estágio capsii

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Autor para correspondência: Milton Carlos Mariotti, Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paraná – UFPR, Av. Lothário Meissner, 632, Bloco Didático II, Setor de Ciências da Saúde, Campus Jardim Botânico, CEP 80210-170, Curitiba, PR, Brasil, e-mail: [email protected] Recebido em 11/6/2012; 1ª Revisão em 10/9/2012; 2ª Revisão em 21/10/2012; Aceito em 7/11/2012. ISSN 0104-4931 Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. 2, p. 409-418, 2014 http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.062 Resumo: A reforma psiquiátrica no Brasil substituiu o modelo hospitalocêntrico pela proposta de reinserção do usuário na comunidade, sendo o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) o principal equipamento nesse âmbito. Objetivos: Relatar o desenvolvimento de um Estágio Supervisionado de Prática em Terapia Ocupacional num CAPS II de Curitiba. Procedimentos metodológicos: Trata-se de um relato de experiência. Caracteriza o campo de estágio e descreve as etapas do processo de ensino-aprendizagem que envolveu: observação institucional, relatório dos aspectos observados, proposta de intervenção, coleta de dados do perfil dos usuários e atendimentos. O foco do trabalho foi o grupo de usuários do regime não intensivo, por estarem mais próximos da alta, considerando-se a falta de equipamentos para a continuidade da assistência para essa população. Resultados: Observou-se que os usuários do regime não intensivo, ao invés de almejarem a alta, gostariam de retornar aos regimes semi-intensivo ou intensivo, objetivando recuperar direitos ao auxílio-doença e transporte, o que denota grande contradição no sistema. Foram atendidos complementarmente também usuários dos regimes intensivo e semi-intensivo. Conclusões: O aprendizado dos estudantes contemplou aspectos como: a realidade institucional; conhecimento do sistema de saúde, suas limitações e contradições; aproximação com usuários, familiares, suas condições socioeconômicas, desejos, aspirações ou sua falta, dificuldades para engajamento em ocupações significativas em seu território, limitações e estigmas sociais; trabalho com as frustrações, reflexão sobre as possibilidades de mudança da realidade, além da prática clínica ampliada com discussões sobre os modelos de intervenção e os de formulação das políticas públicas de assistência à saúde mental e controle social. Palavras-chave: Terapia Ocupacional, Serviços Comunitários de Saúde Mental, Prática Profissional. Supervised practice in occupational therapy in a psychosocial care center: Challenges for the assistance and the teaching and learning process Abstract: The psychiatric reform in Brazil has replaced the hospital-centered model by the reintegration of users to their respective communities. The Center of Psychosocial Care (CAPS) has been the main equipment in that scope. Objectives: To report the development of Supervised Practice in Occupational Therapy in a CAPS II unit in Curitiba, Parana state, Brazil. Methods: This is an experience report. It features the training field and describes the stages of the teaching and learning process which involved institutional observation, reporting and intervention proposal, collecting data about the users’ profile and attendances. The work focused the non-intensive users because they are close to hospital discharge. Results: We found that users of the non-intensive system, rather than crave the discharge, would like to return to the semi-intensive or intensive systems, aiming to regain sickness and transportation Estágio supervisionado em terapia ocupacional em um centro de atenção psicossocial CAPS II: Desafios para a assistência e para o processo de ensino-aprendizagem Milton Carlos Mariotti a , Luciana Carvalho Marques b , Aline Schlean b , Rafaela Silva b , Diane Priscila Stoffel b , Bruna Veiga c a Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, PR, Brasil b Curso de Graduação em Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, PR, Brasil c Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II, Curitiba, PR, Brasil Relato de experiência

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artigo ótimo sobre a atuação da terapia ocupacional no Caps II

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  • Autor para correspondncia: Milton Carlos Mariotti, Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paran UFPR, Av. Lothrio Meissner, 632, Bloco Didtico II, Setor de Cincias da Sade, Campus Jardim Botnico, CEP 80210-170, Curitiba, PR, Brasil, e-mail: [email protected] em 11/6/2012; 1 Reviso em 10/9/2012; 2 Reviso em 21/10/2012; Aceito em 7/11/2012.

    ISSN 0104-4931Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 22, n. 2, p. 409-418, 2014http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.062

    Resumo: A reforma psiquitrica no Brasil substituiu o modelo hospitalocntrico pela proposta de reinsero do usurio na comunidade, sendo o Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) o principal equipamento nesse mbito. Objetivos: Relatar o desenvolvimento de um Estgio Supervisionado de Prtica em Terapia Ocupacional num CAPS II de Curitiba. Procedimentos metodolgicos: Trata-se de um relato de experincia. Caracteriza o campo de estgio e descreve as etapas do processo de ensino-aprendizagem que envolveu: observao institucional, relatrio dos aspectos observados, proposta de interveno, coleta de dados do perfil dos usurios e atendimentos. O foco

    do trabalho foi o grupo de usurios do regime no intensivo, por estarem mais prximos da alta, considerando-se a falta de equipamentos para a continuidade da assistncia para essa populao. Resultados: Observou-se que os usurios do regime no intensivo, ao invs de almejarem a alta, gostariam de retornar aos regimes semi-intensivo ou intensivo, objetivando recuperar direitos ao auxlio-doena e transporte, o que denota grande contradio no sistema. Foram atendidos complementarmente tambm usurios dos regimes intensivo e semi-intensivo. Concluses: O aprendizado dos estudantes contemplou aspectos como: a realidade institucional; conhecimento do sistema de sade, suas limitaes e contradies; aproximao com usurios, familiares, suas condies socioeconmicas, desejos, aspiraes ou sua falta, dificuldades para engajamento em ocupaes significativas em seu territrio, limitaes e

    estigmas sociais; trabalho com as frustraes, reflexo sobre as possibilidades de mudana da realidade, alm da

    prtica clnica ampliada com discusses sobre os modelos de interveno e os de formulao das polticas pblicas de assistncia sade mental e controle social.

    Palavras-chave: Terapia Ocupacional, Servios Comunitrios de Sade Mental, Prtica Profissional.

    Supervised practice in occupational therapy in a psychosocial care center: Challenges for the assistance and the teaching and learning process

    Abstract: The psychiatric reform in Brazil has replaced the hospital-centered model by the reintegration of users to their respective communities. The Center of Psychosocial Care (CAPS) has been the main equipment in that scope. Objectives: To report the development of Supervised Practice in Occupational Therapy in a CAPS II unit in Curitiba, Parana state, Brazil. Methods: This is an experience report. It features the training field and describes the stages of the teaching and learning process which involved institutional observation, reporting and intervention proposal, collecting data about the users profile and attendances. The work focused the non-intensive users because

    they are close to hospital discharge. Results: We found that users of the non-intensive system, rather than crave the discharge, would like to return to the semi-intensive or intensive systems, aiming to regain sickness and transportation

    Estgio supervisionado em terapia ocupacional em um centro de ateno psicossocial CAPS II:

    Desafios para a assistncia e para o processo de ensino-aprendizagem

    Milton Carlos Mariottia, Luciana Carvalho Marquesb, Aline Schleanb, Rafaela Silvab, Diane Priscila Stoffelb, Bruna Veigac

    aDepartamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paran UFPR, Curitiba, PR, Brasil bCurso de Graduao em Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Paran UFPR, Curitiba, PR, Brasil

    cCentro de Ateno Psicossocial CAPS II, Curitiba, PR, Brasil

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    410 Estgio supervisionado em terapia ocupacional em um centro de ateno psicossocial CAPS II: Desafios ...

    1 IntroduoNeste trabalho, o foco foi o Centro de Ateno

    Psicossocial(CAPS) II, local em que a experincia relatada foi desenvolvida, em especial o grupo de usurios do regime no intensivo, por estarem mais prximos da alta e pela carncia de equipamentos para a continuidade de sua assistncia. A fundamentao terica, conceituao e descrio do CAPS foram construdas a partir de documento do Ministrio da Sade de 2004, por ser um documento oficial e bastante completo a respeito do assunto.

    A reforma psiquitrica trouxe mudanas considerveis para a Ateno em Sade Mental no Brasil, propondo a substituio do modelo hospitalocntrico por um modelo voltado para a reinsero do usurio na comunidade. Para isso foram criados os servios substitutivos ao internamento em hospital psiquitrico como os (CAPS), as Residncias Teraputicas e os Centros de Convivncia (HIRDES, 2009).

    Dentre esses equipamentos destaca-se o CAPSprincipal equipamento desse modelo substitutivo. No Brasil, o primeiro deles foi inaugurado em So Paulo, no ano de 1986 (BRASIL, 2004).

    Os CAPS foram criados oficialmente a partir da portaria GM 224/92 (BRASIL, 1992) e hoje so regulamentados pela portaria n. 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002). Integram o Sistema nico de Sade (SUS), sendo definidos como locais de referncia e tratamento a pessoas com transtornos mentais graves, que necessitem de ateno intensiva, personalizada e prestada junto comunidade na qual a pessoa est inserida (BRASIL, 2004). Assim, a implantao dos CAPS visa

    [...] oferecer atendimento populao de sua rea de abrangncia, realizando o acompanhamento clnico e a reinsero social dos usurios pelo acesso ao trabalho, lazer, exerccio dos direitos civis e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios. um servio de atendimento de sade mental criado para ser substitutivo s internaes em hospitais psiquitricos (BRASIL, 2004, p. 13).

    Nesse sentido, cabe a tais equipamentos oferecer atendimentos dirios aos usurios residentes em sua rea de abrangncia, com projetos teraputicos singulares para cada usurio atendido. As aes desenvolvidas pelas equipes multiprofissionais que compem os CAPS devem possibilitar a estruturao de estratgias para o enfrentamento de problemas junto aos usurios, especialmente por meio de aes intersetoriais, ou seja, que articulem a sade com setores como educao, trabalho, cultura, assistncia social e outros (BRASIL, 2004).

    A regio Sul do Brasil a que apresenta maior nmero de CAPS por 100 mil habitantes (BRASIL, 2004); existindo 27 na regio Norte, 109 na regio Nordeste, 29 na regio Centro-oeste, 240 na regio Sudeste e 111 na regio Sul.

    De acordo com o Ministrio da Sade (BRASIL, 2004), um dos maiores desafios da reforma psiquitrica est relacionado consolidao desses servios substitutivos aos hospitais psiquitricos. Aps 10 anos, a implantao dos CAPS tem se mostrado uma estratgia eficaz no sentido da substituio do modelo hospitalocntrico de ateno a pessoas com transtornos mentais.

    A frequncia do usurio no CAPS depende de suas necessidades, podendo ocorrer nas modalidades de atendimento intensivo, semi-intensivo e no intensivo, nas quais o usurio atendido no CAPS diariamente, trs vezes por semana ou trs vezes no ms, respectivamente (BRASIL, 2004). As diferentes modalidades so destinadas aos usurios em diferentes fases, manifestaes e de acordo com a gravidade dos quadrosde transtorno mental apresentados, como tambm descrito na portaria GM 336/02.

    Atendimento intensivo: [...] oferecido quando a pessoa se encontra com grave sofrimento psquico, em situao de crise ou dificuldades intensas no convvio social e familiar, precisando de ateno contnua. Esse atendimento pode ser domiciliar, se necessrio; Atendimento semi-intensivo: [...] oferecido quando o sofrimento e a desestruturao psquica da pessoa diminuram, melhorando as possibilidades de relacionamento, mas a pessoa ainda necessita

    benefits, which are lost as users make progress. This fact denotes great contradictions in the system. We also

    attended intensive and semi-intensive systems users. Conclusions: The students learning included aspects such as direct contact with the institutional reality; knowledge about the health system, its limitations and contradictions;

    approach to users, their families, realities, socioeconomic conditions, desires, aspirations, or lack thereof; difficulties

    in engaging in meaningful occupations in their territories, limitations, and social stigma; working with frustrations,

    reflecting about ways to change the reality; in addition to expanded clinical practice, participating in the discussions

    and formulation of public policies on mental healthcare and social control.

    Keywords: Occupational Therapy, Community Mental Health Services, Professional Practice.

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    de ateno direta da equipe para se estruturar e recuperar sua autonomia. Esse atendimento pode ser domiciliar, se necessrio; Atendimento no intensivo: oferecido quando a pessoa no precisa de suporte contnuo da equipe para viver em seu territrio e realizar suas atividades na famlia e/ou no trabalho, podendo ser atendido at trs dias no ms. Esse atendimento tambm pode ser domiciliar (BRASIL, 2004, p. 16).

    Alm disso, os CAPS devem prestar ateno de forma integrada rede de servios de sade e de outros setores, a fim de oferecer o suporte necessrio para a reinsero psicossocial das pessoas com transtornos mentais. As aes desenvolvidas especificamente em seu territrio, ou seja, envolvendo as pessoas, os equipamentos sociais, os valores e a cultura presentes na rea geogrfica de abrangncia do CAPS e na vida dos usurios, so tambm fundamentais para promoo da vida comunitria e para a garantia e estmulo autonomia e independncia deles (BRASIL, 2004).

    2 ObjetivoO objetivo deste trabalho foi relatar uma

    experincia de implantao e desenvolvimento de um Estgio Supervisionado em Terapia Ocupacional num Centro de Ateno PsicossocialCAPS II, com estudantes do oitavo perodo do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paran (UFPR), numa modalidade de Estgio de Prtica Autnoma, descrevendo as caractersticas e objetivos do equipamento e o processo de ensino e aprendizagem por meio da assistncia aos usurios.

    3 MetodologiaEste trabalho caracteriza-se pelo relato de

    experincia de um docente e um grupo de estagirios do oitavo perodo do curso de Graduao em Terapia Ocupacional da UFPR.

    O grupo de estagirios ingressou em 2008 no curso em cuja grade curricular h uma disciplina denominada Estgio Supervisionado em Terapia OcupacionalPrtica III, que se caracteriza por ser uma prtica autnoma1. Essa disciplina possui uma carga horria de 15 horas semanais, as quais se dividiam em trs horas de superviso e 12 horas em campo de prtica.

    No segundo semestre de 2011, tal turma iniciou a disciplina, sendo que uma equipe de cinco discentes ficou designada para a rea de Sade Mental. Essa prtica era dividida em: quatro horas semanais

    no Ambulatrio de Sade Mental do Hospital de ClnicasUFPR e oito horas semanais em um CAPS II de Curitiba, sob superviso semidireta2 do professor responsvel.

    Este trabalho trata especificamente da experincia do grupo no CAPS II. O horrio para atendimento no CAPS foi ajustado de acordo com as necessidades do CAPS e tambm de acordo com as regras gerais de estgio, e os discentes permaneceram em dupla na maior parte dos atendimentos.

    Essa foi a primeira equipe de estagirios desse CAPS. Realizou-se um perodo de observao e discusses em superviso e, ao final dessa primeira etapa, elaborou-se um relatrio contendo os dados observados. Com base nessas informaes foi construdo um relatrio com as caractersticas do servio, o perfil dos usurios e, a partir da, a proposta para a realizao da interveno de Terapia Ocupacional em cada um dos diferentes regimes.

    Na instituio existia apenas uma profissional de Terapia Ocupacional. A portaria 224/92 estabelece que para hospitais psiquitricos a proporo de terapeutas ocupacionais por pacientes deve ser de 1/60, essa regra, no entanto, no se aplica aos CAPS (BRASIL, 1992). Acredita-se que esse seja um dos motivos pelo qual o programa de reinsero social acaba prejudicado, pois a capacidade laborativa do profissional limitada e utilizada inteiramente na rotina interna.

    Dessa maneira o grupo, composto por cinco estagirios, com a carga horria de oito horas semanais cada, orientados diretamente pela terapeuta ocupacional da instituio e supervisionados pelo docente, pde propor um projeto que complementasse o trabalho de Terapia Ocupacional j existente.

    Inicialmente ocorreu a observao do funcionamento institucional e o contato inicial com os usurios, sendo depois realizada uma entrevista com eles a fim de detectar suas necessidades para finalmente ocorrer a interveno e, posteriormente, a avaliao de todo o processo, incluindo-se o processo de ensino-aprendizagem dos estudantes.

    4 Resultados

    4.1 Observao institucional

    Durante o primeiro ms de estgio (agosto de 2011), a ao realizada foi basicamente a observao da rotina do CAPS e o acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos usurios e pela equipe.

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    O CAPS II em questo conveniado com a prefeitura municipal local e presta servios a 220usurios, encaminhados exclusivamente pelas Unidades de Sade de dois Distritos Sanitrios da cidade. Os atendimentos so ofertados em diferentes regimes, sendo eles: intensivo, semi-intensivo e no intensivo, nas modalidades individual e grupal, alm de reunies de famlia.

    A equipe multidisciplinar desse CAPS composta por profissionais das reas de Psiquiatria, Psicologia, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Servio Social e outros profissionais de nvel mdioauxiliares de enfermagem e oficineiros. Ainda conta com voluntrios do servio de Terapia Comunitria e uma artes.

    Na admisso dos usurios, o servio de Terapia Ocupacional responsvel por realizar a avaliao do desempenho nas reas de ocupao, planejar juntamente aos usurios a agenda de bolso (onde constam as atividades que sero realizadas nos dias em que frequentam o CAPS), auxiliando-os a engajarem-se em atividades ofertadas.

    So funes do terapeuta ocupacional: coordenar e supervisionar os oficineiros nas oficinas de artesanato, lazer e culinria, coordenar os usurios que participam das diversas comisses (recepo, limpeza e manuteno, jardinagem, dentre outras), planejar atividades de lazer externas ao CAPS, de acordo com o interesse dos usurios, elaborar pareceres para o processo de solicitao de concesso de benefcios previdencirios3, elaborar relatrios a serem apresentados nas reunies de distrito, realizar intervenes individuais referentes, principalmente, ao desempenho ocupacional nas atividades de vida diria, atividades instrumentais de vida diria, trabalho, lazer e participao social, encaminhar usurios para cursos profissionalizantes no Liceu de Ofcios e realizar atendimentos em grupo.

    Conforme esclarecido acima, a observao focou-se na rotina institucional e nas caractersticas dos usurios de cada um dos regimes.

    4.2 Caractersticas gerais dos usurios

    Durante o perodo de observao institucional, alm das entrevistas, foram realizados contatos informais com os usurios e conversas ocasionais. Foram observadas caractersticas comuns, de acordo com o regime frequentado.

    4.2.1 Regime no intensivo

    Esses usurios frequentam o CAPS trs vezes por ms. Observou-se que a mudana para o regime no intensivo geralmente acarreta perda do auxlio

    transporte e do benefcio previdencirio concedidos pelos rgos pblicos. De acordo com relatos dos usurios, os peritos colocam em dvida o fato de eles precisarem do benefcio, devido a frequentarem o CAPS apenas trs vezes ao ms. De acordo com relatos dos usurios, os peritos informam que para a concesso do benefcio necessrio que frequentem o CAPS diariamente ou, no mnimo, trs vezes por semana, no caso do benefcio de transporte, dando a entender, nas entrelinhas, que quem frequenta o CAPS apenas trs vezes por ms j deveria estar em condies de voltar ao trabalho e que assim no necessitaria mais do benefcio. Observou-se que a maioria dos usurios que frequenta esse regime permanece mais tempo no ambiente domiciliar e no est inserida em atividades scio-ocupacionais fora do CAPS. Verbalizam claramente que desejam voltar a frequentar o regime semi-intensivo ou intensivo. Em geral, em funo da possibilidade de recuperao dos benefcios perdidos e, muitas vezes, para minimizar o estresse acarretado pelo aumento de horas passadas no convvio familiar. No foi possvel perceber perspectivas positivas relatadas por esses usurios em funo de seu presumido progresso no tratamento.

    Por esse motivo foi proposto em um primeiro momento realizar-se entrevista e avaliao ocupacional para verificar a rotina desses usurios e identificar quais atividades eles realizavam e em quais apresentavam dificuldades. Em um segundo momento seria realizado um grupo semanal de orientao e acompanhamento para discusso acerca da insero scio-ocupacional em projetos, atividades ou ocupaes na comunidade, e, principalmente, estimular a participao em atividades e ocupaes no territrio. O objetivo seria discutir com o usurio as vantagens que ele teria em resgatar ou construir sua prpria autonomia, por meio do envolvimento em ocupaes significativas e participao social.

    4.2.2 Regime semi-intensivo

    Observou-se que nesse regime h dificuldades quanto ao estabelecimento de rotina, tanto dentro quanto fora do CAPS. Acredita-se que essa dificuldade esteja relacionada maior necessidade de apoio aos usurios para que eles construam sua rotina de atividades fora do CAPS. A ideia inicial foi auxiliar intensivamente esses usurios na construo de uma rotina fora do ambiente clnico/institucional, com o objetivo de prepar-los para o regime no intensivo, de forma que tenham vontade de ficar mais tempo fora do CAPS e de envolverem-se em ocupaes significativas em outros ambientes, percebendo quais seriam as vantagens e os ganhos.

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    4.2.3 Regime intensivoQuanto ao regime intensivo, observou-se que a

    rotina dos usurios parece estar organizada em torno de sua participao no CAPS. O envolvimento em ocupaes que podem ser significativas ou no e a participao social, por parte dos usurios, est restrita ao CAPS, na maioria dos casos. Por esse motivo, acredita-se que os usurios sejam dependentes de incentivo da equipe e da organizao institucional para desempenhar certas atividades. Sendo assim, pareceu necessrio fomentar a vontade e a descoberta de interesses desses usurios.

    4.3 Perfil dos usuriosA entrevista inicial abrangeu, alm dos dados

    sociodemogrficos, aspectos da vida ocupacional dos usurios e foi baseada nas reas de ocupao e nos subsistemas apresentados pelo Modelo da Ocupao Humana. Ela foi realizada com aproximadamente 65% dos usurios que frequentavam o CAPS e ocorreu durante os meses de setembro e outubro de 2011; foi composta por questes que buscavam informaes gerais dos usurios, como: nome, data de nascimento, sexo, endereo, estado civil, bairro no qual reside e a Unidade Bsica de Sade pela qual foi encaminhado. Continha informaes referentes sade, como: diagnstico, medicamentos utilizados, doenas preexistentes e informaes sobre os internamentos ocorridos. Tambm foram coletadas informaes sobre a situao funcional, como: escolaridade, profisso, trabalhos e empregos, e a situao junto ao INSS e sobre o tempo de permanncia no CAPS, tempo de tratamento, regime de tratamento ao qual pertence no CAPS, dias da semana em que frequenta o CAPS e quais as atividades que realizavam na instituio. Alm de informaes da vida ocupacional, como: quais atividades realizavam, dividindo-as em atividades de vida diria, produtivas e de lazer; questionou-se sobre a existncia da vontade de retomar a realizao de alguma atividade em sua vida ou se h a vontade de iniciar tal realizao. Por fim, na entrevista, havia espao destinado a anotaes que o estagirio considerasse relevante constar em tal documento. Embora muitas dessas informaes estivessem disponveis nos pronturios, considerou-se importante o contato pessoal do estagirio, para que tomasse conhecimento das mesmas por intermdio do prprio usurio, como oportunidade para conhec-lo pessoalmente, saber sua opinio sobre os fatos ocorridos em sua vida e iniciar o processo de formao do vnculo.

    A partir da coleta de dados foi construdo o perfil dos usurios dos diferentes regimes de atendimento (Tabela1).

    Nos trs regimes, a maioria do sexo feminino, sem companheiros(as) (solteiras, divorciadas e vivas), com primeiro grau ou ensino fundamental incompleto, afastada do trabalho por doena, idade mdia de 45 anos e morando com a famlia.

    A grande maioria (85%) participa de alguma das atividades do CAPS (Figura1), podendo-se inferir que o ambiente do CAPS estimula a participao em atividades.

    J com relao participao em atividades fora do CAPS (Figura2), as respostas caem quase que pela metade, sendo possvel inferir que h maior dificuldade de o usurio se inserir em atividades fora do CAPS, como em atividades de lazer, de trabalho, produtivas e at mesmo desenvolver as atividades de vida diria.

    Quando questionados sobre de qual atividade mais sentiam falta, o maior nmero de respostas dos trs regimes foi trabalho (Figura3).

    4.4 Plano de ao e intervenoConsiderando-se as informaes acima citadas,

    os usurios foram divididos em grupos conforme o regime de tratamento no CAPS (intensivo, semi-intensivo e no intensivo) para fins do atendimento de Terapia Ocupacional a ser realizado pelo grupo de estagirios. Tomou-se por base o fato de que cada um dos regimes abriga usurios com necessidades e caractersticas especficas.

    A avaliao ocorreu de forma constante, desde os primeiros contatos realizados informalmente, passando pelas entrevistas e prosseguindo com a anlise dos relatos dos usurios sobre seu cotidiano.

    O processo teraputico privilegiou os atendimentos grupais, baseado em avaliaes e orientaes e ou assessorias no prprio grupo. As principais demandas foram: a falta de uma rotina dos usurios fora do CAPS; a dependncia da instituio; a ausncia ou diminuio da volio dos usurios para iniciar ou retomar atividades; e a falta de interesses. Nesse mbito, foram estabelecidos como objetivos dos atendimentos grupais: acompanhar a vida ocupacional dos usurios por meio de seus relatos sobre o cotidiano; estimular a ampliao da vida ocupacional e a retomada de ocupaes significativas; explorar e fomentar a volio e a busca de interesses; e estimular a reinsero social desses usurios em seu territrio.

    Foram estimuladas habilidades de comunicao e interao (KIELHOFNER, 2008a). Discutiram-se questes relacionadas ao controle social e a aes para informao e minimizao do preconceito da comunidade em relao ao estigma acerca das pessoas com transtornos mentais.

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    414 Estgio supervisionado em terapia ocupacional em um centro de ateno psicossocial CAPS II: Desafios ...

    Buscou-se tambm estimular interesses e vontades, valorizando-se o significado das atividades e o prprio desempenho dos usurios nelas.

    Estimulou-se ainda a resoluo de problemas por meio da reflexo sobre as dificuldades encontradas no desempenho das ocupaes, em especial naquelas ligadas interao com outras pessoas.

    Alm disso, iniciou-se junto aos usurios a reflexo sobre a funo do CAPS e instigou-se a desconstruo da concepo institucionalizada de ateno em Sade Mental, estimulando-se, assim, a reflexo sobre um tratamento inclusivo e participativo, no qual o indivduo participa de atividades comunitrias e utiliza os equipamentos sociais do seu territrio;

    Tabela 1. Perfil sociodemogrfico.Intensivo Semi-intensivo No intensivo

    SexoFeminino 21 57% 34 57% 31 65%Masculino 16 43% 26 43% 17 35%

    Estado civilSolteiro(a) 10 27% 14 23% 12 25%Casado(a) 16 43% 36 60% 22 46%Divorciado(a) 9 24% 7 12% 13 27%Vivo(a) 2 5% 3 5% 1 2%

    Nvel educacionalAnalfabeto 3 8% 3 5% 1 2%1 Grau incompleto 14 38% 18 30% 17 35%1 Grau completo 05 14% 10 16% 13 27%2 Grau incompleto 3 8% 8 13% 5 10%2 Grau completo 7 19% 19 31% 10 21%Superior incompleto 1 3% 1 1% 1 2%Superior completo 2 5% 1 1% 0 0%No relatou 2 5% 0 0% 1 2%

    Situao funcionalAfastado por doena 20 54% 47 78% 23 48%Aposentado por invalidez 5 14% 6 10% 10 21%Ativo 0 0% 3 5% 1 2%Inativo 12 32% 3 5% 14 29%No respondeu 0 0% 1 3% 0 0%

    Mdia de idade (anos) 43 45 47Com quem mora

    Sozinho 2 5% 9 15% 5 10%Famlia 35 95% 50 83% 43 90%Outra pessoa 0 0% 1 2% 0 0%

    Fonte: Elaborado pelos autores.

    Figura 2. Participao em atividades fora do CAPS. Fonte: Elaborado pelos autores.Figura 1 . Participao em atividades no CAPS.

    Fonte: Elaborado pelos autores.

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    Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 22, n. 2, p. 409-418, 2014

    alm de ter o poder de modificar o sistema e as polticas por meio do seu engajamento em aes representativas e na busca por seus direitos, pela melhoria da qualidade dos servios, ou seja, como cidado engajado no controle social de seus direitos, aes que, de acordo com Saraceno (1998), seriam os verdadeiros objetivos da reabilitao psicossocial.

    Embora o vnculo e a tutela proporcionados pelo CAPS ao usurio sejam muitas vezes importantes para a retomada da participao ocupacional e social dele, necessrio evitar que o usurio passe a se limitar s relaes e ao desempenho de atividades apenas no CAPS.

    Nesse mbito, o servio substitutivo como proposto na reforma psiquitrica deveria dar conta de possibilitar a formao de uma nova rede de suporte social e comunitria, para que o usurio tivesse sua participao ocupacional e social garantida.

    Foram realizadas ainda orientaes voltadas s reas de desempenho de atividades de vida diria (principalmente autocuidado e rotina de medicao), produtivas (em especial limpeza da casa, cuidados com a alimentao e vesturio) e de trabalho e de lazer.

    Quanto ao modelo de prtica, foram utilizados conceitos do Modelo de Ocupao Humana na caracterizao dos problemas de desempenho ocupacional. Desse modo considerou-se que os problemas de desempenho ocupacional dos sujeitos atendidos no CAPS so provenientes de problemas nos subsistemas de volio (vontade, interesses, motivao e significados para o desempenho de ocupaes), de habituao (falta de hbitos e rotinas, ou rotinas ligadas estritamente dinmica do CAPS) e de habilidades de desempenho (habilidades de processo, sociais e de interao), em relao com o ambiente no qual est inserido (favorecedor ou no para o desempenho) (KIELHOFNER, 2008b).

    No mbito cognitivo-comportamental, os usurios foram estimulados a refletirem sobre seus pensamentos, sentimentos e atitudes e sobre

    sua influncia no desempenho ocupacional. Alm disso, estimulou-se a resoluo de problemas e o estabelecimento de metas pelos prprios usurios, a fim de minimizar ou solucionar as dificuldades de desempenho.

    O trabalho grupal foi bastante utilizado, a fim de proporcionar um espao de troca de experincias e resoluo de problemas, de modo a favorecer a comunicao e a expresso de interesses, vontades e dificuldades de desempenho (HAGEDORN, 2001).

    Por fim, em relao aos processos de mudana, as aes empregadas no CAPS estimularam os processos de educao, reabilitao e adaptao.

    O processo de educao foi desenvolvido nos grupos pelo aumento do conhecimento dos usurios, pelo estmulo e aprimoramento de habilidades dos usurios e pela adequaoe estmulo mudana de atitude frente ao transtorno mental, a si mesmo e sociedade. J o processo de reabilitao foi desenvolvido especificamente no mbito da reabilitao psicossocial, com vistas ao engajamento dos usurios em ocupaes significativas, ao aumento ou retomada de sua autonomia e independncia e, consequentemente sua reinsero social (SARACENO, 1998).

    O processo de adaptao, por sua vez, esteve voltado adaptao das ocupaes, com o fracionamento das atividades para facilitar o desempenho de tarefas completas (HAGEDORN, 2001).

    No foi possvel a realizao de uma reavaliao formal. Pode-se afirmar, no entanto, como resultados parciais baseados nos relatos dos usurios, que os atendimentos grupais possibilitaram: o aumento da autopercepo e reflexo deles em relao s suas aes e posturas frente ao transtorno mental; o compartilhamento de experincias e, consequentemente, o estmulo mtuo ao desempenho ocupacional fomentado entre os prprios usurios; a expresso de interesses e a iniciativa em buscar novos papis devido ao suporte oferecido pelo grupo; a facilitao da resoluo de problemas relacionados ao desempenho ocupacional; e o estmulo atuao como cidado fora da instituio.

    5 DiscussoInicialmente acreditou-se que os estagirios

    pudessem concentrar seu trabalho especialmente junto aos usurios do regime no intensivo, por serem os que frequentam o CAPS o menor nmero de vezes por ms (trs) e que, teoricamente, fossem talvez o grupo que mais necessitasse de auxlio e

    Figura 3. Atividades de que mais sentem falta. Fonte: Elaborado pelos autores.

  • Cad. Ter. Ocup. UFSCar, So Carlos, v. 22, n. 2, p. 409-418, 2014

    416 Estgio supervisionado em terapia ocupacional em um centro de ateno psicossocial CAPS II: Desafios ...

    estivesse mais pronto para sua insero psicossocial. No entanto, essa linha de raciocnio foi modificada quando do contato com a realidade, na qual se perceberam as caractersticas j citadas, tais como o desejo e a necessidade de esses usurios retornarem para o regime semi-intensivo ou para o intensivo, para tentarem retomar direitos bsicos de auxlio-doena e transporte, perdidos com sua suposta ascenso para o regime no intensivo, no qual se pressupe melhora no estado geral de sade.

    Dessa maneira percebe-se que h uma grande contradio no sistema, pois na medida em que o indivduo melhora sua sade e que poderia caminhar em direo alta do CAPS ele, ao invs de receber incentivos, recebe punies, tais como as j citadas perdas do auxlio-doena e auxlio transporte. Isso claramente um reforo negativo para a melhora da sade da pessoa, chegando ao absurdo de criar situaes nas quais as pessoas manifestam explicitamente seu desejo de no melhorar ou at mesmo de piorar, pois no podem ficar sem o dinheiro do auxlio-doena que, muitas vezes, o que garante seu sustento e at o de outras pessoas da famlia dele, que so seus dependentes. Essa contradio coloca os profissionais da sade mental e especialmente o Terapeuta Ocupacional numa situao de impotncia. Como e porque incentivar uma pessoa a ter autonomia e independncia em suas atividades e ocupaes se ela receber por isso uma punio? Sim, porque todos sabem que para uma pessoa com transtorno mental conseguir um trabalho formal remunerado e mant-lo com as exigncias competitivas do mercado de trabalho no faz parte de nossa realidade. Percebe-se aqui a importncia da compreenso de um outro conceito defendido por Saraceno (1998), que diz que a reabilitao psicossocial nos permite romper com a perigosa separao entre sujeito e contexto. De fato, isso fica bastante evidenciado na prtica, o sujeito est totalmente dependente de seu contexto. Em outros pases, como no Canad, por exemplo, sabe-se que existem centros de reabilitao profissional, ou centros de trabalho protegido onde as pessoas recebem remunerao pelo seu desempenho produtivo, sendo consideradas suas capacidades e limitaes. No Brasil precisamos caminhar para um modelo que garanta a subsistncia da pessoa, caso queiramos ter sucesso em nosso trabalho como terapeutas ocupacionais. Caso contrrio estaremos fadados ao fracasso, juntamente com o CAPS e o modelo de sade mental aplicado. Certamente, esse no um problema especfico da Terapia Ocupacional, mas sim do modelo econmico social vigente em nosso e em muitos outros pases. Em nossa sociedade, onde os direitos bsicos, fundamentais,

    ainda no so garantidos para todos, observa-se a clara interlocuo entre os aspectos de sade e os sociais. Se o usurio recebe alta, ele deixa de receber o benefcio previdencirio que garante sua subsistncia.

    Do ponto de vista da Terapia Ocupacional, especificamente do ponto de vista do Modelo da Ocupao Humana, parece que nossos usurios dos CAPS esto num ciclo malvolo, onde sua natureza ocupacional no est em pleno funcionamento (KIELHOFNER, 2008c,d,e), encontrando-se essa assistncia em condies bastante precrias de funcionamento. Essa condio poderia ser classificada at mesmo como de privao ocupacional. A privao ocupacional se daria no apenas pela restrio de liberdade de ir e vir (TOWNSEND, 2002), mas pela restrio do incentivo participao em ocupaes significativas, ou at mesmo pela punio. O indivduo que vier a trabalhar ou mesmo ensaiar um trabalho por meio de atividades produtivas informais est sujeito perda do benefcio previdencirio. Novamente aqui destacamos a importncia do contexto.

    Concordamos com Saraceno (2011) quando afirma que aqueles que sofrem de doena mental so expostos a violaes dos direitos humanos e de cidadania.

    Com relao s caractersticas do servio, conforme j afirmado anteriormente, o que ocorre que a equipe possui limitaes para o desenvolvimento de atividades fora do CAPS, seja por motivo de sobrecarga de trabalho, ou por dficit na formao para o trabalho com as atuais diretrizes em sade mental. Algumas atividades externas so desenvolvidas, mas conforme afirma Fiorati e Saeki (2012, p. 212),

    [...] essa atividade externa para por a e no se buscam mais inseres efetivas no social, e as atividades so desenvolvidas preferencialmente nos servios, com poucas incurses para o territrio.

    As intervenes no territrio foram pensadas e planejadas para serem executadas gradualmente. Esse CAPS atende a usurios de aproximadamente nove bairros. Dessa forma, foi planejado um levantamento dos recursos comunitrios de cada um desses bairros e o levantamento dos usurios que neles residiam. Alm disso, pensou-se em atividades externas que pudessem ser desenvolvidas no territrio do CAPS, como por exemplo caminhadas e jogos em uma quadra poliesportiva localizada nas proximidades.

    O servio de sade mental comunitrio no porque est situado (isto , tem um endereo postal) em certo lugar de uma cidade ou de

  • 417Mariotti, M. C. et al.

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    uma zona rural. Ser comunitrio implica uma estratgia de aes e interaes com a comunidade. [...] A comunidade , em si, um recurso, os organismos pblicos (os outros servios sanitrios, as escolas, as entidades assistenciais) e aqueles privados (as parquias, os partidos polticos, os sindicatos, as associaes esportivas etc.) so, todos, recursos (SARACENO, 2011, p. 99-100).

    Essa afirmao de Saraceno ilustra o longo caminho que ainda se tem por percorrer, pois as equipes dos CAPS possuem ainda muita dificuldade para sair ao encontro com a comunidade. Acreditamos que, em parte, por dificuldades reais em relao sobrecarga de trabalho e, em parte, pelas deficincias na formao para o trabalho, aspecto para o qual o estgio tambm poder contribuir.

    Com relao ao ensino-aprendizagem do grupo de estudantes, a discusso semanal entre grupo e supervisor, avaliando e considerando todos os aspectos apontados, promoveu o desenvolvimento profissional, no sentido de compreenderem a realidade e as limitaes impostas por nosso sistema de sade, pelas caractersticas do servio, pelo sistema socioeconmico e cultural, assim como as possibilidades e caminhos para a superao e aperfeioamento, especialmente por meio da participao na construo das polticas pblicas e por meio do aperfeioamento do servio. De acordo com Saraceno (1998), a reabilitao psicossocial uma estratgia que promove as relaes e torna possvel que a experincia do sofrimento psquico do sujeito no o invalide, possibilitando a recuperao de sua capacidade de gerar sentido e valor social e restabelecendo sua contratualidade como cidado.

    6 Consideraes finaisO estgio supervisionado em Terapia Ocupacional

    na modalidade de prtica autnoma possibilitou aos estudantes o contato direto com a realidade, o conhecimento do funcionamento do sistema de sade, das caractersticas do servio, com suas limitaes e contradies, e a aproximao com os usurios, no sentido de perceber sua realidade, suas condies socioeconmicas e familiares, seus desejos e aspiraes, assim como a falta deles. As dificuldades para o engajamento desses usurios em ocupaes significativas em seu prprio territrio e as limitaes e estigmas a eles impostos pela sociedade, assim como a reflexo sobre as influncias do sistema socioeconmico vigente e sobre a necessidade de se repensarem os servios existentes e ofertados. Essa uma etapa bastante importante do aprendizado, pois

    possvel trabalhar as frustraes e a percepo de que a nica maneira de mudar a realidade, alm da prtica clnica ampliada, que ainda assim apresenta inmeras limitaes, por meio da participao na discusso e formulao das polticas pblicas de assistncia sade mental, da constante avaliao e reformulao dos servios oferecidos e do controle social.

    RefernciasBRASIL. Ministrio da Sade. Portaria n224, de29 de janeiro de1992. Dirio Oficial [da] Repblica Federativa do Brasil, Poder Executivo, Braslia, DF,29 jan.1992.BRASIL. Ministrio da Sade. Portaria n336, de19 de fevereiro de2002. Dirio Oficial [da] Repblica Federativa do Brasil, Poder Executivo, Braslia, DF,19 fev.2002.BRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Sade mental no SUS: os centros de ateno psicossocial. Braslia: Ministrio da Sade,2004. (Srie F. Comunicao e Educao em Sade).FIORATI, R. C.; SAEKI, T. As atividades teraputicas em dois servios extra hospitalares de sade mental: a insero das aes psicossociais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, So Carlos, v.20, n.2, p.207-215,2012.HAGEDORN, R. Fundamentos da prtica em Terapia Ocupacional. So Paulo: Dynamis,2001.HIRDES, A. A reforma psiquitrica no Brasil: uma (re)viso. Cincia e Sade Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, n.1, p.297-305,2009.KIELHOFNER, G. Dimensions of doing. In: KIELHOFNER, G. Model of human occupation: theory and application.4.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins,2008a. p.101-109.KIELHOFNER, G. The basic concepts of human occupation. In: KIELHOFNER, G. Model of human occupation: theory and application.4.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins,2008b. p. 11-23.KIELHOFNER, G. Introduction to the model of human occupation. In: KIELHOFNER, G. Model of human occupation: theory and application.4.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins,2008c. p.1-7.KIELHOFNER, G. The dynamics of human occupation. In: KIELHOFNER, G. Model of human occupation: theory and application.4.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins,2008d. p.24-31.KIELHOFNER, G. Habituation: patterns of daily occupation. In: KIELHOFNER, G. Model of human occupation: theory and application.4.ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins,2008e. p.51-67.IBRAHIM, F. Z. Curso de direito previdencirio. Rio de Janeiro: Impetus,2009.SARACENO, B. A concepo de reabilitao psicossocial como referencial para as intervenes teraputicas em Sade Mental. Revista de Terapia Ocupacional, So Paulo, v.9, n.1, p.26-31,1998.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN-UFPR. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso. Resoluo n46/10-CEPE. Dispe sobre os estgios na Universidade Federal do Paran. Curitiba,6 ago.2010b.

    Contribuio dos AutoresMariotti, Milton Carlos: Concepo do artigo, orientao, superviso e reviso do texto. Marques, Luciana Carvalho; Schlean, Aline; Silva, Rafaela; e Stoffel, Diane Priscila: Estagirias, coleta de dados e colaborao na elaborao do texto. Veiga, Bruna: Terapeuta ocupacionalCAPs II, preceptora de estgio, colaborao na elaborao do texto.

    Notas1 Prtica autnoma, de acordo com a definio do projeto pedaggico do curso, aquela que ocorre nos dois ltimos

    perodos do curso, quando se considera que o estudante j tenha conquistado habilidades de autonomia para a tomada de decises e resoluo de problemas (UNIVERSIDADE..., 2010a).

    2 Superviso semidireta o tipo de superviso na qual o docente no est presente em toda a carga horria no local do estgio. O estagirio est sob orientao do profissional da instituio e a superviso ocorre em 10% da carga horria (resoluo 46/10-UFPR) (UNIVERSIDADE..., 2010b).

    3 Benefcios: um sistema de proteo social que assegura o sustento do trabalhador e de sua famlia quando ele no pode trabalhar por causa de doena, acidente, gravidez, priso, morte ou velhice (IBRAHIM 2009).