resumos sociologia - Émile durkheim
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Resumos Sociologia - Émile DurkheimTRANSCRIPT
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ÉMILE DURKHEIM
Durkheim é um sociólogo francês nascido em 1858 que veio a dar corpo
conteúdo e método à nova disciplina nascida com Comte de quem aliás
foi discípulo.
A sua formação de base era a Filosofia e foi ao elaborar uma tese sobre
a divisão do trabalho social que compreendeu que o prblema que tentava
resolver era do domínio da Sociologia. Foi a partir daí que empreendeu
vários esforços teóricos para criar um método para a nova Ciência. Viria
a preocupar-se sobretudo com as relações entre o indivíduo e a socieda-
de, o impacto das grandes estruturas da sociedade no indivíduo, com a
própria sociedade e com os pensamentos e acções dos indivíduos.
Como é que uma colecção de indivíduos pode constituir uma sociedade?
Como é que os indivíduos podem realizar essa condição da existência
social que é o consenso?1 Estas são algumas das questões a que
Durkheim vai procurar dar resposta ao longo de toda a sua obra.
O seu trabalho foi fundamental para a teoria estrutural-funcionalista com
a sua ênfase na estrutura social e na cultura.
Como base de toda a sociologia durkheimiana está o FACTO SOCIAL.
Em termos modernos os factos sociais são as estruturas sociais e nor-
mas e valores culturais que são externas e que coagem os agentes soci-
ais.
De outra forma podemos definir os factos sociais como “maneiras de
agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de
existir fora das consciências individuais”.
1 Aron, Raymond – “As Étapas do Pensamento Sociológico” – Publicações D. Quixote – 3ª Edição (1992:314)
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Além disso os factos sociais são “dotados de um poder imperativo e co-
ercivo em virtude do qual se lhe impõem (ao indivíduo) quer queira ou
não”.
Esta característica intrínseca dos factos sociais torna-se evidente “pela
existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o facto
opõe a qualquer iniciativa individual que tenda a violá-lo”.
Exterioridade e poder coercivo são deste modo os elementos definidores
dos factos sociais.
Há uma terceira característica definidora dos factos sociais para
Durkheim – a difusão que tem no grupo e portanto a sua generalidade.
Por exemplo, vós que estais aqui a nesta aula, fazei-lo porque são coa-
gidos:
� Por um lado pelas regras do ensino superior
� Por outro lado pelas regras e valores da nossa sociedade
que continuam a dar grande importância à obtenção de um
curso superior apesar das grandes quantidades de desem-
pregados que começam a surgir mesmo entre pessoas as-
sim habilitadas
Na nossa sociedade que se queira opor a esta necessidade de conheci-
mento (e de conhecimento institucional reconhecido pela sociedade atra-
vés das escolas) tem muito mais dificuldades para aceder ao poder eco-
nómico ou político.
DURKHEIM E OS FACTOS SOCIAIS
Ao tempo de Durkheim não existiam escolas ou faculdades de sociologia
apesar de Comte já ter inventado o termo alguns anos antes. A Filosofia
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e a Psicologia reclamavam o campo teórico que a Sociologia aparecia a
reivindicar como sendo seu.
Para separar a Sociologia destas outras Ciências Durkheim orientou-a
para a investigação empírica. Ao fazê-lo impôs-se também àqueles que
como Comte e Spencer estavam mais inclinados para filosofar e criar te-
orias abstractas do que propriamente para estudar o mundo social a par-
tir de um ponto de vista empírico.
Deste ponto de vista Durkheim atacou Comte acusando de assumir teori-
camente que o mundo estava a evoluir para uma sociedade mais perfeita
em vez de estudar empiricamente a evolução das diferentes sociedades,
e atacou Spencer de assumir a harmonia na sociedade sem procurar
primeiro estudar se de facto a harmonia existia na sociedade.
Durkheim utilizou então, para separar as águas, o conceito de facto soci-
al procurando distinguir, deste modo, a sua sociologia das sociologias
essencialmente abstractas e introspectivas de Comte e de Spencer.
Uma primeira ideia surgiu: os factos sociais deviam ser tratados como
coisas. Deveriam por isso ser estudados empiricamente e não filosofica-
mente. Para Durkheim as ideias podem ser conhecidas pela via da in-
trospecção mas as coisas só podem ser conhecidas através de dados
exteriores à mente das pessoas. Os factos sociais são, para Durkheim,
os únicos dados de que os sociólogos dispõem, que se oferecem à sua
observação.
Não consegue, contudo, desta maneira, escapar à hegemonia da Psico-
logia que era uma Ciência já constituída e altamente empírica. Para es-
capar ao seu domínio a Durkheim não bastava pois, caracterizar os fac-
tos sociais como sendo coisas. Essa é uma das razões por que
Durkheim vai argumentar que eles eram também exteriores aos indiví-
duos e que lhes eram coercivos. Desta forma separavam-se as águas
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entre a Sociologia e a Psicologia, sendo esta a ciência dos factos sociais
internos (herdados), os factos psicológicos enquanto que aquela seria a
ciência dos factos sociais externos, os verdadeiros factos sociais.
Esta demarcação radical permitiu de facto à Sociologia ganhar o seu di-
reito de cidadania no seio das ciências mas veio a ter custos demasiado
elevados sobretudo no que toca a uma limitação, que ainda hoje dura, do
campo de acção da sociologia.
Os factos sociais como coisas externas serviram para limitar o campo da
sociologia pela negativa. Mas como definir pela positiva um facto social?
Durkheim fala-nos em dois tipos distintos de factos sociais: os factos so-
ciais materiais e os factos sociais imateriais.
Factos sociais materiais são aqueles que resultam da materialização
desses factos em elementos concretos do mundo real. Dois bons exem-
plos, fáceis de compreender são por exemplo a arquitectura (o edifício do
palácio da justiça) e a lei (o código que reúne todas as leis).
Mas o coração da teoria de Durkheim assenta nos factos sociais imateri-
ais – nas suas próprias palavras « nem toda a consciência social atinge...
a externalização e a materialização». Assim bons exemplos daquilo a
que Durkheim chama factos sociais imateriais são por exemplo aquilo a
que os sociólogos chamam normas e valores, ou pura e simplesmente a
cultura.
Só que daqui resulta um problema: como é que a cultura pode existir
noutro lado que não nas cabeças dos agentes? Ou seja como podem os
factos sociais imateriais ser exteriores ao indivíduo?
Durkheim resolveu este problema argumentando que as consciências
individuais se fundem constituindo uma individualidade física de um novo
tipo, com uma existência própria relativamente às consciências individu-
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ais e que lhes é exterior e coerciva. Trata-se de uma realidade mental
mas que é externa às realidades psicológicas individuais. Desta maneira
resulta claramente que para Durkheim a Sociologia preocupa-se com
normas e valores enquanto que a Psicologia se preocupa com os instin-
tos humanos e com o seu comportamento inato.
OS VÁRIOS NÍVEIS DE FACTOS SOCIAIS
Durkheim começa com o nível dos factos materiais não porque sejam
para ele os mais importantes mas porque os seus elementos têm para si,
as mais das vezes, primazia causal na sua teorização, afectando ou de-
terminando os factos sociais imateriais, que constituem na realidade o
objecto primordial do seu estudo.
Temos assim para Durkheim os seguintes níveis principais da realidade
social (discriminados por ordem decrescente de generalidade nos dois
níveis):
���� FACTOS SOCIAIS MATERIAIS
� Sociedade
� Componentes estruturais da sociedade (por exemplo o
Estado e a Igreja)
� Componentes morfológicos da sociedade – maneiras
de ser colectivas que correspondem ao substrato da vida colectiva
tais como: o número e a natureza das partes elementares que
constituem a sociedade, a maneira comos estão dispostas e o grau
de coesão que atingiram, o número e a natureza das vias de co-
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municação, a distribuição da população pela superfície do território,
a forma das habitações, etc
���� FACTOS SOCIAIS NÃO MATERIAIS
� Moralidade
� Consciência colectiva
� Representações colectivas
� Correntes sociais
Esta última classificação traduz o facto de Durkheim contemplar a exis-
tência de diferentes graus de institucionalização, consolidação, fixidez ou
cristalização dos factos sociais imateriais. De facto a par das crenças e
práticas sociais constituídas (regras jurídicas e morais, dogmas religio-
sos) institucionalizados e consolidados por séculos de vida social,
Durkheim considera a existência de correntes sociais que, embora dota-
das do mesmo ascendente e exterioridade relativamente aos indivíduos
são caracterizadas por um muito menor grau de consolidação ou sequer
de fixidez.
Vejamos um exemplo de Durkheim:
“Numa assembleia, as grandes manifestações de entusiasmo, de
indignação e de piedade que se desencadeiam, não têm a sua ori-
gem em nenhuma consciência particular. Chegam a cada um de nós
do exterior e são susceptíveis de nos arrastar contra a nossa vonta-
de. Sem, dúvida pode acontecer que, abandonando-me a elas sem
reserva, eu não sinta a pressão que exercem sobre mim. Mas ela
manifesta-se logo que eu tento lutar contra elas (…) Ora, o que di-
zemos destas explosões passageiras aplica-se também aos movi-
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mentos de opinião mais duradouros que se produzem incessante-
mente à nossa volta, quer em toda a extensão da sociedade, quer
em círculos mais restritos (…) Assim há certas correntes de opinião
que nos levam, com intensidade desigual segundo o tempo e os pa-
íses , um ao casamento, outra ao suicídio ou a uma natalidade mais
ou menos forte, etc.”
A DIVISÃO DO TRABALHO NA SOCIEDADE
Nesta sua obra Durkheim baseia a sua análise na existência de dois ti-
pos ideia de sociedade: uma mais primitiva caracterizada pela existência
de solidariedade mecânica, que tem uma estrutura social relativamente
indiferenciada e sem divisão de trabalho; outra mais moderna, caracteri-
zada pela existência de uma solidariedade orgânica e por uma divisão
social do trabalho muito mais sofisticada.
Para Durkheim a divisão de trabalho é um facto social material relaciona-
do como grau de especialização existente na sociedade.
Nas sociedades primitivas as pessoas tendem a ocupar lugares mal defi-
nidos na sociedade; este facto está relacionado com desempenho por
cada uma delas de um largo escopo de responsabilidades: cada um des-
tes indivíduos tende a ser um homem dos sete ofícios. Ao contrário os
indivíduos que vivem em sociedades mais modernas desempenham tare-
fas mais especializadas e têm por isso atribuído um escopo de tarefas
muito mais limitado.
Por exemplo uma dona de casa numa sociedade primitiva é muito menos
especializada do que uma dona de casa numa sociedade moderna onde
existem serviços de lavandaria, serviços de puericultura, serviços de en-
trega ao domicílio, e electrodomésticos que desempenham tarefas que
antes estava a cargo da dona de casa.
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As mudanças no grau de divisão do trabalho têm grandes repercussões
na estrutura da sociedade que se reflectem particularmente na existência
de dois tipos de solidariedade diferentes – mecânica e orgânica.
Ao falar em solidariedade Durkheim procurava descobrir os mecanis-
mos que impedem a sociedade de se desagregar:
Uma sociedade caracterizada por solidariedade mecânica não se desa-
grega porque todos são generalistas (não especializados). As pessoas
estão ligadas porque têm todas ocupações e responsabilidades seme-
lhantes. Pelo contrário uma sociedade caracterizada por solidariedade
orgânica é mantida coesa pelas diferenças entre as pessoas pelo facto
de terem todas especializações complementares. Nestas sociedades,
pelo facto de as pessoas terem capacidades num âmbito muito restrito
de actividades precisam da colaboração do resto da sociedade para so-
breviverem.
A família primitiva composta pelo pai caçador e pela mãe recolectora ou
agricultora é praticamente auto-suficiente enquanto que a família moder-
na precisa, para sobreviver, do merceeiro, do padeiro, do mecânico, do
professor, do polícia, etc.
Durkheim interessava-se, contudo, não apenas pela especialização das
pessoas mas também pela especialização dos grupos, das estruturas e
das instituições.
Note-se ainda que nas sociedades mais primitivas onde existe uma
grande similaridade nas ocupações das pessoas é muito mais provável
que surjam tensões competitivas do que nas sociedades onde as ocupa-
ções das pessoas são muito mais díspares o que permite que nestas úl-
timas haja maior incentivo à cooperação e que uma mesma base eco-
nómica suporte maiores comunidades. Desta forma a sociedade caracte-
rizada por solidariedade orgânica conduz a mais solidariedade e mais
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individualismo do que uma sociedade caracterizada por solidariedade
mecânica.
A solidariedade orgânica aparece assim para Durkheim como uma forma
de compatibilizar a ordem social e a autonomia individual.
A DENSIDADE DINÂMICA
A divisão do trabalho era um facto social material para Durkheim por ser
o padrão de interacção no mundo social.
Outro facto social material era para o autor o maior factor causal da tran-
sição da solidariedade mecânica para a orgânica – a densidade dinâmi-
ca.
Este conceito refere-se ao número de pessoas numa sociedade e à
quantidade de interacção que ocorre entre elas.
Nem o aumento de população nem o aumento de interacção por si só
são factores significativos de mudança societal. É o aumento simultâneo
do número de pessoas e de interacção entre elas que leva à mudança da
solidariedade mecânica para a orgânica ao trazerem uma maior competi-
ção pelos recursos escassos e uma luta mais intensa pela sobrevivência
entre os vários componentes similares e paralelos da sociedade primiti-
va: precisamente porque os vários indivíduos, grupos, famílias, tribos,
etc., desempenham funções virtualmente idênticas estabelecem-se entre
eles tensões principalmente se os recursos forem escassos.
O aumento da divisão de trabalho permite às pessoas e às estruturas
sociais que elas criam a criação de complementaridades que atenuam os
conflitos e tornam a coexistência mais fácil. Além disso o aumento da di-
visão de trabalho proporciona maior eficiência, que se transforma numa
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maior disponibilidade de recursos que permite que a sociedade sobreviva
de uma forma mais pacífica.
Apesar de estar interessado em explicar como é que a divisão de traba-
lho e a densidade dinâmica conduziram a diferentes tipos de solidarieda-
de social, Durkheim preocupava-se principalmente com o impacto destas
mudanças materiais e com a natureza dos factos sociais imateriais tanto
nas sociedades mecânicas como orgânicas. Contudo, por causa da ima-
gem que tinha do que era a sociologia, Durkheim achou que era impossí-
vel estudar factos imateriais directamente – tal seria uma abordagem
mais filosófica ou psicológica como já vimos. Para estudar os factos so-
ciais imateriais cientificamente o sociólogo teria que procurar examinar
factos sociais materiais que reflectissem a natureza e as mudanças nos
factos sociais imateriais.
Então no seu livro, “A Divisão do Trabalho na Sociedade”, o facto social
material que Durkheim utiliza para estudar as mudanças nas formas de
solidariedade é o Direito. São as diferenças entre a lei nas sociedades
coesas devido à solidariedade mecânica e a lei nas sociedades coesas
graças à solidariedade orgânica que lhe vão permitir estudar como é que
as sociedades passam de um tipo para outro.
O direito
Segundo Durkheim uma sociedade coesa por solidariedade mecânica é
caracterizada pelo direito repressivo. Nestas sociedades, como já
vimos, as pessoas são muito semelhantes e dado que tendem a acreditar
numa moral comum, qualquer ofensa contra o seu sistema de crenças
tenderá a ser considerado como tal por todos os membros da comunida-
de. Dado que além disso estes acreditam profundamente na moralidade
que partilham, um prevaricador tenderá a ser severamente punido por
qualquer acção que seja considerada uma ofensa contra a moral colecti-
va do sistema: é assim que o roubo de um porco leva ao corte das mãos
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do ladrão, que blasfemar contra Deus leva ao corte da língua do blasfe-
mo.
As pessoas estão de tal modo envolvidas no sistema moral que uma
ofensa tem que ser severamente punida.
Ao contrário, uma sociedade com solidariedade orgânica é caracterizada
por aquilo a que Durkheim chama direito restituitivo. Nestas socieda-
des os prevaricadores em vez de serem severamente punidos são leva-
dos a cumprir a lei ou a indemnizar – fazendo a restituição – de acordo
com o que resultaria se tivessem desde o início cumprido a lei.
Apesar de ainda persistirem algumas leis repressivas nas sociedades
com solidariedade orgânica (a pena de morte por exemplo) é o direito
restituitivo que as caracteriza. Isto resulta do facto de não existir uma mo-
ral comum forte e coerciva: a maior parte das pessoas não reage emoci-
onalmente à transgressão da lei.
Nas sociedades de solidariedade mecânica a lei é controlada pelas mas-
sas enquanto que nas sociedades de solidariedade orgânica o controlo
da lei repousa nas mão de agentes especializados como a polícia e os
tribunais – facto que é aliás consistente com a divisão do trabalho neste
tipo de sociedades.
Decorre desta análise que, para Durkheim, as alterações num facto soci-
al material são meros reflexos de mudanças em factos sociais imateriais
– muito mais cruciais para a interpretação sociológica – tais como a mo-
ralidade, a consciência colectiva, as representações colectivas, etc.
A ANOMIA
Muitos dos problemas de que Durkheim se ocupa resultam directamente
da sua preocupação com o declínio da moralidade.
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É o conceito de anomia que melhor exprime essa sua preocupação com
o declínio de uma moral colectiva.
Definição: os indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade di-
zem-se confrontados com a anomia quando não existe nessa sociedade
uma coerção moral suficientemente forte, ou seja quando não têm uma
noção clara daquilo que são comportamentos aceitáveis e não aceitá-
veis.
Para Durkheim a principal patologia das sociedades modernas era a divi-
são de trabalho anómica. Ao considerar a anomia como uma patologia
Durkheim exprimia a sua convicção profunda de que os «males» da so-
ciedade moderna podiam ser «curados». Ele acreditava que a divisão do
trabalho nas sociedades modernas era uma fonte de coesão social que
compensava o declínio da força da moral colectiva, contudo não confiava
que essa nova fonte de coesão social compensasse exactamente a per-
da que resultava do desaparecimento progressivo da moral colectiva. Daí
resultaria então um deficit de coesão social imputável ao surgimento da
forma dominante da solidariedade orgânica.
Segundo esta visão nas sociedades modernas os indivíduos, nas suas
novas tarefas e papéis altamente especializados poderiam com facilidade
ficar isolados e à deriva, sem saberem para onde é o Norte. Podem com
muito mais facilidade deixar de sentir um laço de comunhão com aqueles
que os cercam nas sociedades em que vivem. Deve notar-se que para
Durkheim esta seria uma situação anormal – o normal seria que não sur-
gisse a anomia.
É esta uma das categorias que Durkheim vai usar como explicativas para
o aumento da taxa de suicídio nas sociedades modernas – o suicídio
anómico vai ocorrer devido ao declínio da moral colectiva e à falta de re-
gulação externa que coaja o indivíduo a controlar as suas paixões.
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A CONSCIÊNCIA COLECTIVA
Durkheim tentou resolver o problema da moral colectiva de várias manei-
ras e através de vários conceitos. Nos seus primeiros esforços para o
fazer Durkheim criou o conceito de consciência colectiva que caracteri-
zou na “divisão do trabalho na sociedade» da seguinte forma:
«...é a totalidade de crenças e sentimentos comuns à média dos cida-
dãos de uma sociedade que forma um sistema que tem uma vida própria;
pode-se chamar-lhe consciência colectiva ou comum... É assim, uma en-
tidade própria diferente das consciências individuais, apesar de apenas
poder ser concretizada a partir delas»
Importa reter alguns dos pontos desta definição.
1. é claro que Durkheim pensa no fenómeno como atravessan-
do toda a sociedade ao referir-se aos sentimentos e crenças
da totalidade dos cidadãos de uma sociedade;
2. Durkheim concebe a consciência colectiva como sendo um
sistema cultural independente embora concretizado através
das consciências individuais;
O conceito de consciência colectiva permite-nos regressar à descrição
que Durkheim faz, na Divisão do Trabalho , dos factos sociais materiais e
das suas relações com a moral comum. A lógica do seu raciocínio é que
o aumento da divisão do trabalho (trazida por um aumento de densidade
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dinâmica) causa a transformação (uma diminuição, mas não o desapare-
cimento) da consciência colectiva.
A consciência colectiva tem muito menos importância numa sociedade
com solidariedade orgânica do que numa sociedade com solidariedade
mecânica, já que, nas sociedades modernas a coesão dos indivíduos é
assegurada, em muito maior parte, pela divisão do trabalho e pela ne-
cessidade resultante de que um grande número de funções seja desem-
penhado por outros, do que, propriamente, pela existência de uma cons-
ciência colectiva poderosa.
Segundo alguns autores modernos, a consciência colectiva nos dois ti-
pos de sociedade pode ser diferenciada em 4 dimensões: volume, inten-
sidade, rigidez e conteúdo.
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Teremos
Volume Número de pessoas envolvi-
das pela consciência colectiva
Intensidade Profundidade dos sentimentos
que os indivíduos têm pela
Consciência colectiva
Rigidez Clareza com que está definida
Conteúdo Forma que a C. C. assume
nos dois tipos polares de so-
ciedade (i. e. na sociedade
com solidariedade mecânica e
orgânica)
Veja-se na página seguinte
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Solidariedade mecânica Solidariedade orgânica
Volume A consciência colectiva cobre virtu-
almente toda a sociedade e os seus
membros;
A consciência é limitada no seu domínio e
no número de pessoas que envolve;
Intensidade Impõem-se aos indivíduos com
grande intensidade o que é patente
pelo uso de um direito repressivo;
A adesão colectiva é muito menos intensa,
facto que é patente pela substituição do
direito repressivo pelo direito restituitivo;
Rigidez É extremamente rígido; Não é muito rígido;
Conteúdo O seu conteúdo é altamente religio-
so;
O seu conteúdo pode ser descrito como
individualismo moral (e elevação da impor-
tância do individual ao nível de um precei-
to moral);
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REPRESENTAÇÕES COLECTIVAS
A ideia de consciência colectiva apesar de útil é muito lata e demasiado
amorfa – por isso pouco operacional – facto que leva Durkheim a aban-
doná-la progressivamente trocando-a pelo conceito de representação
colectiva. Esta pode ser encarada como estados específicos da consci-
ência colectiva.
Nas nossas sociedades modernas podemos olhar para as representa-
ções colectivas como as normas e valores de colectividades específicas
como a família, a profissão o estado e as instituições religiosas e educa-
cionais.
O conceito de representação colectiva pode ser utilizado de maneira tan-
to lata como específica. O que é relevante para nós é que Durkheim ser-
viu-se deste conceito para conceptualizar os factos sociais imateriais de
um modo mais restrito do que através do conceito generalista de consci-
ência colectiva.
Para Durkheim apesar da sua grande especificidade as representações
colectivas não são redutíveis ao nível da consciência individual: «as re-
presentações colectivas resultam do substrato de indivíduos associados
mas têm características sui generis»
Durkheim pretendia dizer que o carácter único das representações colec-
tivas não permitia que fossem redutíveis à consciência individual. Este
facto coloca-as no reino dos factos sociais imateriais. Estas representa-
ções transcendem o individual porque não dependem de nenhum indiví-
duo particular para a sua existência. São também independentes dos in-
divíduos no sentido de que o seu escopo temporal é maior do que o da
vida dos indivíduos.
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As representações colectivas são uma componente central do sistema de
factos sociais imateriais de Durkheim.
O ESTUDO DO SUICÍDIO
O estudo do suicídio tem particular importância na história da Sociologia
porque Durkheim, onde outros viam o suicídio como o resultado de um
processo de desestruturação psicológica que podia estar ligado a senti-
mentos opressivos de culpa , viu o sintoma e o produto de um enfraque-
cimento da coesão da sociedade cujos membros se tornaram menos
solidários e mais individualistas.
Durkheim trata, deste modo, o suicídio não como um desenlace de uma
situação psicológica individual mas como um facto social específico. Do
seu ponto de vista a taxa de suicídio não pode ser explicada pela soma
dos suicídios individuais (que derivam cada um deles de motivações pró-
prias) mas sim por um substrato social profundo – o estado de uma soci-
edade cuja coesão é influenciada pelo sistema religioso a que está liga-
da.
O método de Durkheim
Explorando as estatísticas referentes ao suicídio em vários países euro-
peus Durkheim detectou regularidades que lhe permitiram intuir uma di-
mensão social do suicídio. Vai então relacioná-lo com a coesão social
estabelecendo os fundamentos teóricos da sua abordagem (ou seja cri-
ando uma teoria acerca do suicídio).
Vejamos com Durkheim fez isto:
Olhando para o mapa da Europa e para as taxas de suicídio dos vários
países notou que nos países católicos (Espanha, Portugal e Itália) a taxa
de suicídio era muito inferior à taxa de suicídio registada em países pro-
testantes tais como a Prússia, a Saxónia ou a Dinamarca.
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Mas esta comparação era insuficiente para estabelecer uma relação e
causa –efeito.
1º porque o grau de “civilização” de Espanha e Portugal era muito inferi-
or ao da Alemanha. Por isso podia residir aí um fundamento explicativo
da diferença registada: podia existir uma ligação entre taxa de suicídio e
nível de “civilização”. Para eliminar esta hipotética causa seria necessário
comparar a taxa de suicídio em praticantes de religiões diferentes no seio
de uma mesma sociedade (em que o estado de “civilização” não varia).
Para isso Durkheim comparou as taxas de suicídio na Baviera em que
existiam duas grandes comunidades de protestantes e de católicos. E
verificou que não apenas a Baviera era o estado alemão com a mais bai-
xa taxa de suicídio como, além disso a relação entre taxas de suicídio se
mantinha entre os praticantes das duas religiões.
2º Durkheim procurou então estudar a variação das taxas de suicídio en-
tre várias religiões. E então procurou informações acerca da taxa de sui-
cídio entre os judeus, tendo constatado que era mais baixa do que entre
os católicos. Surgia assim uma nova hipótese explicativa: os judeus eram
minoritários em todos os territórios em que viviam. Podia portanto acon-
tecer que a mais baixa taxa de suicídio registada entre os católicos báva-
ros resultasse do mesmo fenómeno, a saber: que as confissões menos
numerosas, tendo que lutar contra a hostilidade das populações envol-
ventes sejam obrigadas, a fim de assegurar a sua sobrevivência, a exer-
cer sobre si mesmas um controlo severo e a sujeitar-se a uma disciplina
particularmente rigorosa, que justifique a tolerância, sempre precária, que
lhes é concedida.
3º Durkheim voltou-se então para o estudo da natureza das próprias reli-
giões envolvidas como fonte de explicação para as diferenças encontra-
das. E constatou que, relativamente ao suicídio, tanto o protestantismo
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como o catolicismo são claros na proibição e condenação da sua prática.
A explicação não provinha portanto, daí.
4º A única diferença substancial entre catolicismo e protestantismo provi-
nha do facto de este último admitir o livre exame numa proporção muito
mais elevada do que aquele.
Segundo Durkheim de uma maneira geral o cristianismo é uma religião
idealista que dá ao pensamento e à reflexão um lugar muito mais impor-
tante do que o politeísmo grego e latino ou o monoteísmo judaico – o
cristianismo não se contenta com actos maquinais, procurando antes
controlar as consciências. É portanto a elas que se dirige. E mesmo
quando exige uma submissão cega e absoluta fá-lo na linguagem da ra-
zão. Mas catolicismo e protestantismo diferem pelo facto de que os prati-
cantes do primeiro recebem uma religião feita, através do catecismo, que
é uma interpretação da Bíblia preparada pela Igreja. Segundo Durkheim
o pensamento católico tem horror à variação – por isso não encontramos
sitas na Igreja Católica. Para o protestante é diferente: a Bíblia é-lhe co-
locada nas mãos e cada um, desde o Bispo ao crente, é o autor da sua
própria crença. É por isso que entre os protestantes encontramos nume-
rosas crenças.
5º O resultado desta grande diferença é que o protestantismo atribui um
lugar ao pensamento individual muito maior do que o catolicismo – e este
facto está profundamente ligado à existência de menos crenças e práti-
cas comuns, neste último. Ora, como veremos mais adiante, uma socie-
dade religiosa não existe sem um credo colectivo (uma crença) e é tanto
mais unida e forte quanto mais amplo e abrangente for esse credo. Isto
acontece porque uma sociedade religiosa socializa os homens ligando-os
todos a um mesmo corpo de doutrina e socializa-os tanto melhor quanto
mais vasto e e mais solidamente constituído for esse corpo doutrinário.
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Quanto mais maneiras de agir e de pensar existirem, subtraídas ao livre
exame, mais a ideia de deus estará presente em todos os pormenores da
existência e fará convergir para um único objectivo as mentes individuais.
Inversamente, quanto mais um grupo confessional ou religioso se aban-
donar ao pensamento e julgamento individuais, mais ausente estará a
ideia de Deus das suas vidas e menores serão a sua coesão e vitalidade.
6º Então, a taxa de suicídio entre os protestantes é maior do que a dos
católicos porque a igreja protestante é uma igreja MENOS INTEGRADA
do que a Igreja Católica.
Durkheim analisa desta forma a influência da religião (um facto social)
sobre o suicídio (outro facto social). A partir do exame de dados estatísti-
cos relativos às diferentes populações europeias católicas e protestantes,
Durkheim chega à conclusão de que quanto mais fraca é a coesão religi-
osa mais forte é a tendência para o suicídio.
Numa religião fortemente integrada como a católica, cujos fiéis partilham
numerosas práticas e crenças comuns, estes ficam mais protegidos do
suicídio do que os fiéis de uma religião menos integrada como o protes-
tantismo que dá grande importância ao livre exame.
Esquematicamente podemos representar o raciocínio de Durkheim da
seguinte forma:
Mas a abordagem do suicídio por Durkheim não se fica por aqui.
Livre exame
Enfraquecimento das crenças tradi-cionais
Enfraquecimen-to da coesão religiosa
Aumento da tendência para o suicídio
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SUICÍDIO E CORRENTES SOCIAIS
Durkheim apresentou, como já vimos acima, um outro conceito que tam-
bém é um facto social imaterial mas menos cristalizado – o conceito de
corrente social.
A corrente social é um facto social imaterial que tem a mesma ascendên-
cia sobre o indivíduo que as representações sociais mas que não apre-
senta um grau de cristalização tão elevado. São exemplos os grandes
movimentos de entusiasmo, indignação e piedade numa multidão.
Durkheim explicou o conceito de correntes sociais nas Regras do Método
Sociológico mas usou-o como variável explicativa no seu livro O Suicídio.
Havendo bastantes dados disponíveis sobre o suicídio e sendo este acto
considerado um dos actos mais privados de um indivíduo, Durkheim jul-
gou que se conseguisse mostrar que a Sociologia tinha um papel a de-
sempenhar na explicação de um acto tão individualista como o suicídio,
seria relativamente fácil estender o domínio da Sociologia a fenómenos
que à partida parecem mais propícios à análise psicológica.
Como sociólogo Durkheim não estava interessado no suicídio de nenhum
indivíduo específico – isso seria objecto de um estudo psicológico.
Durkheim estava interessado em explicar as diferenças entre taxas de
suicídio, ou seja, estava interessado por que razão é que um grupo se
suicida mais do que outro. Assumia que as características biológicas,
psicológicas e socio-psicológicas permanecem constantes de um grupo
para outro. Assim sendo para Durkheim a diferença seria devida a facto-
res sociológicos, em particular por correntes sociais.
Para o autor do estudo os factores críticos nas mudanças nas taxas de
suicídio deveriam ser encontrados ao nível dos factos sociais. E que tipo
23
de factos? Materiais ou imateriais? Como é habitual em Durkheim os fac-
tos sociais materiais ocupam a posição de prioridade causal. Constatou
que diferenças na densidade dinâmica influenciam factos sociais imateri-
ais que por sua vez influenciam directamente as taxas de suicídio. O ar-
gumento era o seguinte: diferentes colectividades têm diferentes consci-
ências colectivas e representações colectivas. Estas por sua vez produ-
zem diferentes correntes sociais que têm diferentes efeitos nas taxas de
suicídio.
Uma das maneiras de estudar o suicídio seria então estudar diferentes
colectividades comparando-as quanto às respectivas taxas de suicídio e
outra seria estudar a mesma sociedade ao longo da história comparando
a evolução da taxa de suicídio. O estudo intra-cultural ou histórico con-
duz sempre ao mesmo raciocínio: diferenças ou alterações na consciên-
cia colectiva conduzem a diferenças ou mudanças nas taxas de suicídio.
A conclusão era clara para Durkheim:
« cada grupo social tem uma inclinação para o acto que é a fon-
te de toda a inclinação individual mais do que o seu resultado.
Essa inclinação é constituída por correntes de egoísmo, altruís-
mo ou anomia que perpassam pela sociedade. Estas tendências
do corpo social total ao afectarem os indivíduos levam-nos a
cometer suicídio».
OS QUATRO TIPOS DE SUICÍDIO
A teoria de Durkheim sobre o suicídio e a estrutura do seu raciocínio so-
ciológico pode ser mais facilmente compreendida se analisarmos os 4
tipos de suicídio que nos propõe: egoísta, altruísta, anómico e fatalista.
24
Durkheim ligou cada um dos tipos de suicídio ao grau de integração ou
de regulação exercido pela sociedade.
A integração é um conceito que traduz a intensidade com que os senti-
mentos colectivos são partilhados na sociedade.
O suicídio altruísta está ligado a um elevado nível de integração e o sui-
cídio egoísta está ligado a um baixo nível de integração.
A regulação é um conceito que traduz o grau de constrangimento ou co-
erção externa dos indivíduos na sociedade. O suicídio fatalista aparece
associado a um elevado nível de regulação e o suicídio anómico a um
baixo nível de integração.
Integração Elevada ⇒ Suicídio altruísta
Baixa ⇒ Suicídio egoísta
Regulação Elevada ⇒ Suicídio fatalístico
Baixa ⇒ Suicídio anómico
Suicídio egoísta
Este tipo de suicídio aparece em princípio em sociedades em que os in-
divíduos não estão bem integrados na sociedade global. Esta falta de
integração leva a uma falta de sentido entre os indivíduos. Nas socieda-
des em que há uma forte consciência colectiva as correntes sociais que
delas brotam acabam por dotar os indivíduos de um sentido geral da vida
que acaba por evitar esta forma de suicídio.
25
Nas sociedades em que esta consciência colectiva não é tão forte os in-
divíduos ficam livres para perseguir os seus próprios objectivos. Esta
maior liberdade acaba por conduzi-los a uma maior frustração que pode
degenerar em suicídio.
A desintegração da sociedade produz correntes sociais que são as prin-
cipais responsáveis pelas diferenças nas taxas de suicídio. Significa isto
que nem mesmo no suicídio egoísta o agente se livra das forças sociais,
que aqui, segundo Durkheim o predispõem para o suicídio.
Suicídio altruísta
Ocorre mais provavelmente quando a integração social é muito elevada.
Um dos exemplos mais recentes deste tipo de suicídio foi aquele que te-
ve lugar nas Guianas, e em que os seguidores do reverendo Jim Jones
se suicidaram colectivamente.
Trata-se de casos em que os indivíduos se suicidam porque consideram
que é seu dever fazê-lo.
Também aqui para Durkheim não é o elevado nível de integração que é a
causa directa do suicídio mas as correntes sociais induzidas por esse
facto social.
Suicídio anómico
Ocorre quando os poderes reguladores da sociedade foram destruídos.
Cessando os mecanismos sociais que asseguram a existência de coer-
ção sobre os indivíduos estes ficam entregues às suas paixões, que são
por definição insaciáveis abrindo as portas a frustrações brutais que po-
dem conduzir ao suicídio.
26
Nestes casos a colectividade fica temporariamente incapaz de exercer
autoridade sobre os indivíduos. Estes ficam colocados em posições em
que as regras antigas deixam de se aplicar mas para as quais ainda não
há novas regras. Estes períodos de destruição dos poderes reguladores
soltam correntes de anomia – estados de desenraizamento e desregra-
mento – que conduzem a uma subida das taxas de suicídio anómico. O
exemplo típico é o do desempregado que é despedido da sua fábrica.
Liberto de qualquer enquadramento disciplinar e regulador fica entregue
aos efeitos devastadores da anomia.
Suicídio fatalista (corrigir)
Pode ocorrer com indivíduos cujo futuro e desejos estão bloqueados por
uma disciplina excessiva. O exemplo clássico seria o do escravo que põe
termo à sua própria vida. Excesso de regulação – a que se pode chamar
opressão – liberta correntes sociais de depressão que podem conduzir
ao suicídio.
UMA MENTALIDADE DE GRUPO
A actual ênfase da Sociologia em normas, valores e cultura permite-nos
compreender facilmente o interesse de Durkheim pelos factos sociais
imateriais.
Mas Durkheim é acusado por alguns de dar aos factos sociais imateriais
uma existência autónoma, separada dos agentes. Durkheim estava con-
tudo bem ciente de que os fenómenos culturais não podem flutuar no va-
zio.
A perspectiva do autor é a seguinte: uma corrente social de melancolia
não pode ser deduzida a partir de um indivíduo mas apenas da disposi-
27
ção de um segmento significativo da população. Estas disposições colec-
tivas, ou correntes sociais variam de uma colectividade para outra, facto
que pode ser percebido pela variação da taxa de ocorrência de certos
comportamentos, incluindo a taxa de suicídios.
Deve por isso entender-se que Durkheim tinha uma forma assaz moder-
na de conceber os factos sociais imateriais que equivalia ao que hoje
chamamos de normas, valores e cultura e de uma plêiade de fenómenos
psicossociais partilhados. Esta abordagem torna no entanto ainda hoje
difícil a defesa de um domínio epistemológico separado para a Sociologia
a partir da separação rígida que Durkheim procurou estabelecer entre
factos sociais e factos psicológicos. É que de facto essa separação não é
assim tão rígida.
O próprio autor reconheceu em algumas partes da sua obra que os fac-
tos sociais imateriais estão firmemente ancorados nos processos indivi-
duais dos indivíduos – ver « As formas elementares da vida religiosa».
A RELIGIÃO
Durkheim sentiu sempre uma grande necessidade de se concentrar nas
manifestações materiais dos factos sociais imateriais. Na sua obra « As
formas elementares da vida religiosa» o autor sentiu-se mais à vontade
para tratar estes aspectos mais directamente. A religião é o facto social
imaterial limite e a sua observação permitiu a Durkheim fazer luz sobre
todo este aspecto da sua teoria.
A religião tinha, segundo Durkheim uma faceta «dinamogénica». Tinha a
capacidade de não apenas dominar os indivíduos mas também de os
elevar acima das suas capacidades normais.
28
Para basear o seu estudo Durkheim recorreu a dados publicados, no ca-
so a um estudo sobre uma tribo australiana – os Arunta.
Estudou uma tribo primitiva por várias razões:
1 Cria que era muito mais simples estudar o âmago do fenómeno
numa religião primitiva do que numa religião de uma sociedade
moderna. Aquelas formas religiosas aparecem com muito mais fa-
cilidade em toda a sua nudez.
2 Os sistemas ideológicos das primitivas religiões eram muito menos
desenvolvidos do que os das religiões modernas evitando-se assim
uma ofuscação desnecessária.
3 Enquanto que a religião nas sociedades modernas toma diversas
formas, nas sociedades primitivas há uma conformidade moral e
intelectual e a religião pode ser estudada na sua forma mais primi-
tiva.
4 O interesse de Durkheim no estudo da religião era o de compreen-
der a natureza religiosa do homem enquanto aspecto essencial e
permanente do Homem. Mais especificamente Durkheim estudou
as religiões primitivas para compreender a religião nas sociedades
modernas.
Dado o carácter uniforme e ubíquo da religião nas sociedades primitivas
é possível equacionarmos essa religião com o conceito de consciência
colectiva. O mesmo é dizer que a religião nas sociedades primitivas é
uma moral colectiva que tudo envolve e acompanha. Mas à medida que
a sociedade se desenvolve e se vai especializando a religião passa a
ocupar domínios da vida colectiva progressivamente mais estreitos. Em
vez de ser a consciência colectiva na sociedade moderna a religião pas-
sa a ser uma de numerosas representações colectivas. Apesar de expri-
mir alguns sentimentos colectivos há outras instituições, como por exem-
29
plo a lei e ciência, que passam a exprimir outros aspectos da moral co-
lectiva. E Durkheim reconhece que apesar de a religião ocupar um domí-
nio progressivamente menor entre os vários tipos de representações co-
lectivas é dela que a maioria senão todos os outros tipos de representa-
ções colectivas que existem na sociedade moderna, provêm.
SAGRADO E PROFANO
A grande questão para Durkheim era a origem da religião moderna. Dado
que a especialização e o ruído ideológico tornam impossível o estudo
das raízes da religião moderna, Durkheim estuda as sociedades primiti-
vas à procura de esclarecimento. A questão a que procura responder é:
de onde vem a primitiva religião?
Aplicando o seu princípio de que apenas os factos sociais podem expli-
car os factos sociais, Durkheim conclui que a religião provém da socie-
dade – a sociedade (através dos indivíduos) cria a religião ao definir de-
terminados fenómenos como sagrados e outros como profanos. Os as-
pectos da realidade social definidos como sagrados – aqueles que são
colocados à parte e considerados proibidos – constituem a essência da
religião. Os restantes são definidos como profanos – os aspectos da rea-
lidade social do dia a dia, utilitários, mundanos.
O sagrado traz assim uma atitude de reverência, respeito, mistério, temor
e honra. O respeito acordado a alguns fenómenos transforma-os de pro-
fanos em sagrados.
Mas a diferenciação entre sagrado e profano e a elevação de alguns as-
pectos da vida social de profano a sagrado são condições necessárias
mas não suficientes para o desenvolvimento da religião. São necessárias
mais três condições:
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1 Tem que surgir o desenvolvimento de um conjunto de crenças reli-
giosas. Estas crenças são as representações que exprimem a na-
tureza das coisas sagradas e as relações que mantêm umas com
as outras e com as coisas profanas.
2 É necessário um conjunto de ritos religiosos. Estes ritos são as re-
gras de conduta que prescrevem como um indivíduo se deve com-
portar na presença dos objectos sagrados;
3 É necessária uma igreja, ou seja uma comunidade moral autoritária
única.
Da relação que estabelece entre sagrado, profano, crenças, ritos e igreja
Durkheim extrai a seguinte definição de religião: «é um sistema unifi-
cado de crenças e práticas que une numa única comunidade moral
chamada igreja todos os que a ele aderem».
Totemismo
O ponto de vista de Durkheim de que a sociedade é a fonte da religião
modelou a sua análise do totemismo entre os Arunta. O totemismo é um
sistema religioso no qual algumas coisas, normalmente animais ou plan-
tas se tornam sagrados e emblemas do clã. Durkheim encarou o tote-
mismo como a forma mais simples e primitiva de religião que é paralela-
mente acompanhada pela forma de organização social mais simples – o
clã. Então o autor achou que se conseguisse demonstrar que o totemis-
mo fora originado pelo clã teria provado a sua teoria relativamente às re-
ligiões e particularmente relativamente à religião moderna.
Embora um clã tivesse vários totems Durkheim não os encarava como
uma série de crenças fragmentárias àcerca de vários animais ou plantas.
Pelo contrário encarava-os como um conjunto de ideias interrelacionadas
31
que davam ao clã uma representação mais ou menos completa do mun-
do. Não são as plantas ou animais que são as fontes do totemismo – es-
te apenas representa a fonte. Os totems são as representações materiais
da força imaterial que está na sua base. E essa força material não é ou-
tra que não a nossa já familiar consciência colectiva da sociedade. Ou-
çamos as palavras esclarecedoras de Durkheim:
« o totemismo é a religião de tais ou tais animais, homens ou
imagens mas uma força anónima e impessoal, encontrada em
cada um destes seres e que não deve ser confundida com
eles. Os indivíduos morrem, as gerações passam e são substi-
tuídas por outras; mas esta força permanece efectiva, viva e a
mesma. Anima as gerações de hoje como animou as de ontem
e como animará as de amanhã. »
O totemismo e de uma maneira mais geral a religião, deriva da moral co-
lectiva e transforma-se numa força impessoal – não é apenas uma série
de plantas e animais míticos, de espíritos e de deuses.
EFEVERSCÊNCIA COLECTIVA
A consciência colectiva é a fonte da religião, mas de onde vem a própria
consciência colectiva? Do ponto de vista de Durkheim só pode vir da
própria sociedade. No caso australiano observado por Durkheim isto sig-
nificava o clã era a fonte última da religião.
« a força religiosa não é mais nada do que a força anónima e co-
lectiva do clã»
Mesmo que estejamos de acordo com o facto de o clã ser a fonte do to-
temismo mantém-se uma questão: como é que o clã cria o totemismo? A
resposta está em mais um conceito central de Durkheim – o conceito de
32
efervescência colectiva. Este conceito não foi explicitado em nenhuma
das obras de Durkheim e corresponde aos grandes momentos da história
em que uma colectividade alcança novos patamares de exaltação colec-
tiva que podem por sua vez conduzir a grandes transformações na estru-
tura da sociedade. São exemplos destes momentos a Reforma e a Re-
nascença. Para Durkheim era também desta efervescência colectiva que
surgia a religião:
«é no meio destes ambientes sociais efervescentes e da pró-
pria efervescência que a ideia religiosa pode nascer». Durante
os períodos efervescentes os clãs podem criar o totemismo.
Resumindo o totemismo é a representação simbólica da consciência co-
lectiva e por sua vez esta deriva da sociedade. Assim a sociedade é a
fonte da consciência colectiva , da religião, do conceito de Deus, e em
última análise de tudo aquilo que é sagrado (enquanto oposto a profano).
Podemos então dizer que, para Durkheim, o sagrado (e em última análi-
se Deus) e a sociedade são uma e a mesma coisa. Isto parece-lhe claro
nas sociedades primitivas. Nas sociedades modernas o autor afirma o
mesmo embora as relações entre as várias partes sejam obscurecidas
pelas complexidades dessas mesmas sociedades.
REFORMISMO SOCIAL
Os principais factos sociais imateriais estiveram no pensamento de
Durkheim desde o início da sua carreira: moralidade, consciência colecti-
va, representações colectivas, correntes sociais e religião estiveram
sempre no centro da sua análise.
Pelo contrário os factos sociais materiais tiveram sempre no seu pensa-
mento uma importância menor – ou eram prioridades causais dos factos
33
sociais imateriais (p.e. a Densidade Dinâmica na Divisão do Trabalho) ou
funcionavam como índices objectivos de factos sociais imateriais (p.e. o
direito na Divisão do Trabalho).
Mas há um terceiro papel que os factos sociais materiais desempenham
no pensamento de Durkheim. Estes factos sociais surgem também como
soluções estruturais para os problemas morais dos nossos tempos.
Durkheim foi acima de tudo um reformista que encarou o problemas da
sociedade moderna como aberrações (patologias) e não como proble-
mas inerentes a essa sociedade. Nisto distinguiu-se claramente, e opôs-
se mesmo, tanto dos conservadores (Bonald ou Maistre) como dos radi-
cais (Marx) do seu tempo. De facto os primeiros não viam esperança pa-
ra a sociedade do seu tempo, e os últimos esperavam pela revolução
como único remédio para a sociedade injusta e irracional em que viviam.
Pelo contrário, Durkheim seguindo as analogias orgânicas entre os pro-
cessos sociais e os processos biológicos, defendia que os problemas
com que a sua sociedade se defrontava eram patologias que poderiam
ser curadas pelo médico social que reconhecesse a natureza moral dos
problemas do mundo moderno e empreendesse as reformas estruturais
que as estripassem.
Por exemplo na Divisão do trabalho Durkheim falava de três formas
anormais de divisão do trabalho:
1 Anomia
2 Desadequação entre a estrutura do mundo do traba-
lhos e as qualificações dos trabalhadores existentes
3 Organização inadequada
34
Durkheim era portanto um reformista e não um revolucionário e, por isso,
ao estudar o socialismo, encarou-o como um facto social e não de uma
forma panfletária.
Eis um excerto em que afirma claramente esta sua posição:
«O nosso raciocínio não é de todo revolucionário. Até certo
ponto somos mesmo conservadores, dado que lidamos com
os factos sociais enquanto tais, reconhecendo a sua flexibili-
dade mas concebendo-os mais de uma maneira determinís-
tica do que arbitrária.
Muito mais perigosa é a doutrina que vê nos fenómenos so-
ciais apenas os resultados de uma manipulação ilimitada,
que podem de um momento para o outro por simples artes
dialécticas ser completamente invertidos.»
«Suponhamos que por milagre todo o sistema de proprieda-
de é completamente transformado da noite para o dia e que
os meios de produção são arrancados às mãos dos indiví-
duos e passam para propriedade colectiva. Todos os pro-
blemas que hoje debatemos e queremos resolver persistirão
inalterados»
ASSOCIAÇÕES OCUPACIONAIS
O maior remédio que Durkheim propôs para as patologias sociais foi o
desenvolvimento de associações ocupacionais.
Olhando para as organizações do seu tempo Durkheim não via que nelas
existisse um conflito de interesses básico (insanável) entre os elementos
que as constituíam – patrões, quadros e trabalhadores. Esta era uma po-
sição diametralmente oposta à de Marx. Para Durkheim os conflitos de
35
que era testemunha não eram intrínsecos às organizações em que ocor-
riam; resultavam da inexistência de uma moral comum que era demons-
trada pela inexistência de uma estrutura integradora no sistema. Esse
sistema integrador seria constituído pelas associações ocupacionais que
acompanhariam e envolveriam todos os agentes da mesma indústria
unidos e organizados num único grupo social.
Estas organizações seriam diferentes (e superiores) seja dos sindicatos
seja das organizações patronais, que para Durkheim apenas serviam pa-
ra intensificar as diferenças entre patrões, quadros e trabalhadores.
Envolvidos numa única organização estas pessoas compreenderiam que
era mais o que as unia do que o que as separava (reconheceriam os
seus interesses comuns) e bem assim a necessidade comum de um sis-
tema moralmente integrador. Estes sistema moral, com as suas regras e
leis, serviria para contrabalançar a tendência para a atomização caracte-
rística da sociedade moderna e impedir o declínio da moral colectiva.
O CULTO DO INDIVÍDUO
Para Durkheim a reforma estrutural aparece subordinada às mudanças
na moral colectiva. Os problemas essenciais da sociedade moderna são
de natureza moral e por isso a única solução reside no reforço de uma
moral colectiva.
Embora, contra os conservadores, Durkheim considerasse que era im-
possível o retorno a uma poderosa consciência colectiva como a que ca-
racterizava as sociedades de solidariedade mecânica, julgava entrever
os sinais da emergência de uma sua versão moderna, embora mais fra-
ca. Chamou-lhe o culto do indivíduo. Este conceito procura fundir duas
forças a priori antagónicas – a moral e o individualismo – lançando a
36
ideia de que o individualismo se está a transformar no sistema moral da
sociedade moderna:
O individualismo surge assim como aceitável aos olhos de Durkheim
desde que elevado ao estatuto de sistema moral. Este individualismo
com uma base colectiva, que afirma os direitos do indivíduo em relação
com o bem estar de todos em vez de servir a busca do interesse de cada
um, aparece para Durkheim como a solução para o moderno egoísmo.
Reconhecendo que o individualismo já não podia ser contrariado
Durkheim elevou alguns tipos de individualismo ao nível de um sistema
moral.
Um dos problemas desta abordagem é a dificuldade, ou mesmo a impos-
sibilidade virtual de distinguir, na realidade, entre as acções baseadas no
individualismo moral e as acções baseadas no egoísmo. A isto pode
Durkheim responder que é, no entanto, possível distinguir entre pessoas
guiadas por uma moral que lhes exige o respeito pela dignidade direitos
e liberdade individual e as pessoas que apenas agem em função dos
seus próprios interesses individuais.
O AGENTE SOCIAL NO PENSAMENTO DE DURKHEIM
Dada a sua defesa dos factos sociais e da sua exterioridade relativamen-
te aos indivíduos, Durkheim trata os agentes sociais e os seus processos
mentais como factores secundários – como variáveis dependentes dos
factos sociais (as variáveis independentes ou explicativas).
Algumas considerações àcerca da natureza humana
Durkheim afirmou sempre que não tinha nenhuns pressupostos acerca
da natureza humana – a sua única fonte de informação sobre a natureza
37
humana seria a Sociologia. Mas se calhar Durkheim foi pouco honesto
consigo mesmo.
Vejamos:
a) a um nível básico aceitou a existência de determinantes bio-
lógicos no comportamento humano
b) aceitou a importância de sentimentos sociais tais como o
amor, o afecto, a simpatia e outros fenómenos associados;
c) aceitou o homem como ser eminentemente social;
d) distinguiu homens de animais pela sua capacidade de pen-
sarem e de por isso intervirem imagens e ideias entre as in-
clinações naturais e o comportamento;
e) assumiu que as pessoas nascem com uma série de pulsões
egoístas que, desenfreadas, podem constituir uma ameaça
tanto para si próprias como para a sociedade; de facto para
Durkheim o homem nasce com um acervo de paixões que
soltas se multiplicam até ao ponto de o escravizarem.
f) Enquanto que as representações colectivas são criadas pela
interacção de indivíduos, as representações individuais são
criadas pela interacção das células cerebrais;
O penúltimo pressuposto é fundamental no conjunto da obra de
Durkheim. É assim que podemos entender que para si a liberdade seja
entendida como «um controlo externo sobre as paixões» - as pessoas
são livres quando as suas paixões são constritas por forças externas, a
mais importante das quais é a moral comum.
Para Durkheim a liberdade vem de fora e não de dentro do indivíduo. Daí
a necessidade de uma consciência colectiva que limite as paixões - «a
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moralidade começa com o desinteresse, com a ligação a qualquer coisa
fora de nós». A liberdade é portanto, para Durkheim a interiorização de
uma moral comum que enfatiza o significado e a dependência do indiví-
duo. A liberdade é portanto uma característica da sociedade e não dos
indivíduos – vemos uma vez mais a prevalência dos factos sociais imate-
riais sobre os factos sociais materiais traduzida aqui pela primazia do in-
dividualismo moral sobre os processos mentais.
O último dos pressupostos apresentados tem como consequência que as
representações individuais são do foro da psicologia, não interessando a
Durkheim enquanto sociólogo. A implicação deste pressuposto é a de
uma concepção dual da natureza humana. Para utilizar as próprias pala-
vras de Durkheim:
«a nossa vida interior tem uma espécie de duplo centro de
gravidade – por um lado temos a nossa individualidade e por
outro temos tudo aquilo que exprime o que existe fora de
nós».
E o que é mais importante ainda é que para Durkheim é que estes dois
“centros” são em grande medida contraditórios criando assim uma perpé-
tua tensão nas malhas desta vida dupla. Torna-se então fundamental a
necessidade de fortalecer os aspectos colectivos do indivíduo por forma
a que as paixões individuais possam ser melhor controladas.
SOCIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO MORAL
Decorre dos pressupostos de Durkheim quanto à natureza inata das pai-
xões e quanto à necessidade de as controlar através de uma moral co-
mum a importância que vai assumir a interiorização da moral social pela
educação e pela socialização.
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É que a moral social existe primordialmente ao nível cultural, mas é tam-
bém interiorizada pelos indivíduos. Nas palavras de Durkheim a moral
comum invade-nos e forma-nos.
O que preocupa aqui Durkheim não é propriamente a interiorização da
moral comum mas antes a forma como essa interiorização pode afectar
os problemas culturais e estruturais da sociedade moderna. Mais particu-
larmente preocupava-o aquilo que parecia ser o poder cada vez menor
desta interiorização na sociedade sua contemporânea. Durkheim assistia
a uma diminuição do grau em que os factos sociais influenciavam a
consciência humana. Assistindo àquilo que lhe parecia a maior crise por
que a humanidade já passara ao longo da sua história preocupava-se
com a forma como a disciplina colectiva parecia perder a sua tradicional
autoridade. Vem-lhe daí o seu grande interesse pela anomia.
Grande parte do trabalho de Durkheim sobre a educação e a socializa-
ção em geral deve ser interpretado à luz desta sua preocupação com a
decadência moral e a possibilidade de estancar o processo através de
reformas.
Para Durkheim educação e socialização são os processos através dos
quais os indivíduos aprendem os processos de um dado grupo ou soci-
dade, adquirindo a ferramentas físicas, técnicas, intelectuais e acima de
tudo morais para poderem viver (funcionar) em sociedade.
A educação moral tem três aspectos fundamentais:
a) o seu objectivo primordial é dotar os indivíduos com a disci-
plina de que necessitam para controlarem as paixões que
ameaçam escravizá-los; (só com muita disciplina as crianças
aprendem a contrariar os seus apetites).
40
b) Contrariar a autonomia atípica de que os indivíduos são na-
turalmente dotados predispondo-os a aceitarem voluntaria-
mente regras de comportamento;
c) Desenvolver o sentido de devoção à sociedade e ao seu sis-
tema moral;
ALGUMAS CRÍTICAS À OBRA DE DURKHEIM
VARIÁVEIS DEPENDENTES
Nos trabalhos de Durkheim a consciência aparece quase sempre como
uma variável dependente – determinada por vários factos sociais tanto
materiais como sobretudo imateriais.
Na Divisão do Trabalho a consciência era tratada de modo indirecto mas
parece evidente que era uma variável dependente – resultava da forma
de divisão do trabalho que por sua vez conduzia a alterações culturais na
sociedade.
No Suicídio o estatuto de variável dependente da consciência é muito
mais explícito. A principal variável independente é a moral colectiva e a
variável dependente é a taxa de suicídio que obviamente tem de ser me-
diada por uma série de outras variáveis dependentes que só podem ser
estados mentais. São estes estados subjectivos, ligados a condições so-
ciais dadas (variáveis independentes) que impelem os indivíduos ao sui-
cídio.
E esta é uma das grandes críticas e limitações da obra de Durkheim. Es-
te autor empenhado em conseguir autonomizar a Sociologia não deu a
atenção devida à consciência individual e aos processos mentais através
dos quais as representações colectivas da sociedade são traduzidas em
representações individuais que reflectem no fundo as relações humanas
41
com a sociedade. A sua demasiada atenção na parte societal do seu es-
quema analítico, a sua concentração excessiva no impacto das condi-
ções sociais nos indivíduos em vez da observação da forma como os in-
divíduos interpretam, percepcionam e respondem a essas condições so-
ciais impediu-o o de examinar os pressupostos socio-psicológicos em
que se baseia grande parte da sua obra.
CATEGORIAS MENTAIS
Basicamente Durkheim argumenta sempre que a forma que a sociedade
toma afecta a forma dos padrões de pensamento. Isto leva-o a enfatizar
os fenómenos de grande escala e a desprezar a forma como o funcio-
namento das categorias mentais molda as estruturas da sociedade. Esta
falha é muito bem sintetizada na seguinte crítica de Lukes «explicar o
suicídio – e as taxas de suicídio – tem que implicar a explicação das ra-
zões que levam uma pessoa a cometer suicídio», em que este autor pre-
tende dizer que a explicação não pode parar na corrente social que ex-
plica o surgimento de uma taxa de suicídio maior.
Mas Durkheim nunca foi capaz de perceber que a exploração da consci-
ência podia ser feita cientificamente fora do campo da Psicologia e sem
que a Sociologia desta ficasse prisioneira e que além diso era uma con-
dição da ultrapassagem de uma teoria parcial da vida social.
Ainda decorrendo desta incapacidade de Durkheim, este autor foi inca-
paz de dar à consciência um papel activo no processo social. No seu sis-
tema as pessoas são sempre controladas pelas forças sociais e não o
contrário.
Para Durkheim os indivíduos apenas são capazes de se controlar através
da interiorização de normais morais comuns. A autonomia individual é
apenas uma aceitação de normas morais de autonomia.