o hábito de aplicar a uma o r d e m de coisas para repensá-las c o m novos esfor­ços, não se pode esperar recrutar uma clientela numerosa: Mas esse n ã o é o ob je t ivo q u e almejamos. Acredi tamos,

* " q u a n d o se sabe c o m q u e fac i l idade espír i tos elegantes e sutis se d i v e r t e m e m m e i o aos f e n ô m e n o s sociais," (R.P., p . 182.)

CONCLUSÃO 151

ao contrário, que chegou, para a sociologia, o m o m e n t o de renunciar aos sucessos mundanos , por assim dizer, e de assumir o caráter esotérico que convém a toda ciência. Ela ganhará assim e m dign ida de e em autor idade o que perderá talvez e m popular idade . Pois, enquanlo permane­cer misturada às lutas dos partidos, enquanto se contentar em elaborar, c o m mais lógica d o que o v u l g o , as idéias c o m u n s e, p o r conseguinte , e n q u a n t o n ã o supuser ne­n h u m a competênc ia especial, ela não estará habil i tada a falar suficientemente alto para fazer calar as paixões e os preconcei tos . Seguramente, a inda está distante o t e m p o em que ela poderá desempenhar esse papel c o m eficácia; no entanto, é para torná-la capaz de representá-lo u m dia que precisamos, desde agora, trabalhar.

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NOTAS

Prefácios

1. Mas, objetam-nos, se a saúde contém elementos execrá­veis, como apresentá-la, tal como fazemos mais adiante, como o objetivo imediato da conduta? Nisso não há nenhuma contradi­ção. Acontece a todo instante que uma coisa, embora prejudicial por algumas de suas conseqüências, seja, por outras, útil ou mesmo necessária à vida; ora, se os maus efeitos que ela tem são regularmente neutralizados por uma influência contrária, ve­rifica-se de fato que ela serve sem prejudicar, não obstante con­tinue sendo execrável, pois não deixa de constituir por si mes­ma um perigo eventual que só é conjurado pela ação de uma força antagônica. E o caso do crime; o mal que ele faz à socie­dade é anulado pela pena, se esta funcionar regularmente. Por­tanto, o crime mantém com as condições fundamentais da vida as relações positivas que veremos a seguir, sem produzir o mal que implica. Só que, como ele se torna inofensivo contra sua vontade, por assim dizer, os sentimentos de aversão que suscita não deixam de ter fundamento.

2. O que significa que ele não deve ser confundido com a metafísica positivista de Comte e de Spencer.

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154 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

3. Vê-se que, para admitir essa proposição, não é necessá­rio afirmar que a vida social é feita de algo mais do que repre­sentações; basta estabelecer que as representações, individuais ou coletivas, só podem ser estudadas cientificamente com a con­dição de serem estudadas objetivamente.

4. A proposição, aliás, é só parcialmente exata. Além dos indivíduos, há as coisas que são elementos integrantes da socie­dade. É verdade, porém, que os indivíduos são seus únicos ele­mentos ativos.

5. É inútil mostrar como, desse ponto de vista, a necessida­de de estudar os fatos a partir do exterior afigura-se ainda mais evidente, uma vez que eles resultam de sínteses que ocorrem fo­ra de nós e das quais não temos sequer a percepção confusa que a consciência pode nos dar dos fenômenos interiores.

6. O poder coercitivo que lhe atribuímos não representa a totalidade do fato social, tanto assim que este pode apresentar igualmente o caráter oposto. Pois, ao mesmo tempo que as insti­tuições se impõem a nós, aderimos a elas; elas nos obrigam e as amamos; elas nos constrangem e vemos vantagens em seu fun­cionamento e nesse constrangimento mesmo. Essa antítese é a que os moralistas com freqüência assinalaram entre as noções do bem e do dever, que exprimem dois aspectos diferentes, mas igualmente reais, da vida moral. Ora, talvez não haja práticas co­letivas que não exerçam sobre nós essa dupla ação, que só é contraditória, aliás, em aparência. Se não as definimos por essa adesão especial, ao mesmo tempo interessada e desinteressada, é simplesmente porque esta não se manifesta por sinais exterio­res, facilmente perceptíveis. O bem tem algo de mais interno, de mais íntimo que o dever, portanto de menos discernível.

7. Ver o artigo "Sociologie" da Grande Encyclopédie, redigi­do por Fauconnet e Mauss.

8. Do fato de que as crenças e as práticas sociais nos pene­tram a partir do exterior, não se segue que as recebamos passi­vamente e sem lhes imprimir modificação. Ao pensarmos as ins­tituições coletivas, ao assimilá-las internamente, nós as individua­lizamos, conferimos a elas, em maior ou menor grau, nossa mar­ca pessoal; é assim que, ao pensar o mundo sensível, cada um

NOTAS 155

de nós o colore à sua maneira, e que sujeitos diferentes se adap­tam diferentemente a um mesmo meio físico. |>or isso, cm certa medida, cada um de nós faz sua moral, sua religião, sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda uma gama de nuances individuais. Não obstante, o campo das variações permitidas é limitado. Ele é nulo ou muito pequeno no círculo dos fenômenos religiosos e morais, onde a variação torna-se fa­cilmente um crime; é mais amplo em tudo o que concerne à vi ­da econômica. Mas, cedo ou tareie, mesmo nesse último caso, chega-se a um limite que não pode ser franqueado.

Introdução

1 . Système de Logique, I , VI, cap. VII-XII. 2. Ver Cours dephilosophiepositive, 2à ed., pp. 294-336.

Capítulo I

1 . O que não quer dizer, todavia, que toda coerção seja normal. Voltaremos mais adiante a esse ponto.

2. As pessoas não se suicidam em qualquer idade, nem em todas as idades, com a mesma intensidade.

3. Vê-se o quanto essa definição do fato social distancia-se cia que serve de base ao engenhoso sistema de Gabriel Tarde. Primeiramente, devemos declarar c[ue nossas pesquisas não nos fizeram constatar em parte alguma essa influência preponderante que o sr. Tarde atribui à imitação na gênese elos fatos coletivos. Ademais, da definição precedente, que não é uma teoria, mas um simples resumo dos dados imediatos da observação, parece resultar claramente que não apenas a imitação nem sempre ex prime, mas inclusive também jamais exprime o q u e ha d e csscii ciai e característico no fato social. Claro q u e lodo lalo social e imitado; ele possui, como acabamos d e moslrar, uma tendência a generalizar-se; mas isso por e l e ser social, islo e, obrigatório. Sua força ele expansão é, não a causa, mas a conseqüência d e seu < a

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156 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

ráter sociológico. Se os fatos sociais fossem os únicos a produzir essa conseqüência, a imitação poderia ainda servir, senão para exprimi-los, ao menos para defini-los. Mas um estado individual que é imitado nem por isso deixa de ser individual. Além disso, pode-se perguntar se a palavra imitação é exatamente a que con­vém para designar uma propagação devida a uma influência coer­citiva. Sob essa expressão única, confundem-se fenômenos muito diferentes e que precisariam ser distinguidos.

4. Esse íntimo parentesco da vida e da estrutura, do órgão e da função, pode ser facilmente estabelecido em sociologia porque, entre esses dois termos extremos, existe toda uma série de intermediários imediatamente observáveis e que mostra a l i ­gação entre eles. A biologia não dispõe do mesmo recurso. Mas é lícito supor que as induções da primeira dessas ciências sobre tal questão são aplicáveis à outra e que, tanto nos organismos como nas sociedades, existem apenas diferenças de grau entre essas duas ordens de fatos.

Capítulo II

1. Novum organum, I , p. 26. 2. Md., I , p. 17. 3. Md., p. 36. 4. Sociol., tr. fr., I I I , pp. 331, 332. 5. Md., p. 332. 6. Concepção, aliás, controversa. (Ver Division du travail

social, I I , p. 2, < > 4.) 7. "A cooperação não poderia portanto existir sem socieda­

de, e é o objetivo para o qual uma sociedade existe." (Principes de Social, I I I , p. 332.)

8. Système de logique, I I I , p. 496. 9. Esse caráter sobressai das expressões mesmas emprega­

das pelos economistas. A todo instante se trata de idéias, da idéia do útil, da idéia de poupança, de emprego do dinheiro, de despesa. (Ver Gide, Principes d'économie politique, liv. I I I , cap. I , < > 1 ; cap. I I , < > 1, cap. I I I , < > 1.)

NOTAS 157

10. É verdade que a complexidade maior dos fatos sociais torna sua ciência mais árdua. Mas, em compensação, precisa­mente porque a sociologia é a última a chegar, ela está em con­dições de aproveitar os progressos realizados pelas ciências in­feriores e de instruir-se na escola delas. Essa utilização das expe­riências realizadas não pode deixar de acelerar seu desenvolvi­mento.

11. J. Darmesteter, Les prophètes d'Israël, p. 9. * 12. Na prática, é sempre do conceito vulgar e da palavra

vulgar que se parte. Busca-se saber se, entre as coisas que essa palavra confusamente conota, há algumas que apresentam carac­teres comuns exteriores. Se houver.e se o conceito formado pelo grupamento dos fatos assim aproximados coincidir, se não total­mente (o que é raro), pelo menos na maior parte, com o concei­to vulgar, poder-se-á continuar a designar o primeiro pela mesma palavra que o segundo e conservar na ciência a expressão em­pregada na língua corrente. Mas, se a distância for muito consi­derável, se a noção comum confundir uma pluralidade de noções distintas, a criação de termos novos e especiais se impõe.

* Essa nota não figura no texto inicial. 13. É a mesma ausência de definição que fez dizer, às ve­

zes, que a democracia se encontrava igualmente no começo e no fim da história. A verdade é que a democracia primitiva e a atual são muito diferentes uma da outra.

14. Criminologie, p. 2. 15. Ver Lubbock, Les origines de la civilisation, cap. V I I I .

Mais geralmente ainda, diz-se, não menos falsamente, que as re­ligiões antigas são amorais ou imorais. A verdade é que elas têm uma moralidade própria.

16. Seria preciso, por exemplo, ter razões para acreditar que, num momento dado, o direito não mais exprima o estado verdadeiro das relações sociais, para que essa substituição não seja legítima.

17. Ver Division du travail social, 1. I . 18. Cf. nossa Introduction à la Sociologie de la famille, in

Annales de la Faculté des lettres de Bordeaux, ano de 1889.

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158 AS REGNAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

Capítulo III

* 1. Pode-se distinguir desse modo a doença da monstruo­sidade. A segunda só é uma exceção no espaço; ela não se veri­fica na média da espécie, mas dura toda a vida dos indivíduos nos quais se manifesta. Percebe-se, de resto, que essas duas or­dens de fatos só diferem em graus e são, no fundo, da mesma natureza; as fronteiras entre elas são muito indecisas, pois a doen­ça não é incapaz de qualquer fixidez, nem a monstruosidade de qualquer transformação. Não podemos portanto separá-las mui­to radicalmente quando as definimos. A distinção entre elas não pode ser mais categórica do que entre o morfológico e o fisioló­gico, uma vez que, em suma, o mórbido é o anormal na ordem fisiológica, assim como o teratológico é o anormal na ordem anatômica.

* Essa nota não figura no texto inicial. 2 . Por exemplo, o selvagem que tivesse o tubo digestivo

reduzido e o sistema nervoso desenvolvido do civilizado sadio seria um doente em relação a seu meio.

3. Abreviamos essa parte de nossa exposição; pois não pode­mos senão repetir aqui, a propósito cios fatos sociais em geral, o que dissemos alhures a propósito da distinção dos fatos morais em normais e anormais. (Ver Division du travatisocial, pp. 33-39.)

*4. O sr. Garofalo tentou, é verdade, distinguir o mórbido do anormal (Criminologie, pp. 109, 110). Mas os dois únicos ar­gumentos sobre os quais ele apóia essa distinção são os seguin­tes: 1) A palavra doença significa sempre algo que tende à des­truição total ou parcial do organismo; se não houver destruição, há cura, jamais estabilidade como em várias anomalias. Mas aca­bamos de ver que também o anormal é uma ameaça ao ser vivo na média dos casos. É verdade que nem sempre é assim; mas os perigos que a doença implica só existem igualmente na genera­lidade das circunstâncias. Quanto à ausência de estabilidade que distinguiria o mórbido, é esquecer as doenças crônicas e separar radicalmente o teratológico do patológico. As monstruosidades são fixas. 2) O normal e o anormal variam com as raças, dizem, enquanto a distinção do fisiológico e do patológico é válida pa-

V >l As 159

ra todo o genus homo. Acabamos de mostrar, ao contrário, que muitas vezes o que é mórbido para o selvagem não o é para o civilizado. As condições da saúde física variam com os meios.

* Essa nota não figura no texto inicial. 5. Pode-se perguntar, é verdade, se, quando um fenômeno

deriva necessariamente das condições gerais da vicia, ele não é útil por isso mesmo. Não podemos tratar essa questão de filoso­fia, mas iremos abordá-la um pouco mais adiante.

6. Ver sobre esse ponto uma nota que publicamos na Rv-vuephilosopbique (novembro de 1893) sobre "A definição do socialismo".

7. As sociedades segmentares, notadamente as sociedades segmentares com base territorial, são aquelas cujas articulações essenciais correspondem às divisões territoriais. (Ver Division du travailsocial, pp. 189-210.)

8. Em certos casos, pode-se proceder um pouco diferente­mente e demonstrar que um fato cujo caráter normal é suspeito merece ou não essa suspeita, mostrando-se que ele está intima­mente ligado ao desenvolvimento anterior do tipo social consi­derado e, mesmo, ao conjunto da evolução social em geral, ou, ao contrário, que contradiz a ambos. Foi dessa maneira que pu­demos demonstrar que o enfraquecimento atual das crenças reli­giosas e, de maneira mais geral, dos sentimentos coletivos por objetos coletivos é apenas normal; provamos que esse enfraque­cimento torna-se cada vez mais pronunciado à medida que as sociedades se aproximam de nosso tipo atual e que este, por sua vez, é mais desenvolvido (Division du travail social, pp. 73¬182). Mas, no fundo, esse método é apenas um caso particular do precedente. Pois, se a normalidade desse fenômeno pôde ser estabelecida dessa forma, é que, com isso, ele foi associado às condições mais gerais de nossa existência coletiva. De fato, por um lado, se essa regressão da consciência religiosa é tanto mais acentuada quanto mais determinada for a estrutura de nossas so­ciedades, é que ela se deve não a uma causa acidental, mas à constituição mesma de nosso meio social; e como, por outro la­do, as particularidades características desta última são certamen­te mais desenvolvidas hoje do que um tempo atrás, é normal

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160 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

que os fenômenos que delas dependem sejam eles próprios am­plificados. Esse método difere do anterior somente no fato de que as condições que explicam e justificam a generalidade do fenômeno são induzidas e não diretamente observadas. Sabe-se que esse fenômeno está ligado à natureza do meio social sem saber em que nem como.

9. Mas nesse caso, dirão, a realização do tipo normal não é o objetivo mais elevado que se pode propor, e, para superá-lo, é preciso também superar a ciência. Não precisamos tratar aqui essa questão exprofesso; respondamos apenas: 1) que ela é in­teiramente teórica, pois, na verdade, o tipo normal, o estado de saúde, já é bastante difícil de realizar e muito raramente alcança­do para que façamos funcionar a imaginação em busca de algo melhor; 2) que esses melhoramentos, objetivamente mais vanta­josos, nem por isso são objetivamente desejáveis; pois, se não correspondem a alguma tendência latente ou em ato, eles nada acrescentariam à felicidade, e, se correspondem a alguma ten­dência, é porque o tipo normal não está realizado; 3) enfim que, para melhorar o tipo normal, é preciso conhecê-lo. Portanto, se­ja como for, só se pode superar a ciência apoiando-se nela.

10. Do fato de o crime ser um fenômeno de sociologia nor­mal, não se segue que o criminoso seja u m indivíduo normal­mente constituído do ponto de vista biológico e psicológico. As duas questões são independentes uma da outra. Compreender-se-á melhor essa independência quando tivermos mostrado, mais adiante, a diferença existente entre os fatos psíquicos e os fatos sociológicos.

11. Calúnias, injúrias, difamação, dolo, etc. 12. Nós mesmos cometemos o erro de falar assim do crimi­

noso, por não termos aplicado nossa regra (Division du travail social, pp. 395, 396).

13. Aliás, de que o crime seja um fato de sociologia normal não se segue que não se deva odiá-lo. Também a dor nada tem de desejável; o indivíduo a odeia assim como a sociedade odeia o crime, e não obstante ela tem a ver com a fisiologia normal. Ela não apenas deriva necessariamente da constituição mesma de todo ser vivo, mas também desempenha um papel útil na vi -

NOTAS 161

da, no qual não pode ser substituída. 'Seria portanto desnaturar singularmente nosso pensamento apresentá-lo como uma apolo­gia do crime. Não pensaríamos sequer em protestar contra tal in­terpretação, se não soubéssemos a que estranhas acusações e a que mal-entendidos alguém se expõe, quando empreende estu­dar os fatos morais objetivamente e falar deles numa linguagem que não é a do vulgo.*

* Frases que não figuram no texto inicial. 14. Ver Garofalo, Criminologie, p. 299. * 15. Da teoria desenvolvida neste capítulo concluiu-se às

vezes que, em nossa opinião, a marcha ascendente da criminali­dade ao longo do século XIX era um fenômeno normal. Nada mais distante de nosso pensamento. Vários fatos que indicamos a propósito do suicídio (ver Le Suicide, p. 420 e ss.) nos levam a pensar, ao contrário, que esse desenvolvimento é, em geral, mórbido. Contudo, poderia ocorrer que certo crescimento de al­gumas formas de criminalidade fosse normal, pois cada estado de civilização tem sua criminalidade própria. Mas a esse respeito não se podem emitir mais que hipóteses.

* Nota introduzida na edição de 1901.

Capítulo IV

1. Chamo-o assim porque ele foi freqüente entre os historia­dores, mas não quero dizer que se verifique em todos.

2. Cours dephilos. pos., IV, p. 263¬3. Novum organum, I I , < > 36. 4. Sociologie, I I , p. 135. 5. "Nem sempre podemos dizer com precisão o que consti­

tui uma sociedade simples." (Ibid., pp. 135, 136.) 6. Ibid., p. 136. 7. Division du travail social, p. 189. 8. Todavia é provável que, em geral, a distância entre as

sociedades componentes não fosse muito grande; caso contrá­rio, não poderia haver entre elas nenhuma comunidade moral.

9. Não é esse o caso do Império romano, que parece não ter equivalente na história?

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162 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

* 10. Ao redigirmos este capítulo para a primeira edição desta obra, nada dissemos do método que consiste em classificar as socie­dades segundo seu estado de civilização. Naquele momento, com efeito, não existiam classificações desse gênero que fossem propos­tas por sociólogos autorizados, exceto talvez aquela, evidentemente arcaica, de Comte. Desde então, várias tentativas foram feitas nesse sentido, notadamente por Vierkandt (Die Kulturtypen der Mens-cbeit, in Archiv. f. Antbropologie, 1898), por Sutherland (Tbe Origin and Growth of the Moral Instinct) e por Steinmetz (Classification des types sociaux, in Année sociologique, I I I , pp. 43-147). Todavia, não nos deteremos a discuti-las, pois não respondem ao problema colocado neste capítulo. Nelas são classificadas, não espécies sociais, mas, o que é bem diferente, fases históricas. A França, desde suas origens, passou por formas de civilização muito distintas: começou por ser agrícola, passando a seguir ao artesanato e ao pequeno co­mércio, depois à manufatura e finalmente à grande indústria. Ora, é impossível admitir que uma mesma individualidade coletiva possa mudar de espécie três ou quatro vezes. Uma espécie deve ser defi­nida por caracteres mais constantes. O estado econômico, tecnoló­gico, etc, apresenta fenômenos demasiado instáveis e complexos para fornecer a base de uma classificação. É possível, inclusive, que uma mesma civilização industrial, científica, artística possa se verifi­car em sociedades cuja constituição congênita seja muito diferente. O Japão pode vir a incorporar nossas artes, nossa indústria, até mesmo nossa organização política; nem por isso deixará de perten­cer a uma espécie social diferente das da França e da Alemanha. Acrescentemos que essas tentativas, embora conduzidas por soció­logos de valor, forneceram apenas resultados vagos, contestáveis e de pouca utilidade.

* Nota introduzida na edição de 1901.

Capítulo V

1. Cours dephilos. pos., IV, p. 262. 2. Sociologie, I I I , p. 336. 3. Division du travail, 1. I I , cap. I I I e IV.

NOTAS 163

4. Não gostaríamos de levantar questões de filosofia geral,-que não estariam aqui em seu lugar apropriado. Notemos po­rém que, mais bem estudada, essa reciprocidade da causa e do efeito poderia proporcionar um meio de reconciliar o mecanis­mo científico com o finalismo que a existência e sobretudo a persistência da vida implicam.

5. Division du travail, 1. I I , cap. I I , e notadamente pp. 105 e ss.

6. Ibid., pp. 52, 53¬7. Ibid., pp. 301 e ss. 8. Cours de philos. pos., IV, p. 333. 9. Ibid., p. 345. 10. Ibid., p. 346. 11. Ibid., p. 335. 12. Príncipes de sociologie, I , 14, p. 14. 13. Op. cit, I , p. 583. 14. Ibid., p. 582. 15. Ibid., p. 18. 16. "A sociedade existe para o proveito de seus membros,

os membros não existem para o proveito da sociedade...; os di­reitos do corpo político nada são em si mesmos, eles só se tor­nam alguma coisa se encarnarem os direitos dos indivíduos que o compõem." (Op. cit., I I , p. 20.)

*17. Eis em que sentido e por que razões se pocie e se deve falar de uma consciência coletiva distinta das consciências indi­viduais. Para justificar essa distinção, não é necessário hipostasiar a primeira; ela é algo de especial e deve ser designada por um termo especial, simplesmente porque os estados que a constituem diferem especificamente daqueles que constituem as consciências particulares. Essa especificidade decorre de esses estados não serem formados cios mesmos elementos. Uns, com efeito, resul­tam da natureza do ser orgânico-psíquico tomado isoladamente, os outros da combinação de uma pluralidade de seres desse t i ­po. As resultantes não podem portanto deixar de diferir, visto que os componentes diferem a tal ponto. Nossa definição do fa­to social, aliás, apenas assinalava de outra maneira essa linha cie demarcação.

* Essa nota não figura no texto inicial.

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164 AS NEGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

18. Se é que ela existe antes de toda vida social. Ver sobre esse ponto Espinas, Sociétés animales, p. 474.

19. Division du travail social, 1. I I , cap. I . 20. Os fenômenos psíquicos só podem ter conseqüências

sociais quando se encontram tão intimamente unidos a fenôme­nos sociais que a ação de ambos se confunde. É o caso de cer­tos fatos sociopsíquicos. Assim, um funcionário é uma força so­cial, mas é ao mesmo tempo um indivíduo. Disso resulta que ele pode servir-se da energia social que detém, num sentido deter­minado por sua natureza individual e, deste modo, ter uma in­fluência sobre a constituição da sociedade. É o que acontece com os homens de Estado e, de maneira mais geral, com os ho­mens de gênio. Estes, mesmo que não cumpram uma função so­cial, extraem dos sentimentos coletivos de que são objeto uma autoridade que constitui, ela própria, uma força social, que eles podem, em certa medida, pôr a serviço de idéias pessoais. Mas percebe-se que esses casos são devidos a acidentes individuais e, por conseguinte, não poderiam afetar os traços constitutivos da espécie social, que é o único objeto de ciência. A restrição ao princípio enunciado mais acima não é portanto de grande im­portância para o sociólogo.

21. Cometemos o erro, em nossa Division du travail, de real­çar a densidade material como a expressão exata da densidade dinâmica. Todavia, a substituição da primeira pela segunda é absolutamente legítima em relação a tudo o que concerne aos efeitos econômicos desta, por exemplo, a divisão do trabalho como fato puramente econômico.

22. A posição de Comte sobre esse assunto é de um ecletis­mo bastante ambíguo.

23. Eis por que nem toda coerção é normal. Somente mere­ce esse nome a que corresponde a alguma superioridade social, isto é, intelectual ou moral. Mas a que um indivíduo exerce so­bre outro por ser mais forte ou mais rico, sobretudo se essa r i ­queza não exprime seu valor social, é anormal e só pode ser mantida pela violência.

24. Nossa teoria é inclusive mais contrária à de Hobbes que a do direito natural. Com efeito, para os defensores desta última

NOTAS 165

doutrina, a vida coletiva só é natural na medida em que pode ser deduzida da natureza individual. Ora, somente as formas mais gerais da organização social podem, a rigor, ser derivadas dessa origem. Quanto aos detalhes, encontram-se muito afasta­dos da extrema generalidade das propriedades psíquicas para poderem ser ligados a elas; assim eles parecem, para os discípu­los dessa escola, tão artificiais quanto para seus adversários. Pa­ra nós, ao contrário, tudo é natural, mesmo os arranjos mais es­peciais; pois tudo está fundado na natureza da sociedade.

Capitulo VI

1. Cours dephilosopbiepositive, IV, p. 328. 2. Système de logique, I I , p. 478. 3. Division du travail social, p. 87. *4. No caso do método de diferença, a ausência da causa

exclui a presença do efeito. * Essa nota não figura no texto inicial.

Conclusão

*l. Portanto, não há motivo para qualificar nosso método de materialista.

* Essa nota não figura no texto inicial.