etnografia quintandona

19
Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Vida - Antropologia Representações da Paisagem no Contexto do Turismo em Espaço Rural: Aldeia Rural Preservada de Quintandona Daniela Sofia de Sousa Nogueira 2008108947

Upload: rui-santos

Post on 22-Jan-2016

120 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Etnografia Quintandona

Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências

da Vida - Antropologia

Representações da Paisagem no Contexto do Turismo

em Espaço Rural: Aldeia Rural Preservada de

Quintandona

Daniela Sofia de Sousa Nogueira

2008108947

Page 2: Etnografia Quintandona

Enquadramento Etnográfico

O presente estudo tem como objecto empírico a Aldeia Rural Preservada de Quintandona. Esta

aldeia de xisto (integrada nas 25 Aldeias de Portugal - organização de âmbito nacional, que tem

como missão qualificar aldeias rurais e os produtos e serviços que estas oferecem, de forma a

garantir a sua qualidade, a preservação dos seus valores e a promovê-las como um produto turístico

singular e de excelência, sob a marca “Aldeias de Portugal”) ˡ situa-se no Distrito do Porto,

Concelho de Penafiel, Freguesia de Lagares.

Recorrendo a este objecto, pretende-se tratar a questão da construção da(s) imagem(s) de

Quintandona: quem as cria e promove. E que signos representam essas imagens, qual o seu

significado.

O âmbito escolhido para a discussão e reflexão do tema prende-se com as representações da

Paisagem - tida, por Bell (1993), como um conceito socialmente construído e historicamente

determinado - no contexto do Turismo em Espaço Rural. Dentro deste tópico pretende-se analisar a

problemática da Intertextualidade no olhar turístico, ou seja, a forma como o olhar do turista é

moldado, mesmo antes de chegar ao local turístico, por profissionais, através de fotografias,

folhetos promocionais e textos publicitários; e da Autenticidade Encenada – conceito desenvolvido

por MacCannell em 1973, a que corresponde uma simulação da realidade: os lugares turísticos são

transformados de forma a tornarem-se mais parecidos consigo mesmo, mais reais do que a própria

realidade.

Com o objectivo de solucionar a proposta de investigação, pretende-se dar resposta a questões

relacionadas com (1) a forma como a Aldeia de Quintandona se tornou um local com

potencialidades turísticas, e aonde precisamente residem essas potencialidades, isto é, as razões

pelas quais os turistas visitam a Aldeia, o que procuram ver; (2) com os organismos ou agentes

promotores do turismo na região; (3) perceber quais as imagens fotográficas que circulam de

Quintandona, e de que forma é a Aldeia apresentada (as pessoas são incluídas, ou apenas são

representadas as casas); (4) que tipo de turistas visitam o local: qual a sua proveniência geográfica e

condição sócio – económica; (5) perceber se se trata, actualmente, de uma população rural; (6) se o

interior das casas é consonante com o exterior; (7) e, finalmente, perceber de que forma se

relacionam os habitantes com as medidas legislativas sobre a recuperação e construção de casas

naquele espaço, classificado como Reserva Agrícola.

ˡ A rede das Aldeias de Portugal tem como objectivos:

• Promover as aldeias através da divulgação dos seus diversos recursos, nomeadamente

alojamento, produtos e actividades tradicionais; Promover/divulgar o património histórico, cultural

e ambiental dos territórios; Estimular o envolvimento da população para as questões de natureza

social, cultural e ambiental; Organizar e valorizar os recursos naturais, culturais e históricos

existentes no sentido da sua conservação e fruição; E promover uma imagem de autenticidade e de

qualidade do território, de forma a melhorar a sua visibilidade e a estimular o reconhecimento da

sua identidade junto da população local, promovendo desta forma a sua auto-estima.

Informação retirada do Regulamento do Clube das Aldeias de Portugal. Os Itálicos são meus. A

descrição evidencia já que esta organização integra os órgãos que promovem o turismo em

Quintandona. Assim sendo, também ela ajuda a criar as imagens que circulam da Aldeia: lugar onde

a tradição permanece.

Page 3: Etnografia Quintandona

² Por uma questão de sistematização e coerência optou-se por inserir já nesta parte algumas

descrições e interpretação das mesmas.

Método e Condições de Trabalho

Inicialmente, visitou-se o local de estudo e conversou-se com alguns habitantes para uma

abordagem à Aldeia recorrendo a um olhar que se pretendia “antropológico”. Isto porque o local é

frequentemente visitado para participação na Festa do Caldo e da Música Tradicional Portuguesa e

para assistir a espectáculos de Teatro. Nesta visita pretendia-se então percorrer toda a Aldeia e

observar o local de forma mais cuidada, para apreensão das características arquitectónicas das

habitações e espaços públicos, como o Lavadouro, o Tanque, o Centro Cultural Casa do Xiné e as

ruas, (tanto ao nível das construções mais antigas, como das mais recentes e que estão, neste

momento, em curso). A visita serviu também para a recolha de imagens e colocação de algumas

questões a habitantes para perceber, de forma geral, (1) qual a intensidade do turismo na Aldeia; (2)

quais os tipos de turistas que a visitam; (3) de que forma decorreram os trabalhos de recuperação da

Aldeia e quais os pontos que sofreram intervenção; e (4) quais as normas que foram seguidas, e que

são hoje aplicadas, para a recuperação e construção das casas. Estas informações iniciais e genéricas

permitiram, juntamente com o enquadramento teórico da Cadeira de Paisagem, Natureza e

Representações, e da bibliografia e fontes consultadas sobre Quintandona, avançar com a definição

do objecto de estudo e do plano de investigação.

A bibliografia foi recolhida na Biblioteca Municipal de Penafiel, sendo que as fontes foram

obtidas, maioritariamente, junto da organização da Festa do Caldo e da Associação para o

Desenvolvimento de Lagares. Isto porque o Posto de Turismo de Penafiel não possuía qualquer

folheto ou guia turístico que incluísse Quintandona. No entanto, conseguiu-se esclarecer algumas

questões com uma funcionária com formação em Sociologia, no respeitante ²:

- Aos organismos que promovem o turismo no local: parceria entre a Câmara Municipal de

Penafiel, a Junta de Freguesia de Lagares, a Associação para o Desenvolvimento de Lagares e os

comoDEantes;

- Ao tipo de turistas que se desloca a Quintandona:

(1) divididos em dois extremos – desde pessoas que não têm conhecimento da Aldeia e

são direccionados pelo Posto de Turismo; a outras que possuem informação e pretendem mais

esclarecimento sobre a sua localização. Estas últimas, na opinião da funcionária, pertencem à classe

média e têm melhor formação.

(2) Visitantes organizados em grupos pequenos (familiares: pais e filhos) ou então, as

pessoas vão sozinhas, o que pressupõe um maior nível cultural. No entanto, esta ideia foi

contestada por Pedro Soares, para quem não é possível dividir os turistas em pessoas cultas e não

cultas, visto que há pessoas menos formadas academicamente que são capazes de se interessarem

por assuntos que ocupam as pessoas com capital cultural. Já na opinião de outro habitante, as

pessoas do campo não atribuem valor algum à Aldeia e à Arquitectura popular, contrariamente

ao que acontece com as pessoas da cidade, de classe média e com algum nível de cultura

intelectual, as quais têm em grande consideração as características vernaculares de Quintandona.

Em minha opinião, isto relaciona-se com uma idealização do campo, que é visto como possuindo

uma série de elementos intrínsecos como a paisagem, a arquitectura popular e a tradição (Silva,

2007). Para o mesmo autor (2005/2006), o processo de urbanização e desruralização de Portugal,

Page 4: Etnografia Quintandona

que se deu por volta de 1960 - devido a movimentos migratórios em direcção às áreas mais

industrializadas de Portugal, da Europa e da América do Norte. Este êxodo rural esteve

intimamente ligado à perda da importância da agricultura na economia e sociedade portuguesa

desde meados do século XX. Para além disso, a aplicação de novas tecnologias na produção

agrícola conduziu a uma drástica diminuição do número de trabalhadores e do volume de

trabalho – faz com que se atribua cada vez mais importância simbólica aos campos do país, para

os quais parte da população citadina tende a olhar como sendo o depósito das virtudes que se

crêem ausentes da cidade, como sejam a tranquilidade, a natureza, a tradição e a autenticidade.

Tudo isto leva a que o Turismo em Espaço Rural (TER) – conjunto de modalidades de

hospedagem em zonas rurais, orientadas para exploração dos seus recursos naturais e culturais

(Silva, 2005/2006) - assuma um papel de extrema importância nas medidas adoptadas pelo

Estado português e União Europeia para reversão da depressão económica e demográfica gerada

pela referida desruralização. Estas políticas de desenvolvimento local promovem a

multifuncionalidade do campo e encaram o turismo como uma instância capaz de dinamizar a

economia, gerar emprego e contribuir decisivamente para a fixação das populações rurais. Para

além de conter uma vincada sensibilidade ambiental e ecológica, esta nova fórmula de

desenvolvimento rural confere especial atenção aos recursos endógenos e às populações locais,

que passaram a constituir os principais intervenientes deste processo, a par do Estado e das

instituições públicas (Pérez Correa, 2002; Ferrão e Lopes, 2004 in Silva 2005/2006). Nesta

questão, o caso empírico está de acordo com a teoria, visto que a população se envolveu

activamente no processo, visto que financiou metade dos gastos com a recuperação das

habitações e contribui de forma decisiva para a atracção de turistas à Aldeia, como se irá ilustrar

mais adiante.

(3) A facha etária é muito abrangente e não é possível definir um grupo etário

predominante;

- À existência de visitas guiadas: apenas para escolas. Segundo Belmiro Barbosa, realizam-se

também visitas noutros contextos, desde que marcadas previamente.

Os restantes postos visitados - Junta de Turismo de “Termas de S. Vicente” e Junta de

Turismo de Entre-os-Rios – encontram-se encerrados. No entanto, foi ainda possível a recolha de

informação através da internet, nomeadamente no sítio na Internet da Câmara Municipal de Penafiel

e da Festa do Caldo de Quintandona.

A parte final do trabalho de campo consistiu em entrevistas semi-estruturadas, que se

aproximaram de conversas - muito fluidas (pelo grau de familiaridade com o local e os projectos

nele desenvolvidos por parte dos entrevistados) -, a habitantes da Aldeia, a Pedro Soares (Professor

Universitário em Direcção de Cena na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, e director

artístico do grupo de teatro amador os comoDEantes, constituído, na sua maioria, pelos próprios

habitantes da Aldeia) e a Belmiro Barbosa Pereira (Presidente da Junta de Lagares e Presidente da

Associação para o Desenvolvimento de Lagares) em que foram abordados assuntos relacionados

com o projecto dos comoDEantes, a Festa do Caldo, o projecto de recuperação e preservação da

Aldeia, os órgãos promotores dos turismo local e a visita de Cavaco Silva, em 1991, como 1º

Ministro, e em 2008, já como Chefe de Estado a Quintandona.

Page 5: Etnografia Quintandona

Enquadramento Histórico e Turístico da Aldeia de Quintandona

A história de Quintandona remonta a meados do séc. VI, aquando da ocupação romana em

terras lagarenses. Esta aldeia, juntamente com Escariz e Ordins, deverá ter sido um núcleo

populacional fundamental para a organização do referido território. Já no séc. XVIII, a aldeia sofreu

algumas alterações, tornando-se maior, e, no séc. XIX, foi equipada com vias de comunicação.

Actualmente, o lugar de Quintandona tem perto de 64 habitantes (Caldo de Quintandona, 2008).

Além disso, verifica-se uma forte procura de casas e terrenos para compra e uma maior fixação de

casais jovens no lugar, nomeadamente filhos de habitantes mais antigos da aldeia. Para além disso,

observa-se também uma procura crescente de espaços para turismo rural pelos visitantes, o que

conduziu ao desenvolvimento de dois projectos deste tipo por parte dos habitantes: (1) a construção

de um hotel rural, de pequenas dimensões (com cerca de 12 camas) e de um restaurante na Casa da

Viúva; e (2) transformação da Quinta Valvede igualmente num local para alojamento (ambos em

fase de candidatura). Para além destas habitações, Quintandona possui outros marcos históricos de

atracção turística, como seja a Capela dedicada a S. João Batista e a Nossa Senhora da Conceição

(com mais de 200 anos de existência), o cruzeiro, o fontanário e o Centro Cultural Casa do Xiné

(em fase de construção). Por aqui, e uma vez que a primeira fase de trabalhos teve início em 2003 e

se prolongou até 2005, se percebe que a reabilitação da Aldeia de Quintandona é um processo

dinâmico e continuado, sendo que algumas casas no centro da aldeia estão agora a ser recuperadas,

enquanto que outras são remodeladas, para que “se insiram no enquadramento histórico de

Quintandona”, nas palavras de Belmiro Barbosa Pereira.

Fig. 1 – Casa da Viúva. Verga superior da porta principal gravada com a data da construção da casa.

Page 6: Etnografia Quintandona

Fig. 2 – Capela de S. João Batista e Nossa Senhora da Conceição ao centro. Instituída pelo Alferes Rodrigues Barbosa

da Cruz, em 1791.

Limitada à esquerda (perspectiva frontal) por uma casa; e à direita por um compartimento destinado ao trabalho rural

(espigueiro), onde é visível a utilização da ardósia como material de cobertura, na composição do beiral.

Fig. 3 – Centro Cultural Casa do Xiné, Março de 2011.

Page 7: Etnografia Quintandona

«A aldeia de Quintandona, integrada na freguesia de Lagares, concelho de Penafiel, apresenta

grandes potencialidades de desenvolvimento turístico, já que se trata de uma aldeia típica

preservada, com uma beleza e Arquitectura singulares, situada próximo dos grandes centros

urbanos. Na verdade, a aldeia, com as suas construções em pedra de lousa e de xisto, e a paisagem

agrícola e florestal que a envolve, quando “descobertas” pelas gentes urbanas das proximidades,

conduzirão a uma grande procura turística.»

É deste modo que se inicia uma descrição da Aldeia Rural Preservada de Quintandona no sítio

da Internet da Ader-Sousa – Associação de Desenvolvimento Rural das Terras do Sousa. No

excerto são colocadas em evidência as construções em pedra de lousa e de xisto, e a paisagem

agrícola e florestal que envolve a Aldeia. E por aqui se percebe que a Paisagem não é um conceito

universal e estático. Além disso, não pertence apenas ao mundo natural, como era

inquestionavelmente aceite pelos cientistas sociais (que a entendiam como estando à priori do

social) mas está dependente do contexto social, cultural e histórico – a Sociologia deixa de ver a

Paisagem como uma matéria exterior ao seu objecto de estudo, e passa a pensá-la como sendo

construída socialmente, tal qual um texto. E esta noção de texto ajuda a compreender a concepção

da Paisagem como uma representação, porque coloca em evidência que os significados são a

substância da realidade, isto é, um texto pode ter diferentes interpretações, consoante o leitor, o que

faz com que sejam as interpretações, os significados, que assumam importância e não o texto em si.

Da mesma forma acontece com a Paisagem: lidamos com os significados e não com a realidade.

Conclusivamente pode dizer-se que a Paisagem não é a Natureza ou um lugar em particular, mas

sim uma imagem ou representação de um lugar, é, nesse sentido, um simulacro visual (Bell, 1993).

Por outro lado, pensar a Paisagem como um texto apresenta algumas limitações porque ignora

o contexto, o processo de transformação, a experiência incorporada e a dimensão material da

Paisagem. Ou seja, o sentido está definido e acabado. O que num texto é possível, mas na relação

entre pessoas não o é, porque os modos de relacionamento não são fechados nem estão

determinados de uma vez por todas.

Pelo referido a cima, se a Paisagem é apreendida através de um contexto social e histórico

específico, ela mesma é um modo de ver particular, ou seja, a percepção é, também ela,

culturalmente construída, estando, dessa forma, dependente de uma aprendizagem e aquisição de

convenções culturais. Isso faz com que haja um reconhecimento e interpretação daquilo que é

Fig. 4 – Fontanário. Até à data da recuperação da

aldeia, a população não tinha água canalizada em

casa.

Fig. 5 – Cruzeiro.

Page 8: Etnografia Quintandona

visualmente recebido. Não obstante, o olhar não incide directamente sobre a realidade. Este é

profundamente influenciado, mais do que isso, é mediado por todo o tipo de imagens,

representações e textos aos quais se teve acesso prévio – como a descrição que a Ader-Sousa

apresenta sobre Quintandona -, e que vão moldar a nossa percepção. Neste sentido, o nosso olhar é

inter-textual: é um plano onde se cruzam diferentes discursos e práticas através dos quais os media

representam a Paisagem. Sintetizando as ideias acima referidas e, segundo Bell (1993), «a natureza

faz parte da cultura e a nossa experiência do mundo natural é sempre mediada, moldada, como

Andrew Wilson (1992) observa, pelas “construções retóricas como a fotografia, a indústria, a

publicidade e a estética, bem como pelas instituições como a religião, o turismo e a educação”» (p.

2).

Da mesma forma que existe mediação quando lançamos um olhar sobre a natureza, existe

também intertextualidade no “olhar turístico” (Urry, 1990) sobre a paisagem. E “a percepção

turística da paisagem só pode ser adequadamente compreendida por referência à interpenetração

de textos (guias de viagem, folhetos turísticos promocionais, relatos literários de locais

pitorescos ou esotéricos e culturas), de imagens (pintura, fotografia e cinema) e modalidades da

experiência turística (visita guiada, comunhão solitária com a natureza, viagem pela natureza) ”

(Bell, 1993, p. 3). No que respeita a Quintandona, embora os folhetos ou guias turísticos ainda

não incluam a Aldeia, circulam outros textos e imagens - quer através da Internet,

nomeadamente nos sítios da Câmara Municipal de Penafiel, de Quintandona, da Ader-Sousa e

das Aldeias de Portugal, quer através de revistas, que são distribuídas pela população de

Penafiel, de livros, jornais e do Programa da festa do Caldo - que a promovem como um lugar de

tradição, onde é possível reviver o passado e que está em perfeita harmonia com a natureza.

Para além do “olhar turístico” ser discursivamente organizado por profissionais

especializados (como agentes de viagens, fotógrafos e operadores turísticos), diferentes tipos de

discurso produzem formas diferentes de olhar, isto é, produzem percepções distintas do mesmo

objecto visual (Urry e Crawshaw, 1995). Neste sentido, não existe um único “olhar do turista”

enquanto tal. Ele varia então de acordo com a sociedade, o grupo social e o período histórico.

Mais do que isso, esse olhar é sempre construído por relação ao seu oposto, àquilo que não é

turístico, ou seja, a vida quotidiana, estando nela incluído o trabalho remunerado, a família e o

local de origem. Esta ideia foi observada no terreno pois, como já foi mencionado anteriormente,

a percepção que os habitantes de Quintandona têm é que a generalidade das pessoas que vivem

no campo não atribui valor à Aldeia. Um exemplo ilustrativo é dado por Gottlieb (1982), que diz

que aquilo que se procura nas férias ou feriados é a inversão da vida de todos os dias: o turista de

classe média procurará ser “camponês por um dia”, enquanto que o turista de classe média baixa

procurará ser “rei/rainha por um dia” (in Urry, 1990). Aqui fica já patente que a experiência

turística pressupõe um afastamento daquilo que é familiar.

A este propósito, Urry e Crawshaw (1995), defendem que a experiência turística e as

actividades que se desenvolvem no seu decorrer só assumem importância por se realizarem num

ambiente que é visualmente diferente do habitual. Para os autores, isto constitui a ideia de

consumo visual de paisagens, para a qual, o turismo implica uma recolha e acumulação de signos

ou representações visuais. Neste sentido, o TER envolve um elemento de escape e,

simultaneamente, um elemento de procura: o turista pretende romper com a vida quotidiana e

encontrar experiências que não existem no local de habitação e/ou trabalho. Para além do

contacto com a natureza e da arquitectura vernacular, a gastronomia, o artesanato e as romarias

Page 9: Etnografia Quintandona

são vistas como principais factores da motivação turística por assumirem um carácter de

tradição.

A Ader-Sousa apresentou então um projecto para a preservação da arquitectura do edificado de

Quintandona e requalificação dos espaços, no âmbito da sub-acção 7.1 da Medida AGRIS:

Recuperação e Valorização do Património Natural, da paisagem e dos núcleos populacionais. Sub-

acção esta que se encontra integrada na acção 7: Valorização do Ambiente e do Património Rural.

De forma global, a Medida AGRIS pretende garantir a promoção e o desenvolvimento das zonas

rurais, nomeadamente através da preservação e valorização de pequenos aglomerados populacionais

rurais e da melhoria das condições de vida e do bem-estar da população. Por seu turno, a Ader-

Sousa tem objectivos muito semelhantes: promoção do desenvolvimento regional e local,

conducente à melhoria das condições sociais, culturais e económicas das respectivas populações.

O projecto de recuperação da aldeia mostrou-se fundamental para a transformação de

Quintandona num local turístico. Antes de 2005, este povoado não era visitado por turistas e tão-

pouco estava inserido nos guias históricos e turísticos de Penafiel. No sentido de desenvolver um

interesse e participação na recuperação das habitações por parte da população, uma vez que metade

dos gastos ficou a cargo dos proprietários, o Presidente da Junta Belmiro Barbosa organizou uma

visita à Aldeia de Piódão, em Arganil. A mesma tinha sofrido intervenção para recuperação e

motivou a população de Quintandona, que ficou entusiasmada com a sua beleza. No entanto,

Belmiro Barbosa ficou desiludido com a desertificação da aldeia.

Caracterização Arquitectónica e Plano de Intervenção: Regionalismo Crítico e

Identidade Colectiva

As imagens acima colocadas apresentam a Aldeia de Quintandona como uma Aldeia de Xisto.

Não obstante, o solo geológico forneceu outros materiais que estão presentes em todas as

construções: uma variante do xisto - a ardósia - e o granito amarelo, que compõe sobretudo a

capela, o cruzeiro e a “marcação das linhas” das casas, isto é, desempenha a função de vergas de

vãos, sendo que a verga superior da porta é constituída por um bloco de grandes dimensões, onde

fica registada a data de construção da casa.

Devido aos propósitos que servem ou que já serviram – a lavoura e criação de gado -, as casas

são de cariz rural e apresentam uma planta do tipo “casa-pátio fechada e sobradada”. Isto significa

que, geralmente, possuem um terreiro fechado e pavimentado a xisto, para onde dão as portas da

habitação, cortes e anexos, e que se encontram com mato ou folhas resultantes das desfolhadas do

milho, para a produção de estrume. Isto porque os animais passam o dia nesse espaço e só à noite

são levados para as cortes. Por altura da Páscoa, esses pátios são limpos para a visita pascal e o

estrume utilizado nas plantações, sendo que o processo recomeça logo após estes acontecimentos. O

pátio pode ser incorporado dentro de um conjunto de edifícios, no centro das várias áreas que

compõem uma casa, ou então ladeado apenas por uma ou duas paredes das habitações, sendo o

restante espaço vedado por um muro baixo.

Pelo descrito, pode perceber-se que as habitações de Quintandona estão adaptadas ao modo de

vida – condicionado pelo estatuto sócio-económico - e de trabalho da população, e às condições

geográficas e climatéricas. Sensivelmente até meados do século passado, a Aldeia era um lugar

inteiramente rural e muito pobre. As pessoas viviam exclusivamente da Agricultura, segundo uma

economia de auto-suficiência, sendo que as casas estavam equipadas com moinhos de cereal, os

quais foram muito importantes no preenchimento de uma grande parcela dos hábitos alimentares. A

Page 10: Etnografia Quintandona

Fig. 12 – Construção

inicial por baixo.

Observável o limite

superior da primeira casa

e de uma janela. É ainda

visível a linha de

separação central entre

duas casas.

escassez de recursos económicos chega a ser visível na construção das habitações, que iam

aumentando lentamente, quando era necessário mais algum espaço devido ao casamento de um

filho, por exemplo. Deste modo, as casas são multifamiliares e, muitas delas, apresentam duas ou

três cozinhas.

Actualmente, as pessoas não são tão pobres e já não se aumentam as casas. Constroem-se

habitações novas e tenta fazer-se com que as que são recuperadas pareçam uniformes, muito

arranjadas e bonitas para os turistas. Para além disso, nem todos os habitantes actuais praticam a

agricultura como modo de subsistência. Alguns deles são de classe média, e trabalham fora da

Aldeia. Desta forma, os pátios sobradados recebem novos usos que não estão directamente ligados à

lavoura, como seja a secagem de lenha. Aqui fica já patente que a Arquitectura popular local que

agora se pretende preservar não serve as mesmas necessidades para as quais foi desenvolvida.

No entanto, e já que foram construídas com materiais próprios da região, as habitações

mostraram-se funcionais e apresentam características específicas e distintivas das demais regiões do

país. Isto coloca em relevo a dimensão moderna da Arquitectura popular, defendida pelos

arquitectos que levaram a cabo o projecto do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, tendo

com ele ilustrado a diversidade e multiplicidade da habitação popular em Portugal. Estes

pretenderam mostrar, para além disso, que o moderno e o vernáculo podem ser valores

complementares. Por sua vez, isto conduz-nos ao que Frampton (2000) designou de Regionalismo

Crítico – movimento anticentrista que, tendo-se oposto ao Estilo Internacional (tipo de Arquitectura

universal, descaracterizada, que não encarna as qualidades específicas de um lugar e, por isso, pode

ser transportada para qualquer sítio do mundo), pretendia assimilar e reinterpretar localmente e de

forma crítica as propostas da Arquitectura Moderna. O Regionalismo Crítico caracteriza-se ainda

por colocar ênfase sobre o território onde o objecto arquitectónico será inserido, o que leva,

invariavelmente, à enfatização de factores específicos do lugar, como sejam a topografia e a

dinâmica de luz. Desta forma, a obra torna-se táctil e tectónica. Este movimento opõe-se também ao

Page 11: Etnografia Quintandona

Regionalismo restritivo que, em Portugal, é ilustrado pelo Movimento da Casa Portuguesa,

protagonizado pelo Arquitecto

Raúl Lino (1879-1974). O

movimento teve um papel

fundamental no processo de

refundação da nacionalidade que

caracterizou a vida social

portuguesa desde o final do séc.

XIX (a partir do Ultimato de

1890) até à chegada do Estado

Novo, o qual se encarregou de

dar continuidade ao referido

movimento através da imposição

de um receituário oficial para a

Arquitectura, que recusava o

movimento moderno desta arte e

as formas e materiais de

construção vindos de fora (Leal,

2000).

Fig. 6 – A Imagem a cima

representa uma casa antes de ser

intervencionada. Abaixo, encontra-

se a mesma habitação após restauro

e construção de uma nova área

(visível à esquerda). Esta apenas foi

possível por estar inserida no

projecto de recuperação da primeira,

uma vez que, por se tratar de uma

zona de Reserva Agrícola, não é

possível a construção de novas

casas no local. E as que são construídas ou recuperadas, têm de obedecer a uma série de critérios, caso os

proprietários queiram receber financiamento para esse fim, como seja a obrigatoriedade das portas e janelas

serem constituídas por madeira (Carvalho ou Castanha), sendo que não é admitido outro material, ainda que

se assemelhe ou pretenda imitar o primeiro. Houve casas inclusivamente cujas portas e janelas eram

construídas em alumínio, e este teve de ser substituído. Isto coloca em evidência que a Aldeia e as casas já

não estão de acordo ou adaptadas à vida rural, porque o modo de vida também se alterou e as condições

económicas melhoraram. Assim, todas as alterações que são feitas visam passar uma imagem de rusticidade,

que se pretende que seja agradável para o turista.

Os habitantes também não puderam participar na construção do projecto. Na visão deste proprietário,

os arquitectos não admitem que se opine, e não fazem cópias. Daí que a nova parte da habitação não inclua

xisto, como acontecia num projecto anterior, o qual foi recusado pela Câmara Municipal de Penafiel. A este

propósito pode ler-se no 1º Congresso Nacional de Arquitectura s/d: XXXVI-XXXVII (in: Leal, 2000, p. 168)

“que os arquitectos portugueses consideram nocivas quaisquer imposições de estilo ou feições tradicionais

aos seus trabalhos”. Para além disso, propunham uma revisão dos conceitos de tradição e regionalismo, pois

defendem que estes não podem estar fechados em si mesmos e virados para o passado, mas em constante

Page 12: Etnografia Quintandona

Figs. 7 e 8 – Parcelas

do projecto da casa

acima fotografada,

desenvolvido pelo

arquitecto Cunha

Jorge. Este sugeriu

que a construção do

novo espaço

incorporasse

características da

Arquitectura

Moderna. Por um

lado, precisamente

pelo que foi acima

referido

relativamente à cópia

de estilos do passado,

e por outro, para que

esta se enquadrasse

no local, sem destoar

do existente. Por isso

também a nova área

foi pintada de branco

– neutralidade.

Em minha opinião, o

objectivo do

arquitecto foi

conseguido, pois o

que efectivamente se

destaca são as

superfícies revestidas

a xisto, sendo que as

restantes não chocam

visualmente com

estas.

diálogo com a modernidade e com o exterior. De outra forma, falsear-se-á a função dos diferentes materiais.

Ainda no 1º Congresso (id.: XLIII), condenou-se a “cópia ou imitação das formas arquitectónicas do

passado, que privam a arquitectura de hoje da sua dignidade e da sua expressão adequada à época actual e

aos novos materiais empregues” (Leal, 2000).

Raúl Lino (in Leal, 2000) definiu a “casa portuguesa” como reflexo arquitectónico dos valores

presentes na “maneira de ser” das camadas populares: “Incidindo sobre a casa e os seus elementos

componentes, a ideologia pastoralista e esteticizante subjacente à casa portuguesa enquanto

realidade etnográfica desdobra-se por fim numa visão do «povo» marcada ela própria por

Page 13: Etnografia Quintandona

estereótipos amáveis e saturados de uma rusticidade virtuosa. Na sua feliz integração na paisagem,

nas suas proporções adequadas, nos seus pormenores decorativos, a casa portuguesa seria o reflexo

arquitectónico de valores espontaneamente presentes na «maneira de ser» (1929: 67) das camadas

populares como a robustez, a sobriedade, a dignidade, a modéstia, a amabilidade, o contentamento,

etc…”

Como Raúl Lino, frequentemente os turistas portugueses vêem a arquitectura popular como

expressão da cultura nacional portuguesa (Silva, 2007). E isso constitui uma ilustração dos

processos de objectificação da cultura: “transformação de determinados traços da vida tradicional

em objectos representativos de uma cultura nacional, coisas que só nós temos e os outros não,

coisas sobre que repousa a possibilidade mesma de se falar de uma cultura nacional como própria,

específica, distinta e original (Handler, 1988, in Leal, 2000). Não obstante, este processo implica a

selecção de determinadas características que se consideram representativas em detrimento de outras

que fazem, também elas, parte da cultura; descontextualização, visto que se retira o objecto do seu

ambiente para o tornar ilustrativo do todo; e reinterpretação, já que o mesmo objecto possui agora

novos sentidos. E é isto precisamente que está a acontecer em Quintandona: o projecto de

recuperação da Aldeia seleccionou a Arquitectura do local e certas construções específicas como

ilustrativas do todo, que é o caso do Lavadouro, que foi alterado de forma a incluir o Xisto,

tornando-se, dessa, forma, um ponto de referência na Aldeia. O que por sua vez levou a adquirir

novos sentidos, já que anteriormente servia apenas propósitos de lavagem de roupa, mas hoje é

encarado como uma construção de referência e que exemplifica a Arquitectura local, ou seja,

tornou-se um símbolo da Arquitectura da Aldeia.

A associação entre a Arquitectura de uma região e a cultura e tradição a ela subjacente, parece

encontrar correspondência no terreno, isto porque, segundo habitantes de Quintandona, os turistas,

para além de estarem interessados na visualização das casas, estão também particularmente

interessados na apreensão da cultura local.

Para Urry as questões relacionadas com a cultura ocupam actualmente uma posição de

destaque na organização das sociedades pois, ao contrário das previsões que apontavam para que

houvesse um apagamento das diferenças regionais devido à globalização, que faria com que as

características distintivas de um local desaparecessem para dar lugar a uma cultura global e

homogeneizada, essas especificidades acentuaram-se para possibilitar a afirmação de uma região

face ao mundo. Ainda para o mesmo autor, o turismo caracteriza-se hoje, como já referido, por

uma busca de signos por parte do turista, que pretende consumir visualmente os lugares e as

gentes “autênticos”. Isto leva a que estes lugares se organizem segundo uma autenticidade

encenada (MacCannell, 1989; in: Urry e Crawshaw, 1995), tanto no que se refere aos cenários,

paisagens ou às pessoas que são objecto do olhar, que se comportam da forma que consideram

mais correcta, de acordo com os pressupostos do turista. Cria-se uma fantasia em torno daquilo

que se pensa ser real – altera-se a realidade para esta parecer autêntica.

No entanto, segundo Crick (1988, in Urry, 1990), essa encenação não é fácil de identificar

pois as culturas estão em constante mudança e redefinição. É difícil perceber se as alterações são

falsas e decorrem das exigências do turista ou se, por outro lado, são a evolução e reinvenção

natural da cultura. Neste sentido, é problemático entender o que é tradicional.

De facto, a maneira como as pessoas de Quintandona se vêm é já diferente da percepção que

elas tinham de si mesmas antes da intervenção à Aldeia. O que mostra que estão a ser

influenciadas pela turistificação. A imagem de Quintandona está a alterar-se, e isso relaciona-se

Page 14: Etnografia Quintandona

com o processo de construção das identidades por parte da população local. Embora seja um

processo natural e inconsciente, a verdade é que se está na presença de uma autenticidade

encenada. Não no sentido de haver uma representação para os turistas, de existir uma forma

diferente de agir nos bastidores e na presença de visitantes, como pretendem Urry e Crawshaw

(1995), mas no sentido em que a realidade, os usos e, consequentemente, a imagem de

Quintandona e do que as suas casas representam está a alterar-se naturalmente. Quintandona está

a reinventar-se.

Segundo Eric Hobsbawm (1993), “inventar tradições” implica uma série de práticas e

regras, governadas por aceitação pública, e de natureza ritual ou simbólica. Estas procuram

imitar certos valores e normas de comportamento por repetição. Por sua vez, isto leva a uma

continuidade com um passado histórico apropriado. Facto que é ilustrado não só pelas peças de

teatro desenvolvidas pelos comoDEantes, cujos textos têm por base a própria história e vivência

das pessoas da Aldeia, mas também pela Festa do Caldo: um festival que busca recuperar a

Música Tradicional Portuguesa - mas pensá-la na actualidade, com músicos jovens e com

instrumentos pouco associados a esse género – e a gastronomia de outrora, como é o caso do

Caldo à Lavrador – sopa com vários legumes, como batata e feijão, massa e carne de porco - que

hoje se tornou uma imagem de marca de Quintandona, mas que em tempos remotos servia de

base para a alimentação das pessoas que trabalhavam na lavoura e que, portanto, precisavam de

comer algo com sustento.

O mesmo autor definiu três categorias de tradições inventadas: 1) as que estabelecem coesão

entre membros de um grupo (pretendem uma identificação com a comunidade representada); 2)

as que legitimam as instituições, estatutos ou relações de autoridade; e 3) as em que o principal

objectivo é a socialização com vista a um determinado comportamento. A meu ver, a invenção

de tradições dos tipos 1 e 3 adequam-se a Quintandona, visto que os habitantes locais falam da

Aldeia com um sentimento de orgulho. Para além disso, toda a comunidade se junta e trabalha de

forma voluntária para a realização da Festa do Caldo, que é o evento que mais turistas atrai à

região – na edição de 2010, a Aldeia foi visitada por certa de 12 mil turistas, em apenas três dias.

No que respeita aos agentes políticos, penso que há uma clara tentativa de fazer parecer a

aldeia intocada e coerente internamente, através do incentivo à preservação da arquitectura,

estabelecendo um conjunto de regras de construção, atribuindo subsídios para a recuperação e

proibindo a destruição das habitações. Isto é observável através da intervenção ao lavadouro

público e a uma habitação que se localiza por trás deste. Relativamente ao lavadouro, este era

constituído por cimento e foi revestido a xisto. Penso que isto seja uma tentativa de reconstruir a

forma de lavar de tempos passados, já que, segundo Pedro Soares, as mulheres aproveitavam um

riacho onde a água corria continuamente e, usando um bloco de lousa, lavavam assim a roupa, no

mesmo sítio onde ainda hoje o fazem, embora as condições sejam diferentes. Neste ponto importa

realçar que, actualmente, todas as casas possuem máquina de lavar roupa. No entanto, as pessoas

continuam a usar o lavadouro público quando precisam lavar peças maiores, como tapetes. Já no

que respeita à referida casa, para Belmiro Barbosa, nunca deveria ter sido permitido construí-la

com os elementos que a compõem, de onde se destaca a parede da fachada revestida a azulejo. Isto

porque a habitação não se enquadra na área envolvente, onde existe um modo de construir e uma

forma de Arquitectura padronizada, à qual a casa foge de todo.

Page 15: Etnografia Quintandona

Fig. 9 – Lavadouro e Tanque da Aldeia.

O projecto de recuperação e preservação da Aldeia de Quintandona foi desenhado pelo

arquitecto Paulo Coelho e incidiu a sobre a reconstrução dos telhados, a inclusão de ardósia nos

beirais e a substituição das janelas e portas das habitações. Para além disso, o xisto foi colocado a

descoberto em algumas casas, que o mantinham revestido. Relativamente aos espaços públicos, a

Aldeia foi intervencionada ao nível da construção de muros, que separam a rua dos terrenos

privados; ao alargamento de algumas ruas, visto que eram de tal forma estreitas que se encontravam

cobertas por ramadas de vinhas.

A Aldeia foi ainda equipada com abastecimento de água e saneamento básico, electricidade e

sistemas telefónicos.

Fig. 10 – Sessão da peça Erva Fadada, representada pelo grupo comoDEantes Preservados, durante a edição

da Festa do Caldo 2010, na Casa do Xiné.

Escrita e encenada por Pedro Soares. Representação do encontro das mulheres para lavar roupa.

Page 16: Etnografia Quintandona

Fig. 11 – Visita de

Cavaco Silva a

Quintandona, 2008.

Representação de uma

peça de teatro em que a

aldeia é o cenário e

onde o próprio

Presidente Cavaco

Silva foi satirizado.

O Centro Cultural Casa do Xiné (Fig. 3) constitui um auditório que pretende servir de espaço

para a mostra de Arte, como a Fotografia, a Música e o Teatro. Escolheu-se desenvolver este

projecto em Quintandona como forma de promoção da Aldeia a nível cultural. O projecto toma esta

designação porque era a casa do Sr. Xiné, que cedeu (através da venda por uma reduzida quantia) o

espaço à Junta de Freguesia. Para cumprir os propósitos para os quais foi projectada (que incluem

concertos de música), a casa sofreu alterações consideráveis, como seja a construção em altura,

relativamente às restantes edificações. Mais do que isso, a estrutura não possui telhado e é

construída com betão, que é depois revestido a xisto, coisa que não acontece com as casas, cujas

pedras são colocadas umas sobre as outras para formar as paredes - mais uma vez estamos na

presença de uma representação para “turista ver”; se me é permitido o trocadilho, não passa de

fachada.

Voltando à Arquitectura, encontra-se neste espaço uma vez mais os modelos do Regionalismo

Crítico, e percebe-se que Quintandona não está fechada às propostas vindas de fora, mas antes que

as interpreta e incorpora, pois estes elementos são característicos da Arquitectura Moderna. Para

Belmiro Barbosa, é perfeitamente legitimo adaptar esses princípios a Quintandona, desde que se

respeite determinadas regras para manter a continuidade e coerência do local, porque as construções

devem estar de acordo com o tempo em que são desenvolvidas.

Este edifício serve de casa aos comoDEantes, grupo de teatro amador que pretende levar a

Commedia Del Art ao seu público. Este género de teatro caracteriza-se pelo uso de máscaras, pela

criação de textos baseados nas vivências do povo e pela sátira, também associada ao teatro de rua.

Deste modo, o grupo apropria-se das casas e das ruas Aldeia como cenário para a representação. Foi

desse modo aliás que, depois da apresentação da peça “Por um punhado de vida”, em 2007, que

trata sobre bruxas e feitiços, e do caldo “Levanta Mortos”, servido pelo Grupo com intenção de

desenfeitiçar os espectadores, surgiu o convite para a organização artística da Festa do Caldo por

parte do Presidente da Câmara Municipal de Penafiel, Alberto Santos. O festival pretende então

promover turisticamente Quintandona, recorrendo então ao Teatro, à gastronomia local e à Música

Tradicional Portuguesa.

O último assunto trabalhado na etnografia prendeu-se com as visitas de Cavaco Silva a

Quintandona. A primeira teve lugar em 1991, quando a aldeia ainda representava um lugar rural e

Page 17: Etnografia Quintandona

muito pobre. As ruas eram de tal forma estreitas que eram cobertas por ramadas de vinhas. Além

disso, o pavimento, em paralelo, era muito irregular e não havia sistema de escoamento, o que fazia

com que, quando chovia, as ruas ficassem alagadas. A segunda visita decorreu em 2008, já depois

da recuperação e da instalação dos comoDEantes na aldeia. Nessa altura, Cavaco Silva elogiou

grandemente a Aldeia e as suas gentes, num discurso que agora me parece nacionalista, onde

pretendeu enaltecer a identidade nacional portuguesa.

Conclusão

Em termos conclusivos, a sensibilidade turística desloca-se cada vez mais para o interesse

pelas culturas vernaculares, os modos de vida e as tradições locais (Barros, 2004). Por outro lado,

ao permitir a recuperação do património construído e, consequentemente, a fixação das populações,

o TER contribui para a manutenção da paisagem intermédia, carregada de valor simbólico, que

constitui, a par da cultura popular de matriz rural, uma referência ímpar em termos da construção da

identidade nacional nas sociedades contemporâneas. No entanto, o programa nacionalista apresenta

um carácter homogeneizador da cultura portuguesa em geral e da habitação em particular, que

esconde as diferenças regionais (Leal, 2000). Assim sendo, considero que este trabalho ilustra a

diversidade regional e, sobretudo, a afirmação de uma região face ao restante país.

A recuperação da Aldeia alterou completamente a forma como os seus habitantes a encaravam

e se viam dentro dela. Actualmente, os residentes orgulham-se do local onde vivem e unem-se para

o divulgar turisticamente - penso que aí reside o sucesso do projecto. A população é quem

desenvolve e divulga a imagem de Quintandona, isto porque assimilou naturalmente as

representações feitas pelos turistas e, identificando-se com elas, promovem-nas como autenticas. Ou

seja, as imagens que começaram por ser atribuídas à Aldeia de Quintandona por parte dos

visitantes, foram assumidas pelos locais, que agora as promovem.

No que respeita às imagens visuais que são consumidas, as casas assumem um papel central.

No entanto, os turistas – vindos geralmente do sul do país (Lisboa e Alentejo, locais onde não

abundam os materiais geológicos de Quintandona e onde, consequentemente, não se encontra

aquele tipo de Arquitectura - incluem também pessoas nos seus retratos, nomeadamente quando

estas se encontram a trabalhar no campo. Esta questão leva-nos para outro ponto: a população de

Quintandona ainda se assume uma comunidade rural. Não obstante, mesmo as pessoas que exercem

outras profissões, cultivam alguns produtos para consumo próprio.

Apesar de se tratar de uma comunidade rural e das habitações estarem de acordo com esse

modo de vida, o seu interior incorpora toda a tecnologia da modernidade, quer no respeitante à

presença de electrodomésticos, quer a nível de decoração, que acompanha então os modelos actuais.

Relativamente à aceitação das medidas legislativas, os habitantes encontram-se mais ou menos

confortáveis face a elas. Por um lado, não têm muito poder de escolha sobre a arquitectura da sua

casa e os gastos de recuperação e manutenção são mais elevados. Mas, por outro lado, agrada-lhes o

resultado da recuperação, quer ao nível visual da Aldeia, quer ao nível do turismo. Para além disso,

os habitantes conseguiram subverter algumas medidas, como seja a proibição de destruição das

casas, mesmo que fosse para simplificar a sua recuperação. No caso particular da habitação

apresentada na figura 6, esta não resistiu aos trabalhos e acabou por ruir. No entanto, os

Page 18: Etnografia Quintandona

proprietários ergueram-na da forma exacta à inicial, tendo cada bloco de pedra ocupado o mesmo

lugar na sua disposição.

“É um espaço que nos transporta para outros tempos e para outras experiências. É como se

estivéssemos num museu etnográfico in situ, com todo o seu espólio exposto, o qual nos conferisse

a realidade de um povo numa determinada época e num determinado contexto” (Maravilhas de

Penafiel, 2008). Este excerto é ilustrativo das imagens turísticas que se criaram da Aldeia Rural

Preservada de Quintandona: lugar de tradição, onde ainda é possível observar o modo de vida e

provar a gastronomia das populações de meados do século passado. A organização Aldeias de

Portugal classifica a Aldeia como um lugar “onde o passado e o presente se conjugam de forma

harmoniosa” que proporciona, “num ambiente de conforto, o reviver das memórias e o regresso às

origens da tradição.”

Estas imagens parecem ter influenciado a forma como se promove Quintandona, visto que está

neste momento em curso uma iniciativa que pretende transformar a Aldeia num Pólo do Museu

Municipal de Penafiel. Fica então aqui patente o processo de objectificação da cultura subjacente ao

projecto de recuperação da Aldeia: seleccionou-se a Arquitectura vernacular de Quintandona para

representar toda a aldeia e cultura do seu povo, retirando-a do seu espaço de significação, e

atribuindo-lhe um sentido museológico, de exposição do Passado. Por sua vez, isto conduz a uma

interpretação única e acabada da Aldeia Rural Preservada de Quintandona, permanente no tempo e

no significado.

Page 19: Etnografia Quintandona

Bibliografia

- Barros, J. 2004. A projecção do quotidiano no turismo e no lazer: o lugar dos actores, dos

contextos e dos paradigmas. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

- Bell, D. 1993. Framing Nature: First Steps into the Wilderness for a Sociology of Landscape.

In: Irish Journal of Sociology, Vol. 3.

- Frampton, K. 2000. História Crítica da Arquitectura Moderna. Regionalismo Crítico:

Arquitectura Moderna e Identidade Cultural., São Paulo, Martins Fontes.

- Leal, J. 2000. Os Arquitectos e a Modernidade do Popular: O Inquérito à Arquitectura Popular

em Portugal. In: Etnografias Portuguesas (1879-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional.

Lisboa, Publicações Dom Quixote.

- Leal, J. 2000. Um Lugar Ameno no Campo: a Casa Portuguesa. In: Etnografias Portuguesas

(1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa, Publicações Dom Quixote.

- Silva, L. Os impactos do turismo em espaço rural. In: Antropologia Portuguesa 22/23,

2005/2006: 295-317. Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia,

Universidade de Coimbra, 3000-056 Coimbra, Portugal.

- Silva, L. A procura do turismo em espaço rural. In: Etnográfica 11 (1), 2007.

- Urry, J. 1990. The Tourist Gaze: Leisure and travel in contemporary Societies. London, Sage

Publications.

- Urry, J. & Crawshaw, C. 1995. Turismo e Consumo Visual. In: Revista Crítica das Ciências

Sociais, Nº43.

Fontes

- Anileiro, A.; Medeiros, M.; Pedras, R. 2008. Maravilhas de Penafiel. Penafiel, Editorial

Novembro.

- Associação para o Desenvolvimento de Lagares, 2011. 100 Palavras. Penafiel, Invulgar Artes

Gráficas.

- Barbosa, J. 1942. Guia de Turismo da Cidade e Concelho de Penafiel. Porto, Imprensa

Moderna, Limitada.

- Penafiel, Câmara Municipal, 2006. Penafiel, Invulgar Artes Gráficas.

- Semanário Regional O Verdadeiro Olhar, 2010.

- http://www.quintandona.com

- http://www.cm-penafiel.pt

- http://www.aldeiasdeportugal.com.pt

- http://www.adersousa.pt