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ISSN 2176-1396
ESTEREÓTIPOS SOBRE OS INDÍGENAS BRASILEIROS E
PRODUÇÃO DE VÍDEOS PARA ESCOLAS
Dr. Hylio Lagana Fernandez1-UFSC
Ana Iara Silva de Deus2-IESA
Grupo de Trabalho –Educação, Arte e Movimento
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Há grande diversidade cultural de indígenas no território brasileiro, onde atualmente se falam
mais de 180 línguas diferentes e as populações indígenas tem crescido, mas no imaginário
prevalece uma visão estereotipada de índio que remete à época do descobrimento. Na educação
a Lei11.645, que dispõe do ensino das culturas indígenas e africanas, e a Lei13006, que discorre
sobre a exibição de cinema nacional, abrem possibilidades para superar a imagem estereotipada
associada aos indígenas brasileiros. Deste modo, esse trabalho apresenta a produção de curtas-
metragens autorais produzidos pelos próprios indígenas, como material de apoio didático para
apresentar nas escolas de educação básica a diversidade de culturas e assim possibilitar outra
visão, por meio das produções audiovisuais realizadas pelos indígenas quebrando as
informações pejorativas ou estereotipadas sobre eles. Assim, esse trabalho apresenta diferentes
tradições praticadas por essas comunidades, com base em suas visões de mundos e contextos.
Portanto, a escrita deste texto visa desvincular do ensino escolar brasileiro informações
distorcidas sobre os índios no Brasil.Sendo assim, com essas ações da política do cinema na
educação, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), trabalha o cinema com os
estudantes-indígenas que frequentar os cursos da UFSCar, procurando dar espaço e voz para
que os próprios indígenas modifiquem as representações estereotipadas deles, por meio das
atuais facilidades técnicas para produção fílmica e possíveis desdobramentos disso no ensino
básico, no qual se propõe o ensino de culturas indígenas sem que haja um preparo dos
professores para esse trabalho, associada com a legislação que prevê a apresentação de cinema
nacional nas escolas.
Palavras Chaves: Índios; Cinema; Estereótipos.
1Professor adjunto da Universidade Federal de São Carlos UFSCar – Sorocaba.
2Graduada em Pedagogia, pós-graduada em Educação Infantil. Mestre em Educação. Arteterapeuta. Atualmente,
é titular da disciplina de Fundamentos Metodológicos do Ensino das Artes e Estrutura e Funcionamento da
Educação Básica no curso de Pedagogia do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo-
CNEC/IESA. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social - GEPEIS/UFSM.
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Introdução
No ano de 2008 foi promulgada a Lei Federal 11.645 (BRASIL, 2007), referente às
diretrizes do ensino básico, que determina a obrigatoriedade do “estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena” nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, incluindo no currículo oficial da rede de ensino brasileira a obrigatoriedade
da temática indígena. Essa iniciativa, louvável em termos de respeito e valorização das culturas
presentes no território brasileiro, na prática esbarra na dificuldade dos professores em abordar
essas temáticas.
A Carta de São Luís do Maranhão (WIPO, 2001) é um documento que desvela o Brasil
como um país pluriétnico, atualmente com cerca de 220 povos indígenas que falam 180 línguas
distintas e uma população de 360 mil pessoas a ocupar 12% do território nacional. Essa
riquíssima variedade cultural, contudo, é ignorada pela grande maioria dos brasileiros. As
realidades das populações indígenas atuais são pouco conhecidas, ou pior, são pasteurizadas
num imaginário estreotipado, no qual não existem múltiplas manifestações culturais, sistemas
próprios de educação, produção agrícola, manejo ecológico das florestas e outros saberes. Até
pouco tempo, nas escolas apresentava-se uma visão dos índios pautada ainda nas imagens dos
grupos Tupi à época da ocupação (CUNHA, 2008). Como consequência de uma história de
conquista que inferioriza o vencido, assim como de um modelo econômico pautado na
eficiência, produtividade e lucro, disseminam-se estereótipos de índios como sendo indivíduos
indolentes e inferiores, em prejuízo da riqueza de suas tradições, tecnologias e saberes
tradicionais (ANDRELLO & FERREIRA, 2008).
Motivos diversos, historicamente construídos, levam à disseminação dessas
informações pejorativas ou estereotipadas: às vezes são ingenuamente (re)produzidas e
veiculadas por agentes que desconhecem completamente as tradições dessas comunidades -
incluindo-se aqui o ensino escolar da história do Brasil; mas, infelizmente, também são
veiculadas informações distorcidas propositadamente para confundir a opinião pública, como
certos discursos da bancada ruralista de nosso país que, em pleno século XXI e diante da
gigantesca crise ambiental que se verifica no planeta, ainda defende a ampliação dos territórios
para o agronegócio em detrimento da demarcação de terras indígenas.
A lei 13006, de 26 de junho de 2014, que obriga a exibição de duas horas de cinema
nacional por mês nas escolas de educação básica, compõe um novo contexto no qual se
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vislumbram potencialidades para o ensino, na medida que abre a possibilidade de exibição de
filmes que retratem as realidades dos povos indígenas. Para Santos,
Do ponto de vista da produção cinematográfica, a formação de público a partir das
escolas sempre foi um objetivo perseguido por realizadores. A escola, especialmente
a escola pública, ainda que tardiamente, descobre e reafirma a possibilidade da
linguagem audiovisual como mais um caminho real e democrático para a relaçao dos
alunos e da sociedade( 2015, p.163).
Desse modo, com a sanção da Lei 13.006/14, a produção cinematográfica passa a ser
componete curricular obrigatório nas escolas de Educação Básica, abrindo portas para a
produção, criação, exibição e acima de tudo, divulgação do patrimônio cultural, por meio da
sétima arte no espaço escolar.
Sendo assim, com essas ações da política do cinema na educação, a Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar) pratica, igualmente desde 2008, políticas inclusivas em seus
campi; considerando as populações indígenas, disponibilizando uma vaga por curso de
graduação para candidatos/as indígenas, com exame vestibular próprio. Além disso, a
instituição oferece bolsas-auxílio para garantir a permanência desses estudantes ao longo de sua
graduação.
O presente trabalho situa-se nesse universo, qual seja, dos estudantes-indígenas que
passam a frequentar cursos da UFSCar, da representação estereotipada dos indígenas
brasileiros, das atuais facilidades técnicas para produção fílmica e possíveis desdobramentos
disso no ensino básico, no qual se propõe o ensino de culturas indígenas sem que haja um
preparo dos professores para esse trabalho, associada com a legislação que prevê a apresentação
de cinema nacional nas escolas.
O que movimentou esse processo teve seu início na convivência dos estudantes
indígenas na comunidade universitária, situação de um evidente e intenso choque de culturas:
auxilia-nos nessa discussão reflexões desenvolvidas no campo dos Estudos Culturais, em
especial os referentes ao Multiculturalismo, cujo
“argumento central é o de que pensar e viver no mundo atual passa pelo
reconhecimento da pluralidade e diversidade de sujeitos e de culturas com base no
respeito e tolerância recíproca, concebendo as diferenças culturais não como sinônimo
de inferioridade ou desigualdade, mas equivalente a plural e diverso” (SILVA &
BRANDIN, 2008, p. 51).
Na educação, a perspectiva multiculturalista auxilia a questionar a reprodução de
práticas e transmissão de informações que contém em seu bojo etnocentrismos e estereótipos,
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associados a valores de uma cultura hegemônica que faz desaparecer a diferença – ou a
inferioriza. É importante, antes de tudo, de construir oportunidades para que se expressem
outras interpretações e modos de ser no mundo; romper a lógica excludente do discurso
dominante (branco, masculino e heterossexual). Boaventura de Souza Santos apresenta um
interessante conceito para o escopo deste trabalho: o de multiculturalismo emancipatório, que
propõe um diálogo entre saberes, ao que chama de ecologia de saberes (SANTOS &
MENESES, 2010); anuncia ainda a ideia de tradução intercultural (SANTOS, 2002) como
outro conceito importante, que tem como objetivo fazer com que outros saberes se tornem
visíveis, a partir da voz das minorias, mas em diálogo com o pensamento dominante, superando
uma invisibilidade imposta etnocentricamente.
O pensamento moderno ocidental é um pensamentoabissal (SANTOS, 2009), que
divide a realidade social “em dois universos distintos: o deste lado da linha e o do outro lado
da linha. A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece como realidade, torna-se
inexistente (SANTOS, 2009 p. 71). A consequência disso é a anulação de outras culturas, ou a
impossibilidade mesma de reconhecimento de valores do outro: os povos indígenas no Brasil
falam 180 línguas diferentes, vários povos estão em crescimento populacional (ALMEIDA,
2010) e, na lógica do pensamento abissal, não existem.
“As linhas cartográficas abissais que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era
colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem
constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema
mundial contemporâneo.” (SANTOS, 2009, p.54).
A tecnologia atual, seja referente às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC),
seja nas facilidades e barateamento de equipamentos de vídeo gravação, abre-se como uma
interessante ferramenta para expressão e veículo de comunicação do universo cultural dos
licenciados: a tradução intercultural (SANTOS, 2002) ganha visibilidade também a partir do
intérprete oriundo da minoria.
Na UFSCar, além das ações de apoio institucional, com acompanhamento de um Comitê
de Ações Afirmativas, há propostas feitas por iniciativa pessoal de docentes, atentos aos
estudantes indígenas no contexto universitário; dentre essas propostas destacamos aqui um
Programa de Educação Tutorial PET, iniciado em 2011. O principal objetivo desta proposta foi
criar grupos com os estudantes-indígenas em cada um dos campi da universidade que pudessem
refletir sobre as concepções presentes sobre os indígenas brasileiros, e propor ações para
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superação dos estereotipos simplistas e pejorativos associados ao desconhecimento dessa
riquissima diversidade cultural.
Os estudantes indígenas participantes pertencem à diferentes etnias, tem línguas
maternas distintas, tradições, crenças, particularidades. Foi a partir da fala de um desses
estudantes, ao afirmar se sentir “invisível em sua turma”, que buscamos apoio em Boaventura
Souza Santos, cujo referencial tem contribuído muito para nos aproximarmos de um
entendimento mais profundo da problemática que tínhamos pela frente. Como romper essa
invisibilidade? - essa questão foi a principal motivação para nosso ttrabalho: mostrar para a
comunidade universitária, num primeiro momento, e para a sociedade brasileira como um todo
como objetivo final, a riqwueza de culturas indígenas, vivas e florescentes, que existem no
território nacional.
A estratégia de trabalho, a partir daí, teve como base a produção fílmica, com temática
de livre escolha de cada um dos grupos de estudantes participantes, que contava com a presença
de estudantes das etnias Kalapalo, Rikbaktsa, Nhanbiquara, Xavante, Xukuru, Baré, Tukano e
Tariano, com um total de 11 integrantes3. Entre 2011 e 2014, nos períodos letivos, foram
realizados encontros semanais, nos quais esses estudantes exercitaram a escrita para a
elaboração dos roteiros, textos e legendas, definiram as narrativas que iriam produzir,
estabeleceram as referências visuais, musicais, selecionaram fotografias, desenharam, pintaram
os corpos, papéis, dançaram, cantaram, gravaram as sequências para compor seus vídeos - e
depois as editaram e pós-produziram.
Nesse processo foram elaborados no total 10 roteiros, gravado material bruto de 8
narrativas e produzido um story-board que virou uma História em Quadrinhos, publicada numa
revista de divulgação científico-cultural. Até o momento foram finalizados quatro vídeos,
restando ainda dois em fase de edição/pós-produção; esses vídeos foram apresentados em
diversos contextos e circunstâncias na própria universidade e também para a comunidade
externa, em eventos nas escolas da região, sempre seguidos de debates com os autores, e ainda
foi composta uma mostra especial de vídeos, encomendada para um congresso de extensão,
realizado em Quito, Ecuador, em 2013.
3Além de um estudante de cada etnia listada, havia 4 estudantes Xavantes.
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As produções fílmicas realizadas pelos indígenas
Para pensar o cinema na Educação, primeiramente é necessário, viabilizá-lo como arte no
espaço escolar, seja na educação básica ou na Universidade. Portanto, para o desenvolvimento
deste trabalho partiu-se do pressuposto preconizado por Bergala, em seu livro: A hipótese do
cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola, o qual salienta:
A arte não se ensina, mas se encontra, se experiementa e transmite por outras vias
além do discurso. A escola pode possibilitar o encontro com o cinema, ajudar os
alunos a entendê-lo melhor enquanto arte, mas não pode obrigar ninguém a ser tocado
por um determinado filme. Este processo é absolutamente individual, ainda que ocorra
numa situação de experiencia muda coletiva ( 2007, p.30).
Esse foi o objetivo principal com o trabalho desenvolvido na UFSCAR, possibilitar aos
índios o encontro com a arte, através da experimentação fílmica, aonde os indígenas aventuram-
se a enquadrar sua cultura, seu espaço vivido, suas crenças, ideias e atividades diárias.
Desse modo, passo a registrar o vídeo “Datsipadô” é de autoria de Nicolino Tsiprã
Uratsé e José Robri Umnhate, da etnia Xavante, aldeia São Marcos, Mato Grosso, e apresenta
o preparo das pinturas corporais e a dança de um ritual de cura; também da etnia Xavante é o
vídeo “A história de Aiwedepa”, produzido por Gedeão Butsê, que narra uma história da
tradição oral de seu povo sobre o amor de dois jovens e a transformação deste em estrelas. O
vídeo “Kuarup” é de autoria de Jeika Kalapalo, da etnia Kalapalo, aldeia Aiha, localizada no
Parque Xingu no estado do Mato Grosso. O vídeo “A lenda de Adana”, é de autoria de Dulciana
Garrido, da etnia Tariano, de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, e conta a história de
integração dos povos Baré e Tupi.
O primeiro vídeo, “Datsipadô”, apresenta um ritual de cura praticado pelo povo
Xavante, habitante do estado do Mato Grosso. Participaram de sua produção cinco estudantes
Xavantes, que pintaram os corpos e encenaram uma amostra ritual de dança, nas dependências
do campus universitário; a edição final ficou a cargo de dois deles, que também selecionaram a
trilha sonora com músicas de seu povo e elaboraram um texto, gravado em áudio em portugues
brasileiro (PB) e apresentado no início do vídeo, que apresenta brevemente o povo Xavante;
diversas cenas que se seguem mostram detalhes da elaboração das pinturas corporais, feitas
com urucum e carvão, com uma chamada visual para as pinturas feitas no rosto, que
representam os dois clãs desse povo - “girino” e “rio grande” - associados às relações de
parentesco e possíveis laços de casamento. Por fim, mostra a dança ritual encenada pelos
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estudantes. Os autores optaram deliberadamente por deixar na montagem final a cena de uma
professora que auxiliava na filmagem, como uma forma de reconhecimento de sua ajuda.
Esse vídeo mostra um ritual de cura, entendido como uma forma de conter epidemias,
realizado apenas em situações particulares de perigo; ao apresentar esse ritual no vídeo os
estudantes colocam em evidencia um aspecto de seu conhecimento tradicional que opera num
contraponto ao conhecimento científico, em especial ao campo da medicina, na medida que se
trata da cura de doenças.
Boaventura discute a existência de conflitos entre conhecimentos rivais: entre o
conhecimento científico e o conhecimento não-científico-popular, tradicional, indígena, dentre
outros (SANTOS, 2005). Afirma que as formas de conhecimentos ditos não-científicos não são
consideradas relevantes, “por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso”
(idem, 2007, p.73).
Não é de se estranhar, nessa lógica estabelecida, que os saberes tradicionais sejam
considerados desprovidos de valor. Comparando o sistema de geração e disseminação do
conhecimento tradicional com aquele dos campos científico e tecnológico, destacam-se
importantes diferenças, quais sejam: os inventores/criadores do conhecimento tradicional não
são indivíduos ou grupos isolados, nem pretendem uma ampla distribuição; o método usado
tem um forte componente empírico; a validade desse conhecimento é comprovada pelo uso e
não pelo valor de mercado; é tácito, restrito e não sujeito às leis de mercado (CORREA, 1999).
O segundo vídeo, também da tradição Xavante, “A história de Aiwedepa”, produzido
por Gedeão Butsê, parte de uma narrativa na língua Xavante, feita por Gedeão numa gravação
no campus universitário, que se enquadra no terço direito da tela enquanto desfilam nos dois
terços restantes desenhos feitos por ele sobre essa lenda, ouvida desde seus tempos de criança
pela voz da avó; há aplicação de legendas para compreensão do conteúdo. Esse vídeo trata de
um amor proibido entre dois jovens, mas diferente da tradição cultural ocidental, em que tal
amor possivelmente é castigado com a morte (tomando como referência “Romeu e Julieta”,
talvez a mais conhecida história de amor com essa temática na cultura ocidental), na “A história
de Aiwedepa” os jovens fogem para o alto de uma palmeira, e com a ajuda do irmão do jovem,
que bate até a palmeira crescer para o céu, se tranformam em estrelas.
O terceiro vídeo conta a história do kuarup, motivo de uma grande festa no Alto Xingu,
no Parque Indígena do Xingu (PIX): Jeika compõe sua narrativa na língua karib e aplica as
legendas em PB; parte de uma gravação de base, a qual se enquadra ao lado de uma árvore no
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campus universitário, e conta a origem da festa: visualmente vai intercalando sua imagem com
fotografias e pequenos trechos de vídeos produzidos por ocasião da festa anual. Essa festividade
está relacionada com a impossibilidade da ressurreição dos mortos, tem a duração de vários
dias e é conhecida por reunir povos falantes das línguas tupi, aruak, karib e a língua isolada
trumai; “solidariedade e hostilidade se alternam na configuração do universo alto-xinguano e
revelam a complexa rede política que o envolve” (JUNQUEIRA e VITTI, 2009 p. 134).
A escolha dessa narrativa feita pelo estudante pode estar relacionada à importancia que
tal festa tem, não apenas no contexto local, mas também pela projeção na sociedade ocidental:
há, disponíveis inclusive via internet, diversos textos, trabalhos antropológicos, livros,
fotografias e video-documentários que registram e estudam esse evento, denotando uma grande
visibilidade; tal motivo já seria suficiente para sua eleição, pois se trata de uma importante festa
cultural que é reconhecida (e respeitada) pela cultura hegemonica. Porém, é possível pensarmos
no paralelo que a situação multicultural dos estudantes indígenas na universidade mantém com
a situação de convívio harmonioso (multicultural) das comunidades xinguanas. O termo
multiculturalismo diz respeito ao reconhecimento da existência de uma diversidade cultural em
um determinado espaço; contudo, em um espaço reconhecido como multicultural, não
necessariamente há o reconhecimento do outro, o respeito ao outro e à diferença do outro. Ao
eleger como tema os festejos do Kuarup, Jeika aponta para a comunidade universitária
possibilidades para a convivência com o diferente; possibilidades já historicamente praticadas
pelas culturas indígenas do Alto Xingu.
O quarto vídeo, intitulado “A lenda de Adana”, é de autoria de Dulciana Garrido
Oliveira, da etnia Tariano, de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, e conta a história de
integração dos povos Baré e Tupi. A história foi escolhida pela aluna como uma oportunidade
de resgatar e registrar uma lenda presente na cidade onde seus familiares residiam no momento
da produção do vídeo. Na oportunidade, a aluna faz várias ligações telefônicas para uma parente
consanguínea residente no local, faz registro ou tomada de notas das conversas, e em seguida
elabora a “tradução” da narrativa - recuperada na modalidade oral - para um registro na forma
de desenhos autorais da própria aluna, numa sequência que retrata a narração pela voz da aluna
no decorrer da apresentação de seus desenhos. É também pela aluna valorizado, no momento
da produção desse material, a escolha da música que comporá seu cenário sonoro e o registro
de livros consultados para a confirmação/aprofundamento de dados coletados.
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A história escolhida pela aluna conta a lenda do surgimento da ilha de Adana, localizada
no Rio Negro - São Gabriel da Cachoeira/AM, referindo-se a uma lenda que envolve duas tribos
(Baré e Tupi) e um caso de amor. Conta a lenda que duas corredeiras, Buburi e Curucui,
representam dois bravos índios guerreiros de tribos rivais que disputaram o amor de uma linda
índia chamada Adana. A índia busca a fuga com Curucui de canoa, mas Buburi vai atrás do
casal, os alcança no meio do rio e, numa altercação, todos morrem afogados e os corpos dos
índios se transformam nas corredeiras e o da índia, que se afogou entre os pretendentes, se
transforma na ilha que recebeu seu nome. Nesse caso o amor, que não se limitava a duas
pessoas, resulta na morte. Todos os anos é tradição a realização de uma festa na ilha envolvendo
as duas tribos.
Embora tendo como argumento principal um amor proibido (com final trágico) que
explica mitologicamente o surgimento de uma ilha e as corredeiras que a limitam, a
consequencia da história vem a ser o convívio de duas tribos, antes rivais. Também aqui
podemos notar a proposição de solução para um conflito cultural, que permite às duas tribos o
convívio pacífico num contexto multicultural. Os vídeos de Jeika e de Dulciana apresentam,
ambos, proposições para o convívio: mostram, cada um em seu contexto particular, as
possibilidades que suas culturam produziram. Ao apresentar a festa que opera no
equilíbrio social da situação muticultural do Alto Xingu e da região de São Gabriel da Cachoeira
ou mostrar formas distintas e (consideradas) válidas para afastar epidemias no Mato Grosso, os
estudantes mobilizam e explicitam seus conhecimentos, aspectos culturais ganham forma e
força comunicativa no formato de vídeo, instrumento midiático hegemônico da cultura
hegemônica: a superação da invisibilidade, da linha divisória abissal, pelo uso multimidiático
que permite a comunicação (imagens, textos, sons, figuras, línguas, músicas) por um canal
amplamente reconhecido, promovendo uma tradução intercultural.
Boaventura deixa claro que o termo multiculturalismo não significa uma aceitação do
outro como ele é. Apresenta o conceito de multiculturalismo emancipatório como um
contraponto ao multiculturalismo conservador/colonial que, apesar de admitir a existência de
outras culturas, as considera inferiores (SANTOS, 2011). Para esse autor “o nosso lugar é hoje
um lugar multicultural, um lugar que exerce uma constante hermenêutica de suspeição contra
supostos universalismos ou totalidades” (idem, 2011, p. 27). Menciona ser fundamental que o
multiculturalismo emancipatório parta do pressuposto de que as culturas são todas elas
diferenciadas internamente e, portanto, é tão importante reconhecer as culturas umas entre as
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outras, como reconhecer diversidade dentro de cada cultura e permitir que dentro da cultura
haja resistência, haja diferença (GANDIN & HYPÓLITO, 2003, p. 13) e expressão de
diversidade.
Assim, a discussão que se abre a partir dessa perspectiva diz respeito não apenas à
apresentação de elementos culturais para o “outro”, mas amplia-se para uma vertente mais
ampla, que refere-se ao convívio com o “outro”, com o “diferente”: todas as minorias que
também são caladas, apagadas, pelo sistema cultural hegemonico ocidental. Modos alternativos
de explicar o mundo, formas já estabelecidas socialmente para favorecer um convívio mais
harmonico: o que nos apresentam os estudantes indígenas podem nos ajudar a refletir sobre nós
mesmos. Como argumenta Bergala:
Um plano bem escolhido pode ser suficiente para testemunhar simultaneamente a arte
de um cineasta e um momento da história do cinema, na medida em que implica ao
mesmo tempo um estado da linguagem, uma estética( nec(necessariamente inscrita
numa época), mas também um estilo, a marca singular de seu autor (2007, p. 125).
Dessa maneira, com o cinema na educação, é possível refletir e articular juntos,
professor e alunos, o que cada plano enquadra, destituindo a exclusividade do saber docente,
bem como aproximar culturas, etnias e saberes. Nessa perspectiva, com esse trabalho foi
possível aproximar a Lei 13.006/14, Lei do cinema com a Lei l 11.645/2007, que dispõe do
ensino das culturas indígenas e africanas na Educação Básica e desenvolvê-las com base na
perspectiva do experimento, da arte e da criação.
Nas palavras de Teixeira:
O cinema pensado como alteridade interroga o já visto, remove o instituído, desloca
os olhares, inventa ideias, possibilidades, outros enredos, novas imagens,
luminosidades tantas [...] O cinema deve estar na escola não como um conteúdo
curricular e campo de especialidade de um professor, mas de outra maneira, em outra
perspectiva, fugindo a racionalidade instrumental e conteúdo a serem aferidos e
mensurados pelos profissionais especializados nisso e naquilo. Trata-se, ao revés de
um encontro com o cinema como expressividade, como um largo horizonte de
possibilidades que permitem a experiência estética (2010, p.14).
No entanto, para que esse trabalho seja de fato, abordado dessa maneira, é necessário,
como recomenda Bergala (2007), propiciar um clima de autonomia, por parte de quem aprende,
modificando a “explicação” pela “exposição” de muitos e bons filmes, procurando estabelecer
uma cultura cinematográfica. E, para que esse processo ocorra, será imprescindível a mediação
educativa para aguçar a observação das sutilezas, a criação, experimentação e aventura com a
linguagem cinematográfica.
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