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Teocomunicação Porto Alegre v. 42 n. 2 p. 201-223 jul./dez. 2012 Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported. “FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO”, A RELEITURA QUE O VATICANO II FEZ DUMA FAMOSA TESE TEOLÓGICA, VISTA A 50 ANOS DO SEU INÍCIO* “OUTSIDE THE CHURCH THERE IS NO SALVATION”, THE REINTERPRETATION THE VATICAN II HAS MADE OF A FAMOUS THEOLOGICAL THESIS, SEEN 50 YEARS FROM ITS BEGINNING Miguel de Salis Amaral** Resumo O objetivo deste estudo é identificar as principais características do ensi- namento do Concílio Vaticano II sobre a fórmula extra Ecclesiam nulla salus. Após uma breve introdução, os números 14-16 da Lumen gentium são analisados, tentando entender o sentido em que os termos “ecclesia”, salus” e “extra Ecclesiam” são utilizados. A conclusão salienta a importância hermenêutica do contexto em que a fórmula tem sido usada em diferentes períodos da história, e o valor forte concedido pelo Conselho para a dimensão cristológica da Igreja na História da Salvação. PALAVRAS-CHAVE: Igreja. Extra Ecclesiam nulla salus. Eclesiologia. Vaticano II. * Recentemente publiquei um estudo em italiano que percorre a história do conhecido princípio eclesiológico extra Ecclesiam nulla salus, desde a época do Concílio de Florença até ao Concílio Vaticano II. O estudo que aqui apresento concentra-se só nos textos do último concílio ecumênico, visto que estamos no 50º aniversário da sua inauguração, tendo aproveitado para retocar o texto e acrescentar alguns elementos que não aparecem na publicação em italiano, cf. M. DE SALIS, Extra Ecclesiam nulla salus. Prospettiva conciliare, in “Annales Theologici” 25 (2011/2) 353-375. ** Doutor em Teologia e Professor Associado de Eclesiologia e Ecumenismo na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma. E-mail: <[email protected]>.

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Page 1: “FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO”, A RELEITURA QUE O

Teocomunicação Porto Alegre v. 42 n. 2 p. 201-223 jul./dez. 2012

Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da LicençaCreative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported.

“FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO”, A RELEITURA QUE O VATICANO II FEZ

DUMA FAMOSA TESE TEOLÓGICA, VISTA A 50 ANOS DO SEU INÍCIO*

“OUTSIDE THE CHURCH THERE IS NO SALVATION”, THE REINTERPRETATION THE VATICAN II HAS MADE

OF A FAMOUS THEOLOGICAL THESIS, SEEN 50 YEARS FROM ITS BEGINNING

Miguel de Salis Amaral**

Resumo

O objetivo deste estudo é identificar as principais características do ensi- namento do Concílio Vaticano II sobre a fórmula extra Ecclesiam nulla salus. Após uma breve introdução, os números 14-16 da Lumen gentium são analisados, tentando entender o sentido em que os termos “ecclesia”, “salus” e “extra Ecclesiam” são utilizados. A conclusão salienta a importância hermenêutica do contexto em que a fórmula tem sido usada em diferentes períodos da história, e o valor forte concedido pelo Conselho para a dimensão cristológica da Igreja na História da Salvação.

Palavras-chave: Igreja. Extra Ecclesiam nulla salus. Eclesiologia. Vaticano II.

* Recentemente publiquei um estudo em italiano que percorre a história do conhecido princípio eclesiológico extra Ecclesiam nulla salus, desde a época do Concílio de Florença até ao Concílio Vaticano II. O estudo que aqui apresento concentra-se só nos textos do último concílio ecumênico, visto que estamos no 50º aniversário da sua inauguração, tendo aproveitado para retocar o texto e acrescentar alguns elementos que não aparecem na publicação em italiano, cf. M. DE SALIS, Extra Ecclesiam nulla salus. Prospettiva conciliare, in “Annales Theologici” 25 (2011/2) 353-375.

** Doutor em Teologia e Professor Associado de Eclesiologia e Ecumenismo na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma. E-mail: <[email protected]>.

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Abstract

The purpose of this study is to identify the main features of the teaching of Vatican Council II on the formula extra Ecclesiam nulla salus. After a brief introduction, numbers 14-16 of Lumen Gentium are analysed, trying to understand the sense in which the terms “ecclesia”, “salus” and “extra Ecclesiam” are used. The conclusion stresses the hermeneutical importance of the context in which the formula has been used in different periods of history, and the strong value accorded by the Council to the christological dimension of the Church in the History of Salvation.

Keywords: Church. Extra Ecclesiam nulla salus. Ecclesiology. Vatican II.

Introdução

Um dos axiomas mais célebres da eclesiologia é “fora da Igreja não há salvação” (extra Ecclesiam nulla salus), que se pode encontrar em vários Padres da Igreja e em diversos teólogos medievais, modernos e contemporâneos. O próprio magistério da Igreja já usou a expressão diversas vezes e em contextos variados. Portanto, é normal que nos perguntemos como é que o Vaticano II abordou esse axioma, tentando descobrir como explicar hoje tão célebre expressão.

Como o discurso que segue todos os documentos conciliares nas suas diversas fases redacionais se arrisca a ser repetitivo e demasiado longo, vamos concentrar-nos principalmente no exame dos textos mais significativos, recolhidos na Lumen gentium nn. 14-16 (de agora em diante LG), e naqueles temas que possam manifestar bem a perspectiva do Concílio. Não esqueceremos, quando for necessário, o processo de redação do texto e as modificações sugeridas por alguns Padres conciliares, e às vezes faremos referência a outros documentos conciliares.

Mais concretamente, vamos dividir o nosso estudo em três partes temáticas, que abordam cada um dos termos da tese eclesiológica. O primeiro tema ligado à expressão eclesiológica que analisamos diz respeito ao exato significado do termo ecclesia. Noutros termos: qual é o paradigma de Igreja que o Concílio Vaticano II tem diante de si e como é que se concretiza quando o texto conciliar deve tratar o extra ecclesiam nulla salus. Esse significado sofreu uma deslocação do seu “centro gravitacional”: passou da visibilidade ao mistério de comunhão

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com a Santíssima Trindade. Além disso, as implicações são diferentes quando o termo “Igreja” é entendido no sentido mais “equilibrado” do fructus salutis e do medium salutis.

O segundo tema, que veremos na segunda secção deste estudo, é o significado do termo “salvação”: trata-se da salus inchoata ou da salus final? E, no caso da salus inchoata, trata-se duma salus in Christo, ou é preciso que seja também uma salus in ecclesia? Neste último caso é nossa intenção considerar o papel salvífico das igrejas e comunidades cristãs em comunhão imperfeita com a Igreja Católica. Ainda sobre o tema da salvação, essa salus deve ser tematizada ou é suficiente o desejo de felicidade e de prosseguir no seguimento da consciência certa? Salus quer dizer ação de Deus? Quer dizer graça? Quer dizer estado do homem em graça santificante? Ou quer dizer estado do homem na glória? Enfim, o terceiro tema que veremos é o significado da expressão extra ecclesiam, por trás do qual está todo o problema da pertença de cada ser humano à Igreja, da pertença dos pecadores, dos catecúmenos, etc. Em geral, a expressão evoca em nossa mente o mundo, um “mundo” que é visto como espaço fora da Igreja visível, mas não especificamente como inimigo do homem. Se quisermos, pode ser visto como o espaço a preencher com o anúncio de Cristo, estando à espera de ser “eclesializado”.

1 A nova visão do Vaticano II sobre a Igreja

Num certo sentido, o Concílio Vaticano II recolheu os frutos dos fermentos e debates eclesiológicos do século XX, que rodaram à volta de quatro imagens de Igreja: a sociedade perfeita, o corpo místico de Cristo, o povo de Deus e o sacramento. Daí surgiu uma visão marcadamente mistérica da Igreja, inserida na história da Salvação e, portanto, dinâmica. Os passos mais importantes que estão relacionados com o nosso axioma encontram-se nos nn. 14-16 da LG, inteiramente centrada sobre a ideia do novo povo de Deus. Este povo, de fato, tem uma relação com Cristo e com o Espírito, já esboçada nos primeiros números do capítulo I da constituição, que o mostram como novo quando comparado com Israel. Este povo messiânico caminha agora no mundo em direção à plenitude final na glória. Encontramos um reflexo disto no n. 14 da LG, em cuja primeira versão se lia muito genericamente “ecclesiam esse necessariam ad salutem”, na segunda se passou a ler “ecclesiam esse institutum necessarium ad salutem” e, depois, na terceira

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versão, chegou-se a esta redação: “ecclesiam hanc peregrinantem necessariam esse ad salutem”. A mudança é concordante com a ideia que presidia e estruturava este importante capítulo da constituição, e afeta o nosso axioma. Note-se que desde o início ele era apresentado em forma positiva e não negativa, precisamente naquilo que dizia respeito ao termo e à ideia de Igreja.1 No fim do iter conciliar, encontramos o texto final: “O Santo Concílio dirige-se assim antes de mais nada aos fiéis católicos. Ele ensina, apoiando-se na Sagrada Escritura e na Tradição, que esta Igreja peregrinante é necessária para a salvação”.2

A impressão que esta mudança dá é a de orientar-nos para uma visão dinâmica mas sempre muito centrada na dimensão visível; essa impressão, porém, é só aparente. Alguns Padres conciliares manifestaram o desejo de acrescentar na primeira frase daquele que depois veio a ser o n. 14 de LG (falamos da versão do documento de 1963) uma referência explícita à Igreja Católica. A comissão respondeu que, estando essa indicação já presente no futuro n. 8 e noutro lugar do n. 14, seria supérfluo voltar a inserir essa referência novamente. A chamada explícita da comissão ao n. 8 demonstra que os dois capítulos estão ligados entre si e que não se trata de falar simplesmente da Igreja como instituição visível, e sim do mistério da coniunctio hominum cum Deo et inter se in Christo per Spiritum Sanctum, que subsiste na Igreja Católica sob o sucessor de Pedro. A ideia de Igreja que os Padres conciliares queriam propor é a de uma realidade complexa que não se pode reduzir só ao seu aspecto visível.

O n. 14 de LG explica porque é que o Concílio afirma a necessidade da Igreja para a salvação: “porque só Cristo, presente no meio de nós e no seu Corpo que é a Igreja, é o Mediador e a via da salvação; e também

1 A primeira frase, já na sua formulação positiva, estava presente no primeiro esquema. A mudança restringiu o sentido e apresentou com mais precisão o significado do termo Igreja. A inserção do hanc peregrinantem ofereceu a ideia da dinamicidade duma realidade que caminha em direção à sua perfeição, cfr. F. GIL-HELLÍN, Concilii Vaticani II Synopsis: Constitutio Dogmatica de Ecclesia Lumen Gentium, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 1995, 110, de agora em diante “Synopsis Lumen Gentium”.

2 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 110 (a tradução é nossa; quando não o dissermos explicitamente, entende-se que a tradução é sempre nossa). Para Kehl esta positividade e dinamicidade demonstram que a Igreja Católica, visível, é necessária para a salvação, e que a salvação que se pode encontrar fora dos seus limites institucionais é indissoluvelmente ligada à Igreja Católica e à sua mediação salvífica, cf. M. KEHL, La Chiesa. Trattato sistematico di ecclesiologia cattolica, San Paolo, Cinisello Balsamo 1995, p. 94s.

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porque Ele mesmo, ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Batismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo como por uma porta”. Portanto, o motivo é Cristo, único mediador e via da salvação, presente no meio dos homens e na Igreja. O texto conciliar preferiu recorrer à indicação direta de Cristo no que respeita ao Batismo e à fé – evocando os conhecidos textos de Jo 3,5 e Mc 16,16 – e só sucessivamente falou da Igreja; uma vez que o Batismo abre as portas da Igreja, confirma-se a necessidade desta para a salvação.

É interessante observar como foi inserido no texto conciliar o sacramento do Batismo. Na primeira versão do documento esse sacramento era visto como ianua ecclesiae para quem não interpunha obstáculos (à graça ou ao direito). Na segunda versão o batismo passou a ser o fundamento da argumentação relativa à necessidade da Igreja para chegar à salvação. No texto preparado entre janeiro e março de 1964 acrescentaram-se as referências à única mediação de Cristo e ao preceito da necessidade do batismo para a salvação, chegando assim à conclusão da necessidade da Igreja para a salvação. Portanto, no iter que conduziu à descoberta do fundamento do axioma que estamos a examinar, pensou-se, primeiro, no batismo e, depois, no próprio Cristo, autor do mandato batismal que implica sempre a entrada na Igreja. Voltaremos mais adiante a estudar essa perspectiva.

O primeiro parágrafo do n. 14 de LG concluía com a afirmação de que não se podem salvar aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por meio de Cristo como necessária, não querem entrar ou permanecer nela. O texto retomava, em formulação hipotética, o ensinamento do beato Pio IX.

No segundo parágrafo do mesmo número, dedicado aos fiéis católicos, encontramos uma interessante explicitação da tendência crescente a compreender a Igreja duma forma mais mistérica e cristológica: “a incorporação plena [à Igreja] existe quando os fiéis, tendo o espírito de Cristo, aceitam integralmente a sua organização e todos os meios salvíficos instituídos nela”. O documento acrescenta a seguir que “no seu corpo visível estão unidos a Cristo – que a dirige mediante o Sumo Pontífice e os Bispos – através dos vínculos da profissão da fé, dos sacramentos, do regime eclesiástico e da comunhão”. Como se pode notar, aquele com quem os fiéis estão unidos é Cristo e não a hierarquia. O papel desta, como se pode ver nos nn. 10 e 11 de LG, é apresentado como instrumental e ministerial. Portanto, a Igreja não é circunscrita

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por um poder sacro exercitado por algumas pessoas noutras pessoas, e sim, mais amplamente, pela relação com Cristo.

Se examinarmos agora o texto de LG n. 15, podemos observar que o Concílio aprofundou nele o conceito de unidade e de unicidade da Igreja precisamente no contexto da via para a salvação. O axioma já não está enquadrado na perspectiva duma confrontação com outras igrejas que se proclamam vias de salvação, porque a Igreja descobre elementos de graça e de santidade que exercem um impulso em direção à unidade católica; vê o Espírito e vê Cristo que agem naqueles que ainda não estão plenamente nela. Alguns Padres conciliares tiveram alguma hesitação em falar da ação do Espírito Santo fora dos confins visíveis da Igreja Católica sem que ao mesmo tempo se afirmasse simultaneamente que na Igreja Católica tal ação era muito mais forte. Na base desta atitude estava a tendência a comparar a Igreja Católica e as “outras igrejas e comunidades”, muito difundida nos manuais de Ecclesia. Mas o Vaticano II quis sublinhar os pontos de contato objetivos que se podiam descobrir entre a Igreja e os cristãos não católicos. Com outras palavras, a Igreja chegava mais além da área delimitada pelos três vínculos que se fundavam nos elementos objetivos de matriz belarminiana. Portanto o Concílio afirmou a ação do Espírito através das igrejas e comunidades cristãs que possuem estes elementos de graça e santidade, ação que empurra os cristãos não católicos para o crescimento na fé. Essa fé, nalguns casos, pode chegar até ao derramamento de sangue (evitou-se então o termo “martírio”, porque ele tem um significado muito preciso). O texto também indicou que existe uma certa união, no Espírito, entre essas igrejas e comunidades e a Igreja Católica. Portanto, o paradigma que serve de base ao n. 15 de LG não é exclusivamente o duma Igreja Católica que se relaciona com os cristãos separados dela, considerando-os singularmente, mas tem em conta as comunidades e igrejas de tais cristãos; e olha para elas baseando-se naquilo que as une com a Igreja Católica em geral,3 sobretudo os sacramentos que celebram, que têm um certo caráter social e criam vínculos sociais.4 O documento reconhece, além disso, que o movimento ecumênico é impulsionado

3 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 124s.4 No n. 15 de LG não foi usada a expressão communio sanctorum para evitar que fosse

mal interpretada, entendendo-a em relação ao significado que lhe atribui a Tradição. Portanto, preferiu-se falar duma certa comunhão. Todos os adjetivos que aparecem neste número dedicado aos cristãos não católicos têm em vista afirmar a verdade da comunhão e explicar que falta ainda algo para a perfeita comunhão.

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pelo Espírito Santo, que conduz todos para a união segundo a vontade de Deus, sob o mesmo pastor que é Cristo.

Encontramos um aprofundamento da ideia de Igreja no n. 15 de LG, que se encontra ativa e presente em outras igrejas e comunidades. Os elementos de graça e de santidade que são evocados em LG 8 e a presença da Igreja através duma certa verdadeira comunhão no Espírito (cf. LG 15) representam duas vias, não necessariamente alternativas, que explicam como é que a Igreja Católica não se multiplica nem se divide nas diversas comunidades com as quais ela reconhece estar numa certa e verdadeira unidade salvífica. Portanto, depois da aprovação do n. 15 de LG o termo ecclesia do nosso axioma assumiu um valor mais amplo.

O n. 16 de LG dedica-se principalmente às relações da Igreja com os não cristãos: com os que estão mais próximos – os hebreus –, com os seguidores de outras religiões e, enfim, com aqueles que não creem em Deus. O texto começa por afirmar que todos estão ordenados, de diversos modos, à Igreja povo de Deus. Não existe uma parte da humanidade que esteja desligada da redenção realizada duma vez para sempre em Cristo. Também aqueles que não conhecem Cristo estão destinados à salvação que Ele conseguiu, recebendo os meios necessários – que só Deus conhece – para a poderem alcançar. Pesquisando os diferentes casos que o texto propõe, podemos perceber a tensão salvífica inaugurada por Cristo nos seus acta et passa, os quais pertencem à história e exercem uma força efetiva, no Espírito, que empurra em direção ao cumprimento. Toda a graça é graça do Filho de Deus encarnado, comunicada pelo Espírito que une ou, pelo menos, prepara cada ser humano para entrar no único corpo de Cristo. A Igreja se esforça por promover as missões precisamente devido a este desígnio de Deus já atuante (do qual ela desempenha a função de memória que o atualiza) e devido à recordação do mandato do Senhor nesse sentido.

Se agora examinamos a Constituição Gaudium et spes (GS), podemos notar que nos encontramos diante duma Igreja que caminha para o seu cumprimento, num mundo que – também ele – caminha para o seu cumprimento. A plenitude e o cumprimento da Igreja e do mundo é o próprio Cristo. A situação de cada um deles em relação a Cristo é diferente, porém os dois caminham na mesma direção. A Igreja tem uma responsabilidade em relação ao mundo e nele pode encontrar signos da ação de Cristo porque ela tem Cristo consigo e foi fundada por Ele. A Igreja, na sua existência peregrinante no mundo,

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representa e difunde a salvação realmente realizada em Cristo até à sua plenitude. Nem sequer aqueles que pertencem agora à Igreja in via sabem exatamente tudo o que a Igreja faz. Existem muitas coisas que nós ignoramos, que conheceremos só no fim. Esta ideia, já presente em germe no n. 9 de LG, foi mais desenvolvida com a aprovação, no ano seguinte, da constituição pastoral GS. Portanto, quando o nosso axioma é lido nesta perspectiva, exige uma conversão orientada para uma ideia de Igreja que leva a integrar no seu interior a sua dimensão sacramental, isto é, a sua dimensão de sinal e instrumento da salvação, e não a vê como um “corredor estreito” em que é preciso passar para se poder ser salvo. Também a missão se perspectiva com maior atenção aos sinais de Deus no mundo, à avaliação de tudo o que pode servir como preparação ao Evangelho, e à purificação – não exclusão – de tantas realidades que assumem assim um valor transfigurado.

Em síntese, encontramo-nos diante duma perspectiva que não é eclesiocêntrica: a Igreja vê-se a si própria na situação de enviada ao mundo para realizar a obra missionária que Cristo lhe confiou depois da Redenção da humanidade. Como se viu em LG 14, a dimensão cristológica da Igreja é aquela que parece adquirir importância para poder compreender o nosso axioma. Se Cristo é a única via de salvação, só na base da relação da Igreja com Cristo se pode compreender como também a Igreja é via de salvação. É em Cristo que a Igreja pode dizer-se, em certo sentido, sacramento, porque só nEle é que ela é sinal e instrumento da união da humanidade com Deus e da unidade do gênero humano (LG 1). Signo e instrumento, pelo menos segundo o Concílio, não podem ser nunca dissociados porque a Igreja, na atual economia da salvação, é ao mesmo tempo um signo, isto é, uma antecipação, e uma imagem daquilo que se está a realizar, e um instrumento para chegar à salvação.5

5 Canobbio afirma que o Concílio não explica como a Igreja é instrumento e signo de salvação para todos, mas “poder-se-ia encontrar um rasto disto na afirmação da mediação sacerdotal da Igreja que encontra na Eucaristia a sua expressão principal enquanto que nela se atua a obra da nossa redenção (SC 2). Nessa perspectiva a Igreja apresenta-se como expressão duma humanidade que se orienta a Deus devido à autocomunicação do próprio Deus em Cristo Jesus. Portanto ela se confirma como representante mais no sentido ascendente que no sentido descendente. Ela relativiza-se a si mesma reconhecendo que só mediante o único Mediador, ao qual ela se dirige na liturgia, se realiza para todos a salvação. A sua cooperação é participada”. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza. Il Vaticano II e la sua recezione, Morcelliana, Brescia 2007, p. 56.

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2 O conceito de salvação do axioma nos textos conciliares

Convém lembrar que o Concílio retoma a tese do beato Pio IX que condenava quem, reconhecendo que a Igreja Católica tinha sido fundada por Deus em Cristo como meio necessário, não entrasse nela ou nela não perseverasse. Trata-se dum caso de non salus, retomado em LG 14. Nesse mesmo número, como já vimos, voltou a afirmar-se que Cristo é o único mediador e a única via de salvação, e que Ele estabeleceu a necessidade do Batismo para a salvação. Este sacramento é a porta que permite a entrada na Igreja e na salvação, e portanto a Igreja é necessária para a salvação. O axioma parece passar a ser um extra baptismum – ianua Ecclesia – nulla salus6, e a salvação parece ligar-se diretamente ao Batismo e, através dele, à Igreja.

Portanto, a afirmação parece dizer que “é necessário estar na Igreja para ser salvo”. Na precedente redação do n. 14 de LG, lia-se, de fato: “não se salva quem, pertencendo à Igreja, não vive (vivit) na fé, esperança e caridade”.7 O texto foi objeto de duas alterações interessantes. O primeiro foi a substituição do verbo “viver” pelo verbo “perseverar”, devida tanto à dinamicidade da nova imagem de Igreja como ao desejo de valorizar a fidelidade no tempo, que levou a abandonar a perspectiva “fotográfica” da fórmula. Daqui em diante o axioma deverá ler-se em relação com a história e não só com três critérios visíveis (de tipo bellarminiano). Usando uma metáfora, os Padres conciliares queriam assim convidar a ver a conhecida tese eclesiológica não como uma fotografia na qual aparecem aqueles que, num determinado momento, se achavam diante da máquina fotográfica, e sim como um filme. A

6 Essas considerações foram inseridas com base nas propostas enviadas quando se estudou o segundo projeto de LG. Nele se encontrava a dedução da necessidade da Igreja a partir da necessidade do Batismo, mas não se acrescentava nenhuma explicação. Muitos Padres conciliares quiseram que se fizesse referência só à necessidade de meio; outros queriam uma referência exclusiva à necessidade de preceito; outros ainda – bastantes – propuseram que se visse a necessidade da Igreja à luz da necessidade de Cristo. Houve ainda outras sugestões. A Comissão encarregada da redação acabou por decidir-se pelo texto que hoje conhecemos: a mediação de Cristo, a revelação da necessidade do Batismo e – devido a um acréscimo de 1964 – da necessidade da fé, ambos ensinados por Cristo e, enfim, a necessidade da Igreja, visto que o Batismo é ianua ecclesiae. Para fundamentar a doutrina do Batismo como porta da Igreja, o texto cita numerosos documentos do magistério e dos Padres da Igreja. Parece que esta doutrina foi um pilar da argumentação do axioma segundo o ensinamento conciliar.

7 F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 118s.

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segunda mudança que queremos referir foi a supressão das vir- tudes da fé e da esperança no texto final. Existiam então opiniões diversificadas a este respeito, mas a comissão decidiu eliminá-las porque um discurso sobre a fé e sobre a esperança “informes” teria exigido uma explicação demasiado extensa. Permaneceu, assim, a perseverança na caridade, e substituiu-se o termo “pertencer” pelo termo “incorporação”.

Na versão definitiva do documento, lê-se que “não se salva quem, incorporado na Igreja, não persevera na caridade”. A salvação, portanto, aparece ligada essencialmente à perseverança na caridade, enquanto que o acento se põe sobre as condições interiores do cristão. O caso dos pecadores batizados católicos é ainda um caso de ação salvífica, porque a fé e a esperança informes, como se afirmava na teologia escolástica, convidam o pecador a arrepender-se e a reanimar com a caridade o que ele crê e espera. O Espírito continua constantemente a chamar o pecador à conversão. Nesse caso acentuam-se as condições salvíficas que existem dentro da Igreja.

Também parece interessante observar como é que o Concílio entende a salvação “fora” da Igreja, isto é, para aqueles que não dispõem das condições salvíficas que se encontram dentro da Igreja. Esse tema foi abordado no n. 16 da LG. Há três pontos que nos parecem particularmente significativos: o primeiro diz respeito à mudança de perspectiva; o segundo relaciona-se com a tradição grega e o terceiro, enfim, fala-nos do caráter comunitário da graça e a sua orientação eclesial.

Comecemos pela mudança de perspectiva. O segundo esquema entregue aos Padres conciliares, intitulado De non christianis ad Ecclesiam adducendis, apresentava a Igreja como enviada a todos e, recordando a sua atividade missionária, afirmava que os homens que seguem a própria consciência se salvam: “Ecclesia ad omnes homines missa est... ut eos ad Regnum suum [Domini] vocaret et dirigeret”.8 Mons. Elchinger achou que o texto era demasiado “individualista”: a solidariedade de toda a humanidade com o Filho de Deus e o papel preparatório positivo das religiões não se manifestavam no texto. Este prelado, além disso, indicou que não estava suficientemente fundada a ação missionária da Igreja e não era satisfatória a orientação que se dava ao diálogo dos cristãos com os pagãos.

8 F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 130.

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Uma crítica análoga, embora com uma formulação diferente, se pode encontrar em J. Ratzinger, para quem o recurso concreto à boa vontade como via salutis não era suficiente, porque podia levar a um pelagianismo, podia manter um status quo que em si mesmo é provisório e, esta era a sua crítica fundamental, não contribuía à libertação do ser humano.9 Para Kehl, as soluções anteriores ao Concílio Vaticano II, isto é, a ignorância invencível e o votum Ecclesiae eram insatisfatórias porque subordinavam excessivamente a possibilidade de salvação ao estado subjetivo do conhecimento ou à boa vontade e consciência de cada pessoa.10

Muitos Padres conciliares pediram que se desse maior relevância à amplitude do desígnio salvífico de Deus, que chega a todos e a cada um dos homens, mas também a todas as sociedades e a todas as reli- giões não cristãs.11 O Concílio, chamando a si a doutrina dos Padres da Igreja e de São Tomás de Aquino, modificou o texto no sentido duma visão mais objetiva da salvação que partia das gentes, com as suas organizações, religiões e riquezas, orientadas ao Povo de Deus com uma ordem precisa (no caso de LG 16, e com uma ordem diferente em Nostra Aetate [NAe]). Nos povos gentios, com as suas organizações, as suas religiões e os seus ritos, Deus intervém com a sua graça e prepara os homens para o acolher. No terceiro esquema da LG, o número 16 levava o título simples de Os não cristãos (este título desapareceu no texto final) e começava com a afirmação de que “ii tandem qui Evangelium non acceperunt, ad Populum Dei diversis rationibus ordinatur”. A possibilidade objetiva da salvação, portanto, é oferecida a todos através de Cristo Jesus e do seu corpo, a Igreja. Os eventos salvíficos acontecidos antes de nós dizem-nos respeito a todos e exercitam também agora o seu influxo sobre todos os homens. De alguma forma tocam a todos. De acordo com mons. Elchinger, a Igreja é enviada a toda a humanidade porque todos são já solidários com o Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado por nós (cf. Col 1,15-20).12 Deus quer realizar plenamente esta solidariedade, que já é real, atraindo todos os homens a Cristo. A atenção desloca-se assim desde a dimensão subjetiva das condições do indivíduo para a dimensão objetiva da vontade

9 Cf. J. RATZINGER, Il Nuovo Popolo di Dio, 4. ed., Queriniana, Brescia 1992, p. 380.10 Cf. M. KEHL, La Chiesa. Trattato sistematico, cit., p. 91.11 Veja-se, por exemplo, a proposta de mons. Scalais em F. GIL-HELLÍN, Synopsis

Lumen Gentium, cit., p. 1103.12 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 918s.

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salvífica universal de Deus, que não pode deixar tantas pessoas privadas da felicidade à qual as destinou.13

O influxo da tradição grega já tinha sido registrado e assumido por mons. Elchinger, precisamente quando sublinhava a solidariedade do Verbo encarnado com todos os homens.14 Porém, esta solidarie- dade, que já é real, ainda deve alcançar a sua perfeição, e por isso Deus atrai todos os homens em direção a Cristo. A Igreja se constrói na humanidade inteira, tanto “desde dentro”, no coração dos homens através da graça, como “desde fora” com a pregação apostólica que nos “convoca” na Igreja. A teologia grega vê a natureza humana como uma unidade já redimida em Cristo.15 Quem participa da natureza humana participa, portanto, duma natureza já redimida por Cristo. Daí se deduz o influxo de Cristo sobre todos os homens e sobre toda a história. Em certo sentido, através da consistência das ideias (platônicas) e a participação de todos os homens na natureza humana, a teologia grega manifesta a ação salvífica de Cristo enquanto ação universal e cheia de força. Obviamente, o homem pode opor-se recusando a salvação, mas isso não significa que exista um espaço ao qual a vontade salvífica de Deus não chegue. O que mostra é que, além da força da salvação que Cristo nos deu, é necessária “a adesão livre do homem”.16 Deduz- se, assim, que o evento Cristo tem um valor objetivo de salvação para todos e, como Cristo está unido à Igreja, a Igreja pode ser apresentada como signo da Redenção já realizada e como instrumento da sua proclamação e acolhimento através da fé.

O caráter comunitário da graça e a sua ordenação à Igreja, evidenciados pela Comissão precisamente quando decidiu adotar a nova perspectiva, podem enfim ajudar a entender como é que o Concílio entendeu o termo “salvação” do nosso axioma. Nas Atas conciliares, podemos ler: “omnis autem gratia quandam indolem communitariam induit et ad Ecclesiam respicit”.17 Os Padres conciliares, portanto, eram bem conscientes da doutrina da encíclica Mystici corporis e da carta ao arcebispo de Boston, segundo a qual – como dizia mons. Philips18 – a graça acolhida implica o assentimento de fé, necessário 13 Cf. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 20s.14 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 918s.15 A bibliografia sobre esta questão é muito ampla. Limitamo-nos a citar aqui um estudo

sobre São Gregório de Nisa: G. Maspero, La Trinità e l’uomo, Città Nuova, Roma 2004, p. 85ss.

16 Cf. G. PHILIPS, La Chiesa e il suo mistero, Jaca Book, Milano 1984, p. 187. A citação provém dum texto de São Tomás de Aquino, na Summa Theologiae III, q. 8, a. 3.

17 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 131.18 Cf. G. PHILIPS, La Chiesa e il suo mistero, cit., p. 189.

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para a salvação. Mas essa graça, mesmo quando o homem não o sabe, é sempre uma gratia Christi, oferecida no Espírito Santo que, uno e único, unifica todos na Igreja. Por isso a graça é, por própria natureza, comunitária e relacionada com a Igreja ou orienta o homem para ela de algum modo.19 Portanto existem muitas possíveis relações, através da fé e do amor, com Cristo Jesus e com a Igreja (Gs 22). Para Philips, o texto de LG 16 significa que o extra Ecclesiam nulla salus conserva a sua validade para todos os homens, embora não dum modo idêntico para todos.20

Sintetizando e resumindo, o Concílio parece ter colhido da pa- trística e do movimento renovador bíblico elementos que o levaram a uma compreensão da salvação que já está em ato no mundo através de Cristo. Quem se move em direção à salvação o faz porque é sensível à nova economia da salvação em Cristo, mesmo que não tenha consciência dela.

As religiões do mundo apresentam alguns elementos de verdade e de graça – nos seus ritos, nas suas doutrinas, nas suas éticas e noutras manifestações – nas quais Deus salvador age. Alguns deles podem ter um certo caráter de preparação do Evangelho ou de disposição para receber a graça.21 A consideração positiva desses elementos é interpretada de modos diversos conforme os autores. Alguns, como por exemplo P. F. Knitter, entendem-na como um reconhecimento do valor objetivamente salvífico das religiões enquanto tais. Outros, pelo contrário, não encontram nos textos conciliares nenhuma afirmação relativa às outras religiões enquanto vias de salvação, e consideram que o Concílio, mais do que confirmar que se pode chegar à salvação estando fora dos limites visíveis da Igreja, quis afirmar a necessidade duma certa ligação com ela.22 Outros ainda, considerando que estes

19 Para Canobbio o “respicit Ecclesiam” indica que a graça orienta quem a recebe à Igreja, cfr. Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 56. O texto do Concílio é intencionalmente genérico, pelo que é difícil dizer algo mais específico sobre a perspectiva conciliar da questão.

20 Cf. G. PHILIPS, La Chiesa e il suo mistero, cit., p. 187.21 Em LG 17 afirma-se que o bem não está só nos corações e nas mentes dos homens,

mas também nos ritos e nas culturas. No n. 16 o acento é posto principalmente nos povos em que tais elementos de bem existem, e não tanto nas religiões.

22 Cf. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 49s. O mesmo autor adverte que esta ideia não se deve confundir nem se deve identificar com a ideia de sacramento universal da salvação usada em LG 48 e em outros lugares. Quando o Concílio usa o termo “sacramento”, aplicando-o à Igreja, quer referir-se à função da Igreja em relação à humanidade a partir da relação que ela – Igreja – tem com Cristo, cf. Ibidem, p. 49ss.

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valores e elementos são objetivações sociais das inumeráveis possíveis relações na fé e na caridade que os homens estabelecem com Cristo e a Igreja, pensam que existem vias objetivas de salvação fora do âmbito eclesial definido institucionalmente. O valor desses elementos derivaria da relação intra-histórica que eles têm com a Igreja e com Cristo.23 Sesboüé, por seu lado, acha que essas mani- festações são “vias” ascendentes, enquanto que Cristo representaria a “Via” descendente anunciada pela Igreja.24 Essa leitura, porém, não é facilmente compatível com o caráter comunitário da graça que respicit Ecclesiam. Seria necessário um esclarecimento porque uma coisa é afirmar que Deus vai ao encontro de todos os homens em Cristo, na Igreja ou em diversos modos que têm uma certa relação com a Igreja, e outra coisa é afirmar a objetivação dessas “vias”, que leva implicitamente a reconhecer a existência de muitas vias objetivas de salvação fora do âmbito eclesial. Sobre este ponto concreto, Ratzinger conclui que a coisa mais importante é falar do desígnio divino de salvação e da obediência à própria consciência.25 O texto conciliar considera que a graça de Deus e a obediência a Ele são vias de salvação, e não diz o mesmo das religiões. Isso, porém, não quer dizer que o Concílio considere que a obediência a Deus não se possa encontrar também dentro das religiões.

O Vaticano II evitou falar duma via “ordinária” de salvação, associando-a à Igreja Católica, e de “vias extraordinárias”, que estariam de qualquer forma unidas a Cristo. Em relação a estas últimas, na proposta apresentada ao Concílio, afirmava-se que os não cristãos recebem a graça através de Cristo e da Igreja, à qual estão ordenados por um voto.26 Canobbio comentou que no texto final de NAe 2 foi suprimida uma referência que poderia ter sido interpre- tada como a afirmação da existência de várias vias de salvação, uma tese que os Padres conciliares não quiseram aprovar.27

Concluindo, podemos dizer que a salus se apresenta com diversos aspectos: por um lado ela provém do conhecimento de Cristo na

23 Cf. M. KEHL, La Chiesa. Trattato sistematico, cit., p. 91s.24 Cf. B. SESBOÜÉ, “Fuori dalla Chiesa nessuna salvezza”. Storia di una formula e

problemi di interpretazione, San Paolo, Cinisello Balsamo 2009, p. 204s.25 Cf. J. RATZINGER, Il Nuovo Popolo di Dio, cit., p. 378.26 Cf. Acta Synodalia III/4, p. 544s.27 Cf. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 30, outras provas, para a

Decl. Dignitatis Humanae 1, nas p. 32s.

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terra, com a relativa glorificação do Pai; por outro lado ela é vista na sua dimensão escatológica. Como na encíclica Mystici corporis, encontramos no Vaticano II uma certeza da salus na Igreja, vista como a via mais facilmente percorrível para alcançar a salvação. O documento conciliar examina a efetiva recepção da salvação, tanto naqueles que estão incorporados à Igreja como naqueles que só estão ordenados a ela, não limitando-se à simples consideração da oferta da ação divina. No caso daqueles que estão na Igreja, o texto adverte que, quem não persevera na caridade, não pode salvar-se. No que respeita àqueles que estão ordenados à Igreja, afirma-se que podem chegar à salvação se procuram Deus com coração sincero e se esforçam de seguir a vontade divina através das suas obras com a ajuda da graça.28

Quando LG 16 afirma a vontade salvífica universal de Deus, não esquece que Ele enviou os seus discípulos em missão. As duas verdades, portanto, provêm do mesmo Deus. Assim, o axioma extra Ecclesiam nulla salus parece principalmente dirigido àqueles que se encontram dentro da Igreja, para os quais ele assume, em certo sentido, o valor dum estímulo à missão e duma advertência relativa a uma responsabilidade, um aviso que provém do próprio Senhor que já está a atuar em todo o mundo para o reconduzir a si.

Portanto, se o termo “salvação” quer dizer ação de Deus no homem que o convida à salvação, o Concílio afirma que existe salvação também fora da Igreja, visto que em todas as religiões se podem encontrar sinais da ação de Deus.29 A “salvação” provém sempre de Cristo e respicit Ecclesiam, ainda que o termo seja um pouco genérico. A assembleia conciliar não admite aqui o papel salvífico das religiões enquanto tais, mas atribui implicitamente uma função salvífica às Igrejas e comunidades cristãs que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.30

A perspectiva conciliar, enfim, parece enriquecer notavelmente o significado do termo “salvação”, que nos documentos já não aparece ligado exclusivamente à Igreja Católica tal como ela se encontra na sua realidade visível neste mundo. A “salvação” já não representa

28 A segunda versão do texto conciliar de LG 16 dizia “aeternam salutem sperare possunt”, e foi mudada para “aeternam salutem consequi possunt”, cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 134s.

29 Cf. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 21.30 A explicitação da função salvífica das Igrejas e comunidades cristãs será realizada,

entre outros momentos, na Decl. Dominus Jesus da Congregação da Doutrina da Fé no ano 2000 (nn. 16 e 17, retomando também UR 3).

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exclusivamente uma realidade à qual se chega através duma via ascendente: a “dilatação” do seu significado enquadra-se no contexto do aprofundamento da ideia de Igreja e do enriquecimento proveniente da tradição grega e do movimento renovador bíblico.

3 O sentido da expressão “extra ecclesiam”

Veremos agora o modo como o Concílio trata da pertença à Igreja dos fiéis e dos pecadores. Em geral, é preciso referir-nos agora ao “mundo”, entendido como espaço fora da Igreja visível e não especificamente como inimigo do homem. Se quisermos, podemos considerá-lo como espaço que é preciso encher com o anúncio de Cristo e a difusão da Igreja, e não como objeto da ação divina em Cristo, que já analisamos no apartado dedicado à “salvação”.

Da análise da evolução redacional do segundo parágrafo de LG 14, deduz-se uma transição que partiu duma perspectiva orientada a determinar quais são os membros da Igreja em sentido próprio e chegou a uma visão em que se fala daqueles que são “plenamente incorporados”. A mudança se deveu ao desejo de evitar o termo “membro” porque não havia acordo entre os teólogos sobre o seu significado.31 O termo estava muito ligado ao paradigma da Igreja como corpo de Cristo. Por isso se decidiu fazer uma descrição das diversas categorias de cristãos, católicos ou não católicos, e falar de incor- poração plena ou não plena, fazendo referência ao “vínculo de perfeita unidade”, uma expressão usada por Paulo VI no seu primeiro discurso como Papa ao Concílio, no dia 29 de setembro de 1963.32

No que respeita aos católicos pecadores, a comissão conciliar declarou que eles não estão plenamente incorporados à Igreja. Por isso, para falar dos plenamente incorporados, acrescentou uma passagem retirada da Carta de São Paulo aos Romanos (8,9). Os que estão plenamente incorporados à Igreja são aqueles que “Spiritum Christi habentes integram eius ordinationem omniaque media salutis in ea instituta accipiunt, et in eiusdem compage visibili cum Christo, eam per Summum Pontificem atque Episcopos regente, iunguntur, vinculis

31 Cf. F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 115 e 117.32 Mantinha-se a confirmação de que a fé e o Batismo são a porta de entrada na Igreja.

Em conformidade com isso, a Comissão redatora da LG, depois das propostas de emenda recebidas, evitou usar o reapse et simpliciter e a expressão illi tantum (só eles); cf. F. Gil-Hellín, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 117.

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nempe professionis fidei”. Como se poderá verificar, o texto continua com a indicação das três condições bellarminianas, mas pressupondo que o dom do Espírito Santo é presente. Quanto às condições indicadas pelo cardeal jesuíta, preferiu-se propor uma apresentação positiva delas, sem exclusivismos e sem dedicar atenção aos casos-limite.33 Convém recordar que, em LG 49, se afirma que também aqueles que já estão no Céu pertencem à Igreja, e portanto não lhe pertencem só os que possuem o tríplice vínculo da fé, dos sacramentos e do regime. Enfim, como já se pôde apreciar, o Concílio recordou que é preciso perseverar na caridade e, por isso, quem pertence à Igreja mas está nela só com o corpo e não com o coração não se salvará.34

O número 14 conclui com uma referência aos catecúmenos, afirmando que, quando as circunstâncias não permitem a administração do Batismo, o seu desejo é suficiente para pertencer à Igreja e chegar à salvação. Trata-se do votum baptismi, que pressupõe imediatamente o votum Ecclesiae: “catechumeni qui, Spiritu Sancto movente, explicita voluntate ut Ecclesiae incorporentur expetunt, hoc ipso voto cum ea coniuguntur”. Canobbio observa muito oportunamente que o votum é usado pelo Concílio para os catecúmenos e não para os não cristãos, enquanto que, antes do Vaticano II, a teologia aplicava-o tanto as catecúmenos como aos não cristãos para exprimir a ligação entre a “salvação” e a “Igreja”. O autor, no entanto, não acha que esta mudança permita afirmar que essa doutrina tenha sido abandonada.35

Pelo que já dissemos, pode-se concluir que LG 14 valoriza a dimensão interior da incorporação à Igreja. Os pecadores, portanto, não são considerados superiores aos justos não católicos. A exortação à perseverança e a advertência de que incorreriam num juízo mais severo, se fossem infiéis, é outra prova da não pertença plena e da não salvação.

33 Neste sentido devem ser analisadas as alterações que se realizaram entre a segunda e a terceira versão do texto; nesta última foram suprimidas as palavras restritivas que excluíam as crianças e os ruidiores.

34 Sobre a situação dos pecadores na Igreja, cf. M. DE SALIS, Concittadini dei santi e familiari di Dio. Studio storico-teologico sulla santità della Chiesa, Edusc, Roma 2009, p. 190-195.

35 Cf. G. CANOBBIO, Chiesa, Religioni e Salvezza, cit., p. 55. Sesboüé recorda que o esquema anterior aplicava ainda o votum aos não cristãos, que apareciam depois de se ter tratado dos catecúmenos, coisa que depois já não acontece no texto definitivo de LG. O jesuíta francês liga esta mudança com a inserção do subsistit in (LG 8), pelo que não concorda com Canobbio, cf. B. SESBOÜÉ, “Fuori dalla Chiesa nessuna salvezza”, cit., p. 193s.

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O Concílio não quis pôr num mesmo lugar os casos que dizem respeito ao erro involuntário, à ignorância invencível, aos heréticos que estão de boa fé, ao equívoco sem desprezo da verdade conhecida, etc. Alguns daqueles que antes eram definidos como heréticos e cismáticos foram vistos no Vaticano II como cristãos educados numa comunidade cristã não católica: eles não pecaram formalmente contra a fé e contra a unidade. O Concílio reconheceu claramente os elementos reais que unem os não católicos à Igreja Católica. Portanto, da atenção prevalente ao âmbito subjetivo da pessoa, através do recurso à ignorância inculpável, passou-se à afirmação duma série de vínculos objetivos que unem a pessoa à Igreja Católica através de diversos elementos, que encontramos listados em LG 15: primeiro os vínculos visíveis e depois aqueles invisíveis. Também afirmou que os cristãos não católicos não têm o votum baptismi porque são batizados. Não os inseriu depois dos catecúmenos (como aparecia nos dois primeiros esquemas apresentados aos Padres conciliares); como tinha sido pedido por alguns Padres, colocou-os no n. 15 de LG.36 Os cristãos não católicos estão numa certa comunhão com a Igreja em virtude dos elementos eclesiais que possuem em comum com ela, e duma “certa verdadeira união no Espírito” (LG 15).37

Um caso particular é aquele dos não cristãos, cuja ordenação à Igreja se funda no desígnio divino de salvação universal. Eles podem alcançar a salvação tanto através de elementos religiosos (próprios inclusivamente da fé de Israel e Abraão), como através dum comportamento pessoal de acordo com a sua própria consciência. Também se fez referência à obrigação eclesial de realizar atividades missionárias para a glória de Deus e a salvação destes, sem no entanto entrar em questões mais detalhadas. Mais do que procurar estabelecer se os não batizados estão ou não estão na Igreja, procurou-se descrever como estas pessoas, nas mais variadas circunstâncias, possam ser tocadas pela graça divina e, por isso, pela fé e pela caridade. Em LG 16, o Concílio não afirmou que uma tal salvação os insere na Igreja, mas no comentário da Comissão redatora – como se viu – afirmou-se que a graça tem uma dimensão social e respicit Ecclesiam. Além disso

36 Veja-se a este propósito F. GIL-HELLÍN, Synopsis Lumen Gentium, cit., p. 122s.37 A comunhão não plena ou não perfeita encontra-se também em UR 3 (quadam

communione) e no n. 4.

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o Concílio voltou a dizer que a Igreja deve cumprir a missão que lhe foi confiada por Cristo de pregar o Evangelho a todos.

No texto aprovado não aparece o termo “pertença” referido àqueles que possuem a graça sem conhecer a Igreja. Como explicar esta ausência? Não sabemos nada sobre os tempos que a graça requer para se manifestar aos homens, nem sobre as vias específicas que ela segue para lhes fazer perder a “confiança” em si próprios e abri-los a Deus. Nos textos conciliares o termo incorporação é usado quando se fala da fé – entendida como resposta a Deus que se revela – muito mais frequentemente que quando se fala da caridade. De fato, os católicos – estejam ou não em graça de Deus – são incorporados (plenamente ou não plenamente) na Igreja. O termo pertença não explica bem a situação dos não cristãos tocados pela graça; por outro lado, existe uma diferença entre incorporação à Igreja e participação atual na salvação.38

O tema da pertença com frequência indica in obliquo que, de algum modo, o homem deve pôr em ato uma resposta que, na sua forma ideal, é a da fé no Deus revelado em Cristo Jesus e anunciado pela Igreja, mas poderia ser também a da consciência que leva o homem a orientar a sua vida segundo a vontade de Deus e segundo o bem. Esta parece ser a posição assumida pelo Concílio, porque, para alcançar a salvação, não bastam nem a simples boa vontade, no caso dos não cristãos, nem o estar na Igreja com o corpo, no caso dos cristãos. O Concílio evitou referir-se às crianças, pelo que não é possível neste caso ir muito mais além daquilo que já vimos.

Conclusão

Depois da exposição que fizemos, pode-se concluir que no axioma que examinamos os termos “Igreja” e “salvação” estão muito relacionados: se restringirmos o significado do termo “Igreja”, também a “salvação” sofre um redimensionamento. Os Padres, por exemplo, pensam habitualmente na Igreja enquanto contemporaneamente visível e invisível, pelo que não é possível separar dela a parte “visível”. Eles também usam o axioma tendo em conta que os cismáticos se organizam

38 Cf. G. CANOBBIO, Appartenenza alla Chiesa. Incorporazione a Cristo. Salvezza, in G. COFFELE (a cura di), Dilexit Ecclesiam. Studi in onore del prof. Donato Valentini, Las, Roma 1999, p. 516.

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com frequência como uma “Igreja” que oferece uma própria sal- vação em contraposição com a verdadeira Igreja.39 Em relação ao cristão que erra ou ao pagão que ainda não está inserido no corpo eclesial, os Padres da Igreja normalmente não se manifestam nestes termos.40 Se pensarmos na Igreja desde uma perspectiva escatológica, a salvação vê-se também na sua plenitude final, pelo que Igreja e comunidade dos salvados são realidades coincidentes. Por isso é preciso ter sempre em conta o momento interpretativo em que nos movemos, senão, o axioma, em vez de iluminar o mistério, acaba por escondê-lo.

O Concílio sublinha que a Igreja Católica é a única verdadeira Igreja enviada por Deus para conduzir os homens à salvação. Ratzinger tentou identificar um sentido principal para o famoso axioma eclesiológico que nos ocupou ao longo destas páginas, identificando-o na exortação aos católicos para que não abandonem a Igreja, única via de salvação, que era o significado que a conhecida fórmula tinha durante o tempo dos Padres da Igreja.41

Hoje talvez não estejamos tão preocupados com o extra Ecclesiam nulla salus, porque existe uma maior consciência de que é possível salvar-se sem possuir um conhecimento da Igreja como via querida por Cristo. O problema atual é outro: se todos os homens podem salvar-se sem um conhecimento e uma união sacramental com a Igreja, faz algum sentido ser cristão no mundo de hoje? Por que é que Deus nos manda ser batizados? O problema contemporâneo já não é o axioma que examinamos, e sim a razão pela qual devemos viver in Ecclesia (e não só estar in Ecclesia), quando parece que o homem também se pode salvar seguindo a via da sua consciência. Portanto, o desafio consiste em mostrar como acreditar hoje que Deus quer que todos os homens se salvem, querendo ao mesmo tempo que o serviço da Igreja seja

39 Philips considera que a concordância do magistério conciliar com os Padres da Igreja é evidente: o problema do extra Ecclesiam foi usado pelos Padres da Igreja “em relação ao separatismo deliberado”, cf. G. PHILIPS, La Chiesa e il suo mistero, cit., p. 173.

40 A este respeito pode-se recordar, como faz Philips, que São Gregório Nanzianzeno definia o seu pai como “um dos nossos” pelas suas virtudes e pelo comportamento que tinha antes do Batismo, que só recebeu com uma idade muito avançada (cf. Orationes 18, 6, Pg 35, 992). Santo Ambrósio de Milão considerava que Valentiniano, morto sem ter recebido o Batismo, tinha sido salvo graças ao seu desejo de justificação (cfr. De obitu Valentiniani, 51 Pl 16, 1347).

41 Cf. J. RATZINGER, Il Nuovo Popolo di Dio, cit., p. 380.

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indispensável para a salvação. Talvez nos encontremos diante da ideia teológica da substituição ou da representação.42

Parece que uma das contribuições que o Concílio Vaticano II ofereceu para a compreensão do axioma deriva precisamente de não o ter enquadrado nas habituais referências a diversos casos isolados (que além disso não são tão isolados). Seria redutivo usar só a perspectiva objetiva da salvação. Por isso é necessário ter em conta simultaneamente as condições objetivas da salvação e as suas possibilidades subjetivas. Entre as condições objetivas está Cristo, que veio salvar-nos e é capaz de fazer que cada um dos nossos atos de amor – sempre marcados pelo egoísmo – possa ser amor verdadeiro e não perder-se no nada. E juntamente com Cristo está sempre a Igreja: eis, assim, o sentido do extra Ecclesiam, corpo de Cristo que atua juntamente com Ele. Cristo está sempre com a Igreja para salvar cada homem. O salvado, além disso, não é um simples receptor passivo, mas participa também na salvação própria e dos outros mediante Cristo: o homem é salvo também na medida em que salva os outros. Ser cristão é ser como Cristo, e Cristo é sempre para o Pai e para os homens. Portanto, ser como Ele é “ser para”: do “ser para si” ao “ser uns para os outros”. Portanto, o sentido de ser cristãos na Igreja é o de o ser também para os outros, e assim sendo também se é para si.

A nossa fórmula eclesiológica, portanto, pode significar que Deus não instituiu uma outra Igreja, porque não existe um outro mediador entre Deus e os homens, e quis que ela colaborasse com Ele no cumprimento do desígnio do Pai. O nosso axioma significa que não existe outra via através da qual recebemos Cristo, e que a Igreja não é nossa mas sua.

A ideia de pleroma, tal como São Paulo a descreve na carta aos Efésios, pode talvez ajudar a perceber que existe uma dupla atividade de Cristo no universo criado, visto que a sua ação no universo e na Igreja não são iguais. O seu ser cabeça do universo e da Igreja não são exatamente a mesma coisa, ainda que tenha sido através da sua glorificação que as duas funções se tenham verificado. A Igreja deve empenhar-se na construção do corpo de Cristo, e ela o faz levando o universo à sua plenitude em Cristo. Ao mesmo tempo, o poder de Cristo sobre toda a criação é muito mais extenso que o seu poder sobre a Igreja.

42 Cf. Ibidem, p. 386s.

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Esta assimetria não pode ser entendida no nosso axioma como uma vontade de fazer entrar o mundo inteiro dentro da Igreja com a violência, como se fosse através dum portão estreito, e com a obrigação de estar submetidos a diversas condições. Deve-se, outrossim pensar numa visão dinâmica da Igreja como pleroma de Cristo, e da ação de Cristo enquanto tal, que também é cabeça do universo. Assim, o extra Ecclesiam levar-nos-ia a tomar mais consciência do fato que Deus deu à Igreja uma cabeça que é muito maior do que ela.43 Portanto, a leitura mais recente do extra Ecclesiam nulla salus, à luz do desígnio salvífico universal, proposta na assembleia conciliar, leva a tornar mais sólida esta consciência da grandeza de Cristo.

Enfim, e ainda que o tratamento da questão vá mais além daquilo que nos tínhamos proposto nestas páginas, parece-nos importante assinalar que a Declaração Dominus Jesus, da Congregação da Doutrina da Fé, publicada no ano 2000, representa um desenvolvimento da perspectiva conciliar do axioma que examinamos nestas páginas. Os temas que tratamos encontram-se principalmente nos capítulos IV a VI da Declaração. Na apresentação da mesma foram vários os momentos em que a fundamentação dos argumentos se encontrava precisamente nos textos conciliares.44 Numa próxima ocasião se poderá mostrar

43 Cf. H. SCHLIER, Il tempo della Chiesa, EDB, Bologna 1981, p. 255-297, especialmente as pp. 268-274; Idem, La lettera agli Efesini, 2. ed., Paideia Ed., Brescia 1973, p. 129-149.

44 Recolhemos umas palavras de mons. Fernando Ocáriz, na apresentação do documento, no dia 6 de setembro do ano 2000, que se podem encontrar na página web da Congregação: “la Dichiarazione Dominus Jesus affronta direttamente la questione del rapporto che la Chiesa e le religioni non cristiane hanno con la salvezza degli uomini (nn. 20-22). Innanzitutto viene riaffermata la verità di fede secondo cui “la Chiesa pellegrinante è necessaria alla salvezza” (Conc. Vat. II, Lumen gentium, n. 14), verità da non separare da quest’altra: “Dio vuole che tutti gli uomini siano salvi” (1 Tim 2, 4). La Dichiarazione – seguendo anche qui l’Enciclica Redemptoris missio – ribadisce che “è necessario tener congiunte queste due verità, cioè la reale possibilità della salvezza in Cristo per tutti gli uomini e la necessità della Chiesa in ordine a tale salvezza” (n. 20). Dobbiamo credere che ogni salvezza – anche dei non cristiani – viene da Cristo attraverso la Chiesa, ma non sappiamo come ciò si realizza nel caso dei non cristiani (cf. n. 21). Perciò è specialmente necessario in questo contesto non pensare alla Chiesa soltanto né primariamente nella sua dimensione visibile e sociale, ma prima e soprattutto nella sua realtà di mistero interiore, spirituale, radicato nell’opera di Cristo che, mediante il suo Spirito, edifica il suo Corpo nella Comunione dei santi”. Na sua intervenção, tratam-se outras questões, aqui também estudadas, mostrando que a sua base argumentativa reside nos textos conciliares que aqui examinamos.

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Teocomunicação, Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 201-223, jul./dez. 2012

223“Fora da igreja não há salvação” ...

com mais atenção a ligação deste documento com o texto conciliar e os desenvolvimentos orgânicos que realiza para poder favorecer a fé, aspecto especialmente importante com ocasião no Ano da Fé e da nova evangelização à qual o Papa Bento XVI convocou toda a Igreja.

Recebido: 26/06/2012Avaliado: 29/06/2012