farmacologia do pâncreas endócrino

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Farmacologia do Pâncreas Endócrino Caso: Em seu checkup anual, a Sra. S, de 55 anos de idade, queixa-se de fadiga e micção freqüente (poliúria), mesmo à noite. Relata também que está ingerindo grandes quantidades de água (polidipsia) para saciar a sede. Embora esses sintomas já estejam ocorrendo há algum tempo e agora estejam se agravando, a Sra. S tem dificuldade em lembrar com precisão o momento exato de seu início. Nega outros sintomas urinários, como dor durante a micção, presença de sangue na urina, gotejamento e incontinência. A história clínica pregressa é notável pela hiperlipidemia de 10 anos de duração. Ambos os pais da Sra. S morreram de coronariopatia no início da sexta década de vida. Ao exame físico, a Sra. S está moderadamente obesa, porém com aparência normal sob os demais aspectos. Detecta-se a presença de glicose na urina, porém as proteínas e cetonas estão ausentes. O exame de sangue revela níveis elevados de glicose (240 mg/dL), aumento do colesterol total (340 mg/dL) e nível de HbA1c, uma medida da glicose ligada de modo covalente à hemoglobina, de 9,2%. O médico explica à Sra. S que ela tem diabetes melito do tipo II. Nessa doença, o corpo não consegue responder normalmente à insulina (resistência à insulina) e é incapaz de produzir uma quantidade de insulina suficiente para superar essa resistência. O médico discute com a Sra. S a importância de diminuir a ingestão de calorias e aumentar os exercícios físicos para melhorar o estado metabólico. O médico também prescreve metformina (uma biguanida) para o diabetes. QUESTÕES 1. Quais as ações celulares e moleculares da insulina? A insulina é uma proteína de 51 aminoácidos, constituída por duas cadeias peptídicas ligadas por duas pontes dissulfeto. Seu nome provém do latim insula (que significa “ilha”, referindo- se às ilhotas de Langerhans. A insulina liga-se a receptores presentes na superfície das células alvo. Apesar de praticamente todos os tecidos expressarem receptores de insulina, os tecidos que armazenam energia (fígado, músculo e tecido adiposo) expressam níveis muitos mais elevados de receptores de

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Page 1: Farmacologia do Pâncreas Endócrino

Farmacologia do Pâncreas EndócrinoCaso:

Em seu checkup anual, a Sra. S, de 55 anos de idade, queixa-se de fadiga e micção freqüente (poliúria), mesmo à noite. Relata também que está ingerindo grandes quantidades de água (polidipsia) para saciar a sede. Embora esses sintomas já estejam ocorrendo há algum tempo e agora estejam se agravando, a Sra. S tem dificuldade em lembrar com precisão o momento exato de seu início. Nega outros sintomas urinários, como dor durante a micção, presença de sangue na urina, gotejamento e incontinência. A história clínica pregressa é notável pela hiperlipidemia de 10 anos de duração. Ambos os pais da Sra. S morreram de coronariopatia no início da sexta década de vida. Ao exame físico, a Sra. S está moderadamente obesa, porém com aparência normal sob os demais aspectos. Detecta-se a presença de glicose na urina, porém as proteínas e cetonas estão ausentes. O exame de sangue revela níveis elevados de glicose (240 mg/dL), aumento do colesterol total (340 mg/dL) e nível de HbA1c, uma medida da glicose ligada de modo covalente à hemoglobina, de 9,2%. O médico explica à Sra. S que ela tem diabetes melito do tipo II. Nessa doença, o corpo não consegue responder normalmente àinsulina (resistência à insulina) e é incapaz de produzir uma quantidade de insulina suficiente para superar essa resistência. O médico discute com a Sra. S a importância de diminuir a ingestão de calorias e aumentar os exercícios físicos para melhorar o estado metabólico. O médico também prescreve metformina (uma biguanida) para o diabetes.

QUESTÕES

1. Quais as ações celulares e moleculares da insulina?

A insulina é uma proteína de 51 aminoácidos, constituída por duas cadeias peptídicas ligadas por duas pontes dissulfeto. Seu nome provém do latim insula (que significa “ilha”, referindo- se às ilhotas de Langerhans. A insulina liga-se a receptores presentes na superfície das células alvo. Apesar de praticamente todos os tecidos expressarem receptores de insulina, os tecidos que armazenam energia (fígado, músculo e tecido adiposo) expressam níveis muitos mais elevados de receptores de insulina e, por conseguinte, constituem os principais tecidos-alvo da insulina. O receptor de insulina (Fig. 29.4) é uma glicoproteína constituída por quatro subunidades ligadas por dissulfeto, incluindo duas su bunidades _ extracelulares e duas subunidades _. Cada uma das subunidades _ é composta de um curto domínio extracelular, um domínio transmembrana e uma cauda intracelular que contém um domínio de tirosinocinase. A ligação da insulina à porção extracelular do receptor de insulina ativa a tirosinocinase intracelular, resultando em “autofosforilação” da tirosina na subunidade _ adjacente e em fosforilação de várias outras proteínas intracelulares — entre as quais as mais importantes são as proteínas-substrato do receptor de

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insulina (proteínas- IRS). As proteínas-IRS com tirosina fosforilada recrutam uma variedade de segundos mensageiros protéicos, que contêm domínios de homologia 2 src (SH2) de ligação de fosfotirosina. A fosfatidilinositol 3_-cinase (PI3-cinase) Tipo IA é um desses segundos mensageiros protéicos que parecem ser importantes em muitos aspectos da ação da insulina. Embora os detalhes que ligam esses segundos mensageiros dos receptores de insulina aos efeitos metabólicos da insulina ainda continuem sendo objeto de pesquisa, os efeitos metabólicos da ação da insulina já estão bem estabelecidos: a insulina

2. Qual a etiologia do diabetes melito e em que aspectos odiabetes melito Tipo I difere do diabetes melito Tipo II?

Com freqüência, o diabetes Tipo II é diagnosticado pela detecção de níveis de glicemia elevados em testes de triagem de rotina ou, como no caso descrito na introdução, após a doença se tornar grave o suficiente para causar poliúria e polidipsia. Acredita-se que a progressão para o diabetes Tipo II comece com um estado de resistência à insulina. Os tecidos que antes eram normalmente responsivos à insulina tornam-se relativamente refratários à ação do hormônio e necessitam de níveis aumentados de insulina para responder de modo apropriado. A base genética do diabetes Tipo II consiste, provavelmente, numa combinação de predisposição à obesidade, resistência à insulina e deficiência das células β. Os pacientes com diabetes Tipo II que são magros (e sensíveis à insulina) geralmente exibem uma forte predisposição à deficiência das células β. Com efeito, uma forma de início precoce do diabetes Tipo II — diabetes de início na maturidade no jovem (MODY) — resulta de uma predisposição à deficiência precoce das células β; em muitos casos, a base molecular dessa predisposição consiste numa mutação herdada em um dos fatores de transcrição específicos das células β. O diabetes Tipo II leve ou precoce pode manifestar-se em indivíduos predispostos em decorrência de estados em que surge subitamente uma resistência à insulina, como no caso de tratamento com glicocorticóides ou gravidez (diabetes gestacional).

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3. O que os níveis de glicemia e de HbA1c revelam sobre odiabetes da Sra. S? Existem circunstâncias nas quais um dosparâmetros pode estar elevado, enquanto outro pode estarnormal?

Os níveis de glicemia podem ser avaliados de duas maneiras: de modo agudo, através da determinação da glicemia com monitor de glicose, e cronicamente, pela determinação da hemoglobina glicosilada (HbA1c). Em geral, obtém-se um “controle estrito”, ou manutenção de uma glicemia quase normal, através da determinação dos níveis de glicemia três vezes ao dia, com modificação da dieta e das doses de insulina para manter os níveis de glicemia dentro da faixa normal. Para obter uma estimativa do nível médio de glicemia nos vários meses precedentes, o médico pode determinar a HbA1c. A glicose no sangue glicosila não-enzimaticamente proteínas sangüíneas; a glicosilação não-enzimática da hemoglobina nos eritrócitos gera a HbA1c. Como a glicosilação não-enzimática ocorre numa velocidade proporcional ao nível de glicose no sangue, e o tempo de sobrevida dos eritrócitos é de cerca de 120 dias, o nível de HbA1c fornece uma estimativa do nível médio de glicemia no decorrer dos vários meses precedentes. Em conseqüência, o valor da HbA1c pode estar elevado em um paciente que, ao mesmo tempo, apresenta níveis normais de glicemia — o que significa que, embora o nível de glicemia esteja agudamente normal, havia elevação crônica dos níveis de glicose nos vários meses precedentes. O nível de HbA1c da Sra. S de 9,2% é objeto de preocupação, visto que a incidência de complicações diabéticas

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crônicas aumenta drasticamente com níveis de HbA1c superiores a 7,5%. Os níveis de HbA1c podem estar enganosamente baixos em pacientes com redução do tempo de sobrevida dos eritrócitos (por exemplo, pacientes com anemia hemolítica).

4. Além de aliviar a poliúria e a polidipsia, por que é importantecontrolar o diabetes da Sra. S (isto é, quais as complicaçõesagudas e crônicas que podem surgir)?

A ocorrência de hiperglicemia extrema no diabetes Tipo I ou Tipo II pode causar uma síndrome hiperosmótica, que resulta em alterações do estado mental e que pode evoluir para convulsões, coma e morte. Tanto o diabetes Tipo I quanto o Tipo II estão associados a patologia vascular a longo prazo. Essas complicações crônicas consistem em aterosclerose prematura, retinopatia, nefropatia e neuropatia. Embora os mecanismos exatos ainda não estejam esclarecidos, parece que essas complicações podem resultar de uma combinação de hiperglicemia, hiperlipidemia e aumento da sinalização inflamatória no decorrer de muitos anos. Os objetivos no tratamento do diabetes da Sra. S não consistem apenas em melhorar a polidipsia e poliúria e em normalizar os valores laboratoriais como propósito final, mas também em evitar essas complicações crônicas graves.

5. Quais os mecanismos de ação dos vários agentes farmacológicos utilizados no tratamento do diabetes: inibidores da_-glicosidase, sulfoniluréias, meglitinidas, tiazolidinedionas,biguanidas e compostos miméticos do GLP-1? A metforminaconstitui um tratamento apropriado para a Sra. S?

Os inibidores da _-glicosidase — apelidados de “bloqueadores do amido”— são análogos de carboidratos que se ligam 1.000 vezes mais avidamente do que os carboidratos da dieta às enzimas β -glicosidases da borda em escova intestinal. As glicosidases — maltase, isomaltase, sacarase e glicoamilase — ajudam no processo de absorção através da clivagem dos carboidratos complexos, produzindo glicose. Esses fármacos também aumentam a área de superfície intestinal para absorção, visto que os carboidratos que teriam sido absorvidos na parte superior do intestino sofrem absorção — em quantidades menores — em toda a extensão do intestino delgado. Por conseguinte, esses fármacos ajudam a reduzir o pico pós-prandial da glicemia. Os inibidores da β -glicosidase são efetivos quando tomados nas refeições, porém não são efetivos quando administrados em outros momentos. O aumento do nível de

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glicemia em jejum da Sra. S sugere que, no seu caso, a monoterapia com inibidor da glicosidase provavelmente seria ineficaz. As sulfoniluréias estimulam a liberação de insulina das células do pâncreas, aumentando, assim, a insulina circulante para níveis suficientes para superar a resistência à insulina. Em nível molecular, as sulfoniluréias atuam ao inibir o canal de K+/ ATP da célula na subunidade SUR. As sulfoniluréias podem atuar ao deslocar o Mg2+-ADP endógeno, que se liga à subunidade SUR1, ativando o canal. As sulfoniluréias utilizadas no tratamento do diabetes Tipo II ligam-se com maior afinidade à isoforma SUR1 do que SUR2, explicando a sua relativa especificidade para as células . A inibição do canal de K+/ATP pelas sulfoniluréias é funcionalmente semelhante aos eventos moleculares induzidos em condições fisiológicas no estado pós-prandial, em que o aumento do metabolismo da glicose produz acúmulo de ATP intracelular nas células , despolarização da membrana, influxo de Ca2+, fusão das vesículas que contêm insulina com a membrana plasmática e secreção de insulina.

A exemplo das sulfoniluréias, as meglitinidas estimulam a liberação de insulina através de sua ligação à subunidade SUR1 e inibição do canal de K+/ATP das células β. Embora tanto as sulfoniluréias quanto as meglitinidas atuem sobre a subunidade SUR1, essas duas classes de fármacos ligam-se a regiões distintas da molécula SUR1. A absorção, o metabolismo e o perfil de efeitos adversos das meglitinidas assemelham-se aos das sulfoniluréias.

As tiazolidinedionas (TZD) constituem uma classe relativamente recente de fármacos orais para o diabetes Tipo II; os dois agentes atualmente disponíveis nos Estados Unidos — a rosiglitazona e a pioglitazona — foram aprovados para uso pela FDA em 1999. As TZD não afetam a secreção de insulina, mas intensificam a ação da insulina nos tecidos-alvo. As TZD são agonistas do receptor de hormônio nuclear, o receptor- ativado por proliferador peroxissômico (PPAR). As identidades dos ligantes endógenos do PPAR ainda não foram elucidadas.

A exemplo das TZD, as biguanidas atuam ao aumentar a sensibilidade à insulina. O alvo molecular das biguanidas parece ser a proteinocinase dependente de AMP (AMPPK [AMP-dependent protein kinase] — que não deve ser confundida com a proteinocinase A). As biguanidas ativam a AMPPK, bloqueando a degradação dos ácidos graxos e inibindo a gliconeogênese e a glicogenólise hepáticas.

Os compostos miméticos do GLP-1 constituem a mais recente classe de fármacos desenvolvidos para o tratamento do diabetes. Como GLP-1 é um hormônio peptídico com meia-vida circulante curta, houve necessidade de efetuar modificações moleculares para aumentar a sua bioatividade. A exenatida é um análogo de ação longa do GLP-1 derivado da glândula salivar do

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monstro-de-gila. Atua como agonista integral nos receptores de GLP-1 humanos.

Com freqüência, os pacientes com diabetes Tipo II — particularmente os que são de mais idade e obesos — começam com um agente sensibilizador da insulina, que não predispõe à hipoglicemia nem a um aumento de peso corporal. Como a Sra. S não parece ter doença renal nem outra contra-indicação para o tratamento com biguanidas, a metformina poderia ser uma escolha razoável. Uma TZD também seria um fármaco inicial razoável. Se a monoterapia com metformina ou com uma TZD não diminuir adequadamente o nível de glicemia e os níveis de HbA1c da Sra. S, pode-se tentar uma associação de ambos os fármacos. Alternativamente, a adição de uma sulfoniluréiaao sensibilizador de insulina poderia ser uma escolha razoável.