experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

Upload: esteban-vedia

Post on 01-Mar-2018

254 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    1/399

    ISSN 0104-236X

    Porto Alegre

    Anos 90 Porto Alegre v.11 n. 19/20 p. 1-400 jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    2/399

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    Reitor: Jos Carlos Ferraz HennemannDiretora do IFCH:Celi Regina Jardim PintoComisso Coordenadora do Programade Ps-Graduao em Histria

    COMISSO EDITORIAL EXECUTIVAAnderson Zalewski VargasBenito Bisso Schmidt (Editor)Francisco MarshallRegina WeberTemstocles Cezar

    CONSELHO EDITORIALBarbara WeinsteinState University of New York, EUA

    Caio Csar BoschiPUCMGEdgar de DeccaUNICAMPEduardo SilvaFundao Casa de Rui Barbosa, RJHilda SabatoUniversidade de Buenos Aires, ArgentinaIgnacio Sosa AlvarezUniversidad Nacional Autonoma de MexicoJos Pedro RillaUniversidad de la Repblica, Uruguai

    2005 Programa de Ps-Graduao em Histria, I FHC/UFRGSQualquer parte desta publicao pode ser reproduzida,

    desde que citada a fonte.Tiragem deste volume: 400 exemplares

    Publicao semestralPede-se permutaOn demand changeWe demand exchangeSe pide permuta

    Temstocles Amrico Correa Cezar(Coordenador)Anderson Zalewski VargasCesar Augusto Barcellos GuazzelliCludia WassermanHelen Osrio

    EQUIPE TCNICAReviso:Benito Bisso Schmidt eNara Widholzer (NIP)

    Traduo dos ttulos e revisodos abstracts:Marlia Marques LopesBibliotecria:Maria Lizete Gomes Mendes (BSCSH)Editorao eletrnica:Daniel Cls Cesar (NIP)Capa e projeto grfico:Daniel Cls Cesar (NIP)Charge da capa:Santiagocharge publicada em 1977no livro ilustrado Refandangopela LP&M Editores LTDA

    CORRESPONDNCIAAnos 90

    Programa do Ps-graduao em HistriaUniversidade Federal do Rio Grande do SulAv. Bento Gonalves, 9500Bloco 3, prdio 43311, sala 114CEP 91509-900 - Porto Alegre, RS - BrasilFone/fax (51) 3316-6639E-mail: [email protected]: http://www.ufrgs.br/ppghist

    Apoio:PROPESQ/UFRGSNIP/IFCH/UFRGS

    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO-NA-PUBLICAO (CIP)Bibliotecrios responsveis: Leonardo Ferreira Scaglioni (CRB-10/1635)e Raquel da Rocha Schimitt (CRB-10/1138)

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    3/399

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    4/399

    ARTIGOS

    A experincia como recuperaodo sentido da tradio em Benjamin e GadamerRoberto Wu

    Os desafios na produo do conhecimento histricosob a perspectiva do Tempo Presente

    Enrique Serra Padrs

    A su usanza y segn el aderezo de la tierra devoo e piedade barrocanas redues jesutico-guaranisEliane Cristina Deckmann Fleck

    Revoltas regenciais na Corte:o movimento de 17 de abril de 1832Marcello Basile

    A Carta Niemeyer de 1846e as condies de leitura dos produtos cartogrficosRenato Amado Peixoto

    Tradio, identidade nacional e modernidadeem Joaquim NabucoRicardo Luiz de Souza

    Regionalismo, Historiografia e memria:Sep Tiaraju em dois temposLetcia Borges Nedel

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    199

    225

    259

    299

    319

    347

    169

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.3-4, jan./dez. 2004

    391

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    5/399

    CONTENTS

    Introduction

    DOSSIER I LABOURISM(S)

    Brizola and labourismAngela de Castro Gomes

    Vargas and the beginning of Brazilian party system

    Lucia Hippolito

    The many colors of moreno socialismJoo Trajano Sento-S

    DOSSIER II FOUCAULT: GAMES AND DIALOGUES

    History in focus:the role of Michel Foucault in the field of historiography

    Durval Muniz de Albuquerque Jnior

    The narrative of experience in Foucault and ThompsonFernando Nicolazzi

    Bourdieu and Foucault:derivation of an epistemic spaceJos Carlos dos Anjos

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.5-6, jan./dez. 2004

    11

    2149

    79101

    139

    7

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    6/399

    ESSAYS

    Experience as recovery of tradition sensein Benjamin and GadamerRoberto Wu

    The challenges of productionof historical knowledge in perspectiveof Present TimeEnrique Serra Padrs

    A su usanza y segn el aderezo de la tierra baroque devotion and pityin Jesuit-Guaranis missionsEliane Cristina Deckmann Fleck

    Regency revolts in Court:the movement of April 17, 1832Marcello Basile

    Niemeyer Chart of 1846and the reading conditions of cartographic materialsRenato Amado Peixoto

    Tradition, national identity and modernityin Joaquim NabucoRicardo Luiz de Souza

    Regionalism, Historiography and memory:Sep Tiaraju in two turnsLetcia Borges Nedel

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.5-6, jan./dez. 2004

    199

    225

    259

    299

    319

    347

    169

    391

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    7/399

    Apresentao

    Datas. Mas o que so datas?Datas so pontas de icebergs.

    Alfredo Bosi

    A revistaAnos 90 cujo ttulo uma referncia dcada emque foi criada prossegue, pelo sculo XXI adentro, com seu objetivode contribuir para o debate qualificado sobre temas e questestericas, metodolgicas e historiogrficas relevantes ao campo doconhecimento histrico. Neste nmero, apresentamos dois dossisque aludem a datas bastante lembradas em 2004: o cinqentenriodo suicdio de Getulio Vargas e os vinte anos do falecimento deMichel Foucault. Poderamos acrescentar ainda, lista dos eventos

    motivadores de nossos dossis, a morte de Leonel Brizola, ocorridatambm em 2004.

    Pensando em tais datas como pontas de icebergs, queremosconvidar nossos leitores a refletirem, inicialmente, com Angela deCastro Gomes, Lucia Hippolito e Joo Trajano Sento-S, sobre osdiversos trabalhismos que, na esteira do legado de Vargas,encontraram em Brizola seu ltimo grande representante. A seguir,na trilha dos jogos e dilogos sugeridos por Durval Muniz de

    Albuquerque Jnior, Fernando Nicolazzi e Jos Carlos dos Anjos,propomos que atentem para os desafios colocados pela obra de

    Foucault aos historiadores e as suas convergncias e divergnciascom o pensamento de E. P. Thompson e o de Pierre Bourdieu.Os demais artigos abordam facetas e temticas distintas e

    instigantes do conhecimento histrico. Roberto Wu e Enrique SerraPadrs examinam questes terico-metodolgicas referentes,respectivamente, s noes de experincia e tradio em Benjamine Gadamer e aos desafios da chamada histria do tempo presente.

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.7-8, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    8/399

    Eliane Cristina Deckmann Fleck apresenta as redues jesutico-guaranis do sculo XVII como um espao de reinveno designificados, tendo em vista a apropriao seletiva e criativa e aressignificao de expresses da cultura indgena guarani e da culturacrist ocidental. Marcelo Basile trata de revoltas ainda poucoconhecidas ocorridas na Corte no perodo regencial brasileiro. Renato

    Amado Peixoto realiza um criativo exerccio de anlise da CartaNiemeyer de 1846, a primeira Carta Geral do Brasil, discutindo a

    leitura dos produtos cartogrficos pelos historiadores. Ricardo Luizde Souza investiga as noes de tradio, identidade nacional emodernidade na obra de Joaquim Nabuco. Finalmente, LetciaBorges Nedel enfoca as disputas de memrias relacionadas ao herimissioneiro Sep Tiaraju.

    Como os leitores podero notar, a revista apresenta um novoprojeto grfico, fruto da criatividade de Daniel Cls e da contribuiodo talentoso cartunista Santiago, a quem agradecemos. Agradecemosigualmente s profissionais de Letras Nara Widholzer, que revisouos textos, e Marlia Marques Lopes, que traduziu os ttulos para o

    ingls e revisou os abstracts; aos alunos Evandro dos Santos e SandroGonzaga, pelo apoio na organizao da revista; Pr-Reitoria dePesquisa da UFRGS, na pessoa da Pr-Reitora Marininha AranhaRocha, pelo imprescindvel auxlio financeiro, atravs do programade apoio editorao de peridicos; e aos pareceristas ad hocdosartigos enviados para este nmero, Eliane Colussi (da UPF), Joo

    Adolfo Hansen (da USP) , Carla Brandali se, Carla SimoneRodeghero, Cli Regina Jardim Pinto, Cesar Augusto BarcellosGuazzelli, Jos Augusto Avancini, Paulo Vizenti, Regina Clia Lima

    Xavier, Temstocles Cezar e Benito Schmidt (da UFRGS).

    Desejo a todos uma boa leitura...

    Benito Bisso SchmidtEditor

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.7-8, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    9/399

    Dossi I

    Trabalhismo(s)

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.9-76, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    10/399

    .

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    11/399

    Brizola e o trabalhismoAngela de Castro Gomes*

    Resumo.A partir de reflexes suscitadas pelos funerais de Leonel Brizola, o artigoanalisa o trabalhismo enquanto uma ideologia e uma tradio poltica, que compeuma cultura poltica compartilhada no Pas a partir de 1945. Mostra como o

    trabalhismo, que tem sua gnese no ps-30, foi relido e apropriado portrabalhadores e lideranas polticas e sindicais ao longo do perodo 1945-1964 ediscute as transformaes decorrentes do suicdio de Vargas, bem como aquelas

    pelas quais o trabalhismo passou aps 1979, quando ele se encarnou no brizolismo.

    Palavras-chave:Brizolismo. Trabalhismo. Cultura poltica.

    *Angela de Castro Gomes pesquisadora do CPDOC/FGV e Professora Titularde Histria do Brasil da UFF. Este texto foi escrito para ser apresentado na Mesa-Redonda Brizola e o trabalhismo, que a autora coordenou no Encontro Regionalda ANPUH-RJ, em 19 de outubro de 2004; da as caractersticas de tamanho eforma do artigo.

    O tema deste pequeno texto Brizola e o trabalhismo. O artigotem como objetivo realizar alguns poucos comentrios, e, comomanda o figurino, comearei por Leonel Brizola. Foi, sem dvida, ofalecimento de Brizola, ocorrido em 21 de junho de 2004, uma

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    12/399

    segunda-feira, que deu o mote para essas reflexes. Mas no porqueBrizola precisasse morrer para ser objeto de estudo de cientistas sociaise da ateno de uma ampla parcela da populao brasileira. Afinal,ele era e continua sendo reconhecido como uma das grandes figurasda poltica brasileira contempornea, isto , da poltica que temcomo marco simblico a Revoluo de 1930. Essa foi uma revoluode elites ou uma revoluo pelo alto, como foi e ainda considerada,e, justamente por isso, produziu uma renovao, inclusive geracional,

    nos integrantes da classe dirigente do Pas, na qual passou a se incluiro gacho Leonel Brizola.

    Com longa trajetria poltica, que atravessou vrias dasrepblicas do Brasil, Brizola foi um personagem que deixou a marcade sua presena, para o bem ou para o mal, como quisermos, emmais de um momento estratgico da histria recente do Pas. Eleagiu e falou muito, mas morreu sem conceder uma entrevista dehistria de vida, apesar de t-la prometido muitas vezes, nos ltimoscinco anos. Estou convencida de que Brizola morreu antes da hora,ao menos segundo sua prpria perspectiva. Ele mesmo garantiu,

    em vrias oportunidades, que viveria ainda muitos anos e que nofaltariam oportunidades para a tal entrevista de historiador, comogostava de dizer.1

    De qualquer modo, quando Brizola morreu, o que se viu, emseu funeral, foi uma grande e espontnea manifestao popular deapreo tanto por um poltico, como por um certo passado poltico.No Rio de Janeiro, em Porto Alegre e, no casualmente, em SoBorja onde Brizola foi enterrado ao lado de Getlio e Jango , opovo, o povo mesmo, participou do ltimo ritual cvico em que ocorpo do poltico esteve presente. E esse o primeiro ponto quequero destacar no texto.

    Funerais, como os antroplogos advertem-nos com fartura,so rituais estratgicos, plenos de significados religiosos e tambm,em episdios especficos, polticos. No caso da morte de figuraspolticas, os funerais costumam se tornar um momento deconsagrao de suas vidas. Trata-se da ocasio em que, morto o corpo,a alma torna-se imortal, como imortais tornam-se alguns de seus

    12

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Brizola e o trabalhismo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    13/399

    feitos, selecionados e ressignificados pela memria, poderosa foraque permite que se saia da vida para entrar na histria.

    Nessa chave, os funerais de Brizola inserem-se em uma tradiode rituais desse tipo que, no Brasil, data pelo menos da PrimeiraRepblica (cf. Gonalves, 2000). Diversas personalidades domundo poltico, da cincia e das artes, por exemplo foramconsagradas por rituais cvicos de enterramento nesse perodo. Dessaforma, era clara a existncia de uma estratgia de se produzir uma

    galeria de heris nacionais ou, pelo menos, de figuras exemplaresque mereceriam ser lembradas e que se situariam ao lado de outras,que vinham sendo consagradas pela narrativa histrica. Alis, valetambm lembrar, uma narrativa histrica que se reestruturava emfuno do novo regime republicano e que, exatamente por isso, eracampo de disputas simblicas acirradas, evidenciando reavaliaesde personagens e eventos.

    Rituais, como se sabe, so encenaes sofisticadas, plenas designificados simblicos, em que uma linguagem mobilizada ehierarquias de valores so expostas e confirmadas. Porm, tudo isso

    no elimina a possibilidade de os rituais comportarem espon-taneidade e participao, at certo ponto imprevistas. Os rituais pol-ticos, como tudo na poltica, guardam um certo grau de incerteza eimprevisibilidade. Como fenmenos de delicada construo e apren-dizado poltico-cultural, eles tambm conservam as inmeras einsuspeitas possibilidades de leituras e apropriaes de seus pblicos,que so sempre muito diversos.

    Os funerais de Brizola, nesse sentido, tm um passado longo.Na Primeira Repblica, pode-se lembrar o de Machado de Assis(1908), de Euclides da Cunha (1909), de Joaquim Nabuco (1910),do Baro do Rio Branco (1912), de Pinheiro Machado (1915), deOsvaldo Cruz (1917), de Rui Barbosa (1923) e de Joo Pessoa(1930), entre outros.2Esse foi um perodo estratgico proposioe encenao desse tipo de cerimnia e, particularmente, para suasignificao e uso na construo de uma cultura poltica republicanano Pas. Para que a lista no se alongue, bom lembrar logo dosfunerais de Getlio Vargas (1954), Juscelino Kubistchek (1976) e

    13

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Angela de Castro Gomes

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    14/399

    de Tancredo Neves (1985), para no falar no funeral de um novotipo de heri nacional, cuja figura emblemtica Airton Senna.

    Conforme os antroplogos ensinam e os historiadoresaprendem com rapidez, funerais, enquanto rituais cvicos, somomentos em que os mortos ilustres so identificados como figurasentre sagradas e insignes. De toda forma, so situados como figurascuja ausncia uma inequvoca perda para a nao e para o povobrasileiro pelo que eles significaram em vida. Assim, nesse momento

    liminar, quando a morte fsica conduz imortalidade, realiza-se umaoperao extremamente sofisticada de trabalho da memria, quedeve ser reforada e consolidada com o passar do tempo. Mas, comotodo trabalho da memria, esse tambm no arbitrrio, emboraseja evidentemente seletivo, pois ocorre uma seleo que tem comocampo de explicao o presente e no, necessariamente, a trajetriado morto, em suas complexidades e ambigidades. Em palavrassimples, trata-se exatamente de dizer/escolher sob a tica do presente,o que torna o morto uma figura exemplar, smbolo de algo quepode e deve ser amplamente admirado e lembrado daquela data em

    diante. Por isso, a proposta de se trabalhar com a idia de alegorias avessas muito atraente.Como mencionei, os funerais so cerimnias que podem se

    transformar em rituais cvicos, nos quais o que se cultua, porexcelncia, a Ptria, ali representada pela pessoa do morto ilustre.Nessa dinmica simblica, o que geralmente ocorre que cada umadessas figuras encarna um certo aspecto da Ptria, o que permite emesmo exige a sua celebrao como imortal. Logo, esses indivduosmaterializam, para a sociedade como um todo, um certo atributoespecial que possuam em vida e que passa a estar ligado a eles demaneira definitiva aps a morte. a essa operao cultural que estouchamando de alegoria s avessas, ou seja, ao invs de uma idia ousentimento serem dotados de um corpo para represent-los, umcorpo real e morto passa a simbolizar uma idia e a ser com elaidentificado: Osvaldo Cruz, a cincia; Rui Barbosa, o Direito etc.

    Observando os funerais de Brizola e tambm delesparticipando, bem como lendo com cuidado uma parte do material

    14

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Brizola e o trabalhismo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    15/399

    da imprensa produzido sobre ele, neste momento, arrisco umahiptese:3Leonel Brizola, no momento de sua morte, foi alado categoria de um nome ligado s lutas pela democracia no Brasil. Ameu juzo, portanto, a imagem mais recorrente e forte de sua presenapoltica, a imagem que se escolheu fixar para ser especialmentelembrada, foi a do defensor da legalidade institucional, atravs doepisdio de 1961, de luta pela posse do presidente Joo Goulart.Foi ento que Brizola emergiu como uma figura de lder inconteste:

    corajoso e guardio dos valores democrticos. No caso, no importaque ele no tenha tido tais posies ao longo de toda a sua vidapoltica, e ele, de fato, no as teve, como atestam os mesmos jornais,que reconhecem esse fato claramente, assumindo tons crticos e noescamoteando os pendores autoritrios da personalidade e presenapolticas de Brizola. O funeral, como uma data comemorativa que faz lembrar , no encontra sua justificativa no passado, mas nopresente; no somente naquele que lembrado, mas tambmnaqueles que esto lembrando. Por conseguinte, os funerais e todoe qualquer ritual cvico operam com os valores que se querem guardar

    em determinado momento do tempo e do espao. Se, em 2004,Brizola permitiu-nos reforar o culto aos valores democrticos, tantomelhor para ele e para ns, arrisco tambm a dizer. Agora, ento, a vez do trabalhismo, ou melhor, dos trabalhismos.

    Minha idia, aqui, deixar claro que estou entendendo otrabalhismo tanto como uma ideologia poltica, quantocomo umatradio poltica, pertencente ao universo de fenmenos queintegram o que se pode considerar uma cultura poltica bastantecompartilhada no Pas a partir da Repblica que se instaurou em1945, aps a queda do Estado Novo. A categoria trabalhismo,portanto, desde ento, passou a ser utilizada e identificada quer emtextos da academia, quer em textos da grande imprensa, quer no

    vocabulrio poltico comum, com razovel abundncia e facilidade.Ideologias e tradies fazem parte das culturas polticas de umasociedade e devem ser pensadas como construes intelectuaispossuidoras de uma dinmica e de uma histria prprias.

    15

    Angela de Castro Gomes

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    16/399

    Quero dizer, com isso, que o trabalhismo, como ideologia, foiinventado em momento e circunstncia bem precisos, no tendoorigens remotas, nem imemorias, muito pelo contrrio. Envolvendoum conjunto de idias, valores, vocabulrio e tambm prticas festivas(como um certo tipo de comemorao do Dia do Trabalho), otrabalhismo, como ideologia, foi um produto do Estado Novo emseu segundo movimento. Isso significa que tal ideologia foi articuladae difundida atravs de uma srie de modernos e sofisticados

    procedimentos e atos comunicativos, a partir do ano de 1942,possuindo como base operacional o Ministrio do Trabalho, Indstriae Comrcio, ento comandado por Alexandre Marcondes Filho.

    Desde ento, passou a ser propagada e fortemente vinculada figura pessoal do ento Chefe de Estado, Getlio Vargas, alm detraduzir a idia capital de responder aos interesses dos trabalhadores,por meio do acesso a uma legislao trabalhista, previdenciria esindical. Portanto, a ideologia trabalhista nasceu vinculada aogetulismo, ao nacionalismo e ao intervencionismo de um Estadoprotetivo que Vargas ento encarnava. Do mesmo modo, a ideologia

    trabalhista nasceu vinculada a um modelo de organizao sindicalde extrao corporativista, o que, naquele contexto poltico, significa-va uma forma de representao de interesses profissionais e no deidias polticas, religiosas etc. A ideologia trabalhista e o sindicalismocorporativista compunham o que se designava democraciaautoritria brasileira, vale dizer, uma forma de democracia que con-sagrava os direitos sociais e criticava e desprezava a democracia polticae, porconseguinte, ovoto, os partidos, as eleies, oparlamentoetc.

    Como ideologia poltica (e no uso a categoria comosignificando deformao de idias), o trabalhismo caracterizou-sepor um projeto que se vinculou ao nacionalismo e promessa dejustia social, centrada nos direitos do trabalho. Antes de 1945,utilizou-se dos direitos sociais, desvinculando-os dos polticos e, porisso, pouco contribuiu para o estabelecimento de uma sociedadedemocrtica. No ps-1945, isso se alterou, havendo outra relaoentre os direitos de cidadania que integrariam a idia de justia social,embora ela ainda permanecesse sendo afianada pelo Estado.

    16

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Brizola e o trabalhismo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    17/399

    evidente que, como ideologia e projeto polticos, o traba-lhismo lanou razes na experincia do movimento operrio e sindicalda Primeira Repblica, no sentido thompsoniano. Logo, se essaideologia foi inventada no ps-1930, no o foi de modo fortuito,arbitrrio e a partir do nada. Seu poder de significao e mobilizao(a comunidade de sentidos que logrou estabelecer) veio da releituraque as elites polticas do ps-1930 realizaram daquilo que ocorreuno terreno das lutas dos trabalhadores antes de 1930. Dizer isso no

    admitir que houve trabalhismo ou trabalhistas no pr-1930. Porconseguinte, quando, em 1945, iniciou-se, ainda sob o Estado Novo,um movimento de organizao de partidos polticos, os idelogosdo trabalhismo realizaram um certo esforo para criar um partidocapaz de abrigar tal ideologia, que conviveria com eleies, voto etc.Contudo, bom remarcar, isso no foi nada extremamente difcil,sobretudo com a bno de Vargas e o suporte do aparelho sindicalj razoavelmente estruturado. Foi assim que nasceu o Partido

    Trabalhista Brasileiro (PTB) ou o trabalhismo em seu primeirotempo, constituindo-se numa desejada e clara alternativa aos apelos

    do Partido Comunista junto aos trabalhadores.Esse tempo primordial foi o da Repblica de 1945-64, quando,por meio dos sindicatos e do PTB, o trabalhismo seria relido eapropriado por trabalhadores e por lideranas polticas e sindicais,ganhando novos sentidos, foras e possibilidades. Foi ento, a meujuzo e de outros analistas, que o trabalhismo transformou-seefetivamente em um instrumento de incluso social e de alargamentoda participao poltica, mesmo que se considere a existncia delimites e constrangimentos a tal operao e tambm sua vinculaoa prticas demaggicas e assistencialistas. Como escreve Renato Lessa,

    17

    [...] o trabalhismo enquanto fenmeno poltico esocial s pode ser entendido se o associarmos

    experincia da Repblica de 1946 e a seus traos

    bsicos: democracia poltica, legislao social

    progressiva, nacionalismo, presena marcante do

    Estado, modernizao social e crescimento econmico

    (Lessa, 2004, p.12).

    Angela de Castro Gomes

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    18/399

    Isso significa que o trabalhismo foi um dos principais legadosda chamada Era Vargas, ainda que s possa ser bem entendido apartir das apropriaes decorrentes do regime liberal-democrticoestabelecido em 1946.

    Desde 1946, portanto, o trabalhismo comeou a ser compar-tilhado, em novas bases, em um circuito que comunica setores daselites com setores populares, ganhando sentidos especficos em cadaum deles, o que se altera em cada conjuntura poltica. Assim,

    possvel dizer, correndo alguns riscos, que justamente durante essaexperincia que o trabalhismo comeou a se constituir em umatradio da poltica brasileira, capaz de mobilizar eleitores e de sermobilizada por polticos. Sobretudo aps a morte de Vargas, oprimeiro e maior nome do trabalhismo, abriu-se uma temporadade disputas iniciadas pela redefinio dos contedos do trabalhismo,bem como uma luta, at antropofgica, pela herana do carisma de

    Vargas e pela fora da legenda trabalhista. De 1954 a 1964, vriosforam os partidos trabalhistas e vrias as lideranas que, no interiordo PTB, disputaram o poder de redefinir os contedos programticos

    do partido e suas bases de atuao. Esse foi um segundo tempo dotrabalhismo, de um trabalhismo sem Vargas, dominado pelas figurasde Jango, Fernando Ferrari, Lcio Bittencourt, Leonel Brizola e San

    Tiago Dantas, entre outros.4

    Nesse segundo tempo, a ideologia e a tradio trabalhistascontinuaram marcadas pela defesa dos direitos do trabalhador, pelonacionalismo e pela proposta de um Estado intervencionista eprotetivo, mas vincularam-se a novos temas e interpelaes, entreos quais o da luta pelas reformas de base. A tradio trabalhistatransformava-se para sobreviver perda de Vargas e para acompanhar

    o prprio crescimento do PTB, que se interiorizava, tornando-seum partido de mbito nacional presente nas cidades e no interior.Esse movimento do PTB e do trabalhismo para a esquerda

    teve episdios de grande disputa e radicalizao, sendo interrompidopelo golpe civil e militar de 1964. E foi sobre o PTB e sobre aslideranas sindicais trabalhistas que a represso mais rpida eduramente se abateu. Somente na dcada de 1980, aps a anistia,

    18

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Brizola e o trabalhismo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    19/399

    em 1979, e com a volta de Leonel Brizola, anunciou-se um terceirotempo da tradio trabalhista. Dessa feita, o trabalhismo encarnou-seno brizolismo, e a tradio, mais uma vez, transformou-se para sefortalecer e sobreviver. Nessa conjuntura, os temas da defesa dos direitosdo trabalhador e do nacionalismo igualmente permanecerampatrimnio indiscutvel que eram dessa tradio. Mas, ao lado deles,cresceram em importncia tanto a questo da defesa da democracia,at porque minimizada em 1963-64, como a busca de uma definio

    para um socialismo brasileiro. Isso, de certa forma, pode ser entendidocomo uma nova tentativa de se realizarem as reformas de base, dessafeita na lei, e no mais na marra.

    De 1942 a 2004, quando Brizola morreu, foram vrios ostrabalhismos que existiram e ainda existem no Brasil. O que interessante enfatizar, para concluir, que o trabalhismo pode serconsiderado uma das tradies a integrar o que seria uma culturapoltica brasileira do ps-1945. Estou entendendo, portanto, comomuitos historiadores e antroplogos, que uma cultura poltica umconjunto de referncias, mais ou menos formalizadas em instituies

    (no caso, partidos e sindicatos) e mais ou menos difundidas nasociedade. Ela no homognea e sofre transformaes temporais eespaciais. uma categoria polmica, mas sua utilidade vem sendotestada em pesquisas que procuram entender de forma menos abstratao comportamento e os valores polticos de atores individuais e coletivos.O trabalhismo , nesse caso, uma boa oportunidade. Ainda que sejamuito difcil saber se ele vai conseguir se transformar e renovar-se parasobreviver, no h dvida de que o trabalhismo pode ser reconhecidocomo uma das ideologias e tradies mais importantes da culturapoltica do Brasil republicano.

    19

    Brizola and labourism

    Abstract.According to reflections risen by Leonel Brizolas funeral, this article

    analyses labourism while political tradition and ideology, as part of a political

    culture shared in Brazil after 1945. This article shows how labourism, emerged

    after 1930s, was re-read and taken by workers, political and union leaders between

    1945-1964. It shows also the changes occured after Vargas suicide, as well as the

    changes labourism has suffered after 1979, when labourism became brizolismo.

    Keywords:Brizolismo. Labourism. Political culture.

    Angela de Castro Gomes

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    20/399

    Notas1Nos ltimos cinco anos, o professor Jorge Ferreira e eu insistimos muito para

    realizar uma entrevista de histria de vida com Leonel Brizola. Telefonamos,

    escrevemos carta, conversamos. Ele concordava com a importncia do depoimento,

    mas jamais aceitava marcar o incio das gravaes. Ficava evidente que, para ele,

    outras aes, mais urgentes, impunham-se, sendo a entrevista uma tarefa para o

    futuro. Infelizmente, esse futuro no chegou e, a despeito de se terem muitas

    entrevistas de Brizola, ele no deixou uma histria de vida.2Seria possvel realizarem-se outras incluses, verificando-se os funerais realizados

    nos estados, com as mesmas caractersticas de fundo. O funeral de Joo Pinheiro,em Minas Gerais, um bom exemplo. Sobre esse episdio, ver Gomes (no prelo).3Foram consultados apenas alguns jornais para a elaborao dessas reflexes, que

    se pretendem preliminares. Na cidade do Rio de Janeiro, oJornal do Brasil, de 22

    e 23 de junho de 2004, e O Globo, de 23 de junho de 2004, que dedicou um

    caderno especial morte de Brizola: O fim de uma era. Em Porto Alegre, consultou-

    se Zero Hora, de 26 de junho de 2004.4Sobre esse momento, ver Gomes (1994).

    GOMES, Angela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas.

    In:______ (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume Dumar,

    1994. p. 133-160.

    ______. Memria, poltica e tradio familiar : os Pinheiro de Minas Gerais.

    In:______ (Org.). Minas e os fundamentos do Brasil moderno. Belo Horizonte:

    Ed. UFMG. No prelo.

    GONALVES, Joo Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da

    construo fnebre de heris nacionais na Primeira Repblica. Estudos

    Histricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 25, p. 135-162, 2000.

    LESSA, Renato. Dois legados que mudaram o pas. O Globo, p.12, 22 ago.

    2004. Caderno Especial Getlio Vargas.

    20

    Referncas

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004

    Brizola e o trabalhismo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    21/399

    Vargas e a gnese

    do sistema partidrio brasileiro*Lucia Hippolito**

    Resumo. A consolidao do sistema partidrio do perodo 1945-64 ocorreu durante

    o segundo governo Vargas, tendo como referencial a figura e a atuao do presidente

    da Repblica. O que emerge da crise de agosto de 1954 um sistema partidrio

    moderado, com o PSD solidamente instalado no centro do espectro poltico-

    ideolgico, fiador da estabilidade poltica e atraindo os extremos (PTB e UDN)

    para o compromisso com o regime democrtico. A construo da identidade e da

    maioridade do sistema partidrio brasileiro um legado de Getlio Vargas, mas

    que requereu, em larga medida, a superao da prpria figura do estadista.

    Palavras-chave: Getlio Vargas. Sistema partidrio.

    Fundados em 1945, antes do final do Estado Novo, com oobjetivo de contribuir para uma transio negociada da ditadurapara a redemocratizao, os principais partidos polticos do perodo1945-65 foram criaturas de Getlio Vargas. O estadista era o

    *Agradeo a cuidadosa leitura e as preciosas achegas de Edson Nunes e Edgar

    Flexa Ribeiro, os quais no so responsveis, evidentemente, por eventuais

    insuficincias.

    ** Lucia Hippolito historiadora (PUCRJ) e cientista poltica (Iuperj-Rio).

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    22/399

    referencial, no importando se esses partidos haviam sido criadospor ele, ou se nasceram contraVargas.

    Segundo Amaral Peixoto, interventor no Estado do Rio, genrode Getlio e participante das reunies que precederam a criao dospartidos, alguns interventores queriam que os novos partidos fossemregionais, como na Repblica Velha, mas Getlio teve a palavrafinal e decidiu por partidos polticosnacionais.

    Todos os fundadores do PSD eram homens quetinham colaborado na administrao do Estado Novo,homens que tinham realizado o programa do EstadoNovo nos estados. Ns nos reunamos na casa doValadares, aqui no Rio: Fernando Costa, Agamenon,Barbosa Lima e eu. Em algumas reunies o Gis estavapresente. A primeira questo foi: os partidos seriamnacionais ou estaduais? O Benedito e o FernandoCosta queriam partidos estaduais, o

    Agamenon e euqueramos partidos nacionais. [...] Levamos o caso

    ao dr. Getlio, e ele decidiu pelos partidos nacionais(apud Camargo et al., 1986, p.289-290).

    22

    O Partido Social Democrtico (PSD), fundado em 17 de julhode 1945, comeou a ser organizado primeiro nos estados, sob aliderana dos interventores, reunindo prefeitos, membros daadministrao estadual e outras foras que apoiavam o governo, comoproprietrios rurais, industriais, comerciantes, funcionrios pblicose outros. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado em 15 demaio de 1945, reuniu, sob a coordenao do Ministrio do Trabalho,basicamente operrios urbanos e sindicatos. consensual a idia deque Getlio concebeu o PTB como um anteparo entre os traba-lhadores e o Partido Comunista, que acabara de reingressar nalegalidade.1J a Unio Democrtica Nacional (UDN) nasceu em 7de abril de 1945, como frente de oposio ditadura do EstadoNovo, defendendo liberdades democrticas e a candidatura dobrigadeiro Eduardo Gomes presidncia da Repblica. Reunia

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    23/399

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    24/399

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    25/399

    substituda pela frmula mineira, proposta pelo deputado mineiroBenedito Valadares e submetida apreciao do comando nacionaldo PSD. A frmula mineira estreitou os limites da frmula Jobim,pois sugeria um candidato de unio naciona que fosse, a um tempo,pessedista e mineiro. A lista de Valadares foi composta pelos nomesde Israel Pinheiro, Ovdio de Abreu, Bias Fortes e Carlos Luz.

    A clara inspirao do Catete na frmula mine ira gerouimediatamente resultados negativos para a negociao. Nereu Ramos,alijado da disputa, renunciou presidncia do PSD em 26 denovembro de 1949 e foi substitudo pelo paulista Cirilo Jnior. Odiretrio do Rio Grande do Sul, que apoiava Nereu, abandonou asnegociaes, ao ser rejeitada afrmula Jobim.8A aceitao dafrmulamineira pelo PSD marcou o fracasso da candidatura de unionacional.

    Na UDN, as conversaes interpartidrias foram lideradas pelopresidente nacional do partido, o deputado fluminense Prado Kelly,e pelo governador de Minas Gerais, Mlton Campos. Entretanto, ogovernador da Bahia, Otvio Mangabeira, que pretendia ser o

    escolhido por Dutra, rompeu com o presidente em dezembro edeclarou que o candidato udenista seria o brigadeiro Eduardo Gomes,criando uma situao de fato. Assim, uma vez mais foi a UDN oprimeiro partido a iniciar a corrida eleitoral, apresentandocandidatura prpria, e sua Conveno Nacional homologaria o nomede Eduardo Gomes em 12 de maio de 1950.9Embora Prado Kellyapoiasse nova candidatura do Brigadeiro, outros udenistas entendiamque o partido deveria procurar um candidato com maiores chancesde vitria. O jornalista Carlos Lacerda, udenista em ascenso,comeou a advogar a busca de outro candidato.

    25

    Foi quando sustentei que a UDN era um partido queno tinha vocao de poder e que eu no tinha vocaopara derrotas gloriosas. Que eu achava que estavana hora de disputar o poder. para isso que os partidosexistem. [...] Mas chegou ao ponto em que a escolhaera entre o Getlio (o Cristiano j estava derrotado) e

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    26/399

    o Brigadeiro. Ento evidente que eu apoiei oBrigadeiro. Fiz comcios onde o Brigadeiro [...] repetiaos mesmos realejos de 1945 (Lacerda, 1975, p.101).

    A hiptese de enfrentar Getlio Vargas nas eleies reacendeuo antigetulismo dos udenistas. J em 1 de junho, Lacerda escreviaem seu jornal, Tribuna na Imprensa: O sr. Getlio Vargas senadorno deve ser candidato presidncia. Candidato, no deve ser eleito.

    Eleito, no deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer revoluo para impedi-lo de governar.

    O PSD ainda realizou duas tentativas de entendimento. Aprimeira foi a candidatura suprapartidria do mineiro Afonso Pena

    Jnior, que naufragou antes do lanamento. A segunda, que seria ade um candidato comum PSD/PTB, foi paralisada por doisobstculos, sendo o primeiro o prprio Vargas, que se negou a apoiarum candidato imposto pelo Catete. Rompido com Dutra em razodas crticas feitas por este poltica econmico-financeira do EstadoNovo e pelas atitudes tomadas contra getulistas dentro do PSD,10

    Vargas reafirmou, a Amaral Peixoto, a inteno de apoiar um nomesado de negociaes entre as lideranas do PSD e no de inspiraodo palcio do Catete. Segundo Amaral, Getlio no fazia qualquerobjeo aos nomes de Nereu Ramos e do mineiro CristianoMachado, ambos vetadas por Dutra.11O segundo obstculo residiano prprio PTB, que via grandes chances de vitria na candidaturade Getlio Vargas, negando-se portanto a ser o scio minoritriodo empreendimento. Sem grandes nomes nacionais que pudessemsensibilizar a opinio pblica, o PTB aferrou-se ao nome de Getlio.Este, aps o rompimento com Dutra, comeou a fazer oposioaberta ao governo e aproximava-se cada vez mais dos trabalhadores.

    No exlio gacho, desaparecia gradativamente o Getlio ditadore comeava a se consolidar o Getlio democratae populista. Assim,mesmo quando ainda no tinha revelado o desejo de se candidatar,Getlio j era o candidato dos sonhos do PTB. Nesse reino deincertezas, crescia a candidatura de Vargas, fortalecida por umaaliana firmada entre ele e o governador paulista Ademar de Barros,

    26

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    27/399

    fundador e maior cacique do PSP, partido que forneceria o candidatoa vice na chapa de Getlio: o deputado Caf Filho (PSP-RN).12

    Uma visita de Ademar a Getlio em sua estncia gacha em 12 dedezembro de 1949 resultara em nota conjunta em que os dois lderesafirmaram estar tratando de problemas referentes sucesso.

    Em 28 de janeiro, Ademar anunciou oficialmente a retiradade sua candidatura presidncia da Repblica. A aliana Getlio-

    Ademar fortaleceu-se com a visita do primeiro a So Paulo trs dias

    depois, a convite de Ademar. Na ocasio, Getlio declarou que oPTB estava disposto a colaborar para que se chegasse frmula ideal,o acordo entre os partidos a partir de um programa que consultasseas necessidades regionais e com um candidato nico para evitarentrechoques.13

    A terceira fase, caracterizada pela definio dos partidos emtorno de seus candidatos, significou, para o PSD, o agravamento dacrise interna. Candidaturas sucederam-se sem que se conseguisseum nome que ao mesmo tempo unisse o partido e agradasse aopresidente Dutra.14O lanamento de Getlio contribuiu para

    aprofundar as divergncias, pois as lideranas pessedistas hesitavamentre a fidelidade legenda e a lealdade pessoal a Vargas.Finalmente, a reunio dos dirigentes pessedistas, ocorrida em

    15 de maio de 1950, resultou na indicao do mineiro CristianoMachado. Ficou tambm decidido que, aps lanado oficialmente,este deveria entender-se pessoalmente com Vargas e oferecer a vice-presidncia ao PTB. Contudo, segundo Amaral Peixoto (apudCamargo et al., 1986), Cristiano Machado decidiu no procurar oex-ditador, para no colocar em risco as possibilidades de obter oapoio do presidente Dutra. Sendo assim, Getlio recusou-se a tomarainiciativa de apoiar o nome de Cristiano. A atitude de Vargas tevesrias conseqncias no interior do PSD, sendo uma delas a no-aceitao da candidatura (homologada pela Conveno Nacionalem 10 de junho) por vrias sees estaduais, que partiram para apoiarGetlio. Cristiano Machado, nome sem expresso nacional, noconseguiu unir o partido em torno de sua candidatura.

    27

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    28/399

    Aproveitando-se da crise pessedista, Getlio fez alianas como PSD em vrios estados, tendo em vista tambm as sucesses esta-duais: no Esprito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Bahia,

    Amazonas, Gois, Mato Grosso, Paran e Paraba, Vargas apoiou oscandidatos do PSD ao governo e foi por eles apoiado, velada ouostensivamente.

    O PSD, por seu turno, ps em prtica a cristianizao: ocandidato do partido foi abandonado prpria sorte, e sua

    candidatura foi praticamente esvaziada, uma vez que os maisexpressivos lderes pessedistas aderiram a Getlio Vargas. Para boaparte dos polticos pessedistas, a cristianizaorepresentava simplesautopreservao, pois apoiar Cristiano Machado significaria incorrerem derrotas eleitorais provavelmente fatais (DAraujo, 1982, p.62).O resultado das eleies, como era previsto, consagrou a vitria deGetlio Vargas. O candidato do PSD chegou em terceiro lugar,

    vencendo apenas nos estados do Par e do Maranho e nos territriosdo Amap e do Acre.15

    Nos estados, o PSD elegeu 11 governadores: no Amazonas,

    lvaro Botelho Maia (PSD/PDC); na Bahia, Lus Rgis PachecoPereira; no Cear, Raul Barbosa (PSD/PSP/PR); no Esprito Santo,Jones dos Santos Neves (PSD/PTB); em Gois, Pedro Ludovico(PSD/PTB); em Minas Gerais, Juscelino Kubitschek (PSD/PR); naParaba, Jos Amrico de Almeida (PSD/PL); em Pernambuco;

    Agamenon Magalhes; no Piau, Pedro de Almeida Freitas; no Riode Janeiro, Ernani do Amaral Peixoto (PSD/PR/PRT/PST/PTN/PTB); e, em Sergipe, Arnaldo Rolemberg Garcez (PSD/PR). NoRio Grande do Norte, Jernimo Dix-Sept Rosado Maia, do PSP,foi eleito em coligao com o PSD e a UDN.

    A UDN, por sua vez, elegeu cinco governadores: em Alagoas,Arnon de Mello; no Mato Grosso, Fernando Correia da Costa; noPar, Alexandre Zacarias dAssuno (UDN/PSP/PST/PL); noParan, Bento Munhoz da Rocha (UDN/PR/PST/PL/PRP); emSanta Catarina, Irineu Bornhausen. No Rio Grande do Norte, como

    vimos, a UDN participou da coligao que elegeu Dix-Sept Rosado.

    28

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    29/399

    Finalmente, o PTB elegeu apenas o governador do Rio Grandedo Sul, Ernesto Dornelles, mas participou da coligao vencedorano Esprito Santo, em Gois e no Estado do Rio.16

    Na Cmara dos Deputados, os trs principais partidosaumentaram suas bancadas em relao a 1945-47. 17 O PSDconfirmou sua posio majoritria, elegendo 112 deputados (36,8%),enquanto a UDN ocupou 81 cadeiras (26,6%). O PTB, fortementeajudado pela cassao do registro do Partido Comunista e pelodesempenho de Getlio na eleio presidencial, mais do que dobrousua bancada: de 24 deputados em 1945-47, elegeu 51 deputadosfederais em 1950, alcanando 16,7% do total de 304 deputados.

    No Senado, que renovava um tero das cadeiras, das 22 vagasem disputa, o PSD ocupou seis, a UDN, quatro, e o PTB, cinco.18

    A vitria de Getlio, o crescimento do antigetulismo udenistae as condies em que ocorreu a derrota do PSD principalmentea crise intrapartidria que a precedeu seriam os principaisingredientes da crise que se desenrolou por todo o segundo governo

    Vargas e terminou no desenlace trgico de 24 de agosto de 1954.

    A construo da dinmica do sistema partidrio

    Desde o primeiro momento, o governo federal foi constitudo imagem e semelhana do presidente da Repblica. Getlio tentoudeslegitimar os partidos, diluindo sua atuao e seus contornos.Mesmo chamando o PSD para o governo, ele no governoupartidariamente, limitando-se a fazer escolhas pessoais nos partidosque comporiam o ministrio faz isto inclusive na UDN. No PSD,partido majoritrio no Congresso e cuja diviso havia contribudopoderosamente para sua eleio, Getlio selecionou ministros basea-do em critrios regionais e/ou pessoais muito mais do que em indica-es dos partidos. Para a Fazenda, escolheu o paulista Horcio Lafer(indicado por Ademar de Barros); para a Justia, nomeou doismineiros que se sucederiam, Negro de Lima e Tancredo Neves,ambos indicados pelo governador Juscelino Kubitschek, recm-eleito; para a Educao, optou por dois baianos, Simes Filho

    29

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    30/399

    e Antnio Balbino, que tambm se sucederiam na pasta. O gachoJoo Neves da Fontoura, que ocuparia a pasta das Relaes Exteriores(1951-53), embora pessedista, foi da cota pessoal de Vargas; aamizade dos dois era bastante anterior Revoluo de 30.

    O PTB recebeu o Ministrio do Trabalho, Indstria e Comr-cio, com todas as suas autarquias. Seriam petebistas os quatroministros: o paulista Danton Coelho (jan./set. 1951), o cariocaSegadas Viana (1951-53), o gacho Joo Goulart (1953-54) e o

    baiano Hugo de Faria (fev./ago. 1954).19O fato de o presidente daRepblica pertencer formalmente ao PTB no significounecessariamente o fortalecimento do partido. Praticamente durantetodo o governo Vargas, o PTB esteve envolvido em problemas elutas internos, visando ao fortalecimento dos laos entre o partido eo mundo sindical e entre o partido e os comunistas, no s paraatuar frente aos problemas sindicais como na defesa de princpiosnacionalistas (Ferreira, 2001, p.4.422).

    Finalmente, a UDN tambm participou do governo. Opernambucano Joo Cleofas, aliado de Getlio na campanha

    eleitoral, ganhou o Ministrio da Agricultura (1951-54).20

    Entretanto, a prpria UDN apressou-se em declarar que Cleofasassumia a pasta em carter pessoal. Alis, durante o governo Dutra,Carlos Lacerda j combatera ferozmente a presena de ClementeMariani e Raul Fernandes no ministrio, acusando-os de adesismo.21

    Dessa forma, Getlio Vargas, eleito pelo PTB e pelo PSP, governoucom o PSD e cortejou a UDN. Essa busca do consenso mximo,como bem salientou DAraujo (1982), foi altamente prejudicial aosistema partidrio e ao prprio Getlio.

    O sistema partidrio parlamentar

    Mais uma vez foi a UDN a primeira a se mover no tabuleiro,a se constituir e funcionar como partido. Durante todo o governo

    Vargas, a UDN foi o grande interlocutor do governo no Congresso,pois foi quem respondeu s iniciativas do Executivo,

    30

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    31/399

    para critic-las e combat-las. Cortejada por Getlio, a UDN recusoua corte e partiu para comandar a oposio. A Banda de Msica, suafrao mais aguerrida, liderou os ataques ao governo, denunciandoirregularidades ou mesmo tomando a frente do prprio governo.22

    Os esforos de Getlio para cooptar o partido foram recebidos comenormes suspeitas. J em fevereiro de 1952, Afonso Arinos de MeloFranco, lder da UDN na Cmara, expressava suas desconfianas,pois

    importante observar que a UDN j comeava a funcionarcomo partido, mas identificando-se como partido de direita, o quea votao do projeto de lei da Petrobrs ilustrou com preciso.Enviado ao Congresso em dezembro de 1951, o projeto de criao

    de uma empresa de economia mista foi passivamente apoiado peloPSD, mas encontrou resistncias no PTB e na UDN, quesurpreendentemente se uniram-se em defesa do monoplio estatalsobre a produo do petrleo (Carvalho, 1976). Ansiosa porencontrar um tema que a fizesse mais popular sua pregaoantigetulista atingia apenas as elites e as camadas mdias e captandomelhor o sentimento da opinio pblica, favorvel ao monoplio a campanha o petrleo nosso ganhava as ruas , a UDNdesengavetou uma emenda do deputado mineiro Bilac Pinto,apresentada inicialmente na Assemblia Nacional Constituinte de46, que propunha o monoplio estatal sobre a explorao dopetrleo, e a reapresentou em julho de 1952, como emenda aoprojeto do governo. Para no ficar a reboque de uma iniciativa daoposio e do potencial eleitoral que ela poderia mobilizar, o PSDaprovou a emenda udenista, e a Petrobrs foi transformada em leiem 21 de setembro de 1953, quase dois anos aps o Executivo terenviado a mensagem ao Congresso.

    31

    [...] se supe que o dr. Getlio queira desmoralizar aUDN e enfraquec-la, a fim de manobrar no sentidode reformar a Constituio na parte referente sinelegibilidades, para se reeleger, ou eleger presidenteo comandante Amaral Peixoto.23

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    32/399

    Propor monoplio estatal sobre o petrleo no bem o quecaracteriza um partido liberal de direita, mas foi o que a UDN fez.E o fez porque j comeava a exercer uma das funes de um partidopoltico: perceber o potencial poltico e eleitoral de determinadaquesto que mobiliza a sociedade e transformar-se em seu canal deinterlocuo junto ao Estado. A UDN foi o primeiro partido polticobrasileiro a desempenhar essa funo de intermediao entre asociedade civil e o Estado.

    A campanha pelo monoplio estatal sobre o petrleo estavanas ruas, a mobilizao era enorme e o primeiro partido a perceberisso e a transformar em emenda o projeto de lei foi a UDN. Naquelemomento, ela se converteu num partido e praticamente obrigou osoutros a acompanh-la, o que fez no por ser de direita, mas por seter transformado num verdadeiro partido poltico.

    A oposio a Getlio faz da UDN um partido aguerrido,presente e atuante no plenrio e nas tribunas do Congresso,fiscalizando e criticando os atos do Executivo. isso se repetiu nocaso do Banco do Brasil, da CPI da ltima Horae, finalmente, na

    investigao do atentado de Toneleros. A UDN teve um compor-tamento implacvel, mas impecvel, como partido poltico deoposio.

    Desde o incio do governo, as maiores dificuldades localizavam-se na rea econmica, minada pelas orientaes antagnicas doministro da Fazenda, Horcio Lafer, e do presidente do Banco doBrasil, Ricardo Jafet. Tentando controlar a inflao e dinamizar osetor da indstria de base, Lafer formulara um programa deestabilizao. Para tanto, limitou a expanso do crdito, indo contra

    Jafet, que insistia numa poltica de crdito fcil.A UDN comeava a acusar Ricardo Jafet, um dos grandes

    financiadores da campanha de Getlio em 50, de ter recebido dogoverno as jazidas de ferro de Mato Grosso. Os deputados AliomarBaleeiro (BA), Adauto Lcio Cardoso (DF), Jos BonifcioLafayettede Andrada (MG) e o jornalista Carlos Lacerda, entre outrosudenistas, compraram um pequeno lote de aes do Banco do Brasile, durante dois anos, compareceram a todas as assemblias do banco,

    32

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    33/399

    submetendo Jafet a interrogatrios minuciosos e penosos sobre todosos pontos da poltica do banco. Em junho de 53, aps ver todos osseus esforos de estabilizao minados pela poltica de Ricardo Jafet,Horcio Lafer pediu demisso do ministrio. A forte oposio daimprensa tinha tambm desgastado a posio de Jafet, e Getliooptou por demiti-lo.24

    Enquanto isso, o desempenho dos partidos governistas, PSD,PTB e PSP, ficava altamente prejudicado pela atuao do prprio

    presidente da Repblica. A identificao do primeiro ministriocomo ministrio da experincia enfraquecera os ministrospessedistas, pois conferira, equipe, uma aura de transitoriedade.

    Alm disso, a corte UDN, oferecendo-lhe postos federais nosestados, desagradara profundamente os governadores do PSD.Getlio no conseguiu atrair a UDN, mas afastar os pessedistas.

    Acrescente-se a isso o fato de que Getlio no fora eleito pelo PSD,mas por uma parcela do partido. Assim, vrios diretrios regionaisinsurgiram-se contra o alinhamento automtico ao governo. Segundo

    Tancredo Neves, deputado federal e depois ministro da Justia de

    Getlio,

    33

    Desde o momento em que teve que partilhar partedo governo com a UDN, o PSD j se sentiu lesado.[...] O PSD, por esses motivos, no era um partidototalmente identificado com o governo. Em algunsestados houve tambm um problema muitoimportante: a UDN se aliara ao PTB e tinha nessesestados todas as prerrogativas de partido do governo,e o PSD era tratado como oposio. Ento, era muitodifcil nesses estados a gente realmente trazer o PSD

    para um apoio entusiasta ao presidente Vargas (Neves,1984, p.9).

    Nasceu da a estratgia do PSD durante o governo Vargas, ade omisso preventiva: o PSD no defendia vigorosamente ogoverno, mas tampouco o atacava, porque ocupava vrios ministriose precisava do Poder Executivo para tentar vencer as

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    34/399

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    35/399

    presidente, Castilho Cabral (PSP); relator, Guilherme Machado(UDN); membros, Aliomar Baleeiro (UDN), Ulisses Guimares(PSD) e Frota Aguiar (PTB). Enquanto Castilho Cabral e Frota

    Aguiar, membros de partidos que apoiavam o governo, foraminteiramente envolvidos pela UDN, o PSD desvinculou-se da sorteda comisso; Ulisses desinteressou-se do problema e deixou decomparecer s reunies (Brandi, 1983, p.271). O governo ficousem defesa, entregue s acusaes da UDN.

    PSD e PTB omitiram-se e preferiram assistir derrota dogoverno, porque, a partir de meados de 1953, a lgica das eleiesde outubro de 1954 passou a presidir as aes partidrias. Tais eleiesteriam evidentes repercusses na sucesso presidencial de 1955.

    Enquanto o PTB dedicava-se com afinco poltica deestruturao do partido em todo o Pas, o PSD preferiu omitir-sena CPI da ltima Horapara no correr o risco de aprofundar, comuma defesa ardorosa do governo, as denncias contra Wainer. Eraimportante evitar que, no desenrolar da CPI, aparecesse o nome deum dos primeiros financiadores do jornal, o ento governador de

    Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, que determinara a um bancomineiro o desconto de trs mil contos em promissrias da Editoraltima Hora S/A, a serem pagos futuramente em publicidade(Hippolito, 1985, p.96; Wainer, 1989). De fato, o nome de Juscelinojamais apareceu durante os trabalhos da comisso, e o PSD pdepreservar um de seus potenciais candidatos sucesso presidencialde 1955.

    35

    A crise no Congresso

    O acirramento da crise poltica teve como pano de fundo oano eleitoral de 1954. A omisso dos partidos governistas, PSD ePTB, no que dizia respeito defesa do governo diante da ferocidadecrescente dos ataques da UDN, aumentava na razo direta daaproximao das eleies de outubro. Os 24 deputados do PSPdeixaram de compor a Maioria, restando a base de apoio ao governobasicamente com 163 deputados, encurralados pela Minoria,

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    36/399

    36

    composta de pouco mais de 116 deputados (81 da UDN, 11 do PRe 24 do PSP, alm de deputados de pequenos partidos) (Hippolito,1985, p.58). Alegando compromissos eleitorais, grande parte dospessedistas e petebistas recolheu-se a seus estados, deixando, nocenrio federal, uma luta sempre mais acirrada entre UDN e governo.PSD e PTB fizeram escassos no Congresso.

    A ausncia do PSD nos debates parlamentares foi aproveitadapela UDN, cujos deputados atacavam diariamente o governo. Se a

    omisso era parte do clculo poltico pessedista, a oposio cerradaera parte da estratgia eleitoral udenista, que tentava capitalizar acrescente impopularidade de Vargas junto opinio pblica do Riode Janeiro.26

    Discursando na Cmara em maro de 54, Aliomar Baleeiro(UDN-BA) acusou o presidente da Repblica de promover umbloqueio econmico ao estado de Pernambuco, governado pelopessedista e dissidente Etelvino Lins, que se opunha ao governofederal. Baleeiro props o incio de um processo contra o presidente:Admitindo como verdadeiro o fato, temos que o sr. Getlio Vargas

    delinqiu, cometeu um crime de responsabilidade que o sujeita aoimpeachment e cadeia.27

    s denncias iniciais agregam-se outras, sobre entendimentosentre Vargas e o ditador argentino Juan Domingo Pern e sobrecorrupo e conivncia com atos ilcitos. Votada em junho, aproposta de impeachment foi derrotada por 136 votos contra 35. 28

    Dessa vez, o PSD jogou toda a sua fora parlamentar e derrotou oprojeto, pois um eventual impeachmentdo presidente da Repblicapoderia arrastar os ministros pessedistas a serem acusados de crimesconexos, o que, a menos de quatro meses das eleies, representaria,para o PSD, um desastre de propores incalculveis. Entretanto, apartir de 5 de agosto, quando o atentado da rua Toneleros conduziua crise para sua fase mais aguda,29o PSD retornou ttica de omissopreventiva: aguardava os acontecimentos, negava-se a defender oua acusar o governo no Congresso, negava combate UDN econtribua para que a crise se reduzisse insatisfao pela presenade Vargas na chefia do governo.

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    37/399

    Na Cmara, enquanto crescia a violncia dos discursos daoposio udenista, menos da metade da bancada pessedistacomparecia ao plenrio. Discursando em 9 de agosto, AliomarBaleeiro declarou estranhar que nesta emergncia as bancadas doPSD estejam quase desertas! [...] Esperava, hoje, que o nobre lderda Maioria estivesse em seu posto, pronto a dar Nao as explicaesque ela ansiosamente espera.30O discurso de Baleeiro no recebeuaparte de nenhum membro da Maioria, embora a Mesa registrasse a

    presena de 39 deputados pessedistas na Cmara.31

    No dia seguinte, o udenista Herbert Levy afirmou que opresidente da Repblica tornara-se incompatvel com a naobrasileira; nenhum dos 43 pessedistas presentes o aparteou-o paratomar a defesa do governo.32A mesma coisa foi ocorrendo nos diasseguintes; o PSD no se pronunciou diante dos violentos discursosde Bilac Pinto (11.08) e Afonso Arinos (13.08) pedindo a rennciado presidente.33

    S em 17 de agosto, o lder da Maioria, Gustavo Capanema,defendeu o governo em discurso fraco, hesitante, quando foi

    bombardeado por 153 interrupes de deputados da UDN, do PR,do PSP e do prprio PTB, que atacavam o governo. Enquanto isso,apenas dois deputados do PSD Augusto do Amaral Peixoto (DF)e Jos Joffily (PB) acorreram em seu auxlio.34 Impotente diantedo massacre que sofria por parte da oposio udenista, Capanemaapelou para que os brasileiros ficassem todos juntos, a fim de que acrise transcorra de tal maneira que a Constituio continue ilesa.35

    Mas, a essa altura, j era consensual, entre os pessedistas, ainconvenincia da permanncia de Getlio frente do Executivo. Aopinio pblica era contra Vargas, os militares estavam contra Vargas.

    Durante todo o perodo mais agudo da crise, PSD e PTBomitiram-se, deixando a UDN livre no Congresso. Com isso, oPSD preservara-se para encaminhar uma soluo poltica para oconflito. Permitindo que toda a patologia da crise concentrasse-sena figura de Getlio, o encaminhamento da proposta de licenapde contribuir para a soluo do impasse e preparar a volta normalidade.

    37

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    38/399

    Ao se negar a combater frontalmente o governo, o PSDdesqualificava a crise como um conflito entre Executivo e Legislativo,este sim, de resultados imprevisveis para a estabilidade do regime.

    Ao mesmo tempo, negava combate UDN, que, por falta decontendor, concentraria ainda mais seus ataques em Getlio. O PSDdeu seu consentimento tcito ao afastamento voluntrio dopresidente, mas o suicdio de Getlio em 24 de agosto lancetou otumor e acelerou a soluo da crise.

    A atuao do PSD durante todo o processo que encerroutragicamente o segundo governo Vargas constitui seu ato de batismocomo verdadeiro partido poltico. Reduzindo o conflito a limitespoliticamente administrveis, evitando que extravasasse as fronteirasde um confronto entre governo e oposio, o PSD definiu seu perfile ocupou seu espao no sistema poltico do perodo 1945-64: o departido de centro, chave da dinmica do sistema partidrio e fiadorda estabilidade do regime.

    A recomposio do poder

    Ao sair de cena, Getlio Vargas beneficiou duplamente a vidapoltica brasileira: primeiro, como o cerne da crise estava concentradonele, seu suicdio permitiu uma soluo politicamente negociada,sem a interferncia concreta de elementos estranhos dinmicapoltica, como viria a ocorrer em 64.36Segundo, conferiu ao sistemapartidrio exatamente aquilo que lhe faltava: uma dinmica defuncionamento. O sistema partidrio brasileiro que emergiu a partirda foi um sistema moderado, com o PSD solidamente instalado nocentro e atraindo os extremos (UDN e PTB) para um compromissocom a estabilidade do regime. Mas, mais relevante ainda, o governo

    Vargas legaria ao sistema partidrio a prpria tentativa de superaodo getulismo. Ao introduzir novos temas em discusso, o governo

    Vargas contribuiria fortemente para que o sistema par tidriosuperasse o dilema getulismo X antigetulismo, predominante desde1930, e passasse a se diferenciar em torno de temas poltico-ideolgicos.

    38

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    39/399

    A discusso poltica mudou qualitativamente de patamar apartir do governo Vargas. Temas como monoplio, industrializao,estatizao, participao do capital estrangeiro no desenvolvimento,alinhamento automtico com os Estados Unidos, extenso dalegislao trabalhista ao campo, reforma agrria, acesso terra, votodo analfabeto, fortalecimento do mercado interno, crescimento daurbanizao, modernizao administrativa, entre outros, assomaramao centro dos debates.37

    O processo geral de complexificao que atingiu a sociedadebrasileira teve bvios e relevantes reflexos. No mbito dos partidospolticos, tais mudanas tiveram graves conseqncias, embora suaabsoro por parte das oligarquias partidrias ocorresse maislentamente. O avano da urbanizao teve efeitos interessantes notocante redefinio da competio eleitoral. A mudana dacomposio do eleitorado fez com que o debate dos novos temas,enumerados acima, ganhasse significado e implicaes sempremaiores.

    Na verdade, o peso do eleitorado urbano ainda no determinava

    inteiramente os contornos da disputa eleitoral. Afinal, em 1960, apopulao rural ainda representava 54,9% do total da populaobrasileira,38mas as reas rurais, j tradicionalmente ocupadas porPSD e UDN, passaram a ser disputadas com tenacidade pelo PTB,em sua estratgia de disseminao por todo o territrio nacional(cf. Hippolito, 1985; Benevides, 1981; DAraujo, 1996). Assim, odiferencial do voto urbano assumia cada vez maior importncia nacomposio das vitrias eleitorais. Ora, o crescente eleitorado urbanosofisticava suas demandas em termos socioeconmicos e polticos,o que exigia dos partidos uma revitalizao e uma atualizao pararesponder a esses novos desafios.

    A sucesso presidencial de 55 representou j uma tentativa desuperao do trauma do suicdio de Getlio. Juscelino Kubitschek,eleito com o menor percentual de votos da histria da Repblica(33,8%), venceu com a ajuda decisiva dos votos do interior. Perdeuno Rio, perdeu em So Paulo. Paradoxalmente, o homem quepregava a modernidade foi eleito pelos grotes, pelos burgos podres.39

    39

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    40/399

    Essa mudana de eixo na discusso poltica iria produzir arecomposio das diferenciaes partidrias e at mesmo dos debatesintrapartidrios. Juscelino foi muito certamente efeito e causa dessamudana de patamar na discusso poltica brasileira, como bemapontou Celso Lafer (1970) em seu trabalho pioneiro sobre oPrograma de Metas. Era Juscelino quem aceleraria a superao dadicotomia getulismo/antigetulismo, pois o debate ideolgico agregar-se-ia ao debate meramente poltico. O centro ideolgico caminhava

    para a esquerda, e a disputa partidria teria que se defrontar comesta nova realidade.

    exaustivamente enfatizado por aqueles que aderiram candidatura de Juscelino o fato de que, pela primeira vez no Brasil,um candidato presidncia da Repblica apresentava-se ao eleitoradocom um programa de governo: o Programa de Metas.40Por isso, opresidente da Repblica foi o estimulador dessas novas realidades.O debate sobre o desenvolvimentismo permeou todo o perodo,estabelecendo os laos do governo JK com os governos anteriores eos subseqentes. Por sua vez, a implementao do Programa de Metas

    acelerou a evoluo das novas realidades, gerando novas demandas.Quanto ao sistema partidrio, a urbanizao acelerada dadcada de 50 levou os partidos mais nitidamente urbanos, como oPTB e a UDN, a penetrar mais fortemente no interior: O PTB,com o Ministrio do Trabalho e os Institutos de Previdncia e depoiscom o Ministrio da Agricultura e suas autarquias; a UDN, com oslderes do interior ganhando espao na direo nacional, contra-balanando o poder da UDN do Distrito Federal. Os dois partidoscomearam a pressionar os redutos eleitorais do PSD, cuja lideranacomeava a ser ameaada. O PSD seria obrigado a tentar vir para osgrandes centros, a reformar seu discurso, a modernizar-se comopartido. Juscelino obrigou-a a discutir temas antes impensveis parao partido.

    Esse foi o pano de fundo sobre o qual iria se acelerar aradicalizao poltico-ideolgica do final da dcada de 50 e incioda de 60, que iria polarizar o sistema partidrio e contribuir parasua desagregao. Foi o processo de radicalizao o grande responsvel

    40

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    41/399

    pela crise do sistema partidrio, parte importante da crise do governoJoo Goulart, e muito mais do qualquer processo de fragmentaoou disperso partidria que possa ter ocorrido (cf. Hippolito, 1985;Lima Jnior, 1983; Castello Branco, 1985; entre outros).

    Afinal, o perodo 1945-64 inaugurou-se com 12 partidos eterminou com 13. No houve um aumento significativo no nmerode partidos polticos que justificasse a hiptese de fragmentao.De outro lado, os trs maiores partidos PSD, UDN e PTB

    controlavam, em 1945-47, 261 cadeiras na Cmara dos Deputados(85,8% do total de 304). Em 64, controlavam 325 cadeiras (79,4%do total de 409), o que tambm desqualifica a hiptese de disperso.41

    O legado de Vargas

    A superao da crise do segundo governo Varg as e aadministrao poltica do conflito conferiram identidade emaioridade ao sistema partidrio brasileiro do perodo. A ocupaodos espaos no espectro poltico-ideolgico, a definio mais clara

    de papis por parte dos partidos, enfim, a dinmica defuncionamento do sistema partidrio so legados do governo Vargas.Legados de Getlio, um homem que criou os partidos, mas queno sabia lidar com os instrumentos do regime democrtico. Porisso mesmo, a independncia do sistema partidrio exigiu, em largamedida, a superao da figura de Getlio Vargas.

    41

    Vargas and the beginning of Brazilian party system

    Abstract.The consolidation of Brazilian party system between 1945-64 took

    place during Vargas administration (1951-54), having as the major reference thepresidents personality and performance. After the August 1954 crisis, a moderateparty system arises, with the PSD strongly installed at the political-ideologicalcenter as the guarantee of political stability, attracting the extremes (PTB andUDN) as a compromise with democracy. The construction of Brazilian partysystems identity and emancipation is a legacy of Getlio Vargas, and it requiredat large the surpassing of his own figure of statesman.Keywords: Getlio Vargas. Party system.

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    42/399

    42

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

    Notas

    1Ver, entre outros, Amaral Peixoto (1960) e DAraujo (1982).2As informaes sobre a origem e composio inicial dos partidos esto emHippolito (2001), Ferreira (2001) e Benevides (2001).3O PCB foi extinto em maio de 1947, quando o TSE cancelou seu registro. OPSB foi criado a partir da Esquerda Democrtica da UDN e fez sua estria naseleies de 1950. Quando ao MTR, de curtssima existncia, trata-se de uma ala

    do PTB que passou a funcionar como partido a partir das eleies de 1962. VerHippolito (1985), texto em que este artigo fortemente inspirado.4Sobre a trajetria do Partido Comunista, ver, principalmente, Pandolfi (1995).5 vasta a bibliografia sobre Getlio Vargas. Cito, entre outros, Brandi (1983),Skidmore (1969), DAraujo (1982, 1996) e Amaral Peixoto (1960).6 Oliveira Brito (1908-97) foi deputado federal (PSD-BA) entre 1951 e 1965 eentre 1967 e 1968 (Arena-BA); Ministro da Educao (1961-62) e das Minas eEnergia (1963-64); e secretrio de Estado da Bahia (1967-69). Cassado pelo AI-5, no retomou as atividades polticas. Durante o governo Sarney (1985-90),presidiu a Companhia Hidreltrica do So Francisco (Chesf). Ver Hippolito (1985)e Abreu et al. (2001).7As informaes contidas nesta seo foram retiradas de meu trabalhoA campanhaeleitoral de 1950(Hippolito, 1977), e de DAraujo (1982).8A atitude de independncia do PSD do Rio Grande do Sul em relao ao Catetee direo nacional do PSD seria fonte permanente de divergncias da em diante.Ver Hippolito (1985).9Essa seria a segunda candidatura de Eduardo Gomes Presidncia da Repblica.Em 1945, o brigadeiro foi derrotado pelo general Eurico Dutra, candidato doPSD e do PTB. Ver Abreu et al. (2001).10No se deve menosprezar, tampouco, a mgoa de Getlio pela participao doento general Dutra, Ministro da Guerra do Estado Novo e um dos principaisarticuladores do golpe de 1937, nos acontecimentos que deram fim ao EstadoNovo e depuseram Vargas em 29 de outubro de 1945.11Amaral Peixoto declarou que Dutra vetava Cristiano Machado sob a alegaode que este tinha um irmo comunista, o escritor Anbal Machado (apud

    Camargo et al., 1986, p. 313-14).12Ver Caf Filho (1966) e Sampaio (1982).13Correio da Manh, dezembro de 1949 e janeiro de 1950.14Durante todo o processo sucessrio, foram ventiladas, no PSD, as candidaturasde Nereu Ramos, Cristiano Machado, Ovdio de Abreu, Adroaldo Mesquita daCosta, Vlter Jobim, Pinto Aleixo, Gis Monteiro, Miguel Couto Filho, IsraelPinheiro, Carlos Luz, Barbosa Lima Sobrinho, Joo Neves da Fontoura, Cirilo

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    43/399

    Jnior, Pereira Lira e a j mencionada candidatura suprapartidria de AfonsoPena Jnior.15Os resultados oficiais da eleio presidencial de 1950 foram: Getlio Vargas 3.849.040 votos; Eduardo Gomes 2.342.384 votos; Cristiano Machado 1.697.193 votos; e Joo Mangabeira 9.466 votos. TSE, Dados estatsticos, v. 7.16TSE, Dados estatsticos, v. 7.17Em 1947, houve eleies suplementares para o preenchimento de 19 cadeirasna Cmara dos Deputados (TSE, Dados estatsticos, v. 7).18TSE, Dados estatsticos, v. 7.19

    Ver Abreu et al. (2001).20Embora o candidato do PSD em Pernambuco fosse Agamenon Magalhes, ex-colaborador de Getlio durante todo o Estado Novo, este preferiu apoiar ocandidato da UDN, Joo Cleofas, que terminou derrotado por Agamenon erecebeu como prmio de consolao o Ministrio da Agricultura. Ver, a respeitodo episdio, o relato de Amaral Peixoto em Camargo et al. (1986, p.321-22).21Clemente Mariani foi ministro da Educao, e Raul Fernandes, de RelaesExteriores. Ver Abreu (2001) e Lacerda (1978).22Sobre a Banda de Msica da UDN, ver Benevides (1981), entre outros.23Conversa entre o deputado Gurgel do Amaral e o deputado Afonso Arinos, em15.02.52. Arquivo Getlio Vargas, CPDOC/FGV, ref. GV52.02.21/1 (Novais,1983, p. 14).24

    Ver Hippolito (1978) e Andrada (1977).25Em 12 de dezembro de 1952, o Correio da Manhnoticiava a existncia de umacarta de Amaral Peixoto, j ento presidente nacional do PSD, dirigida ao presidenteGetlio Vargas, referindo-se abertamente luta que travava com o deputado JooGoulart, presidente nacional do PTB. Segundo o jornal carioca, Amaral queixava-se dos favores que o Catete concedia aos trabalhistas, em fase de reorganizao earregimentao eleitoral. O PTB estaria desfalcando o PSD, oferecendo as boasgraas do Catete para os que se transferissem para o partido. Amaral jamaisconfirmou nem desmentiu a existncia da carta. Ver Hippolito (1985, p. 95).26Sobre a impopularidade de Getlio no perodo mais agudo da crise, ver Jurema(1977), entre outros.27Discurso de Aliomar Baleeiro (30.03.1954).Anais da Cmara dos Deputados, v.II, p. 754-61, 1954.28Ver a relao nominal da votao do impeachment em Novais (1983, p. 294-96).29Em 5 de agosto de 1954, elementos ligados guarda pessoal de Getlio Vargasatentaram contra a vida de Carlos Lacerda. No atentado, morreu o major daAeronutica Rubens Florentino Vaz. Ver Abreu et al. (2001).30Discurso de Aliomar Baleeiro (09.08.1954).Anais da Cmara dos Deputados, v.XIV, p. 222-31, 1954.

    43

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    44/399

    31 Idem, p.3, 232-33.32Discurso de Herbert Levy, 10.08.1954.Anais da Cmara dos Deputados, v. XIV,p. 323-29, 1954. Os deputados presentes esto relacionados s p. 283, 330-31.33Nos dois dias, estavam presentes 41 deputados do PSD.Anais da Cmara dosDeputados, v. XIV, p. 385, 412-13, 540, 563-65, 1954.34Discurso de Gustavo Capanema, 17.08.1954.Anais da Cmara dos Deputados,v. XIV, p. 795-823, 1954. Vale lembrar que, nesse dia, a Mesa registrou a presenade 76 deputados, dos quais 37 do PSD.Anais da Cmara dos Deputados, v. XIV, p.737, 789-90, 1954.35

    Anais da Cmara dos Deputados, v. XIV, p. 823, 1954.36 consensual a noo de que a soluo poltica encontrada para a crise de 1954adiou por dez anos o golpe de 1964. Ver, entre outros, Hippolito (1985); DAraujo(1982, 1996); Amaral Peixoto (1960); Camargo et al. (1986); Brandi (1983).37Ver, a propsito, a atuao do Instituto Superior de Estudos Brasileiros Iseb em Toledo (1977).38O avano da urbanizao pode ser avaliado pelos dados do Censo Demogrficode 1960, do IBGE. Em 1950, a populao rural era de 33.101.000 hab. (63,8%da total), e a urbana era de 18.783.000 hab. (36,2%). Em 1960, a populaorural era de 38.976.000 hab. (caindo para 54,9% da total), e a urbana passou a31.991.000 hab. (elevando-se para 45,1% da total).39Os nmeros finais da eleio presidencial de 1955 foram: Juscelino Kubitschek 3.077.411 votos; Juarez Tvora 2.610.462 votos; Ademar de Barros 2.222.725 votos, e Plnio Salgado 714.379 votos. TSE, Dados estatsticos, v. 7;Correio da Manh, 25.01.1956.40 Para o Programa de Metas, ver Lafer (1970) e Benevides (1976). Para osdepoimentos sobre a campanha de Juscelino e seu compromisso com promessasconcretas de campanha, ver principalmente Archer (1977-78), Oliveira Brito(1983), Guimares (1971), Jost (1983), Chaves (1977, 1978), Joffily (1983) eRiedinger (1988).41Ver a evoluo da representao partidria na Cmara dos Deputados emHippolito (1985, p. 58).

    Referncias

    ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN,Fernando; LAMARO, Srgio Tadeu de Niemeyer (Coord.). Dicionriohistrico-biogrfico brasileiro ps-1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001.

    ANDRADA, Jos Bonifcio Lafayette de. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1977. (Histria Oral).

    44

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    45/399

    45

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

    ARCHER, Renato. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1977-8.(Histria Oral).

    BANDEIRA, Muniz. O governo Joo Goulart: as lutas sociais no Brasil. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 1977.

    BENEVIDES, Maria Vitria. O governo Kubitschek: desenvolvimentoeconmico e estabilidade poltica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

    ______.A UDN e o udenismo: ambigidades do liberalismo brasileiro. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1981.

    ______. Unio Democrtica Nacional. In: ABREU, Alzira Alves de;BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARO,SrgioTadeu de Niemeyer (Coord.). Dicionrio histrico-biogrfico brasileiro ps-1930.Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001.

    BRANDI, Paulo. Vargas: da vida para a histria. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

    BRASIL. Cmara dos Deputados. Anais da Cmara dos Deputados, 1951-4. Riode Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952-5.

    CAF FILHO, Joo. Do sindicato ao Catete:memrias polticas e confisseshumanas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966.

    CAMARGO, Aspsia; HIPPOLITO, Lucia; DARAUJO, Maria Celina Soares;FLAKSMAN, Dora Rocha. Artes da poltica.Dilogo com Amaral Peixoto. Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

    CARVALHO, Getlio. Petrobrs:do monoplio aos contratos de risco. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 1976.

    CASTELLO BRANCO, Carlos. Introduo Revoluo de 1964. Rio deJaneiro: Artenova, 1975. 2 v.

    CHAVES, Joo Pacheco. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1977-8.(Histria Oral).

    DARAUJO, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas (1951-1954):democracia, partidos e crise poltica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

    ______. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-65. Rio de Janeiro: FGV,1996.

    DULCI, Otvio Soares. A Unio Democrtica Nacional e o antipopulismo noBrasil. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1986.

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    46/399

    DULLES, John W. Foster. Getlio Vargas:biografia poltica. Rio de Janeiro:Renes, 1974.

    FERREIRA, Marieta de Moraes. Partido Trabalhista Brasileiro. In: ABREU,Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando;LAMARO, Srgio Tadeu de Niemeyer (Coord.).Dicionriohistrico-biogrfico brasileiro ps-1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001. 5 v.

    GOMES, Angela de Castro (Org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 1994.

    GUIMARES, Ulisses. Entrevista a Lcia Lippi de Oliveira. Braslia,30.04.1971.

    HIPPOLITO, Lucia. A campanha eleitoral de 1950. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1977.

    ______. Carlos Lacerda:ascenso e queda da metralhadora giratria. Rio deJaneiro: FGV/CPDOC, 1978.

    ______. De raposas e reformistas: o PSD e a experincia democrtica brasileira(1945-64). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

    ______. Partido Social Democrtico. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH,Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARO, Srgio Tadeu de

    Niemeyer (Coord.).Dicionrio histrico-biogrfico brasileiro ps-1930. Rio deJaneiro: FGV/CPDOC, 2001.

    JOFFILY, Jos. Depoimento (II). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1983.(Histria Oral).

    JOST, Nestor. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1983. (HistriaOral).

    JUREMA, Abelardo. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1977.(Histria Oral).

    KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Braslia (memrias). Rio deJaneiro: Bloch Editores, 3 v.

    LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.LAFER, Celso.The planning process and the political system in Brazil: a study onKubitscheks Target Plan. 1970. Tese (doutorado em Cincia Poltica) CornellUniversity, Cornell, 1970.

    LAMOUNIER, Bolivar; KINZO, Maria DAlva. Partidos polticos econsolidao democrtica. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    46

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Vargas e a gnese do sistema partidrio brasileiro

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    47/399

    47

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.21-47, jan./dez. 2004

    Lucia Hippolito

    LIMA JNIOR, Olavo Brasil de. Evoluo e crise do sistema partidriobrasileiro: as eleies legislativas estaduais de 1947 a 1962. Dados, n.17, p.29-52, 1977.

    LIMA JNIOR, Olavo Brasil de. Os partidos polticos brasileiros:a experinciafederal e regional (1945-64). Rio de Janeiro: Graal, 1982.

    NEVES, Tancredo de Almeida. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC,1984. (Histria Oral).

    NOVAIS, Adelina Maria Alves; COSTA, Clia Maria Leite; DARAUJO,

    Maria Celina Soares; SILVA, Suely Braga da (Org.).Impasse na democraciabrasileira, 1951-55. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1983.

    NUNES, Edson. A gramtica poltica do Brasil: clientelismo e insulamentoburocrtico. Braslia: ENAP, 1996.

    OLIVEIRA BRITO, Antnio de. Depoimento. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC,1983. (Histria Oral).

    PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: memria e histria do PCB.Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995.

    PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Getlio Vargas, meu pai. Porto Alegre:Globo, 1960.

    SAMPAIO, Regina.Ademar de Barros e o PSP. So Paulo: Global, 1982.

    SKIDMORE, Thomas. Brasil, de Getlio a Castelo (1930-1964).Rio deJaneiro: Saga, 1969.

    TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB:fbrica de ideologias. So Paulo: tica,1975.

    VARGAS, Getlio. Dirio. Rio de Janeiro: FGV; So Paulo: Siciliano, 1995. 2v.

    VILLA, Marco Antonio. Jango:um perfil (1945-1964). So Paulo: Globo,2004.

    WAINER, Samuel.Minha razo de viver:memrias de um reprter. Rio deJaneiro: Record, 1989.

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    48/399

    .

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    49/399

    As vrias cores

    do socialismo moreno

    Joo Trajano Sento-S*

    Resumo. O artigo analisa a construo do Partido Democrtico Trabalhista nadcada de 1980, tomando como cenrio privilegiado o Rio de Janeiro. Concentra-se na anlise de entrevistas com lideranas que estavam ligadas ao partido,divulgadas na coluna Que socialismo esse?, do jornal Espao Democrtico. A,atenta para o tratamento dado aos temas democracia, socialismo e trabalhismo,revelando os dilemas e as divergncias quanto definio do novo partido. Chamaa ateno para a importncia poltica que o PDT teve no cenrio do Rio de Janeiro,tanto no mbito municipal, quanto no estadual.

    Palavras-chave: PDT. Democracia. Socialismo. Trabalhismo.

    Apresentao

    Dada como perdida no que diz respeito economia,

    politicamente a dcada de 1980 foi das mais intensamente vividasna histria brasileira recente. Seu incio foi marcado pelo retornodos exilados ao longo do Regime Militar e pela sua reincorporao,

    * Joo Trajano Sento-S cientista poltico e professor do Departamento deCincias Sociais da UERJ.

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.49-76, jan./dez. 2004

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    50/399

    junto com os demais cassados, vida poltica partidria. No outroextremo, em 1989, o Brasil deu um passo decisivo no processo dedemocratizao ao realizar a primeira eleio presidencial direta desde1960. Entre um momento e outro, ambos marcados por grandesmobilizaes cvicas, o Pas viveu uma srie de experincias histricas,como as eleies estaduais de 1982, a campanha pelas diretas em1984, a convocao da Assemblia Constituinte em 1986 e apromulgao da Constituio Cidad, em 1988. Esse , portanto,um breve perodo, que ainda h de suscitar o interesse de muitoshistoriadores e estudiosos da poltica.

    Uma das caractersticas mais acentuadas dessa dcada foi alaboriosa atividade voltada para a reestruturao do sistema polticodemocrtico, devastado pela ditadura que se encontrava em vias deexausto. Nessa perspectiva, lideranas (antigas e novas, j em plenaatividade ou retornando do ostracismo imposto pelos militares)moveram-se com o intuito de interferir na nova ordem que seinstitua, de firmar posies e imprimir uma certa direo aosacontecimentos futuros. Se desejamos fazer um recorte singular do

    quadro macropoltico, com a inteno de recuperar alguns aspectosde um processo to relevante para os desdobramentos polticosposteriores quanto intenso para a fundao de uma ordemamplamente democrtica no Brasil, temos, no Rio de Janeiro, umdos cenrios privilegiados de anlise.

    Tradicionalmente, a cidade do Rio de Janeiro funcionou comoreferncia de alcance nacional ao longo de toda a histria polticado Pas. Ainda que sua importncia tenha declinado desde atransferncia da capital federal para Braslia e que a fuso, ocorridaem 1975, tenha representado uma redefinio de seu perfil, a cidade

    do Rio de Janeiro preserva, ainda hoje, algo da vocao poltica quelhe conferiu uma certa peculiaridade na histria republicanabrasileira, estendendo ao estado de que agora capital um pouco desua antiga mstica. Na dcada aqui em questo, a vida poltica localesteve fortemente associada poltica nacional, e isso se deveu, emgrande parte, presena da liderana de Leonel Brizola.

    50

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.49-76, jan./dez. 2004

    As vrias cores do socialismo moreno

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    51/399

    De volta do exlio, Brizola desembarcou no Rio de Janeirodecidido a fazer dali a base para a realizao de uma antiga ambio,prematuramente abortada pelo movimento militar de 1964: chegar presidncia da Repblica, confirmando sua condio de herdeiroe continuador da obra varguista e trabalhista. Identificando o Riode Janeiro como o tambor poltico da Repblica, Brizola fixou aliseu domiclio eleitoral, tornando-o a base de onde articularia a criaoe consolidao de um novo partido trabalhista. O fato de seu lder

    mximo ter se radicado no estado fez com que o chamado novotrabalhismo e os debates a ele relacionados tivessem, no Rio deJaneiro, uma repercusso bastante significativa. Historicamente, essevnculo j havia sido estabelecido em 1962, quando Brizola alcanouvotao expressiva como candidato a deputado federal pelo entoestado da Guanabara. Em seu retorno, tal vnculo foi rapidamenterefeito, o que patenteado pela vitria consagradora na eleio parao governo do estado, em 1982.

    Passo decisivo para o cumprimento dos desgnios seus e dosque com ele se irmanaram, a vitria eleitoral de 1982 representou

    um impulso para a consolidao das bases polticas indispensveis concretizao do projeto maior de Brizola. Sua realizao, contudo,dependia da definio dos rumos polticos, ainda imprecisos evolteis. Uma srie de tarefas impunha-se. A organizao do novopartido trabalhista em nvel nacional e a definio de uma agendacapaz de viabiliz-lo politicamente, conferindo-lhe um perfilcompetitivo, eram duas delas. O vnculo tradio trabalhista e aoantigo PTB foi, sem dvida, o poderoso mote inicial a articular taisesforos. Porm, tal vnculo, a despeito de sua fora simblica, noera infenso a problemas. Embora fixada na memria poltica comouma corrente esquerda no espectro poltico e comprometida comas causas populares, a tradio trabalhista tambm era associada auma srie de prticas tomadas por demaggicas, assistencialistas econservadoras. Alm disso, seu desempenho pretrito estavainevitavelmente ligado a alguns dos aspectos mais traumticos doregime extinto em 1964. Finalmente, ao longo do tempo,compreendido entre a extino dos antigos partidos e a retomada

    51

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.49-76, jan./dez. 2004

    Joo Trajano Sento-S

  • 7/25/2019 experiencia-em-foucault-e-thompson.pdf

    52/399

    do pluripartidarismo, o Pas sofreu modificaes profundas, o quereduziria a pura e simples retomada da tradio trabalhista a ummero revivalextemporneo e anacrnico.

    A perda da legenda do PTB para sua